Apresentação

A propósito da comemoração dos seus trinta anos, o Centro de Estudos Sociais (CES) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra promove uma reflexão sobre as relações, diálogos e tensões que marcam actualmente o território heterogéneo das Ciências Sociais e Humanas (CSH) e os diferentes contextos em que elas se têm desenvolvido, quer a nível geográfico (nacionais, regionais e globais), quer a nível da sua inserção social (relevância, contribuição para políticas públicas, relações com as Ciências Naturais e tecnologias).

Esta reflexão e os debates que ela suscita desdobrar-se-ão em sete grandes temas transversais.

As Ciências Sociais e as Ciências Humanas: Complementaridade necessária?

Teorias e metodologias de investigação e de intervenção: analisar para transformar?

Interculturalidade e pós-colonialismos: é possível a igualdade na diferença?

A Universidade do futuro: há lugar para as Ciências sociais e Humanas?

Políticas sociais e novos riscos públicos: é possível combinar complexidade com equidade?

Governação e dinâmicas sociais contemporâneas: um mundo de diversidades ou de homogeneidades?

Globalização, paz e democracia: são possíveis alternativas à violência?

Cartografando futuros (Mesa Redonda)

 

As Ciências Sociais e as Ciências Humanas: Complementaridade necessária?

No panorama científico nacional, o Centro de Estudos Sociais é das poucas instituições onde uma forte investigação no âmbito das Ciências Sociais se tem combinado com uma investigação igualmente forte no âmbito das Humanidades. Esta interligação reflexiva, que se foi construindo ao longo dos últimos trinta anos, proporcionou o desenvolvimento de linhas de pensamento inovadoras na análise dos fenómenos sociais, políticos e artísticos, de que resultaram muitas publicações colectivas, e tornou possível, mais recentemente, a abertura de programas de doutoramento transdisciplinares em áreas tradicionalmente apresentadas como pertencendo às humanidades (interculturalidade e pós-colonialismo), à sociologia e à economia (democracia para o Século XXI, governação, conhecimento e inovação), ou ainda à ciência política e ao direito (direito, justiça e cidadania no século XXI). Torna-se agora necessário levar esta interligação reflexiva ao patamar seguinte: o da intraligação, ou seja, o da construção de novas constelações de saber, nas quais as marcas disciplinares sejam profundamente transformadas, se não mesmo abolidas. Pensamos que, no futuro, será este o patamar no qual, de um modo mais produtivo, se discutirá a questão da complementaridade necessária entre as ciências sociais e humanas.

Este painel propõe-se discutir os vários processos de fragmentação a que temos assistido nas diversas áreas das CSH e as novas reconfigurações do saber que têm vindo a emergir. Se, por um lado, estas nos abrem perspectivas mais amplas de análise e interpretação da realidade (a partir das várias áreas do saber e de diferentes lugares de enunciação), também nos criam, por vezes, alguma angústia de reconhecimento em relação ao cânone das grandes narrativas disciplinares a que o saber institucionalizado nos habituou. De que modos, com que instrumentos, e com que benefícios e riscos se passa da interdisciplinaridade à transdisciplinaridade ou mesmo à indisciplinaridade?

 

Teorias e metodologias de investigação e de intervenção: analisar para transformar?

As metodologias utilizadas pelas Ciências Sociais e Humanas (CSH) são muito diversificadas, revelando frequentemente tensões internas. O debate nesta área tem incidido frequentemente sobre a dicotomia entre metodologias quantitativas e qualitativas, privilegiando-se um paradigma da racionalidade tecnicista, que marginaliza considerações sobre a sua própria natureza e consequências políticas. Torna-se assim necessário questionar de que modo as metodologias utilizadas pelas CSH têm vindo (e podem vir) a desafiar este paradigma da racionalidade tecnicista, ou seja, como é que as questões que colocamos, os objectos que escolhemos, os métodos que utilizamos, e as formas de ‘devolução’ dos resultados podem tornar as nossas investigações mais emancipatórias. Para tal, será necessário analisar as novas configurações de um paradigma da racionalidade política (‘engajada’, colaborativa, solidária, participativa), assim como os seus limites. Essa análise deverá questionar também o que muda na nossa perspectiva sobre o conhecimento, se admitirmos a subjectividade, o desejo e a localização do crítico.

Por outro lado, as metodologias das CSH revelam também fortes ligações a outras áreas e perspectivas, pelo que as fronteiras tradicionais têm sido transgredidas, como é o caso da literatura e da sociologia, ou da teoria e da política. A emergência de áreas como os estudos culturais e os estudos dos mídia são bons exemplos dessa fertilização mútua de campos e disciplinas. O alargamento dos conceitos de cultura, por um lado, e de texto, por outro, abriram novos horizontes teóricos e metodológicos; para além da visibilidade dada a grupos subalternos e do reconhecimento de novos objectos culturais, os estudos culturais conseguiram legitimar o cunho político da crítica. Por sua vez, com os estudos das culturas digitais, o hipertexto veio dar novo alento à teoria crítica e literária, como laboratório de recriação dos conceitos tradicionais de epistemologia, agência e ética. A análise das transformações introduzidas pelo suporte virtual à economia da escrita, da leitura, da pesquisa e da comunicação vem desvendando um vasto campo de questões. A interacção que marca as práticas digitais exige a renovação do nosso entendimento do que é um autor, um leitor, um texto, e do que é, também, o significado.

Finalmente, o esgotamento da escala nacional de análise alterou o enquadramento da relação entre a produção do conhecimento e a intervenção social, fazendo-nos repensar as funções do intelectual público. As múltiplas dinâmicas de transnacionalização, inclusive dos próprios profissionais, abre a hipótese de as CSH se desligarem do Estado, escolherem outros parceiros de intervenção e criarem novos contextos de luta política. Esta possibilidade é tanto mais promissora num momento em que a Universidade atravessa, também ela, transformações profundas, que põem em causa a continuidade do seu papel na afirmação dos intelectuais públicos e na projecção e credibilização social do conhecimento em CSH. Perguntamo-nos, enfim, até que ponto poderão estas mudanças potenciar a renovação das teorias e das metodologias e levar as CSH a ultrapassar o tradicional impasse entre a análise crítica e a transformação política.

 

Interculturalidade e pós-colonialismos: é possível a igualdade na diferença?

Os processos de globalização e liberalização e as críticas da modernidade e da herança colonial têm transformado as Ciências Sociais e Humanas (CSH), tanto no Norte global, como no Sul global. Este painel pretende examinar estas transformações em diferentes contextos, o seu impacto nas relações Norte-Sul no domínio das CSH, e ainda as formas como as próprias CSH têm auto‑reflectido sobre essas transformações. Neste âmbito, surgem muitas indagações de natureza epistemológica, teórica, política e institucional, que podem ser centradas em duas questões principais. A primeira diz respeito ao impacto das críticas pós-coloniais na produção, recepção e apropriação do conhecimento no interior das CHS e para além delas. Esta circunstância implica uma análise das opções teóricas que permitem um descentramento da herança científica ocidental e a integração de diferenças culturais, preservando simultaneamente a possibilidade de diálogo e de envolvimento político. Implica ainda um questionamento dos modos como as CSH têm conseguido contrariar as hierarquias e os pressupostos supostamente inquestionáveis que transformam os sujeitos em objectos de conhecimento e reduzem a diversidade dos conhecimentos à monocultura do conhecimento científico. Um conceito chave neste contexto é a forma como a interrelação entre o uso académico e o uso comum dos conceitos de cultura e interculturalidade tem vindo a modelar novos enquadramentos epistemológicos e diferentes processos de mobilização política.

A segunda questão refere-se ao impacto da globalização nas CSH em diferentes contextos. Um aspecto crucial deste problema, relacionado com as políticas de co-desenvolvimento, diz respeito às consequências da migração de académicos/as e dos conhecimentos produzidos pelas CSH na direcção Norte-Sul, Sul-Norte e Sul-Sul. Torna-se necessário examinar criticamente temas como o tipo de investigação que o Norte realiza no Sul; as frequências e os impactos das viagens Norte-Sul, Sul-Norte e Sul-Sul de investigações e teorias nas CSH; os efeitos e significados da “evasão” de intelectuais do Sul para o Norte e do retorno ao Sul dos que se formam no Norte. É, portanto, fundamental reflectir sobre o tipo de diálogo travado nas relações Norte-Sul e Sul-Sul nas CSH e sobre o reconhecimento internacional do conhecimento produzido pelas CSH do Sul. Tem havido uma troca mais acentuada e mais igualitária nas relações Norte-Sul e Sul-Sul dos centros de investigação nas CSH?

 

A Universidade do futuro: há lugar para as Ciências sociais e Humanas?

No actual momento de transição paradigmática, a Universidade surge no centro da opção fundamental entre um modelo de sociedade regido por parâmetros e lógicas economicistas, sob os imperativos do mercado, e um modelo capaz de conferir centralidade aos conceitos de cidadania, democracia e cultura. As CSH, áreas que resistem a critérios de utilidade e mercantilização, não podem deixar de estar no centro deste debate. As tentativas recentes de tornar as Ciências Sociais lucrativas poderão ou não constituir uma ameaça à sua liberdade de definir temas, objectos e métodos de investigação, bem como à independência política e económica dos seus resultados? Quanto às Humanidades, que lugar terão num modelo de Universidade e de sociedade assente num conceito de conhecimento materializável e utilitário? Como poderá ser aferido o sentido da missão das CSH? Numa perspectiva material, quantificável em resultados mercantilizáveis, ou exclusivamente na perspectiva imaterial da construção da cidadania e da democracia?

Neste âmbito, o desafio que se coloca às CSH é fundamental: estaremos perante a necessidade de relegitimar a sua própria razão de ser no espectro das ciências e das revisões críticas do próprio conceito de “conhecimento”, no conjunto da instituição universitária e perante as fontes de financiamento, públicas e privadas, e, em última instância, no conjunto da sociedade que as interpela e com quem interage na produção científica e na formação? Que papel poderão desempenhar os saberes das CSH na concepção de um modelo alternativo de organização universitária, no qual as mais diversas áreas do conhecimento, valências e missões possam conviver de forma fértil e desenvolver-se com a liberdade e autonomia que sempre foram pressupostos da missão da Universidade?

 

Políticas sociais e novos riscos públicos: é possível combinar complexidade com equidade?

As Ciências Sociais e Humanas (CSH) têm-se confrontado com múltiplos desafios, relacionados, por um lado, com a temática das políticas sociais, e, por outro lado, com a temática dos novos riscos públicos. Em ambos os casos, estes desafios aparecem extensamente associados aos processos contraditórios de globalização neoliberal.

Um dos desafios remete para as temporalidades e dinâmicas que as políticas sociais vêm mantendo face aos horizontes de equidade, redistribuição, segurança e justiça social. Considerando a tensão entre a lógica capitalista de acumulação e a necessidade da sua legitimação através de políticas sociais, cabe às CSH repensar o papel efectivo do Estado e a sua capacidade de criar e implementar políticas sociais, rumo a uma transformação social emancipatória. Há também que atender às diferenças entre o Norte e o Sul, os seus modelos de políticas sociais e as especificidades das crises que os mesmos enfrentam, no contexto de globalização neoliberal. Torna-se necessário, assim, pensar a articulação das diferentes escalas local, nacional, regional e global e dos actores sociais e políticos envolvidos na formulação e implementação das políticas sociais. Examinar esta articulação suscita um questionamento acerca dos significados de “política social global” e dos papéis desempenhados pelas agências transnacionais hegemónicas que desenvolvem modelos de política social. Este exame conduz, ainda, à análise crítica da emergência e actuação de outros actores, que não o Estado, como ONGs e movimentos sociais.

Os novos riscos públicos, por sua vez, têm vindo a tornar-se uma preocupação central de vários domínios científicos, incluindo as CSH. O desenvolvimento destas novas áreas requer novas formas de institucionalização, ancoradas no desenvolvimento de novas parcerias e em trabalho transdisciplinar. Em vários domínios, tem surgido um conjunto de preocupações públicas acompanhadas por novas e emergentes concepções de risco, nos domínios do ambiente e da saúde pública, da segurança alimentar, das tecnologias médicas, das tecnologias da informação e da comunicação, dos desastres naturais, dos acidentes industriais, da segurança pública, assim como nas formas emergentes de vulnerabilidade social associadas às mudanças económicas e institucionais. O que conta como risco em diferentes sociedades e em diferentes contextos sociais e socio-ecológicos  em todo o mundo, tanto no Norte como no Sul, é variável e é inseparável de novas configurações de conhecimentos, que mobilizam saberes científicos e especializados, mas também saberes locais e baseados na experiência. O mesmo se aplica à diversidade de actores envolvidos nas respostas aos riscos em diferentes locais e em diferentes escalas.

 

Governação e dinâmicas sociais contemporâneas: um mundo de diversidades ou de homogeneidades?

A teoria social contemporânea da economia à sociologia comporta tensões importantes que se reflectem de maneira significativa no modo como se encara a organização social, económica e política. A paradigmas assentes no primado dos princípios da globalização que vêem nas mobilidades e na racionalidade dos actores não-territorializados o essencial do poder de condução das sociedades contrapõem-se outras perspectivas, que sublinham a variedade das configurações que formam o mundo. Trata-se, no fundo, de discutir se prevalece um principio de convergência dos sistemas sociais, perante o qual as diferenciações são factos marginais, transitórios e apenas funcionais em relação à “sede” dominante, ou se, pelo contrário, há lugar para lógicas de estruturação colectivas e para modos diferenciados de governação.

Para além deste debate, resta ainda saber se os actores a pluralidade dos actores relevantes desenvolvem estratégias intencionais com as quais procurem assegurar o domínio dos contextos em que agem, ou se essa capacidade lhes está vedada, porque pertence a um núcleo reduzido e autoritário. Se se privilegia a primeira hipótese, dá-se valor à consolidação de formas institucionais que consagram a diferença e a variedade. Se isso não acontece, torna-se relativamente indiferente considerar os fenómenos específicos, porque eles não são sustentáveis.

A forma como se encara o capitalismo contemporâneo exemplifica este problema. Em alguns casos, limita-se esta forma histórica de organização social à faceta que se designa, correntemente, de neoliberal. Noutros, interessa compreender o capitalismo não liberal e aquele que desenvolveu mecanismos de coordenação robustos, para além do mercado. Surge, então, a noção de governação pouco nobre para as primeiras perspectivas e o estudo das instituições torna-se central. É também nesta linha que se pode debater se a evolução e as dinâmicas sociais resultam de soluções sociais laboriosas e diferenciadas, construídas em territórios concretos, do local ao regional, ao nacional e aos processos de integração, ou se, pelo contrário, se deve privilegiar alternativas da mesma escala transnacional e assentes em princípios comparáveis aos do capitalismo neoliberal.       

 

Globalização, paz e democracia: são possíveis alternativas à violência?

No actual contexto de globalização neoliberal e de invasões promovidas pelos Estados Unidos da América e por aliados seus em nome da democracia, impõe-se às Ciências Sociais e Humanas (CSH) problematizar as relações entre paz e democracia. Em primeiro lugar, deve-se questionar os significados que ambos os termos adquirem em diferentes discursos políticos e em diferentes contextos sociais, económicos e culturais. De seguida, há que pensar nas relações entre as diferentes escalas (local, regional, nacional e global) e dimensões (cultural, estrutural, inter-subjectiva) das violências que ocorrem por todo o mundo. Quais são as condições necessárias para os processos de paz e de democracia social? Por último, cabe reflectir criticamente sobre a relação entre paz e democracia. Assumindo que a democracia liberal e representativa não é suficiente para o reconhecimento dos interesses de diversos grupos sociais e para a administração pacífica dos seus conflitos, outras formas de democracia, como a “democracia radical” e a “democracia participativa”, têm vindo a ser propostas e praticadas em alguns contextos, tanto do Norte, como do Sul global. Mas é preciso indagar, igualmente, como estas outras formas de democracia se relacionam com a violência e com a paz. Quais os contributos da democracia participativa na negociação pacífica de conflitos violentos? Até que ponto a paz social não será também uma das condições para os processos de democracia participativa?

 

Cartografando futuros

Mapear os territórios diversos das Ciências Sociais e Humanas (CSH) neste início de século não envolve apenas analisar os seus diferentes trajectos teóricos, metodológicos, analíticos ou de intervenção. Envolve também repensar as diferentes formas de institucionalização das CSH e o modo como elas permitem construir e pensar novos futuros.

Neste sentido, é importante que tais questões sejam debatidas, não só internamente, no seio da comunidade científica, nas próprias instituições de investigação e nas respectivas sociedades científicas, como também com entidades intermediárias, agências financiadoras da investigação em CSH ou similares. Estas organizações não apenas têm uma intervenção decisiva nestes processos, através das respectivas decisões e, em particular, da atribuição de financiamentos, como desempenham igualmente um papel importante na intermediação entre os investigadores, o poder político e a sociedade no seu conjunto. Se, por um lado, auscultam a comunidade científica na definição das principais questões de investigação, dos principais avanços teóricos e metodológicos, como o poderão fazer neste colóquio, também colocam à mesma comunidade objectivos para os quais a sociedade pretende ver respostas.

Esta sessão pretende contribuir para evidenciar esse diálogo, criando um espaço de discussão sobre o futuro das CSH (ou mesmo sobre as CSH do futuro?), em que essas diferentes formas de institucionalização sejam também debatidas com responsáveis de organizações intermediárias, à luz das questões colocadas pelo Colóquio e das opções estratégicas das políticas de investigação. Pretende-se também que esta discussão seja feita não apenas na lógica dominante do ‘Espaço Europeu de Investigação’, mas que o ultrapasse, considerando diferentes espaços de investigação, e abordando, também aqui, as questões Norte-Sul nas CSH.