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Boaventura de Sousa Santos

João Arriscado Nunes

Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade

 

 

 

Multiculturalismo, justiça multicultural, direitos colectivos, cidadanias plurais são hoje alguns dos termos que procuram jogar com as tensões entre a diferença e a igualdade, entre a exigência de reconhecimento da diferença e de redistribuição que permita a realização da igualdade. Essas tensões estão no centro das lutas de movimentos e iniciativas emancipatórios que, contra as reduções eurocêntricas dos termos matriciais (cultura, justiça, direitos, cidadania), procuram propor noções mais inclusivas e, simultaneamente, respeitadoras da diferença de concepções alternativas da dignidade humana. Como é possível, ao mesmo tempo, exigir que seja reconhecida a diferença, tal como ela se constituiu através da história, e exigir que os «outros» nos olhem como iguais e nos reconheçam os mesmos direitos de que são titulares? Como compatibilizar a reivindicação de uma diferença enquanto colectivo e, ao mesmo tempo, combater as relações de desigualdade e de opressão que se constituíram acompanhando essa diferença? Como compatibilizar os direitos colectivos e os direitos individuais? Como reinventar as cidadanias que sejam capazes, ao mesmo tempo, de ser cosmopolitas e de ser locais? Que experiências existem neste campo e o que nos ensinam elas sobre as possibilidades e as dificuldades de construção de novas cidadanias e do multiculturalismo emancipatório?

As contribuições incluídas neste volume procuram, em contextos distintos e a partir de lutas colectivas em diferentes escalas, envolvendo uma diversidade de actores e em torno de uma pluralidade de temas, ajudar a identificar as condições em que o multiculturalismo, as diferentes concepções de justiça e de direitos e novas formas de cidadania têm sido postos à prova. Importa sublinhar, contudo, que os próprios termos que usamos para descrever estas lutas e iniciativas colectivas são problemáticos, podendo encerrar pressupostos eurocêntricos e revelar-se inadequados para lidar com estas situações. Por outro lado, e na medida em que estes termos têm sido mobilizados, no Norte e não só, para a promoção de causas emancipatórias e da solidariedade com as vítimas de opressão e com os povos do Sul, o seu uso estratégico é, sem dúvida, um importante recurso para construção de novas formas de solidariedade. Faz sentido, por isso, começar por uma desconstrução crítica desses conceitos, antes de passar a examinar as formas como os estudos de caso incluídos neste volume sugerem formas de reconstrução de um vocabulário e de instrumentos emancipatórios para a invenção de novas cidadanias, assentes no recurso a uma sociologia das ausências, capaz de identificar os silêncios e as ignorâncias que definem as incompletudes das culturas, das experiências e dos saberes, e de uma teoria da tradução, que permita criar inteligibilidades mútuas e articular diferenças e equivalências entre experiências, culturas, formas de opressão e de resistência.

 

 

 

 

1. A possibilidade de multiculturalismos emancipatórios

1.1. Multiculturalismo: um conceito contestado

A expressão multiculturalismo designa, originalmente, a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades «modernas». Rapidamente, contudo, o termo se tornou um modo de descrever as diferenças culturais num contexto transnacional e global. Existem diferentes noções de multiculturalismo, nem todas de sentido emancipatório. O termo apresenta as mesmas dificuldades e potencialidades do conceito de «cultura», um conceito central das humanidades e das ciências sociais e que, nas últimas décadas, se tornou um terreno explícito de lutas políticas.

A ideia de cultura, num dos seus usos mais comuns, está associada a um dos domínios do saber institucionalizados no Ocidente, as humanidades. Definida como repositório do que de melhor foi pensado e produzido pela humanidade, a cultura, neste sentido, assenta em critérios de valor, estéticos, morais ou cognitivos que, definindo-se a si próprios como universais, elidem a diferença cultural ou a especificidade histórica dos objectos que classificam. O cânone é a expressão por excelência desta concepção de cultura, estabelecendo os critérios de selecção e as listas de objectos especialmente valorizados como património cultural universal, em domínios como a literatura, as artes, a música, a filosofia, a religião ou as ciências (Santos, 1998).

Uma outra concepção, que coexiste com a anterior, reconhece a pluralidade de culturas, definindo-as como totalidades complexas que se confundem com as sociedades, permitindo caracterizar modos de vida assentes em condições materiais e simbólicas. Esta definição leva a estabelecer distinções entre culturas que podem ser consideradas seja como diferentes e incomensuráveis, e julgadas segundo padrões relativistas, seja como exemplares de estádios numa escala evolutiva que conduz do «elementar» ou «simples» ao «complexo» e do «primitivo» ao «civilizado». A antropologia, como disciplina, adoptou, até meados do século XX, diferentes variantes desta concepção. A sua expressão por excelência é a colecção - seja sob a forma da etnografia, seja sob a forma do espólio museológico -, que permite reunir, classificar e «nomear» uma cultura, garantindo uma autenticidade de que as instituições culturais ocidentais ou as instituições organizadas segundo concepções eurocêntricas nos países do Sul ou do Oriente seriam os guardiães (Clifford, 1988).

Estes dois modos de definir a cultura permitiam estabelecer uma distinção entre as sociedades modernas, as sociedades coincidentes com espaços nacionais e com os territórios sob a autoridade de um Estado, estruturalmente diferenciadas que «têm» cultura e as «outras» sociedades «pré-modernas» ou «orientais» que «são» culturas. Eles foram consagrados e reproduzidos através de instituições típicas da modernidade ocidental como as universidades, o ensino obrigatório, os museus e outras organizações, e exportados para os territórios coloniais ou para os novos países emergentes dos processos de descolonização, reproduzindo nesses contextos concepções eurocêntricas de universalidade e de diversidade.

No período pós-colonial e no quadro dos processos de globalização das últimas décadas do século XX, com o alargamento e aprofundamento das desigualdades tanto no Norte como no Sul, a mobilidade crescente das populações do Sul, especialmente em direcção ao Norte, e a diversificação étnica crescente das populações residentes nos países do Norte, a distinção entre os dois tipos de sociedades tornou-se cada vez mais difícil de manter. A partir da década de 1980, sobretudo, as abordagens das humanidades e das ciências sociais convergiram no domínio transdisciplinar dos estudos culturais para pensar a cultura como um fenómeno associado a reportórios de sentido ou de significado partilhados pelos membros de uma sociedade, mas também à diferenciação e hierarquização, no quadro de sociedades nacionais, de contextos locais ou de espaços transnacionais. A cultura tornou-se, assim, um conceito estratégico central para a definição de identidades e de alteridades no mundo contemporâneo, um recurso para a afirmação da diferença e da exigência do seu reconhecimento (Spivak, 1999) e um campo de lutas e de contradições.

O conceito de multiculturalismo é, também ele, controverso e atravessado por tensões. Ele aponta simultaneamente ou alternativamente para uma descrição e para um projecto (Stam, 1997). Enquanto descrição, pode referir-se a:

  1. a existência de uma multiplicidade de culturas no mundo;
  2. a co-existência de culturas diversas no espaço de um mesmo Estado-nação;
  3. a existência de culturas que se interinfluenciam tanto dentro como para além do Estado-nação.

É na medida em que o multiculturalismo como descrição das diferenças culturais e dos modos da sua interrelação se sobrepõe ao multiculturalismo como projecto político de celebração ou reconhecimento dessas diferenças que ele tem suscitado críticas e controvérsias, vindas tanto de sectores conservadores como de diferentes correntes progressistas e de esquerda. As críticas conservadoras têm encontrado expressão e eco, sobretudo, nos Estados Unidos da América, como resposta às transformações na composição étnica da população americana, à presença crescente de imigrantes e, sobretudo, de um forte contingente de imigrantes ilegais com origem na América Latina, aos programas sociais de discriminação positiva dirigidos a grupos excluídos ou marginalizados, como os afro-americanos ou os hispânicos, ao desenvolvimento, no meio académico, de programas de estudos culturais e de estudos sobre as mulheres e às transformações no curriculum de áreas tradicionais como a literatura, destinadas a conferir visibilidade e voz às mulheres e às minorias, a algumas políticas públicas de apoio à criação cultural de minorias e, finalmente, ao surgimento, no espaço público, de movimentos defendendo políticas de identidade, baseadas no reconhecimento da sua diferença. Stam (1997) sintetiza essas críticas nos quatro aspectos seguintes:

  1. O multiculturalismo seria anti-europeu, procurando substituir os valores e realizações da civilização ocidental por uma promoção sem critério de realizações «inferiores».
  2. O multiculturalismo promoveria a desunião e a divisão, fragmentando a sociedade e ameaçando a coesão e unidade de objectivos da nação.
  3. O multiculturalismo seria uma «terapia para minorias», destinada a promover a auto-estima destas face à sua manifesta incapacidade de desempenho adequado no sistema educativo e na sociedade.
  4. O multiculturalismo seria um «novo puritanismo», apoiado num policiamento da linguagem e na imposição totalitária de uma linguagem «politicamente correcta».

Algumas respostas progressistas a esta caracterização acentuam o carácter anti-eurocêntrico (e não anti-europeu) dos projectos multiculturais, assegurando o reconhecimento e visibilidade das culturas marginalizadas ou excluídas da modernidade Ocidental; o reconhecimento das diferenças culturais e de experiências históricas, do diálogo intercultural com vista a forjar alianças e coligações políticas para a promoção das culturas e grupos subalternos; a promoção de um «contraponto de perspectivas» históricas e culturais, de modo a produzir uma história relacional, que inclua os subalternos; a denúncia de que as manifestações de «correcção política» ocorrem em todos os sectores e quadrantes da sociedade e do espectro político, mas só são atacadas quando estão associadas à defesa da igualdade ou do reconhecimento das diferenças.

Não é unívoca nem pacífica, contudo, a resposta dos sectores progressistas ao multiculturalismo. As razões para tal residem na diversidade de projectos culturais e políticos que se descrevem a si mesmos como multiculturais e nos diferentes âmbitos geopolíticos e espaciais em que eles se inscrevem (Norte ou Sul, local, nacional, global, etc.). As críticas principais podem ser agrupadas da seguinte forma:

a) O conceito de multiculturalismo é um conceito eurocêntrico, criado para descrever a diversidade cultural no quadro dos Estados-nação do hemisfério Norte e para lidar com a situação resultante do afluxo de imigrantes vindos do Sul num espaço Europeu sem fronteiras internas, da diversidade étnica e afirmação identitária das minorias nos EUA e dos problemas específicos de países como o Canadá, com comunidades linguísticas ou étnicas territorialmente diferenciadas. Trata-se de um conceito que o Norte procura impor aos países do Sul como modo de definir a condição histórica e identidade destes. Essa imposição implica a «exportação» ou «viagem» de conceitos ou quadros analíticos que continuam a ser veículos de uma dominação intelectual eurocêntrica. No Sul, o conceito é associado à retórica e agenda política dos Estados, muitas vezes com o objectivo ou o resultado de consagrar formas opressivas e exclusionárias de «comunitarismo», por vezes associado a fundamentalismos religiosos (como na Índia). A multiplicação de adjectivações do multiculturalismo, descrito alternativamente como «liberal», «autoritário», «de empresa (corporate)», «insurgente», «de boutique», «crítico», «agregativo», «universalista», «essencialista», «paradigmático», «modular», torna-o um conceito sem um conteúdo preciso, que não está necessariamente associado a perspectivas ou projectos emancipatórios (Bharucha, 2000: 10).

b) Para outros, o multiculturalismo seria a expressão por excelência da lógica cultural do capitalismo multinacional ou global (um capitalismo «sem pátria», finalmente...) e uma nova forma de racismo:

a forma ideal de ideologia deste capitalismo global é o multiculturalismo, a atitude que, a partir de uma espécie de posição global vazia, trata cada uma das culturas locais do modo como o colonizador trata povos colonizados - como «nativos» cujos costumes devem ser cuidadosamente estudados e «respeitados». [...] O multiculturalismo é um racismo que esvazia a sua própria posição de qualquer conteúdo positivo (o multiculturalista não é um racista directo, ele não opõe ao Outro os valores particulares da sua própria cultura), mas não obstante conserva a sua posição enquanto ponto vazio privilegiado de universalidade a partir do qual se pode apreciar (e depreciar) de maneira adequada outras culturas em particular - o respeito multiculturalista pela especificidade do Outro é a forma ela própria de afirmar a própria superioridade (Zizek, 1997: 44).

c) O multiculturalismo tende a ser «descritivo» e «apolítico», elidindo o problema das relações de poder, da exploração, das desigualdades e exclusões, (o modelo «United Colors of Benetton»). O recurso central à noção de «tolerância» não exige um envolvimento activo com os «outros» e reforça o sentimento de superioridade de quem fala de um autodesignado lugar de universalidade.

d) Nos casos em que ocorre, a «politização» dos projectos multiculturais tem lugar no quadro do Estado-nação, como «estatuto especial» atribuído a certas regiões ou povos, cuja existência colectiva e direitos colectivos são reconhecidos apenas enquanto subordinados à hegemonia da ordem constitucional do Estado-nação (e enquanto forem compatíveis com as noções de soberania, direitos e, em especial, direitos de propriedade, vigentes no quadro desta).

e) O conceito de multiculturalismo tende a ser tratado, no âmbito dos estudos culturais e dos estudos pós-coloniais e das ciências sociais, através de uma associação privilegiada à mobilidade e à migração, com ênfase na dos intelectuais, e no silenciamento das situações de mobilidade forçada ou subordinada (refugiados, trabalhadores migrantes, migrantes regressados) ou dos que, não sendo móveis, são sujeitos aos efeitos e consequências das dinâmicas culturais, económicas e políticas translocais. Essa associação verifica-se, quer na teorização pós-colonial da hibridação (Bhabha, 1994), quer no privilegiar do recurso à literatura e a outras formas «expressivas» de cultura que podem ser estudadas utilizando os recursos das disciplinas académicas eurocêntricas. A tendencial essencialização e universalização da «condição migrante» nega as histórias diferenciadas das migrações e, além disso, ignora os «indivíduos e comunidades que resistem à ‘migrância’ na base de outras lealdades e laços com a família, tradição, comunidade, língua e religião que nem sempre são traduzíveis para as normas do individualismo liberal» (Bharucha, 2000: 7).

f) Finalmente, é possível interrogar a própria pertinência de termos como «cultura» ou «multiculturalismo» para descrever e caracterizar contextos e experiências diferenciados, em que existem formas de visão e de divisão do mundo distintas, para as quais a noção de «cultura» ou a divisão entre o cultural, o económico, o social ou o político não é relevante. Esta crítica suscita o problema dos usos «estratégicos» de conceitos hegemónicos, que será desenvolvida na secção seguinte.

Apesar das críticas acima enunciadas, o termo «multiculturalismo» generalizou-se como modo de designar as diferenças culturais num contexto transnacional e global. Isso não significa, contudo, que tenham sido superadas as contradições e tensões internas apontadas pelos críticos. De facto, a expressão pode continuar a ser associada a conteúdos e projectos emancipatórios e contra-hegemónicos ou a modos de regulação das diferenças no quadro do exercício da hegemonia nos Estados-nação ou à escala global. É importante, por isso, especificar as condições em que o multiculturalismo como projecto pode assumir um conteúdo e uma direcção emancipatórios.

As versões emancipatórias do multiculturalismo baseiam-se no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum para além de diferenças de vários tipos. Estas concepções de multiculturalismo estão ligadas, geralmente, e como notou Edward Said, a «espaços sobrepostos» e «histórias entrelaçadas», produtos das dinâmicas imperialistas, coloniais e pós-coloniais que puseram em contacto metrópoles e territórios dominados, e que criaram as condições históricas de diásporas e outras formas de mobilidade (Said, 1994; Clifford, 1997). A ideia de movimento, de articulação de diferenças, de emergência de configurações culturais baseadas em contribuições de experiências e de histórias distintas tem levado a explorar as possibilidades emancipatórias do multiculturalismo, alimentando os debates e iniciativas sobre novas definições de direitos, de identidades, de justiça e de cidadania. Nem sempre, contudo, é explicitada a relação entre as condições que possibilitam essas formas de mobilidade e de hibridação e as dinâmicas do sistema-mundo capitalista, que produzem, reproduzem e ampliam desigualdades e a marginalização e exclusão de contingentes importantes da população mundial, tanto no Norte como no Sul. Para alguns dos proponentes de versões emancipatórias do multiculturalismo, a relevância da cultura reside no facto de ela ser, na era do capitalismo global, o espaço privilegiado de articulação da reprodução das relações sociais capitalistas e do antagonismo a elas (Lowe e Lloyd, 1997a: 23-24): «Se a tendência do capitalismo transnacional é a mercadorização de tudo e, consequentemente, o colapso do cultural no económico, é precisamente onde o trabalho, diferenciado e não ‘abstracto’ está a ser transformado em mercadoria que o cultural se torna, de novo, político» (Lowe e Lloyd, 1997a: 24), «o campo em que as contradições políticas e económicas são articuladas» (Lowe e Lloyd, 1997a: 32, nota 37).

É nesta relação entre o multiculturalismo e as dinâmicas económicas e políticas da globalização que focaremos a nossa atenção a seguir. A explicitação dessa relação passa pelo debate sobre a concepção de direitos humanos, sobre a sua eurocentricidade e sobre a possibilidade de esses direitos poderem ser concebidos em termos multiculturais, sobre novas concepções de cidadania, de uma cidadania cosmopolita assente no reconhecimento da diferença e na criação de políticas sociais dirigidas à redução das desigualdades, à redistribuição de recursos e à inclusão. Essa nova cidadania requer a invenção de processos dialógicos e diatópicos de construção de novos modos de intervenção política.

 

 

1.2. Multiculturalismo e emancipação

Lisa Lowe e David Lloyd (1997a) expressam, de maneira exemplar, as perplexidades e as contradições suscitadas, no quadro do pensamento crítico e emancipatório produzido no Norte, pela necessidade de pensar a articulação entre a luta pela redistribuição e a luta pelo reconhecimento no quadro da globalização hegemónica. Algumas das teorizações mais influentes da fase actual do capitalismo associam características deste, como a extensão à escala do globo de formas de acumulação flexível e de mercadorização generalizada, com uma tendencial homogeneização da cultura a partir do centro norte-americano. Daqui decorreria a radical redução das «possibilidades de criação de alternativas, confinando-as seja ao domínio da própria cultura mercadorizada, seja a espaços que, por razões de mera contingência histórica, pareciam não incorporados na globalização» (Lowe e Lloyd, 1997a: 1). A esta posição contrapõem a de que «o capitalismo transnacional ou neocolonial, como antes dele o capitalismo colonialista, continua a produzir lugares de contradição que são efeitos da sua sempre desigual expansão, mas que não podem ser subsumidos na própria lógica da mercadorização» (Lowe e Lloyd, 1997a). Nesta perspectiva, «a ‘cultura’ obtém uma força ‘política’ quando uma formação cultural entra em contradição com lógicas políticas ou económicas que tentam refuncionalizá-la para a exploração ou dominação» (Lowe e Lloyd, 1997a). A cultura será, assim, encarada não como «uma esfera num conjunto de esferas e práticas diferenciadas», mas como «um terreno em que a política, a cultura e o económico formam uma dinâmica inseparável» (Lowe e Lloyd, 1997a). Daqui decorre uma crítica das «teorias culturais, políticas e jurídicas liberais que são o ‘correlativo social’ da economia capitalista» e o apelo a «um inventário afirmativo da sobrevivência de alternativas em muitas localizações por todo o mundo» (Lowe e Lloyd, 1997a: 1-2). O objectivo não é «a identificação do que está ‘fora’ do capitalismo, mas do que surge historicamente, em contestação e ‘em diferença’ em relação a ele» (Lowe e Lloyd, 1997a).

Esta visão alternativa vai buscar ao marxismo a ideia da importância das ligações internacionais das lutas no quadro do capitalismo como sistema global. Essas lutas, contudo, travam-se num contexto histórico em que, por um lado, deixou de ser possível atribuir a um actor colectivo por excelência, como o proletariado global, o protagonismo central de lutas dirigidas contra formas diferentes de opressão e de dominação, envolvendo a emergência de uma correspondente diversidade de sujeitos colectivos. Por outro lado, torna-se necessário reconceptualizar a escala espacial dessas lutas, que se travam nos espaços nacionais, supranacionais e subnacionais em que opera o capitalismo. É fundamental, por isso, uma compreensão «mais diferenciada» do que são processos e actividades políticas, incluindo o desafio à ideia de que o antagonismo de classe seria o lugar privilegiado das contradições do sistema. São os próprios processos característicos das dinâmicas diferenciadas e desiguais do capitalismo que geram contradições e lutas de diferentes tipos, que não são todas simplesmente integráveis ou subordináveis à luta de classes, e que não têm necessariamente o espaço nacional como espaço privilegiado. As lutas das mulheres, dos ambientalistas, dos movimentos anti-racistas ou pelo reconhecimento de identidades étnicas estão aí para nos recordar que tanto a dominação como a resistência se fazem ao longo de diversos eixos, e que estes não estão subordinados, de maneira definitiva, a uma «contradição principal». Em diferentes situações irão emergir lutas diversas e actores colectivos distintos. Joga-se aqui, como diriam Laclau e Mouffe (2001), um processo de equivalências entre dinâmicas, lutas e posições de sujeitos diferentes, a partir das quais se torna possível a articulação de novas configurações contra-hegemónicas.

As implicações epistemológicas desta reflexão são importantes, tanto pelos caminhos que abrem como pelas limitações que revelam. O marxismo, nas suas diferentes versões, tendeu a definir os saberes, as experiências, as práticas e as lutas dos dominados do Norte e do Sul, dos subalternos e dos nativos do Sul e do «Oriente» como objectos a teorizar, e não como contribuições criativas e indispensáveis a lutas emancipatórias num quadro global. A resposta de Lowe e Lloyd a essa tendência consiste em propor o «curto-circuito» das tradições marxistas, através do estudo de casos que mostrem as relações entre teorias e práticas situadas e as traduções e transformações de teorias «importadas» numa diversidade de localizações, bem como as ligações entre essas localizações.

Esta visão apresenta, contudo, um conjunto importante de limitações. Se o marxismo e as correntes intelectuais e teóricas mencionadas constituem, nas suas diferentes articulações, o círculo de reciprocidade mais abrangente dentro da cultura ocidental, também é certo que elas não constituem uma crítica radical dos pressupostos eurocêntricos da história do mundo e do desenvolvimento, antes partilhando muitos dos pressupostos da filosofia liberal. De facto, tanto o liberalismo como o marxismo ocidental e outros discursos emancipatórios da modernidade partilham o que Benjamin chamou «historicismo», isto é, a «concepção da história como a narrativa do desenvolvimento dos sujeitos e culturas modernos» (Lowe e Lloyd, 1997a: 3). Desta forma, define-se o «político» em função de uma sobreordenação que atira para o passado ou para a marginalidade outras formas de socialidade, contradição, oposição, resistência ou luta. O colonialismo consistiu, em boa medida, no alargamento desta lógica à escala global. Daqui decorre, por exemplo, o reconhecimento do nacionalismo como única forma «moderna» de resistência ao colonialismo. As novas perspectivas procuram tornar visíveis, em contrapartida, as formas de resistência, oposição e alternativa surgidas, em diferentes localizações, «com e em relação à própria modernidade» (Lowe e Lloyd, 1997a: 4).

As teorias feministas, pós-coloniais ou pós-estruturalistas e os «projectos subalternos» fornecem, certamente, recursos importantes para uma reconceptualização dessas lutas. Elas permitem opor às noções modernas de temporalidade e de subjectividade uma diversidade de temporalidades e de subjectividades, que seriam o resultado da intersecção entre as próprias dinâmicas da modernidade e os diferentes tipos de resistência ou de alternativa que elas suscitam, por um lado, e a singularidade histórica de experiências locais, por outro. Tanto a arqueologia dessas histórias, narrativas ou temporalidades alternativas como as suas aberturas e ligações a outros contextos e histórias seriam fundamentais para uma reconceptualização do «político» em termos distintos das tradições liberal e marxista, e também das narrativas nacionalistas da descolonização e da independência dos novos Estados, tributárias dessas tradições. É aqui que a referência à cultura se torna um recurso indispensável a este modo de pensar as alternativas. De facto, o «cultural» incorpora e dá forma a racionalidades alternativas, sem constituir sempre e em todo o lado um domínio diferenciado da vida social, como pretende a teoria liberal:

A diferença e incomensurabilidade da cultura subordinada com as operações económicas e políticas do poder colonial, juntamente com os hibridismos, danos e recalcitrâncias que são produzidas pela colonização, criam espaços para práticas alternativas, esferas públicas alternativas, contra-culturas não oficiais e a recomposição da sociedade civil oficial e das suas divisões (Lowe e Lloyd, 1997a: 6).

Estas variações em torno do «alternativo» têm o indiscutível mérito de chamar a atenção para a existência e a importância das formas desses «hibridismos, danos e recalcitrâncias» que, contudo, são sempre vistos como o resultado dos próprios processos de globalização capitalista ou da reacção a eles. E, sendo assim, estes acabam por conservar a sua condição de protagonistas principais da história e únicos protagonistas proactivos, mesmo se na condição de vilões. Assim como a periferia «reage» ao centro, também o «tradicional» reage ao moderno, o «não-estatal» ao Estado. A «feminização» e a «racialização» das lutas constituiriam, nesta linha, expressões «transfiguradas», como diria Bourdieu, de contradições que continuam a ser, em última análise, contradições de classe.

Segundo esta lógica, as reivindicações de justiça, de reconhecimento da diferença ou de cidadania serão inteligíveis apenas na linguagem do Estado moderno e da cidadania moderna, independentemente dos sujeitos colectivos que as formulam. A resistência ou as alternativas terão possibilidades de sucesso apenas na medida em que sejam capazes de alcançar esse reconhecimento e essa legitimidade por parte do Estado:

Em grande medida, o Estado define os termos desses projectos e o que neles está em jogo: o alargamento e redefinição da democracia popular ou da cidadania e a promoção da cultura nacional; o antagonismo à regulação do trabalho ao serviço do capital nacional e internacional; a contestação da subordinação jurídica e social de populações racializadas e de mulheres no contexto de um discurso sobre os `direitos´ (Lowe e Lloyd, 1997a: 7-8).

Seja através de um confronto directo com o Estado, seja através de formas alternativas emergentes do próprio processo de modernização, estes movimentos vão confrontar «os limites das definições orientadas para o Estado» (Lowe e Lloyd, 1997a).

É neste processo que se irá revelar a incomensurabilidade entre as formas culturais locais e as formas políticas «importadas» que pretendem fundar os novos Estados-nação emergentes dos processos de descolonização. Segundo as teorias «importadas» da modernização, tratar-se-ia de uma lacuna que o desenvolvimento e a constituição de sociedades civis e sujeitos «modernos» permitiriam preencher.

Neste quadro, as potencialidades emancipatórias das alternativas sofrem irremediavelmente de dois tipos de limitações: o seu carácter negativo e reactivo, sem o qual as experiências locais são reduzidas ao «tradicional» e encerradas numa incomensurabilidade com as dinâmicas da modernidade; e o seu carácter local, que só pode ser ultrapassado pela mediação constituída pelo próprio sistema a que resistem.

Este tipo de reflexão vai na linha das apropriações do marxismo em diferentes contextos do Sul. Essas apropriações passam, em geral, pelo privilegiar de dois eixos: as formas emergentes de subjectividade política nas condições do capitalismo periférico ou semiperiférico e a importância de dimensões como a raça, a diferença sexual ou a cultura nas formas específicas que assumem, nesses contextos, a dominação e exploração capitalistas. Durante os processos de criação de relações de produção capitalistas na agricultura colonial, por exemplo, não eram reproduzidas apenas relações de classe, mas também relações hierárquicas de região, cultura, língua e, principalmente, de raça. Cabe perguntar, contudo, e sem pôr em causa a pertinência dessas abordagens, se, ainda que as variáveis não sejam necessariamente as mesmas em todos os contextos, não será esse o caso para todas as formas históricas de realização do capitalismo, e se não haverá na «invisibilização» dessas relações nos países do centro um efeito análogo ao da separação das esferas próprio das teorias liberais, que viam no capitalismo do centro um sistema mais «puro» e mais «classista» do que o das periferias. É importante identificar configurações históricas particulares em cada contexto, que podem não obedecer necessariamente a essas diferenciações, mas apresentar outras formas de diferenciação associadas a modos de dominação e de resistência específicos. É o reconhecimento dessa diversidade que permite a emergência de novos espaços de resistência e de luta e de novas práticas políticas.

Estas reflexões apontam para a proposta de redefinição da política como política cultural (cultural politics): «o processo accionado quando conjuntos de actores sociais formados por, e incorporando, diferentes significados e práticas culturais entram em conflito entre si» (Álvarez et al, 1998a: 7). Esta definição pressupõe que esses significados e práticas, especialmente quando são teorizados como «marginais, oposicionais, minoritários, residuais, emergentes, alternativos, dissidentes», etc., e todos concebidos em relação a uma ordem dominante, podem ser a fonte de «processos que têm de ser aceites como políticos» (Álvarez et al, 1998a). Neste sentido, os processos culturais são constitutivos das dinâmicas que, «implícita ou explicitamente», procuram redefinir formas de poder social. Desta forma, o processo contribui para a transformação das culturas políticas e das definições daquilo que, num dado contexto, conta como «político».

Nesta perspectiva, e por extensão, são concebíveis formas de «política multicultural». Elas abrangem o conjunto das iniciativas e formas de mobilização e de luta que ocupam o espaço «entre a resistência e a mobilização» (Fox e Starn, 1997). É identificável, aqui, uma convergência com o conceito de «subpolítica», proposto por Ulrich Beck e, em particular, com a ideia de uma subpolítica global e contra-hegemónica proposta por Boaventura de Sousa Santos (2001a: 190-193).

A viabilidade de formas de política multicultural ou de subpolítica global pressupõe respostas adequadas a dois tipos de problemas que as transformações do capitalismo global levantam às lutas emancipatórias e à produção de conhecimento sobre elas, e que foram já evocados. Em primeiro lugar, a multidimensionalidade das formas de dominação e de opressão suscita, por sua vez, formas de resistência e de luta que mobilizam actores colectivos, vocabulários e recursos diferentes e nem sempre mutuamente inteligíveis, o que pode pôr sérias limitações às tentativas de redefinição do campo do político. Em segundo lugar, tendo a maior parte dessas lutas uma origem local, a sua legitimação e a sua eficácia dependem da capacidade de actores colectivos e movimentos sociais de forjar alianças translocais e globais, que também elas pressupõem a inteligibilidade mútua. A resposta a estes dois tipos de problemas passa, como foi já referido, por uma teoria da tradução, capaz de permitir a articulação de lutas conduzidas a partir de experiências distintas e com recursos diferentes:

Diferentemente de uma teoria geral da acção transformadora, a teoria da tradução mantém intacta a autonomia das lutas em questão como condição para a tradução, dado que só o que é diferente pode ser traduzido. Tornar mutuamente inteligível significa identificar o que une e é comum a entidades que estão separadas pelas suas diferenças recíprocas. A teoria da tradução permite a identificação de um terreno comum numa luta indígena, numa luta feminista, numa luta ecológica, etc., sem fazer desaparecer em nenhuma delas a autonomia e a diferença que as sustêm (Santos, 2001a: 192).

Mas a teoria da tradução é também fundamental para permitir a articulação entre recursos intelectuais e cognitivos diversos e de proveniência distinta que são articulados nos vários modos de produzir conhecimento sobre iniciativas e experiências contra-hegemónicas.

No plano da produção do conhecimento sobre iniciativas e movimentos emancipatórios em torno da redistribuição e do reconhecimento, podemos, identificar dois grandes tipos de estratégias baseadas no duplo pilar de uma sociologia das ausências e de uma teoria da tradução.

As primeiras mobilizam preferencialmente, estrategicamente e de maneira transgressiva ou subversiva, conceitos que, originalmente, foram elaborados num contexto eurocêntrico. Outras denunciam explicitamente os vieses associados a esses conceitos e propõem conceitos alternativos na base de estratégias como a hermenêutica diatópica (Santos, este volume). A sua adequação a diferentes situações, experiências e lutas terá de ser avaliada pragmaticamente, e não é possível determinar uma superioridade «intrínseca» de uma ou de outra. No seu conjunto, essas respostas configuram uma constelação de versões críticas ou emancipatórias de projectos multiculturais, opostos ao apoliticismo dos multiculturalismos celebratórios. Encontramo-las accionadas, de diferentes modos, nos estudos de caso incluídos neste volume.

O primeiro tipo de estratégias propõe a construção de historiografias e de discursos emancipatórios «alternativos» ou «subalternos», a partir da identificação de formas e de narrativas «nativas» de resistência ou de oposição à dominação colonial ou do capitalismo global. Essas narrativas são lidas a partir de quadros analíticos - transformados pela sua apropriação num contexto nacional ou local subalterno - baseados em correntes teóricas e discursos emancipatórios eurocêntricos na origem, mas que representam o «círculo mais amplo de reciprocidade» do pensamento social e político Ocidental, como algumas versões do marxismo - especialmente em versões de inspiração gramsciana (de onde provém, aliás, a expressão «subalterno» para designar os que ocupam posições dominadas num quadro de relações de poder), ou teorias pós-estruturalistas, feministas ou pós-coloniais. A constelação conhecida por subaltern studies, que teve origem na Índia e hoje se estende a outras regiões, como a América Latina, exemplifica este tipo de abordagens (Guha, 1997; Latin American Subaltern Studies Group, 1995; Chaturvedi, 2000; Rodriguez, 2001). Uma variante desta estratégia (Zizek, 1997) é a da «identificação com o sintoma», com os marginalizados ou excluídos enquanto sintomas do capitalismo global e das suas contradições, como ponto de partida para um conhecimento reflexivo que não seja cúmplice do capitalismo global. Essa identificação é concebida basicamente como denúncia e resistência, continuando a ser tributária de discursos e de teorias que permitam «nomear o sistema».

O segundo grande tipo de estratégia baseia-se num multiculturalismo «policêntrico», na relativização mútua e recíproca, no reconhecimento de que todas as culturas devem perceber as limitações das suas próprias perspectivas, na igualdade fundamental de todos os povos em termos de estatuto, inteligência e direitos, na descolonização das representações e das relações de poder desiguais entre povos e entre culturas (Shohat e Stam, 1994; Santos, este volume). A procura de preocupações e concepções isomórficas entre culturas constitui a âncora deste tipo de estratégia. Outras versões propõem a identificação de múltiplos «sistemas de significação» associados a constelações de práticas e a formas de luta que sirvam de base a novas definições do que significa a «cultura» (Bharucha, 2000: 12). Outras, ainda, problematizam os próprios conceitos de cultura ou multiculturalismo, procurando, antes, identificar as formas de visão e divisão do mundo e as «ecologias de práticas» que diferenciam os colectivos humanos, sem pressupor a pertinência da noção de cultura, e procurando construir concepções partilhadas através de um processo cosmopolítico, entendido como uma política do cosmos, de um mundo que integra as entidades que, no Ocidente, são divididas em «naturais» e «sociais» ou «culturais» (Stengers, 1997).

Os processos de hibridização ou de mestiçagem, que, a partir de recursos de origem diversa, local ou translocal, criam formas «autóctones» ou «nativas» de representação ou teorização de experiências, de horizontes e de práticas emancipatórios apontam vias possíveis, sempre ligadas a experiências históricas específicas, de articulação das duas estratégias. A «Nuestra América» de Martí e as suas reelaborações ou a «antropofagia» de Oswald de Andrade são expressões importantes dessa orientação (Santos, 2001a).

Tanto a sociologia das ausências como a teoria da tradução são recursos essenciais para evitar que a reconstrução de discursos e práticas emancipatórios caia na armadilha de reproduzir, de forma alargada, concepções e preocupações eurocêntricas. Tal como acontece na discussão sobre os direitos humanos, também aqui importa identificar as preocupações e concepções isomórficas daquelas que, no Ocidente, conferem um conteúdo emancipatório a noções como «cultura», «multiculturalismo», «direitos» ou «cidadania». Essa é a condição para uma utilização estratégica e emancipatória desses conceitos tanto nas arenas nacionais como transnacionais enquanto parte de discursos que articulam as exigências do reconhecimento e da distribuição, de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza desigualdades. A teoria da tradução permite igualmente identificar as diferentes formas sociais que assumem as lutas emancipatórias e os diferentes vocabulários que elas mobilizam. A defesa da diferença cultural, da identidade colectiva, da autonomia ou da autodeterminação podem, assim, assumir a forma de luta pela igualdade de acesso a direitos ou a recursos, pelo reconhecimento e exercício efectivo de direitos de cidadania ou pela exigência de justiça. Ela pode tomar a forma de defesa e promoção de quadros normativos alternativos, locais ou costumeiros, de formas locais e comunais de resolução de conflitos ou de exigência de integração plena, como cidadãos, no espaço do Estado-nação e de acesso, sem discriminações, à justiça oficial, estatal. Ganha sentido mais preciso, assim, a ideia da «cidadania multicultural» como lugar privilegiado de lutas pela articulação e potenciação mútuas do reconhecimento e da redistribuição. Esse é o caminho para a proliferação de esferas públicas locais e, simultaneamente, capazes de se articular de modo translocal, umas vezes com, outras contra os Estados nacionais, como pontos nodais de formas de globalização contra-hegemónica, de subpolíticas globais de sentido emancipatório e de cidadanias genuinamente cosmopolitas.

 

2. Os estudos de caso

Os estudos de caso incluídos neste volume identificam e analisam diferentes experiências de construção de alternativas de política cultural. Neles são exploradas as potencialidades e os limites dessas experiências enquanto iniciativas emancipatórias e percursos para cidadanias activas. Estas procuram articular o reconhecimento da diferença e a luta pela igualdade e pela redistribuição, segundo princípios de justiça e constelações de direitos atentos à diversidade dos actores e dos contextos e à intersecção de diferentes escalas, local, nacional e global. Embora agrupados em quatro grandes áreas temáticas - direitos colectivos e sociedades multiculturais, movimentos sociais e justiça(s), diferenças e construções identitárias, soberania, cidadania e internacionalismo solidário -, os estudos de caso revelam múltiplas intersecções, articulações e sobreposições entre temas.

A primeira área temática examina a relação entre o conceito de direitos colectivos e a definição de sociedades como multiculturais. As três contribuições aqui incluídas incidem todas sobre a América Latina (Brasil e Colômbia) e sobre a questão específica dos direitos colectivos dos povos indígenas. Cada um dos autores aborda o tema a partir de uma perspectiva distinta, mas as suas abordagens são complementares.

O estudo de Carlos Marés, para a qual o autor convocou a sua experiência profissional enquanto encarregado dos assuntos dos povos indígenas por parte do Estado brasileiro e numa reflexão sobre essa prática, coloca-nos no centro da discussão sobre a compatibilidade entre o multiculturalismo entendido como o reconhecimento das diferenças que historicamente constituíram os povos indígenas (neste caso da América Latina) como colectivos inseparáveis de um território e de um modo de vida e as concepções de direitos e de justiça que a constituição dos Estados nacionais sancionou. O autor aponta, justamente, que os direitos dos povos não podem ser concebidos segundo a matriz individualista do direito e das teorias constitucionais liberais. Eles aparecem como direitos colectivos, e como condição de um efectivo reconhecimento da diversidade cultural e do carácter pluriétnico das sociedades nacionais da América Latina.

Através da análise de vários casos de luta pelo reconhecimento dos direitos colectivos dos povos indígenas e pela visibilidade institucional destes, Marés mostra como a causa emancipatória do reconhecimento do direito à existência colectiva dos povos indígenas passou por diferentes experiências de confrontação com o Estado, com graus de sucesso distintos, em boa medida enraizados em histórias anteriores dos processos de colonização e de ocupação do território. A territorialidade é, sem dúvida, uma dimensão fundamental da afirmação desses direitos colectivos, que choca com as concepções liberais de propriedade. É nela que reside a garantia do reconhecimento de uma identidade colectiva e dos direitos colectivos dos povos indígenas. A importância de um movimento indígena à escala de todo o Brasil e, a partir de 1988, a consagração constitucional dos direitos colectivos, constituem uma significativa ilustração da importância das utilizações estratégicas de conceitos que procuram, por um lado, mobilizar e, por outro, subverter princípios consagrados na ordem constitucional de matriz liberal. Neste processo, as alianças com outros movimentos é fundamental. Marés realça, ainda, a importância de uma forte soberania nacional que garanta os direitos colectivos dos povos, e a armadilha que constitui o reconhecimento subordinado baseado na auto-determinação. Sublinha a importância do Estado e a necessidade da sua reinvenção segundo uma «lógica dos povos» oposta à «lógica do capital».

Num capítulo que complementa e substancia o de Carlos Marés, Lino Neves explora as dinâmicas das lutas pela emancipação dos povos indígenas da Amazónia, as suas estratégias, formas de organização e de mobilização. Sendo no Estado brasileiro do Amazonas que se concentra a maior população indígena do país, com a maior diversidade étnica, o maior número de organizações e de terras indígenas, é esse o espaço em que o autor explora o processo de consolidação do movimento indígena e a actuação das suas organizações, tanto nas relações entre etnias como nas relações com o Estado brasileiro e com outros sectores da sociedade. Também aqui a abordagem resulta, em grande medida, da experiência de envolvimento pessoal do autor nas lutas dos povos indígenas na região. Há uma atenção maior às iniciativas de afirmação activa dos índios e dos seus movimentos e organizações como protagonistas do processo político, especialmente nas suas relações, frequentemente conflituais, com o Estado.

Partindo de um mapa das lutas indígenas desde os finais dos anos setenta, Lino Neves coloca-as no contexto das dinâmicas políticas da sociedade brasileira, e examina comparativamente as diferentes estratégias, os seus sucessos, derrotas e problemas encontrados ao longo de duas décadas de lutas. É conferida uma atenção especial a dois tipos de iniciativas: a «Marcha Indígena» a Porto Seguro, como parte das comemorações alternativas dos 500 anos da descoberta, com a realização, a seguir da «Conferência Indígena»; e as mobilizações locais em torno da demarcação das terras indígenas e da recuperação de controlo territorial. Lino Neves analisa as diferenças entre as práticas emancipatórias de «auto-demarcação» e as práticas subordinadas a uma lógica, conduzida pelo Estado e pelos seus agentes, de integração dos indígenas em processos de «demarcação participada». São sublinhados os confrontos entre universos simbólicos, sistemas epistemológicos e conhecimentos rivais a que essas iniciativas dão expressão, e através dos quais se articulam as práticas indígenas e as práticas de actores e instituições da sociedade envolvente. É a partir dessas experiências que o autor procura caracterizar as «subjectividades emergentes» e iniciativas de sentido emancipatório desses povos que representam os sectores mais marginalizados do mundo contemporâneo, o «Sul do Sul», como lhes chamou Boaventura de Sousa Santos (1995: 325).

Luís Carlos Arenas apresenta-nos também uma situação em que a afirmação de direitos colectivos é indissociável do enraizamento num território e da defesa da integridade de um modo de vida associado a esse território. Arenas traça a luta que desde 1993 vêm travando os U'wa, uma pequena comunidade indígena do Nordeste da Colômbia, contra os planos de uma companhia petrolífera americana, a Occidental Petroleum Corporation (OPC). Na sequência da aquisição de direitos para explorar os recursos petrolíferos em parte do território dos U'wa em princípios dos anos 90, a OPC veio a encontrar forte resistência dos indígenas quando tentou iniciar as suas operações, em 1993. Mas foi, sobretudo, a partir de 1995, quando o recentemente criado Gabinete do Provedor na Colômbia apresentou no Supremo Tribunal do país uma queixa contra a empresa, que a luta dos U'wa ganhou visibilidade nacional. Progressivamente, essa visibilidade ultrapassou as fronteiras nacionais, gerando movimentos e iniciativas de solidariedade internacional. Ao longo dessa luta, as transformações jurídicas relacionadas com os direitos dos povos indígenas influenciaram decisivamente o processo. O estudo procura responder a um conjunto de perguntas que têm um alcance mais vasto do que o caso específico que estuda: como pode uma comunidade esquecida, isolada, pouco visível, tornar-se objecto de atenção mundial? Porquê a atracção de activistas e media pelo caso? Que lições tirar de um processo local que se tornou global? Como se tornou esta luta um símbolo da luta contra a globalização hegemónica?

Arenas chama a atenção para a necessidade de distinguir entre a acção das ONGs internacionais e a dos movimentos de base, e de examinar as suas interacções, em processos de luta que, tendo no início uma expressão local, se transformam em transnacionais. Se as ONGs são os actores mais visíveis e, certamente, são muito importantes, nem sempre são os mais importantes nesses processos. Esse papel cabe, muitas vezes, a lutas conduzidas por actores colectivos locais, sendo certo que a translocalização das lutas - e a condição do seu sucesso - passa por alianças com ONGs internacionais, capazes de articular o local, o nacional e o global. Mas estas não podem assegurar a condição local e sustentada dessas lutas, nem estar presentes em todas elas. Existe sempre o risco, nos processos de transnacionalização das lutas, de usurpar o papel dos grupos locais ou de ignorar a importância das lutas locais. É nestas que deve permanecer o foco da acção, e é nos actores locais que deve permanecer a direcção do processo. Por outro lado, é fundamental que as relações de solidariedade sejam horizontais, quer entre Sul e Sul, quer entre Norte e Sul (ou entre Sul e Norte), evitando a emergência de hierarquias ou subordinações entre os que participam nessas lutas.

Entre as condições que permitiram a esta luta manter-se com sucesso, Arenas refere: a forte herança cultural dos U'wa; o seu orgulho, capacidade de falar por si e adaptar argumentação a diferentes situações; o uso de comunicados e cartas abertas; a existência de uma rede de contactos e apoios internacionais; a localização da sede da OCP nos Estados Unidos e o papel destes na Colômbia. É na interacção e articulação de dinâmicas e actores em diferentes escalas (local, regional nacional, global) que reside a grande força e visibilidade desta luta e o seu carácter exemplar.

Um segundo grupo de estudos de caso ocupa-se da relação entre movimentos sociais e concepções diferenciadas e alternativas de justiça. Se os movimentos examinados nos dois casos estudados (em Portugal e na Colômbia) se organizam em torno da relação entre o Estado nacional e as comunidades e identidades locais, elas fazem-no em torno de exigências de reconhecimento e de justiça que são distintas das que fundam a ordem constitucional liberal, mesmo quando a invocam como fundamento das suas pretensões. Também aqui a noção de justiça é inseparável de conceitos identitários, da exigência do reconhecimento a uma diferença que toma a comunidade e o local como fundamento mas que, ao mesmo tempo, se move numa teia de direitos diferenciados e conflituais.

José Manuel Mendes analisa a luta de uma população local, a de Canas de Senhorim, no Centro de Portugal pelo direito à restauração de um governo municipal (extinto em 1868) e pelo reconhecimento desse direito pelas instituições políticas nacionais (Presidente da República, Governo, Parlamento), através da mobilização e reconstrução activas de uma memória do seu auto-governo, da denúncia do que consideram ser uma injustiça e de recursos emocionais - como a indignação -, cognitivos - como a evocação de uma tradição municipalista e das características específicas da comunidade -, e morais, transformados em recursos para a acção colectiva. Esta inclui formas pacíficas e legais de uso do direito de petição, de manifestação e de protesto, mas também formas não reconhecidas pela lei, que podem ir até à acção violenta ou ao boicote a eleições, e um activo processo de mediatização da luta.

A referência a um passado de lutas contra a opressão e as injustiças contribui para legitimar a radicalidade das acções. A identificação de objectivos e de alvos permite que a articulação dessas formas seja realizada de maneira estratégica. Um recurso fundamental da luta da população de Canas é o forte sentido de uma identidade local, cimentada na sua relação com laços forjados através do trabalho em comum e da família. A identidade local forja-se, ainda, em grande medida, contra as lógicas de divisão e de antagonismo associadas aos partidos políticos, ainda que as relações com estes sejam activamente mobilizadas, quer para a definição identitária pessoal, quer à escala nacional e no quadro do Parlamento. Essa identidade local é invocada como fundando a exigência de reconhecimento como cidadãos de pleno direito da República, nomeadamente no que se refere ao direito ao exercício do poder local. Como refere o autor, tanto os «narratemas» que «condensam ou metaforizam o testemunho e a vivência pessoal de uma experiência histórica» como as acções de protesto promovidas localmente são a expressão de tentativas de «reespecificar e de desconstruir, com base no populismo e num igualitarismo radical, os conceitos de liberdade, democracia e poder», a busca de um «reconhecimento pessoal e colectivo», consolidados numa «ideologia solidária, fraterna e familista».

A caracterização dos objectivos políticos, das alianças, da liderança e dos modos de acção do movimento são susceptíveis de introduzir alguma perturbação que se espera fecunda nas tentativas de definição do que é a emancipação social, perante movimentos que põem em causa as divisões convencionais entre direita e esquerda e se organizam em torno da afirmação e reconstrução de uma identidade local, num processo que parece apontar para a existência, no plano local, de um espaço para o exercício da democracia participativa, mas com um risco permanente de recuperação por parte de líderes locais associados aos partidos políticos tradicionais.

Francisco Gutiérrez e Ana Maria Jaramillo conduzem-nos, por sua vez, numa viagem através da sociedade colombiana e daquilo que designam por tradição «pactista». Esta tem estado no centro das tentativas de resolver a tensão entre duas características dessa sociedade: a «estabilidade das formas macroinstitucionais» e «uma longa tradição de conflitos armados difusos, crónicos e dolorosos». A solução dessa tensão passa por pactos que permitem manter uma dinâmica instável de guerras que geram acordos e de acordos que resultam em novas guerras, tudo isto num contexto institucional em que o poder, incluindo o poder das armas é «sujeito a múltiplas restrições». Desta forma, o «pêndulo pacto/guerra» passa a ser o «atractor da dinâmica dos conflitos na sociedade colombiana». No jogo entre a necessidade e a liberdade, este mundo social «governado» por um «atractor» oscila entre a articulação da resistência e do protesto social numa linguagem pendular e a possibilidade de uma gramática própria, definindo um espaço diferente para a cidadania. Contudo, considerando a experiência dos últimos 20 anos, se à escala nacional os pactos são indispensáveis, à escala local eles parecem indesejáveis. De facto, os pactos resultam em uma de três situações: a destruição física dos seus protagonistas, a ruptura do pacto ou a concentração antidemocrática de poder nas mãos de um ou vários protagonistas, sendo ainda possível a combinação de algumas destas situações. Esta dinâmica traz consigo a consequência perversa de este conjunto de opções definir um «horizonte mental e moral das alternativas» baseadas na articulação de «linguagens emancipatórias e de materiais não-emancipatórios».

Dois casos, o das milícias de Medellín e o de Boyacá Ocidental, dominado pelos empresários ligados ao comércio de esmeraldas, ilustram esta situação. Os pactos conduzem à realização de acordos efectivos, mas com custos evidentes: os grupos armados podem continuar a fazer o que sempre fizeram, mas agora sob a aura de uma legalidade conferida pelo Estado, e os direitos democráticos dos cidadãos podem ser sacrificados em nome da preservação da comunidade e da paz. Isto dificulta as saídas emancipatórias, dado que estas «ditaduras territoriais» não são compatíveis com as afirmações do Estado de direito à escala nacional. As políticas dos grupos armados não conseguem ultrapassar, assim, o local. A relação com a globalização é circunstancial e oportunística, visa apenas a apropriação de recursos para o fechamento territorial baseado na tradição. A tensão entre formas estáveis macro-institucionais e dinâmicas de violência pode vir a tornar-se uma característica comum de países, especialmente do Sul, para os quais a importação da democracia formal é um dos modos de incorporação na globalização. Os autores sugerem que talvez a Colômbia aponte mais para o futuro do capitalismo global do que para a herança de um passado pré-moderno.

Em contraste com a questão indígena abordada nos capítulos da autoria de Carlos Marés e Lino Neves, este capítulo mostra o lado negro do reconhecimento das diferenças, incluindo as diferenças territoriais, a perversidade destrutiva a que ele pode conduzir sempre que entre as suas condições não figure o respeito mútuo pelos direitos colectivos das comunidades e pelos direitos humanos dos cidadãos que as constituem.

Os três capítulos seguintes centram-se na relação entre diferenças e identidades emergentes ou em construção. Em causa está o reconhecimento da multidimensionalidade das construções identitárias no seio de movimentos sociais e a construção de movimentos e iniciativas orientados para a constituição e o reconhecimento de novas identidades. A relação das «velhas» identidades colectivas ligadas aos movimentos sindicais ou de libertação ou aos partidos políticos da «velha» esquerda com o surgimento de diferenciações no seu seio na base de reivindicações específicas associadas à raça, à diferença sexual ou à orientação sexual suscita tensões e conflitos que podem comprometer as alianças e coligações indispensáveis a uma «política da equivalência» capaz, ao mesmo tempo, de reconhecer, respeitar e negociar as diferenças.

Shamim Meer interroga-se sobre as relações entre os movimentos sociais e cívicos dos sectores que, sob o apartheid, eram dominados na sociedade sul-africana e as transformações no Estado sul-africano no período pós-apartheid. A sorte dos que participaram activamente nesses movimentos foi muito diversa. No caso das mulheres, e após décadas de participação nas lutas pelo fim do apartheid, a sua situação parece ter melhorado, mas sobretudo para as mulheres brancas, que foram as principais beneficiárias de medidas de capacitação dirigidas ao aumento da participação de mulheres nas instituições públicas e no sector privado. De fora ficaram as mulheres negras e as mulheres pobres de zonas rurais. Para a autora, a conjugação destes dois aspectos aponta para a manutenção, no período pós-apartheid, das principais clivagens e desigualdades que caracterizaram, durante muitas décadas, a sociedade sul-africana. A emergência de uma elite negra ligada ao Estado e às novas instituições políticas não significou a modificação da situação da maioria da população, especialmente a população pobre das zonas rurais e urbanas. Que papel estão a ter, nesta fase, os movimentos sociais que lutaram contra o apartheid e os participantes nesses movimentos?

O privilegiar da oposição ao racismo na luta democrática contra o apartheid parece não ter tido expressão adequada na promoção dos interesses da maioria negra da população. A passagem do ANC de movimento de libertação a partido maioritário na era pós-apartheid significou que muitas das reivindicações dos movimentos passaram a ser assumidas como aspectos a necessitar de legislação, incluindo os respeitantes aos direitos das mulheres. A presença de activistas de movimentos em cargos do Estado facilitou esse processo. Mas é também certo que o enquadramento dos problemas das mulheres e dos sectores mais pobres num quadro neoliberal e de democracia liberal conduziu à sua perspectivação como problemas a resolver por via legislativa, desse modo despolitizando-os e eliminando da discussão a referência às formas de poder que estão na sua origem. A tensão entre visões «despolitizadas» e «politizadas» atravessa, mesmo, os movimentos de mulheres. Enquanto as primeiras invocam a concepção liberal de «bem comum» para justificar as suas posições, as segundas invocam as relações de poder na sociedade e as desigualdades estruturais que elas provocam. As primeiras criam o risco de cooptação, as segundas abrem espaços de discussão susceptíveis de desencadear respostas críticas ao discurso liberal dominante, nomeadamente aos modos como a subordinação associada à classe, raça e sexo é reproduzida e sustida nas instituições do Estado, em ONGs e no sector privado. Mas ao longo dos últimos anos têm surgido novas iniciativas, de base local e a partir dos sectores mais pobres e marginalizados, fora de movimentos organizados e em torno de exigências básicas de sobrevivência e de dignidade. Aqui reside, provavelmente, o futuro de mudanças num sentido emancipatório.

Ana Cristina Santos estuda a constituição dos movimentos de homossexuais em Portugal e do modo como se tem travado, neste país, a luta pela liberdade de orientação sexual e pelos direitos das minorias sexuais, enquanto expressão da tensão entre a reivindicação da diferença e a defesa da igualdade. Essa luta tornou-se possível pelo próprio desenvolvimento do capitalismo (ao reduzir a centralidade da família convencional na sociedade e ao tornar possível a emergência de preocupações para além da sobrevivência material) e pelo processo de globalização, através da circulação e trocas de informação e de experiências, um dos efeitos contraditórios do próprio desenvolvimento de processo associados ao capitalismo e à globalização hegemónica. Este tema tem, de facto, um alcance mais vasto se o tomarmos como um sintoma da resposta a uma resistência mais ampla, por parte de sectores conservadores da sociedade e de uma moral repressiva e excludente sustentada pela influência ideológica, social e política da Igreja Católica, que associa a homossexualidade ao pecado e à culpa e fomenta a homofobia. O estudo suscita uma interrogação fundamental: será um grupo minoritário oprimido necessariamente e em consequência dessa opressão uma força contra-hegemónica? A pergunta faz sentido quando se considera a diversidade de formas de organização e de intervenção de diferentes movimentos em prol da liberdade de orientação sexual e dos direitos das minorias sexuais, mas especialmente quando se verifica a tendência de alguns desses movimentos para o reforço de uma espécie de versão «ortodoxa» ou hegemónica da homossexualidade.

No caso de Portugal, são detectáveis algumas especificidades, ligadas à condição semiperiférica do país e ao peso cultural e ideológico do catolicismo nas suas versões mais conservadoras: as transformações no plano legislativo que descriminalizaram muitas práticas antes consideradas como «imorais», nomeadamente no domínio da sexualidade, mas que nem sempre têm correspondência nas práticas sociais e na aceitação social das diferenças baseadas na orientação sexual; o surgimento de movimentos e de associações de afirmação da identidade homossexual e dos direitos dos homossexuais; a existência de alianças entre activistas gay, lésbicas, bissexuais e transsexuais nos mesmos movimentos; finalmente, e para além de iniciativas públicas destinadas especificamente a conferir visibilidade às causas «lesbigay» e a afirmar a sua presença no espaço público, uma vinculação explícita das lutas desses movimentos a lutas mais amplas e fortemente «politizadas» contra as discriminações de todos os tipos e pelo direito a uma diferença sem exclusão e uma participação política e social inclusiva. Esta característica aproxima o caso português do que ocorre em algumas sociedades do Sul, nomeadamente da América Latina, onde estas redes de movimentos são frequentes.

Maria José Arthur retoma o tema da relação entre as identidades associadas à diferença sexual e as identidades de classe num estudo das mulheres no movimento sindical moçambicano e, em particular, da relação entre as direcções dos sindicatos e os Comités da Mulher. Estes foram criados em 1993, no seio de sindicatos e de centrais sindicais, como resultado da convergência entre o processo de democratização interna, e as pressões de confederações e organizações sindicais regionais e internacionais, e em resposta à liberalização económica e política. Durante os anos 90, os sindicatos passaram por um processo de debate interno e de reorientação da sua intervenção, e também de reorganização, com a cisão de vários sindicatos da Organização dos Trabalhadores Moçambicanos, central única, em 1992, e a fundação em 1997 de uma segunda central sindical. A partir de 1994, foi instituído o processo de concertação social tripartida, envolvendo empresas, sindicatos e o governo, que permitiu formular reivindicações sobre temas como o salário mínimo, os impostos sobre os salários, as carências de transportes públicos ou na saúde. Os «problemas das mulheres» ressurgem neste contexto, dada a sua visibilidade acrescida resultante dos processos de privatizações. A identidade das mulheres trabalhadoras, no âmbito dos sindicatos, está ligada estreitamente às funções de mãe, esposa e educadora, numa tradição radicada na própria luta de libertação, permitindo às direcções sindicais restringir a intervenção das mulheres nos sindicatos ao que é definido como «as questões específicas da mulher trabalhadora».

Partindo da sua condição de militante feminista e da sua proximidade às reivindicações das mulheres trabalhadoras (esta designação é circunscrita ás assalariadas, excluindo as domésticas ou camponesas, e abrange, por isso, uma fracção reduzida das mulheres), a autora centra a sua análise no discurso das direcções sindicais sobre os Comités da Mulher, nos espaços de intervenção para as mulheres que esse discurso abre e nos constrangimentos que cria. Esses discursos continuam a fundar e justificar práticas discriminatórias baseadas na diferença sexual. A mobilização de uma diversidade de estratégias e de práticas por parte das mulheres para a contestação a esses discursos e aos constrangimentos que os acompanham aponta para formas específicas de articulação das identidades de mulher e de trabalhadora e do reconhecimento de ambas. Através das experiências e das histórias de vida de três mulheres sindicalistas, a autora procura identificar manifestações diversas das «múltiplas e complexas formas de resistência dos cidadãos perante o Estado e em face da crescente e autoritária liberalização da economia», dando expressão, também, às tensões, conflitos e contradições que marcam a luta das mulheres sindicalistas em Moçambique.

Finalmente, os temas da soberania e da cidadania, já presentes em todas as contribuições anteriores, são explicitamente postos em relação com a interrogação sobre as condições de possibilidade e as experiências de construção de um novo tipo de internacionalismo solidário. Nos três capítulos desta parte, são desenvolvidas questões como os direitos humanos e os modos de os reconstruir de modo a ultrapassar a sua matriz eurocêntrica; as novas formas de pluralismo jurídico associadas à globalização, a sua relação com redefinições da soberania e a criação de espaços para intervenções capazes de afirmar o direito às diferenças; as referências, os recursos e as experiências de novas iniciativas solidárias no plano transnacional.

A centralidade crescente do discurso sobre os direitos humanos como novo vocabulário emancipatório da política progressista é objecto de uma interrogação crítica por Boaventura de Sousa Santos. A partir de uma discussão das tensões dialécticas da modernidade ocidental e da crise que as atravessa, o autor explora as condições em que os direitos humanos, uma das criações da modernidade ocidental, poderão ser apropriados para uma política de emancipação que tenha em conta o reconhecimento da diversidade cultural e, ao mesmo tempo, a afirmação comum da dignidade humana. Reencontramos, aqui, o tema da tensão entre igualdade e diferença, entre redistribuição e reconhecimento. Boaventura de Sousa Santos retoma estes temas de modo a considerar as suas diferentes expressões em contextos culturais distintos, permitindo reinventar os direitos humanos como linguagem da emancipação. A política dos direitos humanos deve ser considerada como, basicamente, uma política cultural, e os direitos humanos como «sinal do regresso do cultural, e até mesmo do religioso, em finais do século». Como «falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos», põe-se o problema de saber como será possível tornar os direitos humanos um recurso político ao mesmo tempo cultural e global. As condições para a transformação dos direitos humanos num projecto cosmopolita assentam na promoção de «diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas» e «critérios políticos para distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação de regulação». Esses diálogos deverão apontar para a definição de valores ou exigências máximos e não por critérios mínimos da definição da dignidade humana e dos direitos, contra a tentativa de definir «direitos humanos de baixa intensidade» como «o outro lado da democracia de baixa intensidade». É a partir destas condições que se abre o espaço para uma concepção dos direitos humanos que, em vez de postular um (falso) universalismo, assenta numa constelação de ideias distintas de dignidade humana, tornadas mutuamente inteligíveis e mutuamente capacitantes através de um diálogo intercultural. Boaventura de Sousa Santos designa este diálogo por hermenêutica diatópica. Trata-se de uma prática de interpretação e de tradução entre culturas do diálogo entre culturas através da qual se amplia a consciência da incompletude de cada cultura envolvida no diálogo e se cria a disponibilidade para a construção de formas híbridas de dignidade humana mais ricas e mais amplamente partilhadas. O conhecimento que daqui resulta será colectivo, interactivo, intersubjectivo e reticular. Contudo, a hermenêutica diatópica tem lugar num quadro de histórias de trocas desiguais e de relações de poder assimétricas entre culturas, o que suscita problemas adicionais. A falta de atenção a este ponto poderá transformar o multiculturalismo numa nova manifestação de política reaccionária e de promoção das desigualdades e da opressão. A resposta reside na adopção de dois imperativos interculturais: «das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro»; «as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza». O autor ilustra este processo a partir de um possível diálogo entre três concepções da dignidade humana, baseada nos direitos humanos da cultura ocidental, do dharma na cultura hindu e da umma na cultura islâmica.

Shalini Randeria trata do papel de instituições internacionais, ONGs e movimentos sociais nas suas interacções complexas com o Estado e na emergência de novas formas de pluralismo jurídico associadas à «soberania fracturada» dos Estados periféricos e semiperiféricos no contexto da globalização. A Índia é o terreno empírico em que se ancora o estudo de caso. Através deste, a autora examina o modo como o direito participa contraditoriamente na constituição da ordem neoliberal e na resistência (dissimulada ou explícita) a ela, mobilizado, quer pelo Estado indiano que a autora designa por «Estado ardiloso», quer pelos movimentos sociais. Estes, por sua vez, ora se dirigem contra o Estado enquanto agente da globalização neoliberal e procuram o apoio de organizações internacionais contra políticas estatais, ora mobilizam sectores do Estado - como o poder judicial - para se oporem às políticas neoliberais.

Se os direitos nacionais, especialmente os de Estados pós-coloniais, foram sempre heterogéneos e neles sempre coexistiram diferentes ordens jurídicas, o que caracteriza as configurações de pluralismo jurídico actuais é, sobretudo, a importância crescente de regimes jurídicos supranacionais, decorrentes das intervenções de instituições multilaterais, de doadores internacionais e de ONGs transnacionais. Este aspecto é fundamental para compreender as distinções entre diferentes formas de pluralismo jurídico, em contextos históricos distintos. As próprias fronteiras entre o direito e outros meios de regulação e de produção de quadros normativos, assim como entre o direito privado e o direito público, entre o direito e as políticas públicas, são transformadas neste processo. A produção de direito torna-se, deste modo, um processo sempre em aberto, protagonizado por uma diversidade de actores e em espaços sem fronteiras definidas de uma vez por todas. O próprio Estado, apesar da insistência na sua erosão, continua a manter centralidade, mas esta decorre, paradoxalmente, do seu «descentramento» e da sua transformação num campo conflitual de relações entre ordens estatais, infraestatais e supraestatais que competem entre si.

A ligação de ONGs a movimentos de base assume especial importância na mobilização de formas de conhecimento que permitem a formulação de leis e de políticas alternativas de base popular, a partir de diferentes fontes e recursos. Deste modo, ONGs e movimentos sociais aparecem como mediadores cruciais entre diferentes formas de direito e entre comunidades locais, o Estado nacional e as organizações internacionais. Estas dinâmicas são, contudo, ambivalentes. Se, por um lado, elas parecem dar expressão a formas emergentes de sociedade civil global, alargando as possibilidades de participação dos cidadãos para além dos limites do Estado nacional e em interacção directa com as instituições envolvidas na governação transnacional, por outro lado, e paradoxalmente, tendem a conferir uma legitimidade aos agentes institucionais da globalização hegemónica (OMC, FMI, Banco Mundial, por exemplo).

Conclui Shalini Randeria - na linha do que sugerem, a partir da experiência pactista colombiana, Gutierrez e Jaramillo - que, ironicamente, é possível que as antigas colónias, envolvidas nestas teias de pluralismo jurídico, prefigurem - invertendo a afirmação de Marx - o futuro jurídico da Europa. Os «Estados pós-soberanos» do presente apresentam flagrantes semelhanças com os Estados (pós)coloniais na sua necessidade de lidar com diferentes ordens jurídicas, e as suas interrelações, nacionais, infra-nacionais e supra-nacionais.

O capítulo de José Manuel Pureza analisa as condições que, no quadro de um mundo transformado pelos processos hegemónicos de globalização e pela emergência de respostas contra-hegemónicas, permitem o sucesso da acção colectiva em defesa da justiça e dos direitos humanos à escala global. O caso estudado é o da campanha contra a ocupação de Timor-Leste pela Indonésia e pela autodeterminação do povo timorense. Contra o predomínio de políticas «realistas» no âmbito das relações internacionais num espaço pós-Vestfaliano e pós-Guerra Fria, parecem desenhar-se outras concepções, mais solidárias, de como responder às violações dos direitos humanos e dos direitos à existência dos povos, mobilizando novos actores e novas formas de intervenção, tomando como referência, neste caso, a ilegitimidade da ocupação indonésia de Timor-Leste e a legitimidade da exigência de autodeterminação do território assentes nos documentos e nas resoluções da ONU. Essas respostas apontam para uma reinvenção do internacionalismo solidário, na base de um ethos de democracia cosmopolita. A metáfora do «cidadão peregrino», centrada na responsabilidade partilhada e numa noção de «ética do cuidado» (stewardship ethics), prevalecendo sobre uma «ética de princípios abstractos», aparece como expressão exemplar do cidadão solidário num mundo globalizado. A outra metáfora mobilizada por José Manuel Pureza é a do «Estado militante», um Estado capaz de intervir activamente na cena global como «suporte de lutas emancipatórias fundamentais que têm lugar na sociedade civil global e que são conduzidas por redes de ONGs transnacionais». O caso da campanha de solidariedade com Timor-Leste aparece como uma manifestação exemplar dessas novas concepções e das condições da sua realização efectiva. O autor examina, em particular, a articulação entre os diferentes vectores dessa campanha: a resistência timorense e a sua luta, as ONGs, a Igreja Católica no território timorense, a própria resistência à ditadura de Suharto na Indonésia, que contribuiu decisivamente para criar as condições para o processo de autodeterminação, e, finalmente, o Estado português que, apesar das hesitações e inflexões de orientação ao longo de quase um quarto-de-século, acabaria por desempenhar um papel significativo na acção diplomática a favor da causa timorense, nomeadamente através da articulação da sua actuação com actores colectivos, não-governamentais, e com o Comité de Descolonização das Nações Unidas, e tirando partido da sua condição, a partir de 1986, de membro da Comunidade Europeia. Propõe o autor, a partir deste caso, uma reflexão alargada sobre as condições e os meios de um novo internacionalismo solidário e de um novo tipo de política global, baseados na mobilização de cidadãos em torno de temas como a defesa dos direitos humanos ou o direito dos povos à auto-determinação, na mediatização das causas contra o silêncio e invisibilidade impostos pelos opressores ou ocupantes. Uma dimensão central dessa nova política global é a exploração das tensões, no plano internacional, entre, por um lado, os princípios hegemónicos que invocam a eficácia, as condições geopolíticas e a eficiência e, por outro lado, os princípios contra-hegemónicos da legitimidade, legalidade e multilateralismo. Neste quadro, e como mostra o estudo de caso, pequenos Estados como Portugal podem actuar, na condição de «Estados militantes», na base destes princípios e conseguir resultados numa arena internacional dominada pelas preocupações associadas à globalização hegemónica.

 

3. Cinco teses sobre multiculturalismos emancipatórios e escalas de luta contra a dominação

Os estudos de caso reunidos neste volume permitem-nos propor um conjunto de teses que pretendem, tão só, contribuir para o debate que os próprios estudos suscitam. A nossa leitura e interpretação dos casos deve, assim, ser vista como uma intervenção num debate que, naturalmente, terá de ser alimentado e enriquecido com outras leituras e interpretações, complementares, suplementares ou críticas daquelas que a seguir se apresentam.

Tese 1. Diferentes colectivos humanos produzem formas diversas de ver e dividir o mundo, que não obedecem necessariamente às diferenciações eurocêntricas como por exemplo, a que divide as práticas sociais entre a economia, a sociedade, o Estado e a cultura, ou a que separa drasticamente a natureza da sociedade. Está em curso uma reavaliação das relações entre essas diferentes concepções do mundo e as suas repercussões no direito e na justiça.

O modo como os povos indígenas da América, Austrália, Nova Zelândia e Índia, bem como as populações rurais de África, concebem a comunidade, a relação com a natureza, o conhecimento, a experiência histórica, a memória, o tempo e o espaço configuram modos de vida que não são redutíveis às concepções e culturas eurocêntricas. Exemplo disso é a oposição entre a concepção eurocêntrica de «terras indígenas», sujeitas ao direito de propriedade, e as concepções indígenas de «território», que designam um espaço colectivo pertencente a um povo, aos que hoje o integram e aos seus antepassados. A definição de uma identidade como povo e dos direitos colectivos deste está estreitamente vinculada a uma noção de territorialidade, associada a responsabilidades em relação ao território, definido como um colectivo de espaços, de grupos humanos, de rios e de florestas, de animais e de plantas. As diferenças entre visões do mundo tornam-se explícitas e transformam-se em terreno de lutas nos momentos em que a integridade desses colectivos é posta em causa, através do accionamento de noções alternativas de relação com o território, como as que assentam no direito de propriedade, ou quando a diferenciação entre o respeito pela cultura e o imperativo do desenvolvimento é mobilizada para justificar a exploração de «recursos naturais» por forças exteriores, como na luta dos U'wa contra a multinacional petrolífera. As lutas dos camponeses indianos contra a apropriação pelas empresas multinacionais dos recursos biológicos dos territórios que habitam, ou pela defesa de um meio ambiente equilibrado e de um modo de vida que o respeita e conserva oferecem outros exemplos de como os enfrentamentos entre diferentes visões do mundo podem assumir a forma de conflitos jurídicos e normativos, travados em instâncias nacionais e internacionais.

A adopção de modelos políticos e jurídicos eurocêntricos, supostamente de validade universal, como a ordem económica neoliberal, a democracia representativa ou o primado do direito de raiz liberal, assenta, muitas vezes, como mostram os diferentes estudos de caso, em formas de dominação baseadas em diferenças de classe, étnicas, territoriais, raciais ou de sexo, e na negação de identidades e direitos colectivos, considerados incompatíveis com as definições eurocêntricas de uma ordem social moderna. Mas mesmo em quadros normativos eurocêntricos, como mostra Ana Cristina Santos a propósito dos movimentos pela liberdade de orientação sexual em Portugal, existem espaços para a afirmação do direito à diferença. Essa afirmação passa, também ela, pela produção de concepções da normalidade, da natureza e da moral alternativas às concepções dominantes.

Tese 2. Diferentes formas de opressão ou de dominação geram formas de resistência, de mobilização, de subjectividade e de identidade colectivas também distintas, que invocam noções de justiça diferenciadas. Nestas resistências e suas articulações locais/globais reside o impulso da globalização contra-hegemónica.

Foi na resistência à assimilação que os povos indígenas vieram a impor aos Estados latino-americanos - como nos casos do Brasil e da Colômbia - o reconhecimento da sua identidade enquanto povos e dos seus direitos colectivos. As mulheres e os sectores mais pobres da população da África do Sul lutam contra a exclusão e desigualdade e pelo cumprimento das promessas de desenvolvimento e de participação. Em Moçambique, as mulheres sindicalistas travam uma luta em duas frentes, contra a dominação masculina nos sindicatos e contra as formas de exploração que as atingem duplamente, como mulheres e como trabalhadoras. Os homossexuais em Portugal lutam contra uma moral conservadora, a homofobia e a repressão sexual, pela liberdade de orientação sexual. A negação do direito a um poder local exercido pela própria população levou à mobilização popular em Canas de Senhorim. O povo de Timor-Leste levantou-se contra o invasor indonésio e contra a indiferença ou cumplicidade internacionais perante a invasão, pela sua autodeterminação. As populações rurais de várias regiões da Índia lutam contra as multinacionais, contra as organizações internacionais, contra o próprio Estado pelo direito ao ambiente, aos seus modos de vida, aos seus recursos naturais. Os activistas de direitos humanos lutam pela dignidade humana e contra o sofrimento em diferentes partes do mundo. As populações de Medellín e de Boyacá Ocidental, na Colômbia, lutam contra a violência, pelo direito à vida e pela paz.

As identidades colectivas associadas a estas diferentes formas de luta são o resultado emergente das próprias lutas, mesmo quando assentam em condições ou em colectivos que pré-existem a elas. Elas podem assentar, seja em comunidades locais, baseadas em relações face a face, seja em comunidades imaginadas, como a nação timorense, seja em comunidades inventadas, como no caso dos movimentos «lesbigay». As alianças forjadas no decorrer das lutas conferem aos actores nelas envolvidos o sentido de pertença a uma comunidade. A capacidade de ampliação, sustentação e sucesso das lutas depende da passagem dessas comunidades de comunidades locais a comunidades imaginadas e a comunidades inventadas, constituídas através de uma «voracidade de escalas» que alarga as lutas do espaço local para o nacional e o transnacional. O exemplo do pactismo colombiano ilustra negativamente este processo, mostrando os resultados da impossibilidade dessa articulação de escalas entre o local e o nacional. A luta da população de Canas de Senhorim encontra-se sob a permanente ameaça da sua particularização e localização. As mulheres e os sectores excluídos e marginalizados das sociedades sul-africana e moçambicana experimentam dificuldades em forjar as suas identidades como colectivos, quer porque enfrentam ideologias e práticas neoliberais hostis à sua agregação, quer porque os movimentos em que se inserem são pouco sensíveis à ideia da multiplicidade das formas de dominação e de discriminação.

Tese 3. A incompletude das culturas e das concepções da dignidade humana, do direito e da justiça exige o desenvolvimento de formas de diálogo (a hermenêutica diatópica) que promovam a ampliação dos círculos de reciprocidade.

A cultura ou o multiculturalismo podem ser recursos estratégicos para políticas emancipatórias, de exigência do reconhecimento da diferença e de afirmação do imperativo do diálogo. O debate sobre a universalidade ou multiculturalidade dos direitos humanos, referido por Boaventura de Sousa Santos, ilustra um problema mais geral, o de saber como tornar comensuráveis exigências de dignidade humana formuladas em linguagens distintas de direitos e de justiça. Quanto mais alargado for o círculo de reciprocidade definido por uma dada concepção de direitos e de justiça, tanto maior será a sua capacidade de inclusão de actores e de diálogo e concepções diversos. As experiências pactistas na Colômbia e os movimentos de homossexuais em Portugal apontam para os efeitos opostos de escolhas de círculos de reciprocidade estreitos, de base local e excludente, e de círculos de reciprocidade amplos, que estabelecem equivalências entre todas as formas de discriminação. Os sucessos dos movimentos indígenas no Brasil e dos U'wa na Colômbia na mobilização de solidariedades translocais e transnacionais constituem também ilustrações exemplares da importância de círculos amplos de reciprocidade. A linguagem da cultura e do multiculturalismo é mobilizada, nessas situações, como um recurso estratégico fundamental, como modo de tornar mutuamente inteligível e partilhável a reivindicação da diferença.

Tese 4. As políticas emancipatórias e a invenção de novas cidadanias jogam-se no terreno da tensão entre igualdade e diferença, entre a exigência de reconhecimento e o imperativo da redistribuição.

A igualdade ou a diferença, por si sós, não são condições suficientes de uma política emancipatória. O debate sobre os direitos humanos e a sua reinvenção como direitos multiculturais, bem como as lutas dos povos indígenas e das mulheres, mostram que a afirmação da igualdade com base em pressupostos universalistas, como os que presidem às concepções ocidentais, individualistas, dos direitos humanos, conduz à descaracterização e negação das identidades, das culturas e das experiências históricas diferenciadas, nomeadamente à recusa do reconhecimento de direitos colectivos. Mas a afirmação da diferença por si só pode servir de justificação à discriminação, exclusão ou inferiorização, em nome de direitos colectivos e de especificidades culturais. Os casos das mulheres trabalhadoras e sindicalistas estudados por Meer e Arthur revelam os mecanismos através dos quais a afirmação da diferença pode ser invocada contra a igualdade e contra a assunção plena dos direitos de cidadania. Em sentido inverso, as políticas de integração dos indígenas do Brasil e da Colômbia na cidadania liberal, enquanto indivíduos autónomos e «livres» de vínculos colectivos, significaram na prática a negação dos direitos colectivos dos povos indígenas, do direito ao seu território e ao seu modo de vida. Esses direitos colectivos viriam a ser reconhecidos e afirmados, através das suas lutas, nas Constituições de 1988 e 1991, respectivamente, consagrando uma ordem constitucional multicultural. Como sugere o caso da Índia, o pluralismo jurídico resultante de dinâmicas intersectantes do global, do nacional e do local pode dar origem a espaços de reconhecimento de formas de normatividade alternativas, mas estas só poderão resultar efectivamente em dinâmicas emancipatórias se forem articuladas com concepções alternativas de justiça e com políticas de redistribuição dirigidas aos grupos subalternos e mais vulneráveis da população. A exigência de reconhecimento da identidade local pode ser mobilizada, como o mostra Mendes, para reivindicar um tratamento igual entre cidadãos no mesmo espaço nacional. A solidariedade forjada na luta contra um invasor estrangeiro pode ser o esteio de uma identidade nacional e da exigência de igualdade de tratamento no plano do direito internacional, como mostra eloquentemente o caso de Timor Leste. Noutros contextos, como no caso dos U’wa da Colômbia, a afirmação identitária é um recurso para reivindicar um estatuto de reconhecimento de direitos colectivos, associado a uma garantia efectiva de controlo sobre um território e sobre os seus recursos. Mas os discursos identitários podem, também, ser utilizados para impor ordens repressivas, assentes numa paz precária e imposta pelas armas, que invocam a suposta harmonia de um passado pré-moderno, como nos lembram Gutierrez e Jaramillo. A resposta que propõe Boaventura de Sousa Santos a estas tensões e dilemas é a de defender a igualdade sempre que a diferença gerar inferioridade, e defender a diferença sempre que a igualdade implicar descaracterização.

Tese 5. O sucesso das lutas emancipatórias depende das alianças que os seus protagonistas são capazes de forjar. No início do século XXI, essas alianças têm de percorrer uma multiplicidade de escalas locais, nacionais e globais e têm de abranger movimentos e lutas contra diferentes formas de opressão.

A aliança entre a resistência popular em Timor-Leste, as ONGs, o Estado e o povo português e movimentos internacionais de solidariedade, amplificadas pelos media, permitiram que uma luta que esteve perto de cair no esquecimento se tornasse um dos mais notáveis exemplos de sucesso de novas formas de solidariedade internacionalista. As lutas dos povos indígenas da América Latina devem os seus sucessos e a sua persistência à capacidade de forjar alianças entre diferentes etnias e povos, com outros movimentos sociais, com ONGs e com movimentos de solidariedade internacional. O movimento «lesbigay» em Portugal afirmou-se pela sua capacidade de apoiar solidariamente outras lutas e movimentos contra todas as formas de discriminação, sexual, racial, étnica ou outras. Em contrapartida, onde essas alianças não têm lugar, ou onde se revela difícil articular diferentes tipos de lutas ou de movimentos, a dinâmica emancipatória é limitada e ameaçada por retrocessos a práticas discriminatórias, como sucede nos sindicatos e movimentos sociais na África do Sul e Moçambique. Noutros casos ainda, o isolamento territorial das lutas - ou, pelo menos, o risco desse isolamento - gera ambiguidades sobre o seu provável resultado, como nas iniciativas pactistas da Colômbia ou em Canas de Senhorim. A consolidação de lutas por direitos colectivos e pela justiça à escala local depende, por um lado, das articulações que mobilizem o Estado nacional enquanto garante desses direitos e dessa justiça, e, por outro, das solidariedades transnacionais. Em muitas circunstâncias, as alianças com sectores do Estado, explorando as tensões e contradições internas deste, ou a mobilização do poder judicial podem fazer a diferença entre lutas bem sucedidas e lutas falhadas. Na medida em que os processos de globalização geram definições de direitos em várias escalas que afectam a definição local dos direitos, o recurso a instâncias judiciais internacionais pode constituir um elemento importante das alianças emancipatórias locais.

A globalização contra-hegemónica assenta na construção de cidadanias emancipatórias que articulam o local e o global através de redes e de coligações policêntricas. Se a salvaguarda do carácter emancipatório das lutas desencadeadas à escala local exige que a direcção e coordenação dessas lutas permaneça nas mãos daqueles que as protagonizam localmente, as alianças translocais e transnacionais, a criação de redes internacionais de informação e de solidariedade activa são uma condição indispensável para evitar a particularização e confinação dessas lutas, e para evitar a afirmação e reprodução de hierarquias e formas de dominação locais que subvertam o carácter emancipatório das lutas. Esta é uma das grandes lições dos casos apresentados por Marés, Neves, Arenas, Randeria e Ana Cristina Santos. Os casos estudados por Meer, Arthur, Mendes e Gutierrez e Jaramillo tornam visíveis os perigos resultantes, seja da localização ou particularização das lutas, seja da invisibilização de formas de opressão e de resistência e dos actores que as protagonizam, em nome de concepções eurocêntricas da universalidade dos direitos, da cidadania e da democracia.

 

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