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Shalini Randeria

Pluralismo jurídico, soberania fracturada e direitos de cidadania diferenciais: instituições internacionais, movimentos sociais e Estado pós-colonial na Índia

 

 

Introdução

Em contraposição à preocupação predominante nos estudos recentes acerca do pluralismo jurídico transnacional, que se concentra na lex mercatoria e na produção autónoma e espontânea de direito por parte de uma pequena elite de árbitros comerciais internacionais e de gigantescas sociedades de advogados (Garth, 1995; Teubner, 1996, 1997), este capítulo retrata o papel de instituições internacionais, organizações não-governamentais (ONGs) e movimentos sociais, nas suas complexas interacções com o Estado, enquanto actores numa paisagem jurídica heterogénea. Assim, a dinâmica e as trajectórias do pluralismo jurídico e da transnacionalização do direito são analisadas, através do uso de material empírico oriundo da Índia. Tendo em consideração a forma como o direito entra na construção da ordem neoliberal, procura-se analisar o funcionamento do poder quer na domesticação da disciplina neoliberal quer na resistência a esta.

O capítulo examina a resistência colocada pelo Estado subalterno às instituições globais, bem como as lutas dos movimentos populares contra o Estado indiano. Deste modo, para discutir a ambivalência dos grupos-movimento relativamente ao Estado são utilizados três breves estudos de caso. O Estado é necessário como aliado contra as empresas multinacionais para a protecção do direito de acesso a sementes por parte dos agricultores. Mas o Estado também é inicialmente evitado na luta de Narmada visando directamente o Banco Mundial e mais tarde é procurado na busca de uma solução judicial junto do Supremo Tribunal da União Indiana contra negligências administrativas e abuso de poder por parte do governo estadual. Já no conflito em torno da ecodiversidade na Floresta de Gir, os grupos de defesa dos direitos humanos e o Banco Mundial aliam-se para usar o project law no sentido de proteger os direitos tradicionais dos pastores contra o governo estadual e o World Wildlife Fund (WWF), que estão empenhados em proteger o habitat dos leões através do direito ambiental federal.

As mutações nos contornos da governação, quer dentro, quer para além do Estado-nação são discutidas com a intenção de explorar algumas das ambivalências do direito quer como ferramenta de dominação, quer como instrumento de capacitação. O capítulo defende que a análise dos elementos que compõem a política das ONG-movimentos sociais consiste em compreendê-las não só enquanto entidades locais englobadas em estruturas nacionais e globais mais amplas - como uma boneca russa, na qual uma entidade maior envolve e contém uma menor -, mas como lugares fragmentados que possuem múltiplas ligações nacionais e supranacionais. Os movimentos sociais e as ONGs na Índia assumem preponderância enquanto mediadores entre leis nacionais e internacionais ao nível local, mas também enquanto canais para afirmação do direito consuetudinário e dos direitos colectivos tradicionais das comunidades locais na arena nacional e nos fóruns internacionais. As ONGs associadas aos movimentos de base são igualmente importantes na mobilização de conhecimentos divergentes, para formular leis e políticas populares alternativas a partir da utilização de diversas normas oriundas de diferentes fontes. Consequentemente, a sua contribuição para a reafirmação do direito consuetudinário e para o desenvolvimento do direito nacional e internacional, para além do seu papel de mediadoras, tradutoras e interfaces entre comunidades locais, Estados-nação e organizações internacionais merece uma análise cuidadosa.

Muitos destes desenvolvimentos no sentido da emergência de uma sociedade civil global numa «ordem mundial pós-Vestefaliana», para usar a expressão de Richard Falk (1999), são ambivalentes. Por um lado, ampliam o espectro das possibilidades de participação democrática na era do «Estado pós-soberano», como defende Scholte (2000), no sentido em que os cidadãos ultrapassam os seus governos e entram em interacção directa com as instituições responsáveis pela nova governação supranacional. Por outro lado, e paradoxalmente, algumas das acções dos movimentos sociais e das ONGs conferem à Organização Mundial do Comércio (OMC), ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial, uma maior autoridade e legitimidade, contribuindo indirectamente para um maior enfraquecimento da soberania dos Estados subalternos.

 

1. Pluralismo jurídico e Estados subalternos

A ideia de pluralismo jurídico, central para a antropologia jurídica dos anos 60 e 70, questiona as assunções básicas da teoria política e jurisprudência liberais, nomeadamente no que diz respeito à congruência entre o território, o Estado e o direito. Ao trazermos para primeiro plano a coexistência de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos no seio de uma unidade política única, particularmente dos direitos consuetudinários das comunidades e dos direitos religiosos a par com o direito da metrópole e com o direito criado especificamente nas e para as colónias nas sociedades (pós)-coloniais, o pluralismo jurídico interroga a centralidade do direito elaborado pelo Estado e a sua exigência de exclusividade no ordenamento normativo da vida social. As paisagens legais nacionais foram sempre complexas, variadas e multi-niveladas, cinzeladas em maior ou menor grau por diversas influências externas através de processos de empréstimo, difusão e imposição. Mas a crescente proeminência do direito internacional, de ordenamentos e regimes jurídicos supranacionais, da transnacionalização do direito estatal e, finalmente, da intervenção directa de instituições multilaterais, doadores internacionais e ONGs transnacionais contribui para uma nova dimensão do pluralismo jurídico. Estas alterações afectam a própria natureza das funções reguladoras e protectoras do direito, transformam as condições para a legitimação e aumentam o envolvimento directo dos actores globais na arena jurídica nacional.

A transnacionalização e o pluralismo jurídico, no sentido da multiplicidade de actores, arenas, métodos e formas de produção do direito, estão também a alterar a própria natureza e noção de direito enquanto corpo coerente e unitário de conhecimento e enquanto prática de tomada de decisões baseada em princípios (Cotterrell, 1995). À medida que o governo é substituído por uma pluralidade de regimes de governação supra e infra-estatais, com actores públicos e privados, há um direito descentralizado e microscópico que coexiste, de uma forma mais ou menos incómoda, com o direito monumental que anteriormente era monopólio dos Estados. O domínio do direito está a ser expandido no processo de inclusão de convenções, tratados, acordos bilaterais e multilaterais, bem como de protocolos com efeito jurídico, embora estes não possam ser entendidos como direito, no sentido estrito em que possuam uma base legislativa. Para além disso, a linha divisória entre direito público e privado e entre direito e política está a ser reformulada, dada a produção de normas por parte de actores como sociedades de advogados, árbitros privados e ONGs. A criação do direito torna-se cada vez mais um processo contínuo, de origem tanto administrativa como legislativa, sendo as regras, regulamentos e prescrições produzidas a partir de uma diversidade de fontes e locais com fronteiras inconstantes.

O próprio Estado está a ser descentrado e reconfigurado no processo de transnacionalização do direito e no contexto do pluralismo jurídico supranacional que acompanha este processo. No entanto, o diagnóstico, que geralmente predomina, de erosão da soberania do Estado pelas forças da globalização, não tem em consideração o papel ainda preponderante do Estado, ainda que seja enquanto terreno contestado numa paisagem jurídica cada vez mais plural; um terreno no qual vários ordenamentos jurídicos infra e supra-estatais interagem e competem uns com os outros (Santos, 1995). Uma vez que os Estados (pós)-coloniais nunca possuíram um monopólio absoluto sobre a produção de direito, as especificidades das suas trajectórias contemporâneas de globalização económica e jurídica apenas podem ser analisadas contra o pano de fundo das continuidades históricas, frequentemente representadas como processos de recolonização (Randeria, 1999). A soberania fracturada, a fragmentação da acção do Estado e a pluralidade jurídica não são exclusivas do Sul, mas os efeitos ambivalentes e o carácter contraditório destes desenvolvimentos são sentidos mais fortemente nestes Estados fracos.

Utilizo o termo «Estados fracos» em três sentidos: Estados (pós)-coloniais possuidores de estruturas frágeis e de uma história relativamente curta de formação do Estado; Estados situados numa posição subalterna no sistema internacional, dependentes de ajuda externa e dos ditames de agências internacionais; e, finalmente, Estados que não colonizaram completamente os imaginários das suas populações. Qual será o espaço disponível para os Estados fracos adoptarem políticas que protejam os interesses dos sectores vulneráveis das suas próprias populações no quadro estabelecido pelo dogma neoliberal, guardado pelo «Consenso de Washington» e pelo regime da OMC, que privilegia os interesses dos Estados poderosos e dos jogadores globais? Se os Estados subalternos não puderem estabelecer ou alterar as regras do jogo, será que têm ao menos hipótese de formular escolhas no que diz respeito à extensão, calendarização e sequenciação das reformas económicas e alterações legais concomitantes, ou à implementação dos acordos da OMC ou das condições de ajustamento estrutural?

Pode ser útil distinguir aqui entre os Estados falhados como a Somália ou o Ruanda, os Estados fracos como o Benin ou o Bangladesh e os Estados ardilosos como a Índia ou a Rússia. Os Estados ardilosos, normalmente corruptos, iludem quer os cidadãos, quer as instituições e os doadores internacionais com um falso papel de intermediários. Enquanto um Estado fraco não é capaz de se desresponsabilizar das suas obrigações ao nível da justiça, faltando-lhe as capacidades que lhe permitem disciplinar e regular de uma forma eficaz os actores estatais e não estatais e de negociar os termos sob os quais irá partilhar a soberania com os actores sub e supranacionais, os Estados ardilosos semiperiféricos servem-se da sua fraqueza para legitimar a sua não responsabilização perante os seus cidadãos e perante as instituições internacionais. Quando confrontados com o descontentamento popular face às suas políticas, os Estados ardilosos alegam uma incapacidade de resistir às pressões exercidas pelos doadores externos no sentido da realização de reformas. No entanto, fazem também uso da sua fraqueza em relação às clientelas domésticas para justificar a implementação parcial e selectiva das reformas perante as instituições internacionais.

Os Estados ardilosos são suficientemente autónomos para seleccionar estrategicamente as reformas que introduzem, adiar algumas alterações e retardar deliberadamente outras, implementar certas políticas com pouca convicção, cumprir apenas parcialmente as condições ligadas aos empréstimos e sequenciar estrategicamente as reformas (como, por exemplo, a privatização antes da desmonopolização). Embora constitua uma arma dos fracos, esta estratégia ardilosa pode ser utilizada para colher enormes lucros para certos sectores das elites governantes nestes Estados. Estas situações podem, é claro, ser vistas como sinais de um Estado brando mas, no meu ponto de vista, tal leitura falha no reconhecimento de estratégias de resistência por parte dos Estados ardilosos. De acordo com os proponentes da globalização económica, o Estado indiano não é suficientemente forte para desregular, privatizar e liberalizar na medida das necessidades. Aqueles agentes crêem que as reformas foram efectuadas demasiado tarde e devagar e que o seu alcance não foi suficientemente amplo, enquanto para os opositores das prescrições neoliberais o Estado indiano é fraco, cedendo às determinações ditadas pelas Instituições de Bretton Woods sem que tenham sido adoptadas medidas adequadas de política social para amortecer o impacto das reformas radicais sobre os pobres. Os primeiros defendem que o Estado indiano foi demasiado condescendente para com os trabalhadores, enquanto os segundos consideram que foi condescendente com o capital, mas duro com os trabalhadores pobres (Randeria, 1999).

Pode verificar-se que algumas formas de pluralismo jurídico na Índia evidenciam uma continuidade com normas e instituições tradicionais, outras reflectem um desenho colonial, a par com compromissos pós-coloniais, e ainda que algumas formas recentes de pluralismo jurídico têm sido impostas ao país no seguimento da reestruturação neoliberal e da respectiva resistência. Os pluralistas jurídicos, que estudaram o pluralismo infra-estatal, têm tradicionalmente sido defensores do direito da comunidade e, de uma forma mais ou menos explícita, têm apresentado uma posição antiestatista. Todavia, estão a começar a descobrir as virtudes da regulação estatal e da soberania e autonomia estatais ao serem confrontados com a globalização, a transnacionalização do direito e a pluralidade jurídica supra-Estado, sob o domínio de instituições internacionais que defendem os interesses dos pluralistas jurídicos do capital global, à semelhança de muitos grupos-movimento indianos.

O pluralismo jurídico nunca constituiu apenas uma categoria meramente descritiva, sendo também uma categoria normativa. Anteriormente, a ideia de pluralismo jurídico constituía parte de uma conceptualização binária do mundo, dividindo-o em sociedades não-ocidentais, caracterizadas por uma pluralidade de ordenamentos jurídicos em competição e sobreposição, e sociedades ocidentais, que não possuíam estas mesmas características. Se a antropologia, com a sua hostilidade ou, pelo menos, indiferença, relativamente ao Estado, tendia a celebrar o pluralismo jurídico, a teoria política liberal via esta heterogeneidade como um sinal de atraso ou de formação imatura do Estado. Assumia-se que a modernização levaria ao estabelecimento do monopólio do Estado sobre a produção, aplicação e interpretação do direito, em conjunto com a ideia de cidadania abstracta, envolvendo um conjunto único de leis para todos os cidadãos. Com o crescente reconhecimento, por parte dos sociólogos do direito, de que todas as sociedades são juridicamente plurais, a existência de diversas fontes de normas jurídicas e arenas institucionais deixou de constituir uma forma de marcar a diferença e alcançou um estatuto de universalidade.

Contudo, ao insistir na «policentralidade jurídica» (Petersen e Zahle, 1995) de todas as sociedades, esta abordagem viu-se reduzida a uma única categoria conceptual das diferentes trajectórias históricas e temporalidades da formação do Estado em diversas regiões do mundo. Para além disso, não teve em consideração a articulação específica dos ordenamentos jurídicos supra e subnacionais com o direito dos advogados no seio das ricas e complexas paisagens legais da maioria das sociedades não-ocidentais. Ao pretender contrariar a atribuição de uma modernidade deficiente às sociedades com pluralismo jurídico através da transformação da heterogeneidade e hibridação jurídicas em norma, tal perspectiva acabou por perder de vista as especificidades dessa mesma pluralidade nas diferentes sociedades. A verdade é que, mesmo sendo as sociedades juridicamente plurais, são-no de maneiras diferentes, dependendo do alcance e eficácia do direito estatal, da coexistência ou interpenetração dos ordenamentos jurídicos estatais e não-estatais, do facto de estas últimas serem estruturas comunitárias tradicionais paralelas ao direito estatal ou consistirem em justiça popular (revolucionária), desafiando o direito estatal, da extensão do reconhecimento explícito do direito não-estatal pelo Estado ou da sua mera tolerância, dada a fraqueza do Estado face aos actores externos ou a sua incapacidade de competir com as milícias privadas, autoridades religiosas e conselhos comunitários locais. A homogeneização descuidada e a universalização ilusória envolvidas na consideração de que todas as sociedades são juridicamente plurais requer a formulação de algumas questões: Será que o pluralismo jurídico na Índia é semelhante ao do Canadá ou do Quénia? Será a Índia juridicamente plural no mesmo sentido em que o é a África do Sul ou a Colômbia? Deverá o termo ser aplicado em comum a Portugal, Brasil e Moçambique?

Irei agora discutir quatro tipos diferentes de pluralidade jurídica na Índia, ou melhor, as vias pelas quais esta é introduzida no campo jurídico nacional, em resultado de actores e processos transnacionais: (i) o direito internacional e supranacional compete como um entre diversos ordenamentos jurídicos que operam ou são invocados por diferentes actores ao nível local; (ii) são introduzidas alterações nas normas, regulações e políticas nacionais por parte do governo ou da administração nacionais, quer sob a pressão externa associada às condições de ajuda, quer visando moldar o direito estatal para ficar em consonância com os regimes e protocolos internacionais, entre outros, levando a uma pluralização «dentro» do direito estatal; (iii) existem regras, contractos e procedimentos de organizações internacionais e agências doadoras que operam directamente no seio do Estado-nação; (iv) as ONGs contribuem para a pluralidade jurídica através da formulação quer de tratados alternativos, quer de políticas populares com carácter nacional ou supranacional, fazendo uso de diversas normas, cuja base pode assentar na comunidade tradicional, ou nas normas nacionais ou internacionais. A extensão, intensidade, velocidade e impacto destes processos de transnacionalização jurídica não são uniformes no seio do espaço nacional, de tal forma que podemos falar de gradientes desiguais de globalização, dependendo da área de regulação envolvida e do contexto local.

 

2. Domesticação da disciplina neoliberal: a dança dos doadores com os Estados dependentes

O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial, intitulado «O Estado num Mundo em Mudança», redefine o papel do Estado como um «enabling state», em termos da «fiabilidade do seu quadro institucional» e da «previsibilidade das suas regras e políticas, bem como da consistência com que são aplicadas» (World Bank, 1997: 4-5), sendo estas as questões chave para a garantia da credibilidade dos governos. O novo papel idealizado para o Estado nesta dramaturgia neoliberal é o de atrair capital estrangeiro, assegurando a protecção dos seus direitos e das liberdades dos investidores. Muito da retórica das teorias da globalização defende que o Estado não está a ser diminuído no seu papel como agência de produção e aplicação de normas, procurando-se, antes, restruturá-lo para que surja como uma entre outras arenas de prática reguladora que facilite maiores lucros para o capital.

O estabelecimento de um novo quadro jurídico conducente ao comércio, investimento e capital global é vital para o «consenso de Washington», que defende uma mistura de políticas universalmente válida e aplicável (privatização, desregulação, liberalização do comércio, livre movimento de capitais, desmonopolização, mercados de trabalho flexíveis, políticas monetárias e fiscais apertadas, protecção dos direitos dos investidores e dos direitos de propriedade intelectual), independentemente do contexto regional e das especificidades da economia do país. Também é necessária a criação de órgãos legislativos e agências de aplicação das normas no seio do Estado (daí a ênfase na primazia do direito e nas reformas institucionais, legais e judiciais), e das normas que transcendem as fronteiras do Estado-nação. O documento da OMC «Dez vantagens do sistema de comércio da OMC» refere o «bom governo» como uma delas. Esta expressão significa que, ao restringir as opções disponíveis ao nível das políticas reguladoras e distributivas nacionais e ao impedir grupos de interesses especiais de fazer lobby em defesa de opções que estão em desacordo com os preceitos neoliberais, a OMC contribui para a implementação eficaz do pacote de políticas de Bretton Woods.

Os acordos multilaterais de investimento, os tratados comerciais e os poderes adjudicativos da OMC fazem todos parte desta nova arquitectura de governação global, «dentro» e «para além» do Estado-nação. Os seus críticos na Índia argumentam que estes novos quadros legais constitucionais e quasi-constitucionais procuram assegurar, a longo prazo, o poder do capital sobre o Estado e a acção da política macro-económica e social, no quadro de uma estreita visão da democracia, limitada à existência de eleições multi-partidárias e de uma interpretação selectiva da primazia do direito. Uma das principais consequências deste tipo de estratégias é o isolamento de várias esferas económicas da arena política do controlo parlamentar (Gill, 2000) limitando, consequentemente, quer a tomada de decisões democrática, quer a fiscalização em relação a estas esferas. As palavras-chave no discurso do desenvolvimento, como participação, capacitação e envolvimento da sociedade civil, não se aplicam, por exemplo, à política macro-económica, aos aspectos de governação dos programas de ajustamento estrutural do FMI ou à aceitação das disciplinas do comércio e do investimento, incluindo a extensão e institucionalização dos direitos de propriedade intelectual e o direito dos contratos no quadro da OMC. As afirmações da sua legitimidade procuram basear-se na validade universal das suas prescrições, uma vez que estas derivam da ciência económica e são utilizadas para defender a necessidade de isolar do exercício da escolha política este conhecimento de especialistas. O argumento de defesa das regras de liberalização do comércio e investimento da OMC é construído, por exemplo, em termos da necessidade de isolar estas regras das oscilações inerentes à política democrática, tornando-as não negociáveis em termos internos. Ao afastar as leis e as políticas relevantes da tomada de decisões na esfera política e jurídica doméstica e ao diluir a jurisdição do governo nacional, estes processos aprofundam o défice democrático e enfraquecem a legitimidade dos Estados semiperiféricos e periféricos.

A questão da legitimidade das instituições internacionais, como a OMC, o FMI ou o Banco Mundial, está interligada com a questão do poder. Os críticos na Índia apontam para os efeitos perniciosos sobre a soberania do Estado das prescrições de políticas e dos condicionalismos - ofertas que os Estados dependentes não podem recusar -, e para o secretismo das negociações conducentes a acordos entre os burocratas nacionais e as organizações internacionais, ultrapassando o escrutínio parlamentar e o debate público. Os acordos do FMI e do Banco Mundial com os governos são negociados com a administração de uma forma semelhante, não sendo sujeitos a discussão e aprovação por parte das instituições democráticas domésticas. As regras da OMC têm que ser ratificadas por um parlamento que as não pode emendar, podendo apenas optar entre aceitar ou rejeitar o tratado na sua totalidade. O secretismo que rodeia as pré-negociações, às quais as organizações da sociedade civil não têm acesso e nas quais não participam, implica que as informações sobre o próprio processo, as posições dos diversos membros e as alternativas disponíveis ou consideradas não são disponibilizadas aos políticos ou cidadãos (Howse, 2001). Curiosamente, os burocratas que trabalham para o FMI, a OMC ou o Banco Mundial, quando confrontados com o défice democrático ou os problemas de legitimidade destas organizações, insistem em afirmar ser apenas conselheiros impotentes que servem os seus Estados-membros, sem qualquer meio de assegurar o cumprimento ao nível político.

A necessidade não só de uma legitimidade formal, como também de uma «legitimidade social», para usar o termo jurídico de Weiler (1999) no contexto interno, é subvalorizada pelos debates públicos sobre as condições de acesso ao crédito em todos os países do Sul. Como salienta Sally Falk Moore (2000) as condições têm carácter de lei, constituindo uma dimensão operacional das relações internacionais praticadas pelos doadores em relação aos Estados dependentes. As categorias jurídicas comuns podem não ser adequadas para classificar as condicionantes e capturar as suas complexidades: a aceitação destas condições faz com que o acordo tenha as características de um contrato, ou será que o facto de existir uma profunda assimetria de poder entre as partes torna a imposição de condições num acto quase legislativo?

As condições associadas aos empréstimos constituem uma oferta dificilmente recusável para os Estados subalternos. Contudo, uma coisa é a aceitação formal dos termos de um acordo, outra é o seu cumprimento. O não cumprimento, o cumprimento parcial ou retardado e a aplicação selectiva fazem parte da arte de resistir dos Estados subalternos no seio da ordem internacional. É frequente verificar que quer os doadores, quer os receptores sabem à partida que o cumprimento absoluto é impossível ou politicamente inexequível. No entanto, nenhuma das entidades o pode afirmar publicamente. Assim, aquando do empreendimento de cada nova iniciativa política, algumas condições são adquirem novos prazos e outras são esquecidas, desde que, pelo menos, o cumprimento nominal de alguns termos possa ser considerado como uma reafirmação simbólica da desigualdade de poder entre os dois lados na «dança dos doadores e dos seus dependentes», para fazer uso da expressão de Moore (2000).

O Estado indiano, por exemplo, privatizou apenas algumas empresas do sector público e, mesmo estas, fê-lo bastante devagar, acolheu entusiasticamente algumas partes do regime da OMC, mas requereu uma moratória de cinco anos sobre outras, enquanto acatava de bom grado a maioria das condições do empréstimo do FMI de 1991.

Foi pedido ao governo que abolisse os controlos sobre a circulação de divisas estrangeiras que reduzisse drasticamente a despesa pública e que desvalorizasse a rupia em 18% relativamente ao dólar. Em troca do empréstimo, o Banco Mundial exigiu a abolição do licenciamento industrial e à elevação do tecto relativo à propriedade de acções por parte de estrangeiros para 51%. Em 1993, e em contrapartida de um novo empréstimo, o governo cumpriu as directivas do FMI e do Banco Mundial relativamente à aceleração das reformas do sector financeiro, remoção de subsídios agrícolas improdutivos e à liberalização da importação de produtos industriais, mas defendeu que a exigência de uma desregulação do mercado de trabalho (que iria permitir aos empregadores total liberdade para contratar e despedir) apenas poderia ser cumprida gradualmente, dada a sensibilidade política das questões.

No entanto, ainda está por legislar uma solução que possa permitir redução de despesas com os trabalhadores no sector público e privado, bem como o fecho, liquidação ou reestruturação de empresas inviáveis. A desregulação do mercado de trabalho, tal como foi exigida pelo Banco Mundial, requer uma legislação federal que revogue ou dilua a Lei das Disputas Industriais de 1947 e a Lei dos Sindicatos Indianos de 1926. Os estudos efectuados pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) mostraram já que os custos sociais das reformas do mercado na Índia têm sido substancial e sistematicamente subestimados. No entanto, redução de despesas fora do âmbito de uma adequada rede de segurança viola direitos económicos, sociais e culturais reconhecidos pela Convenção Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (ICESCR), cuja protecção é garantida pela Constituição Indiana. A reforma do sistema tributário pretendida pelos doadores está ainda incompleta. Para além disso, o Governo Indiano resistiu à pressão do Banco Mundial e do FMI para a introdução da total convertibilidade da rupia nas transacções de capitais, enquanto tem sido extremamente flexível e cumpridor relativamente às exigências dos doadores no que diz respeito às políticas e programas demográficos. Por exemplo, a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) foi autorizada, nos anos 90, não só a voltar para a Índia para implementar o seu maior e mais caro projecto de controlo da população, o State Innovations in Family Planning, no Estado de Uttar Pradesh, mas também para ajudar a formular políticas demográficas ao nível estatal para os diferentes estados da União Indiana. É interessante verificar que o governo central não cedeu à exigência da USAID, de que deveria ser uma agência independente a administrar o projecto de 350 milhões de dólares, estabelecendo-se uma organização sob o seu controlo, cujo quadro seria constituído principalmente por burocratas do governo do Estado de Uttar Pradesh. O governo também rejeitou a já muito antiga exigência da USAID de introduzir contraceptivos injectáveis no sistema de saúde pública através do programa. Em vez de utilizar o argumento dos custos proibitivos dos injectáveis para o erário público, legitimou a recusa referindo-se à forte oposição dos grupos de mulheres do país aos contraceptivos de longa acção, tidos como um perigo para a saúde, tendo ainda declarado existir no Supremo Tribunal um caso, pendente desde 1994, levantado por grupos de mulheres contra a realização de testes do contraceptivo injectável Depo-Provera nos programas de saúde pública; estando ainda em vigor a sentença provisória do tribunal banindo a realização destes testes (Randeria, 1999).

Presume-se normalmente que o Estado seja um conjunto unificado de instituições, mas os movimentos sociais na Índia procuraram e obtiveram frequentemente apoio judicial contra o poder burocrático, tal como aconteceu no caso contra as culturas de camarão na costa sul. Swaminathan (1998) sugeriu que o Relatório Final da Comissão dos Direitos Humanos do Conselho Económico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) de 1992 (Türk, 1992), vem abrir uma nova e interessante possibilidade de recurso judicial a nível nacional contra os Programas de Ajustamento Estrutural (PAEs). Numa situação em que os governos são mais responsabilizáveis pelas suas políticas perante as instituições internacionais, o recurso judicial contra a violação de direitos de personalidade poderia tornar um Estado ardiloso responsabilizável pelos seus cidadãos. O Porta-voz Especial da Comissão do ECOSOC faz notar que os PAEs conflituam com o direito a um nível de vida adequado, sobretudo porque estão relacionados com direitos básicos de subsistência. Assim, estes programas apresentam um impacto profundamente negativo sobre diversos direitos económicos e sociais garantidos na ICESCR. Uma vez que a linguagem normativa em questão é relativamente vaga, é difícil demonstrar que os PAEs violam efectivamente estes direitos. Para além disso, a Convenção não possui meios efectivos de aplicação, dado que depende da acção do Estado.

O Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais do ECOSOC, estabelecido em 1987, indicou que a violação destes direitos deveria poder ter recurso judicial de acordo com o sistema jurídico nacional, sem especificar a extensão até à qual os direitos deveriam ser sujeitos a jurisdição nem estabelecer as penas apropriadas. Por exemplo, a introdução de pagamentos dos utentes nas escolas e hospitais, bem como o corte ou redireccionamento dos gastos nestas áreas, restringe o acesso à saúde e à educação, em especial para os pobres, tal como a desregulação dos mercados de trabalho e a privatização das empresas do sector público afectam negativamente o direito básico ao trabalho, diminuem os benefícios da legislação social e salários, enquanto aumentam o tempo de trabalho. Consequentemente, poder-se-ia defender que certas políticas de reforma económica implicariam direitos constitucionais económicos e sociais relativos à garantia de meios de subsistência adequados, a salários suficientes e a condições de trabalho justas e humanas. As inovações ao nível dos procedimentos no quadro da litigação em nome do interesse público poderiam bem ser usadas para este fim (Randeria, 2001a).

 

3. Alianças cívicas, direito de projecto (project law) e direito estatal: os direitos das comunidades pastoris versus os direitos dos leões

As agências internacionais constituem importantes fontes de pluralismo jurídico, através da introdução de novas normas na arena nacional e local. É frequente serem também responsáveis pela concretização e aplicação do direito quer directamente, quer através dos governos ou de ONGs. Este pode ser quer o direito internacional quer o «direito de projecto» (project law) (Benda-Beckmann, 2000), ou seja, regras e procedimentos usados por agências bilaterais e multilaterais e que elas próprias desenvolveram ou derivaram dos seus respectivos sistemas jurídicos nacionais. Ao introduzir os seus próprios procedimentos formais e regras substantivas para a implementação dos projectos, as agências de ajuda bilaterais e multilaterais tornaram-se num novo factor significativo no pluralismo jurídico transnacional.

Tal como defende Benda-Beckmann (2000), as organizações internacionais introduzem, também na arena jurídica nacional, conceitos e princípios que podem ser considerados como «proto-direito», uma vez que não possuem o estatuto formal de direito mas que, na prática, frequentemente possuem o mesmo grau de obrigatoriedade. Para além disso, através dos seus acordos de empréstimo e crédito com os Estados, introduzem aquilo que pode ser descrito como «direito de projecto», sob a forma de um conjunto adicional de normas. Na mesma linha, conceitos como «boa governação», «co-gestão» e «sustentabilidade», entre outros, foram elaborados no âmbito de vários tratados, convenções e protocolos internacionais, embora não representem nem princípios desenvolvidos na sua totalidade, nem apresentem uma coerência interna. Aos níveis nacional e local, existem diversos actores que os invocam em sobreposição ou competição com as leis nacionais ou que os utilizam como base da legitimidade das suas queixas contra os direitos tradicionais e o direito consuetudinário. Por vezes, durante o processo, são forjadas coligações estranhas, que podem ser descritas como «estranhos.parceiros.com» (odd.bedfellows.com).

Alguns dos paradoxos e contradições das possibilidades da coexistência de ordens normativas múltiplas e sobrepostas são evidentes. Por exemplo, no choque entre as ONGs ambientalistas e o movimento de defesa dos direitos humanos na Índia que, de tempos a tempos, têm entrado em confronto. A polémica em torno de um parque nacional em Gujarat, na parte ocidental da Índia, ilustram um conflito desta natureza, envolvendo o uso de diferentes conjuntos de normas legais ao nível local por parte de dois grupos diferentes de ONGs, cada um com as suas próprias redes transnacionais, representando interesses opostos. Enquanto os ambientalistas defendem a protecção da vida selvagem na floresta Gir, as ONGs de defesa dos direitos humanos têm estado preocupadas em assegurar o modo de vida e a continuidade cultural da comunidade pastoril da área. Os grupos ambientalistas, incluindo a poderosa ONG transnacional World Wide Fund for Native - India (WWF-I), firmam a sua legitimidade moral no facto de representarem titulares de interesses (stakeholders) globais. Fazendo uso dos seus recursos financeiros e ligações aos meios de comunicação social, o WWF-India deu aos leões uma cobertura nacional e internacional maior do que a dos criadores de gado. Os ambientalistas invocam e aplicam normas assentes em leis ambientais nacionais e internacionais, para defender a protecção da biodiversidade, e em especial dos leões, da floresta de Gir. As ONGs locais de defesa dos direitos humanos, apoiadas por uma rede do sul e sudeste asiático, advogam a protecção dos direitos tradicionais de acesso aos recursos naturais, com base no direito consuetudinário do grupo pastoril. No entanto, invocam também a doutrina do public trust, que irá requerer uma confirmação destes direitos por parte do Estado (Randeria, 2001a).

O WWF-India, com o qual está alinhado o governo da província de Gujarat neste conflito, tem procurado fazer tábua rasa dos direitos tradicionais dos criadores de gado aos produtos de origem florestal, pastagens e água, em nome do bem comum. Afirma que, quer o sistema ecológico local, quer os leões, são colocados em perigo pelos tradicionais métodos de pasto das grandes manadas de gado pertencentes à comunidade pastoril, bem como pelas suas crescentes exigências relativas ao fornecimento de infra-estruturas modernas e outros serviços na área (tais como estradas alcatroadas, electricidade, escolas e centros de saúde) (Ganguly, 2000). O Banco Mundial está actualmente a financiar na Índia, na floresta de Gir e em seis outras regiões do país, diversos projectos na área da biodiversidade, no âmbito do seu programa de ecodesenvolvimento (Randeria 2001a, 2001b). Durante o período limitado do projecto e nas áreas abrangidas, as políticas do Banco Mundial que favorecem a protecção dos povos indígenas prevalecem sobre as leis e acções do Estado, nos termos dos compromissos superiores aceites pelo governo da Índia no seu acordo com o Banco Mundial (World Bank, 1996). No entanto, não se sabe ainda se as condições contidas neste acordo irão prolongar-se para além dele ou terão algum impacto permanente ou profundo na política ou no direito nacionais.

Na base do conflito está a legislação nacional, sob a forma de uma Lei de Protecção da Vida Selvagem, elaborada com a ajuda de especialistas do Instituto Smithsonian (EUA) na década de 70 e adoptada pelo Parlamento indiano. Esta lei contém disposições legais para a declaração de certas áreas como «áreas protegidas» para efeitos do estabelecimento de parques nacionais ou santuários da vida selvagem. Tendo como objectivo a conservação ambiental, inclui ainda procedimentos que, na prática, atentam contra os direitos das comunidades locais nestas áreas. Mais especificamente, as acções levadas a cabo pelo governo de Gujarat no âmbito destas disposições legais resultariam na transferência forçada das comunidades de pastores das «áreas protegidas». O WWF-India colocou-se ao lado do governo no interesse da protecção ambiental, ao passo que os grupos de defesa dos direitos humanos recorreram ao Supremo Tribunal. Estes grupos encontraram um aliado no Banco Mundial, cujas directivas e políticas operacionais procuram proteger de despejo forçado as pessoas afectadas pelos projectos e garantir os direitos tradicionais dos membros das comunidades tribais. Estas directivas e políticas asseguram uma transferência participativa de populações e uma política de reabilitação que, pelo menos, protege os padrões de vida, a capacidade de obter rendimentos e o potencial de produção daqueles que são afectados por um projecto e estipula que estas condições não se deteriorem em resultado do mesmo. Ironicamente, o desalojamento previsto pelo governo de Gujarat em consonância com as leis nacionais foi temporariamente evitado com a ajuda dos tribunais, não porque violasse os direitos tradicionais das comunidades locais, mas porque contrariava não só esta nova política do Banco Mundial, mas também as condições aceites pelo governo indiano como signatário do acordo com o Banco Mundial.

No entanto, as ONGs de defesa dos direitos humanos constituem um caso que vai muito para além da muito limitada abordagem protectora delineada na política do Banco Mundial. De facto, recentemente aquelas organizações desafiaram a própria base desta política e das leis nacionais, as quais reconhecem apenas direitos individuais para efeitos de compensações, ignorando os direitos colectivos das comunidades ao acesso aos recursos naturais (Randeria 2001a, 2001b). As ONGs estão actualmente a formar uma ampla coligação a nível nacional para a reafirmação e protecção dos direitos colectivos das comunidades locais aos bens comuns (por exemplo, direitos dos criadores de gado, das comunidades piscatórias, dos agricultores marginais e pobres, dos trabalhadores sem terra e dos povos indígenas à terra, água e florestas), direitos consuetudinários que gozaram durante séculos. Para além das batalhas judiciais, há vários anos que as ONGs se têm vindo a envolver em lutas locais em torno deste tema. No entanto, a questão geral adquiriu proeminência devido à exacerbação da situação sob a política de liberalização e privatização do Estado indiano na época da «globalização predatória», para utilizar o termo de Richard Falk. É cada vez maior o número de «terras de ninguém», áreas florestais e áreas costeiras sob protecção ambiental especial através do Coastal Area Zonal Plan adquiridas pelo Estado e entregues às empresas a preços nominais. O Supremo Tribunal Indiano decidiu ser admissível esta aquisição de terra pelo Estado em benefício das empresas privadas, uma vez que constitui um «fim de benefício público», independentemente do facto de vir a destruir os modos de vida e os meios de subsistência das comunidades locais, que perdem os seus direitos consuetudinários e, em consequência, podem ser desalojadas à força e empobrecidas. Assim vemos como o Estado capacitante (enabling state) entra cada vez mais em conflito com os seus cidadãos, em especial os marginalizados e desprivilegiados que dependem, para a sua sobrevivência, dos recursos de propriedade comum, como a terra, a água e as florestas. É desta forma que o novo e profícuo direito ambiental nacional e supranacional, bem como uma crescente juridificação da vida social, andam de mãos dadas com a erosão dos direitos colectivos e da autonomia cultural das comunidades (Randeria, 2001b).

Neste contexto, as ONGs de defesa dos direitos humanos e os movimentos de base questionaram o próprio conceito de domínio eminente (eminent domain) presente na jurisprudência anglo-saxónica, pelo qual todos os recursos naturais são pertença do Estado. Com base neste conceito a Coroa Britânica e o Estado colonial, e agora o Estado indiano pós-colonial, reclamaram direitos de propriedade sem restrições sobre todos os recursos naturais sob o seu domínio. As ONGs de defesa dos direitos humanos entendem esta interpretação introduzida através do direito britânico como sendo contrária e incapaz de acomodar os direitos consuetudinários das comunidades locais aos Comuns. Para além disso, defendem a substituição deste conceito pela doutrina do curador público (public trustee), cada vez mais frequentemente reconhecida pelo Supremo Tribunal indiano, de acordo com interpretações e julgamentos nos Estados Unidos. Esta doutrina desafia a natureza absoluta do conceito de eminent domain ao considerar o Estado como um curador, em vez de proprietário, dos recursos naturais existentes no seu território.

Estes são os processos da particularização do direito ocidental e da sua crioulização, através dos quais se atribui uma tónica e um estilo determinados ao direito ocidental através da sua tradução local no contexto de lutas políticas específicas. Estes processos alertam-nos contra a busca de alternativas, presumivelmente autênticas, aos conceitos e normas jurídicos modernos ocidentais nas tradições da Índia pré-colonial, e salientam os processos altamente criativos do que Merry (1997) apelidou de «vernacularização do direito». No entanto, a especificidade dos actuais processos de transnacionalização do direito, com as suas dinâmicas divergentes, trajectórias desiguais e efeitos dissemelhantes em diferentes contextos culturais apenas pode ser analisada adequadamente contra o pano de fundo da importação, imposição e reconstituição colonial do direito no mundo não-ocidental (Randeria, no prelo).

A Lei da Aquisição de Propriedade, de 1894, e a Lei da Floresta, de 1927, são peças de legislação colonial, ainda em vigor na Índia hoje em dia, que se baseiam na premissa do eminent domain. As acções levadas a cabo pelas autoridades locais, com base nestas leis, em nome do «interesse público» - conceito não definido pelo direito - foram desafiadas pelas ONGs, invocando os direitos humanos, os direitos colectivos consuetudinários e, mais recentemente, a doutrina do Estado como «curador público». Diversos movimentos sociais e ONGs de Desenvolvimento travaram uma longa luta pela revisão de leis que poderiam afectar negativamente os povos indígenas e outras comunidades pobres e marginalizadas. Até agora tiveram sucesso na prevenção de repetidas tentativas governamentais de promulgação de uma nova proposta de lei para as florestas, a qual iria diluir ainda mais, ou mesmo abolir, os direitos tradicionais de acesso aos recursos naturais utilizados por estas comunidades. Como parte da sua campanha, a coligação de ONGs formulou a sua própria proposta alternativa de uma «Política da Floresta do Povo», em conjunto com um projecto de lei, tendo também procurado ancorar os direitos colectivos consuetudinários das comunidades à terra, água e florestas no direito constitucional à vida e aos meios de subsistência (Artigo 21 da Constituição Indiana).

A abordagem do Estado indiano à questão dos direitos colectivos é pouco consistente, pois apenas reconhece os direitos de alguns grupos ao seu próprio direito da família baseado em normas religiosas (por exemplo, os hindus, muçulmanos, cristãos e parsis têm direitos próprios separados, mas não os sikhs, budistas ou jainistas). Os tribunais de primeira instância toleram as decisões de conselhos de casta, tribais e «jamat» semi-autónomos, relativas a assuntos de direito da família. Os grupos reconhecidos com entidades legais para este efeito são diferentes daqueles a quem se aplicam as restrições. O reconhecimento dos direitos colectivos é, em parte, um legado da política colonial britânica e dos compromissos pós-coloniais para proteger as minorias religiosas e reparar as injustiças sobre comunidades marginalizadas, mas é também influenciado por pressões eleitorais actuais e circunstancialismos políticos. Quando o Estado colonial britânico institucionalizou, quer as quotas baseadas nas castas, quer direitos da família separados para diferentes grupos religiosos, as identidades de todas estas comunidades foram marcadas e forjadas no contexto destas políticas. A Constituição indiana reflecte esta tensão entre a acomodação de direitos colectivos de vários tipos e uma moldura básica empenhada no princípio liberal dos direitos individuais. O pluralismo jurídico, quer no âmbito do direito estatal (o reconhecimento de direitos ou leis diferentes para os vários grupos), quer ao nível do direito infra-estatal (a tolerância da jurisdição paralela dos conselhos comunitários semi-autónomos), é um sinal de modernidades desiguais mais do que de reminiscências de práticas e instituições tradicionais.

Embora altamente relutante em aceitar quaisquer direitos colectivos das comunidades locais aos recursos naturais, o Estado confere direitos de grupo em muitos outros contextos. Uma das poucas excepções a este princípio é a garantia de direitos especiais a alguns grupos indígenas sobre a terra e florestas por eles usadas colectivamente, de forma a protegê-los da alienação por elementos não-tribais (Secção V da Constituição indiana). No entanto, para além das comunidades indígenas, são ainda reconhecidas como entidades legais algumas comunidades religiosas, sobre as quais se aplicam conjuntos separados de direitos de personalidade, à semelhança dos direitos de grupo conferidos aos Dalits (Castas abrangidas pela Secção V), povos indígenas (Tribos abrangidas pela Secção V) e uma categoria heterogénea de castas, incluindo alguns grupos muçulmanos (as chamadas Classes Social e Economicamente Atrasadas), com o objectivo de fazer com que as quotas sejam proporcionais à respectiva população destes grupos.

As quotas ou reservas, como são conhecidas estas medidas de «discriminação positiva», incluem disposições legais para a representação política nos órgãos legislativos, bem como para o tratamento preferencial nas admissões em instituições de ensino superior e empregos no aparelho burocrático do Estado e em empresas públicas. Os direitos de grupo reconhecidos pela Constituição Indiana representam medidas temporárias, ao contrário do que acontece para os direitos colectivos das comunidades locais aos recursos naturais, que estão a ser reivindicados para proteger o direito à vida e aos meios de subsistência e para preservar a forma de vida característica destas comunidades e que consequentemente seriam permanentes. A política de quotas baseadas nas castas foi introduzida, desde o início, como uma medida de curto prazo, concebida para assegurar a representação política e para eliminar desvantagens na educação e no emprego. Da mesma forma, os distintos direitos de personalidade baseados em normas religiosas foram concebidos como temporários até que pudesse ser elaborado um Código Civil uniforme para todos os cidadãos, baseado nos Princípios Directores da Política do Estado, da Constituição.

Nestes últimos anos, quer a política das quotas para as comunidades desprivilegiadas, quer os distintos direitos da família para as minorias baseados em normas religiosas têm estado sob o ataque maciço das classes médias, predominantemente hindus. Ambas as políticas de pluralismo jurídico no seio do direito estatal têm sido descritas como prejudiciais para a sociedade indiana, uma vez que se considera estarem a cimentar e a perpetuar identidades particularistas à custa da integração das minorias na sociedade nacional. Mas esta é uma outra história.

 

4. A luta de Narmada reforma o Banco Mundial mas perde a batalha jurídica na Índia

Dado que cada vez mais cidadãos são agora directamente afectados nas suas vidas quotidianas pelo trabalho das instituições internacionais e pelas suas políticas, não constitui qualquer surpresa verificar que apresentam directamente os seus protestos a estas instituições, ultrapassando a arena política nacional e transnacionalizando as questões. Muitas das ambivalências da nova arena transnacional da «sub-política global», como Ulrich Beck (1998) a denomina, são ilustradas pela duradoura e bem sucedida luta do movimento local Narmada Bachao Andolan (Movimento Salvem Narmada) (NBA), em conjunto com uma rede de ONGs nacionais e transnacionais da Índia, Europa e EUA, contra a construção do projecto Sardar Sarovar no rio Narmada, na Índia ocidental. O projecto incluía 30 barragens de grande envergadura, 133 de envergadura média e 3 mil pequenas barragens, conjuntamente com uma central hidro-eléctrica de 1200 megawatts. O Banco Mundial veio a ser forçado a retirar o apoio financeiro a este projecto nocivo para o ambiente, que acabaria por deslocar 100 mil a 200 mil pessoas sem uma reabilitação adequada. Algumas das complexidades e contradições da campanha que envolveu várias ONGs indianas, grupos ambientalistas dos EUA, grupos de ajuda ao desenvolvimento da Europa, Japão e Austrália são exploradas na excelente etnografia de Jai Sen (1999). Esta obra descreve o nascimento de uma nova modalidade de acção social transnacional - a «rede de advocacia transnacional» (Keck e Sekknik, 1998), delineando também a forma como a dinâmica da resistência local veio a ser crescentemente moldada pela escolha das arenas de negociação e pelas estruturas das instituições internacionais utilizadas como alavancas para o poder.

Tal como nos é recordado pela campanha de Narmada, a política transnacional tem lugar nas arenas políticas nacionais de diversos países do Norte em simultâneo, e não fora da esfera política nacional. Por exemplo, neste caso, várias ONGs europeias mobilizaram o apoio público e reuniram um grupo de apoiantes nos seus próprios países, de forma a fazer um lobby junto dos ministros para o desenvolvimento, dos deputados e do director executivo de cada país no Conselho de Administração do Banco Mundial. No entanto, ao estabelecerem uma ligação com as poderosas ONG norte-americanas para utilizar as sessões do Congresso dos EUA como fórum para exercer pressão sobre os bancos multilaterais para o desenvolvimento, em geral, e sobre o Banco Mundial, em particular, no sentido de mudarem as suas políticas e reformarem as suas estruturas, os movimentos sociais e ONGs do Sul não só reforçaram as assimetrias do poder existentes entre o Norte e o Sul, como também vieram a conferir uma maior legitimidade aquelas instituições, ao passar por cima da arena política nacional para as abordar directamente. Em consequência, vieram diminuir ainda mais a legitimidade do seu próprio governo (Sen, 1999).

Contudo, foi também em Washington que o movimento indiano, bem como a campanha transnacional que o apoiou, resultou em várias alterações estruturais a longo prazo, não intencionais e imprevistas. A estratégia que visava os Directores Executivos do Conselho de Administração do Banco Mundial oriundos dos países europeus e dos EUA fez com que estes tomassem um passo sem precedentes: desafiar a autoridade do pessoal do Banco e interessar-se directamente pela negociação dos projectos. Jai Sen defende que a campanha, paradoxalmente, veio reduzir o controlo democrático sobre as estruturas do Banco Mundial, ao aumentar o controlo do Congresso dos EUA e ajudar à concentração de poder dos principais países membros do Norte (os membros do G-7 controlam cerca de 60% dos votos) sobre os funcionários do Banco Mundial. Porém, a nível desta instituição, a campanha resultou também no estabelecimento do «Painel Global sobre Grandes Barragens» e em alterações internas dos mecanismos de controlo e verificação. Entre as alterações significativas introduzidas em resultado da experiência com a barragem Sardar Sarovar, conta-se uma política de divulgação pública de informação, que estabelece que a informação sobre projectos específicos relativos ao ambiente e ao realojamento deve ser dada àqueles que são afectados pelos projectos antes da sua apreciação. Assim, a gestão do Banco é obrigada a obter esta informação do governo que pede o empréstimo e a torná-la pública (Udall, 1998).

 

5. Governação no Estado e para além dele: o Painel de Inspecção do Banco Mundial e o Supremo Tribunal da Índia

Uma das grandes proezas da campanha de Narmada foi o estabelecimento, em 1993, de um Painel de Inspecção no Banco Mundial, em resposta à pressão exercida pelas ONGs por uma maior transparência e responsabilização e a ameaças, por parte de membros influentes da Câmara dos Representantes dos EUA, de bloquear mais contribuições deste país para a Associação Internacional para o Desenvolvimento (Udall, 1998). O Painel não é um órgão com poderes de adjudicação, mas constitui um fórum de recurso para qualquer grupo negativamente afectado por um projecto financiado pelo Banco Mundial (Kingsbury, 1999). Contudo, o objectivo principal do Painel de Inspecção é verificar se os funcionários do Banco cumpriram as suas próprias normas e procedimentos.

Entre os 17 requerimentos estudados pelo Painel até meados de 1999, dois estavam relacionados com projectos na Índia: o projecto de central termo-eléctrica da National Thermal Power Corporation (NTPC), de 1997, em Singrauli e o projecto de ecodesenvolvimento (do qual o projecto Gir, acima discutido, faz parte), no Parque Nacional Nagarhole, em Karnataka, de 1998. Em ambos os casos, alegava-se que os órgãos de gestão do Banco não tinham cumprido a sua própria política sobre a avaliação ambiental, os povos indígenas e o realojamento involuntário. A queixa relativa a sérias falhas na concepção e implementação do projecto de ecodesenvolvimento foi submetido por uma ONG indiana em representação de povos indígenas que vivem no Parque Nacional Nagarhole, alegando que não tinham sido preparados quaisquer planos de desenvolvimento com a sua participação, tal como estabelecido pelas directrizes do Banco, uma vez que o projecto nem sequer tinha reconhecido o facto de estes povos residirem dentro da área central abrangida pelo projecto. O desalojamento forçado destas comunidades adivasi do seu habitat na floresta iria não só arruinar a sua vida sociocultural, como aniquilar os seus meios de subsistência. Embora os funcionários do Banco tenham negado qualquer desvio em relação à política e aos procedimentos, o Painel, após um estudo dos documentos escritos e uma visita ao local, recomendou que o Conselho de Administração do Banco autorizasse uma investigação. O Painel considerou que «existia um potencial significativo para a ocorrência de danos graves» (Shihata, 2000: 135), uma vez que os princípios-chave da concepção do projecto pareciam ter falhado. Tendo em conta a pouca informação à disposição dos funcionários do Banco, o Painel entendeu que durante a apreciação do projecto não teria sido possível prever a forma como o projecto poderia afectar a população adivasi residente no parque. Em vez de consultar esta população antes do projecto, como era exigido, os órgãos de gestão do Banco afirmaram ter previsto a sua participação na fase de implementação. Shihata, o então Conselheiro Geral do Banco Mundial, salienta que a «concepção de processo» do projecto mais flexível e inovadora, por oposição ao blue print project, significava que os mecanismos de planeamento seriam estabelecidos paralelamente à implementação do projecto. Tal como refere Shihata, verifica-se, com surpresa, que a própria abordagem escolhida envolve o risco de incumprimento da política de consulta e planeamento participativo do Banco Mundial, uma «característica que, embora aparente, não foi explicada na altura em que o projecto foi apresentado ao Conselho de Administração para aprovação» (2000: 134).

O Painel fez notar que, em violação das directrizes sobre o realojamento involuntário, não havia sido preparado qualquer plano de desenvolvimento para os povos indígenas durante a fase de apreciação e que não estavam a ser elaborados quaisquer «microplanos» para as famílias adivasi (97% das quais desejava permanecer no Parque Nacional), através dos quais essas mesmas famílias e grupos individuais residentes da área protegida pudessem expressar as suas necessidades e obter apoio financeiro. Apesar destas conclusões e do potencial forte impacto negativo sobre as comunidades indígenas da área, o Conselho de Administração do Banco, cedendo a pressões por parte do governo da Índia, decidiu, em 1998, não autorizar qualquer investigação. Em vez disso, apenas pediu aos órgãos de gestão que, em conjunto com o governo regional do Estado de Karnataka e as pessoas afectadas, abordassem as questões levantadas no relatório do Painel e que intensificassem a implementação e o microplaneamento do projecto. Dada a longa história de incumprimento das directrizes do Banco, quer pelos seus próprios funcionários, quer pelo governo de Gujarat (tal como amplamente documentado no relatório da Comissão Morse sobre a barragem de Narmada), a decisão do Conselho de Administração constitui motivo de preocupação, já que reflecte a recusa por parte dos Directores Executivos dos países devedores do Conselho de Administração do Banco Mundial (incluindo a Índia) em permitir as investigações do Painel, que consideram ser uma violação da sua soberania nacional.

Após uma década de graves violações das políticas ambientais e de realojamento por parte do Banco e do governo da Índia terem levado à retirada do Banco Mundial do projecto Sardar Sarovar, ficamos surpreendidos pela fraca memória institucional do Banco; pela sua falta de responsabilidade, mesmo na ausência de responsabilidade legal, perante as pessoas negativamente afectadas pelos seus projectos; pela sua fé na vontade política e na capacidade de implementação das condições relativas ao ambiente e aos direitos humanos por parte dos governos receptores dos empréstimos; pela falta de supervisão desta implementação por parte do Banco; e, de uma forma mais geral, pela sua contínua insensibilidade relativamente aos custos sociais e ecológicos do tipo de desenvolvimento que defende e financia. Apesar de o governo da Índia, desde há décadas para cá, falhar na elaboração de uma política nacional de realojamento e reabilitação, o Banco continua, surpreendentemente, a adiantar-lhe créditos para projectos de desenvolvimento que envolvem o desalojamento. O facto de o Banco possuir uma política de divulgação pública da informação, ausente no próprio contexto nacional, não é consolo para aqueles que são expulsos à força pelos seus projectos. Não parece que um Painel de Inspecção com poderes tão limitados represente uma solução para os problemas de sobrevivência das pessoas à beira do desalojamento forçado, uma vez que não existe nem uma comissão de recurso independente com a autoridade para modificar, suspender ou cancelar os projectos do Banco Mundial, nem o recurso judicial adequado contra práticas ilegais por parte do Estado. As ONGs que criticam estas pouco entusiásticas medidas de reforma efectuadas pelo Banco chamam a atenção para o facto de que a dívida dos países não é cancelada com a interrupção de um projecto, continuando o Banco livre de responsabilidade legal pelo impacto ecológico e social negativo dos seus projectos.

Se, até aqui, a experiência dos cidadãos indianos com o Painel tem sido decepcionante, a amarga experiência das tentativas do Narmada Bachao Andolan de agir judicialmente contra um Estado que tem desprezado constantemente as suas próprias leis e políticas revela, igualmente, algumas das limitações da utilização dos tribunais nacionais pelos movimentos sociais enquanto arena onde se possa defender uma justiça social. O recurso aos tribunais ajuda a divulgar a questão na imprensa, mas pode levar à sua despolitização durante uma cara, morosa e imprevisível batalha no tribunal, na qual o que conta são os tecnicismos jurídicos e não as questões morais. Apesar de um controverso e prolongado debate público na Índia e da ampla utilização do Supremo Tribunal indiano pelo movimento Narmada após a retirada do Banco Mundial do projecto, a questão tem ainda que ser seriamente debatida no Parlamento Nacional. A campanha ainda não conseguiu levar a alterações políticas ou jurídicas na Índia em relação às grandes barragens, à aquisição de terra, ao desalojamento involuntário ou ao realojamento e reabilitação. O movimento do vale do Narmada, que procurou radicalizar a agenda do damn-the-dams numa crítica da ideologia e prática de gigantismo nas acções de desenvolvimento, e ampliar a política para permitir a inclusão de modelos para um futuro alternativo, assentes em pequenos projectos autónomos locais, está viciado após anos de negociações sobre pormenores técnicos no Supremo Tribunal, como sejam, por exemplo, a altura da barragem. Para além disso, o governo justificou a sua inacção de anos relativamente às alterações políticas ao fazer notar o estatuto sub judice de todos os assuntos perante o tribunal. Quando olhamos para trás, a retirada do Banco Mundial do projecto pode parecer uma benção mista, uma vez que sob pressão de ONGs de Gujarat alguns funcionários e missões do Banco procuraram fazer adoptar e implementar políticas de reabilitação. A melhoria relativa das políticas e a da sua execução em Gujarat, em comparação com Madhya Pradesh e Maharashtra, pode ser atribuída a esta pressão por parte dos doadores.

O veredicto do Supremo Tribunal, pronunciado no dia 18 de Outubro de 2000, constituiu um rude golpe para os movimentos populares e a negação grave de justiça levanta questões fundamentais acerca das próprias limitações da utilização dos tribunais judiciais por parte de movimentos sociais na sua luta pela justiça social. De facto, o tribunal máximo necessitou de seis anos e meio para chegar à conclusão de que o tribunal não devia ter qualquer papel nesse tipo de decisões! A decisão por maioria do juiz do Supremo Tribunal Anand e do juiz Kirpal rejeitou todas as objecções relacionadas com as questões ambientais e da reabilitação, confiando inteiramente nas declarações juradas dos governos estaduais, tendo apenas pedido à Autoridade de Controlo do Narmada que redigisse um plano de acção sobre assistência e reabilitação no espaço de quatro semanas. Tal como apontam os críticos desta decisão, é pouco provável que o Governo faça em quatro semanas o que não conseguiu fazer em 13 anos. A decisão por maioria, que louva as grandes barragens e os seus benefícios para a nação, não só permite a construção da barragem de Narmada, mas, ao colocar em questão o locus standi dos movimentos sociais como requerentes em nome do interesse público, limita também as opções jurídicas futuras para uma acção colectiva dos cidadãos contra o Estado.

Na petição que o Narmada Bachao Andolan apresentou, em 1994, contra o governo da União Indiana, requeria-se um embargo da construção da barragem ao abrigo do artigo 32º da Constituição Indiana, que garante a cada cidadão o direito de apelar para o Supremo Tribunal na defesa dos seus direitos fundamentais. O NBA defendia que a magnitude do desalojamento provocado pela barragem era tal que era impossível a reabilitação total das pessoas cuja terra seria submersa pelo projecto. Uma vez que os governos dos estados não tinham tomado, nem poderiam agora tomar, providências adequadas para o realojamento e reabilitação destas comunidades, o movimento pediu o embargo da construção da barragem por violar a decisão do tribunal inter-estadual, que requeria o cumprimento desta condição antes da construção da barragem. A um nível mais fundamental, o NBA levantou a questão de quem tem o direito de definir o que é bem comum e quais os critérios que o definem. De quem é o interesse que pode ser definido como interesse nacional, quando os interesses dos desalojados colidem com os dos futuros beneficiados? Será que pode ser utilizado um mero cálculo utilitário, em que o número de beneficiados é maior do que o das vítimas, para negar às comunidades pobres e vulneráveis os seus direitos à vida e aos meios de subsistência? É legítimo o Estado declarar um conjunto de interesses parciais - os do lobby dos agricultores ricos, dos industriais e dos empreiteiros - como sendo sinónimo do bem comum? O NBA desafiou assim o próprio princípio de que o Estado, por definição, actua no interesse público, tendo pedido judicialmente uma revisão independente da totalidade do projecto e dos seus custos a nível ambiental, económico e humano. Para além de ter levantado a questão da ilegalidade das práticas do Estado (como, por exemplo, a ausência de estudos ambientais que deveriam ter sido realizados antes do processo de construção, como obriga o Ministério do Ambiente), o NBA defendeu também que os custos negativos em termos humanos e ecológicos, das grandes barragens superam em muito os seus benefícios.

Em resposta à petição, o Supremo Tribunal suspendeu os trabalhos de construção da barragem de 1995 até 1999, enquanto pedia aos três governos estaduais relatórios sobre o progresso da reabilitação dos «desapossados», bem como as providências futuras relativamente a estas comunidades, em conjunto com rápidas pesquisas e planos ambientais para a superação dos perigos. Nas audições de 1999, os conselheiros do governo do Estado de Gujarat pediram ao Tribunal que desse um sinal claro a favor da barragem, para que os investidores estrangeiros se sentissem incentivados a investir no projecto (Sathe, 2000). É difícil calcular qual o peso que este argumento teve na decisão do Tribunal em permitir o recomeço da construção, apesar de não terem sido feitos muitos progressos na avaliação quer da reabilitação, quer do ambiente. No entanto, este argumento reflecte as prioridades e preocupações do governo de Gujarat, que escolheu privilegiar o direito à segurança do investimento estrangeiro sobre os direitos fundamentais dos seus próprios cidadãos. É curioso verificar que foi agora revelado que o projecto Narmada, promovido durante anos pelo governo do Estado como sendo a «linha da vida de Gujarat», (já que iria proporcionar água potável e infra-estruturas para a irrigação para as área propensas a seca de Saurashtra e Kachch), pretendia atingir fins completamente diferentes. Em 1996, anunciou-se que a água da barragem seria vendida a empresas privadas ao preço de mercado, uma oferta que diversas grandes empresas de fertilizantes, cimento, petroquímica e química podem aceitar como uma alternativa mais económica à desalinização da água do mar.

É também preocupante que o tribunal tenha recusado ter em consideração a questão geral da utilidade das grandes barragens, justificando esta recusa com o argumento de que as questões políticas devem ser resolvidas pelo governo e pela administração, ao mesmo tempo que declarava as barragens essenciais para o progresso económico. Com base na doutrina da separação de poderes, esta defesa da limitação dos poderes por parte do poder judicial em abordar assuntos políticos, de maneira a não se intrometer em áreas da competência administrativa, revelou-se uma surpresa e um desapontamento depois de mais de uma década de activismo judicial, e cinco anos depois do NBA ter dado entrada da petição. No entanto, o julgamento Narmada não constitui nenhuma anomalia na história de limitação de poderes do Supremo Tribunal no contexto de petições em nome do interesse público que desafiaram grandes projectos para o desenvolvimento e de infra-estruturas na última década. Tal como salienta Upadhyay (2000), está em consonância com a inclinação por parte do poder judicial em insistir sobre o executivo para que tome decisões correctamente em vez de decisões correctas. O Supremo Tribunal deixou frequentemente à consideração do Governo decidir sobre a natureza dos projectos públicos para a melhoria dos padrões de vida dos cidadãos e resolver conflitos de interesse provocados por perspectivas opostas sobre o desenvolvimento. Neste caso, o tribunal considera ser o seu papel verificar se todos os aspectos foram tidos em consideração e se as leis sobre a terra foram cumpridas, mas não se a decisão está correcta ou errada. Curiosamente, o tribunal tomou uma posição completamente diferente nos casos de protecção ambiental. Nem as questões do foro técnico, nem as do campo político o levaram a aplicar a limitação de poderes quando procurou reconciliar o desenvolvimento com considerações de ordem ecológica. O tribunal procurou desenvolver uma jurisprudência ambiental rica para compensar a indiferença administrativa, mas tem preferido manter uma atitude defensiva de não-interferência nas decisões administrativas sobre projectos infra-estruturais (Upadhyay, 2000).

Décadas de resistência por parte das vítimas do desenvolvimento no vale do Narmada, que suportaram o peso da repressão e violência estatais, não levaram a repensar as questões básicas levantadas pelo movimento: o desalojamento forçado e a destruição ecológica no interesse do desenvolvimento industrial, bem como a procura de modelos alternativos de desenvolvimento ambientalmente sustentáveis e socialmente justos que respeitem a diversidade cultural e o direito das comunidades a determinar o seu próprio modo de vida e meios de subsistência. Depois de o Banco Mundial ter retirado o financiamento à barragem Sardar Sarovar no rio Narmada, o governo de Gujarat lançou obrigações no país e no estrangeiro para reunir o capital necessário. Continuaram as tentativas para atrair o financiamento multinacional, o qual está fora do controlo democrático em qualquer dos países envolvidos, para o financiamento da barragem de Maheshwar, no rio Narmada.

 

6. A árvore Neem indiana em julgamento em Munique

A história da luta em torno da árvore Neem indiana serve para ilustrar sete teses sobre o pluralismo jurídico supranacional e subnacional, o papel do Estado simultaneamente como arquitecto e como vítima da transnacionalização do direito e, por fim, a contribuição das ONGs na mobilização de resistência e na criação de um direito alternativo.

Nos dias 9 e 10 de Maio do ano 2000, o destino da árvore Neem indiana esteve suspenso na sala 3468 do Instituto Europeu de Patentes, em Munique (Alemanha). Em causa estava a legitimidade de uma patente para um método de preparação de um óleo com propriedades pesticidas, extraído das sementes da árvore, uma das 14 patentes de produtos derivados da árvore Neem indiana atribuídos pela autoridade de Munique. A empresa transnacional norte-americana W.R.Grace e o Departamento Norte-Americano para a Agricultura, possuidores em conjunto de seis destas patentes, eram representados por uma sociedade de advogados de Hamburgo. Alinhada contra eles estava uma coligação transnacional de peticionários requerendo a revogação da patente: Vandana Shiva, Directora da Research Foundation for Science, Technology and Ecology; Linda Bullard, Presidente da International Federation of Organic Agricultural Movements e Magda Alvoet, ministra belga da Saúde e do Ambiente. Estavam representados por um Professor suíço de Direito da Universidade de Basileia.

Os representantes dos interesses químicos norte-americanos permaneceram silenciosos durante os dois dias de audiências. Era o silêncio dos poderosos, daqueles que sabiam que o tempo, o dinheiro e o governos dos EUA estavam do lado dos interesses económicos norte-americanos. O Instituto Europeu de Patentes ouviu os eloquentes argumentos políticos de Vandana Shiva sobre a biopirataria e o colonialismo intelectual, bem como o testemunho do agricultor do Sri Lanka, Ranjith de Silva, sobre a ilegitimidade moral de uma patente que menospreza séculos de sabedoria tradicional local. Mas o que acabou por ter peso sobre a decisão do Opposition Division Bench foram os valores para a centrifugação, filtração e evaporação fornecidos pelo testemunho de Abhay Phadke, dono de uma fábrica indiana. A sua empresa, nos arredores de Delhi, tem estado a usar, desde 1985, um processo muito semelhante ao patenteado pela empresa multinacional e pelo Departamento da Agricultura norte-americanos para o fabrico do mesmo produto na Índia. Ao fim de uma batalha legal de cinco anos, no dia 10 de Maio de 2000, o Instituto Europeu de Patentes revogou a patente com base no facto de o processo patenteado pelos norte-americanos não trazer qualquer novidade.

A luta em torno das patentes relacionadas com a árvore Neem pode ser utilizada para ilustrar sete teses sobre a transnacionalização do direito e o pluralismo jurídico, as quais traçam os contornos do papel sujeito a restrições mas central do Estado e a importância das ONGs e dos movimentos sociais neste processo:

6.1. Globalização hegemónica versus globalização contra-hegemónica

Ao contrário do ponto de vista expresso no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, o Instituto Europeu de Patentes, em Munique, não foi o palco do conflito entre o Oriente e o Ocidente, mas entre duas visões de globalização e sobre o rumo do processo. Tal como em Seattle, os adversários na batalha eram, de um lado, os proponentes de uma globalização neoliberal em nome do lucro e, do outro, os seus oponentes da sociedade civil globalmente ligados em rede. Como actores numa sociedade civil global emergente, movimentos de agricultores e ONGs ambientalistas indianos ligados transnacionalmente em rede estão entre os mais fervorosos oponentes de um novo regime jurídico internacional de «direitos de propriedade intelectual», que permite às empresas transnacionais do Norte um acesso fácil e económico aos recursos naturais do Sul, transformando a herança comum em mercadoria e colocando em perigo a biodiversidade das culturas agrícolas, ameaçando os meios de subsistência dos produtores primários pobres e forçando os consumidores de sementes e medicamentos naturais do Sul à dependência e, frequentemente, à destituição. Estes movimentos fazem notar que os países capitalistas do Norte se industrializaram sem as restrições do regime de patentes que agora impuseram ao mundo em desenvolvimento (Shiva et al, 2000). A questão central das suas lutas na arena jurídica e política a nível local, nacional e transnacional é a seguinte: quem, e de acordo com que normas, é que estabelece as regras para os processos de globalização? Estes movimentos estão a levantar questões sobre segurança alimentar e direitos dos agricultores e, a um nível mais geral, a situar as questões na esfera da justiça social, da democratização da governação global e da legitimidade das instituições e dos regimes jurídicos internacionais.

Por exemplo, o «tribunal das sementes» (seeds tribunal) transnacional, organizado em 24 e 25 de Setembro, em Bangalore, por várias ONGs, grupos de mulheres, sindicatos de trabalhadores agrícolas e movimentos de agricultores, recolheu testemunhos de agricultores indianos que falavam da venda de rins, por parte de membros da família, para cobrir os custos crescentes dos factores de produção agrícolas; de suicídios de agricultores apanhados numa malha de dívidas devido ao elevado preço das sementes, estabelecido por empresas multinacionais e por subsequente perda das colheitas; da inadequação e má qualidade da distribuição pública das sementes, a qual facilita a penetração de multinacionais estrangeiras; do aumento da dependência comercial dos pequenos camponeses; e da destruição da biodiversidade nas suas regiões. As organizações de agricultores aprovaram uma resolução apelando às multinacionais, como a Monsanto, que «Deixem a Índia», fazendo eco do slogan de Mahatma Gandhi, criado, em 1942, no calor do movimento nacional contra o domínio britânico. Estas organizações apelaram a um boicote das sementes provenientes das filiais indianas das multinacionais, até que estas não se tornassem independentes dessas firmas estrangeiras. Também prometeram solenemente manter a soberania dos agricultores sobre os géneros alimentícios e as sementes, protegendo-a das companhias multinacionais, e declararam que não obedeceriam a qualquer lei das patentes ou lei sobre a protecção da variedade vegetal ao abrigo do regime da OMC, o qual considera as sementes como propriedade privada destas empresas. Os agricultores exigiram ainda a exclusão das sementes e dos géneros alimentícios do regime Trade-Related Intellectual Property Rights (TRIPs) da OMC e defenderam a reintrodução de restrições quantitativas nas importações agrícolas, removidas recentemente pelo governo da Índia, em consonância com as normas da OMC para a liberalização do comércio, um ponto que irei abordar posteriormente.

6.2. Estados ardilosos em vez de Estados fracos? Debatendo os limites à autonomia do Estado

O júri do «tribunal das sementes» perspectivava o papel activo e central do Estado na protecção dos meios de vida dos agricultores na Índia. Recomendou a melhoria da distribuição pública das sementes, o estabelecimento de corpos reguladores para assegurar a existência de factores de produção agrícola de boa qualidade, uma moratória de 10 anos sobre a introdução da engenharia genérica na alimentação e na agricultura, a representação dos agricultores na Comissão de Preços Agrícolas e a garantia de preços mínimos de apoio. Mas o diagnóstico do júri a respeito do «silêncio do Estado» sobre a questão dos direitos dos agricultores coexiste incomodamente com as suas próprias exigências de alterações na recente legislação indiana com vista à protecção dos interesses dos agricultores, uma vez que o Estado tem permanecido tudo menos silencioso, como é testemunhado pela (Segunda) Alteração à Lei das Patentes, de 1999, pela Proposta de Lei para a Protecção da Variedade das Espécies Agrícolas Vegetais e Direitos do Agricultor, de 1999, e pela Proposta de Lei para a Diversidade Biológica, de 2000, actualmente em discussão no Parlamento. Uma dura crítica ao Estado, aliada a um apelo para a protecção da segurança e soberania alimentares nacionais, para além dos direitos dos produtores primários pobres, reflecte alguma da ambivalência dos actores da sociedade civil no que toca ao Estado, que é visto como um opositor mas também como um aliado. Em condições de globalização económica e jurídica, o Estado é considerado, simultaneamente, como cúmplice dos interesses das empresas multinacionais e como protector da soberania nacional. No entanto, será que podemos contar com o Estado indiano para reformar a sua política, favorecendo os seus cidadãos vulneráveis e não o capital global? A resposta depende de termos tendido ou não a confundir Estados ardilosos com Estados fracos. Os Estados fracos não podem proteger os seus cidadãos, enquanto os Estados ardilosos nem sequer se preocupam em oferecer a segurança limitada que poderiam oferecer.

A harmonização global de diferentes sistemas nacionais de direito das patentes ilustra algumas das complexidades da globalização jurídica e do papel contraditório que o Estado tem nela. Não existe um direito das patentes global; esta área ainda é regulada a nível nacional, com excepção da União Europeia. Contudo, o regime TRIPs da OMC impõe fortes restrições à soberania dos Estados-nação no que diz respeito quer ao conteúdo, quer ao calendário das leis nacionais, que têm que estar conformes ao novo regime da OMC. A amplitude da autonomia nacional sob o sistema sui generis que está disponível como opção dentro do TRIPs, que as ONGs gostariam de ver explorado pelos governos, permanece altamente discutida, com a crescente pressão contra ele por parte das nações exportadoras de tecnologia genética, como os EUA e a Argentina. No entanto, apesar da transnacionalização jurídica e da crescente importância da OMC, o Estado ainda continua a ser uma importante arena de produção de Direito. Apesar da Índia possuir um elaborado quadro jurídico nesta área, viu-se forçada a rever as suas leis das patentes, que anteriormente apenas permitiam patentes de processos e agora passam a incluir patentes de produtos. É também obrigada a introduzir legislação sobre a variedade das produções de origem vegetal e sobre os direitos do criador, com vista a permitir, pela primeira vez, o patenteamento de produtos agrícolas e farmacêuticos. Se houvesse vontade política, o Estado poderia promulgar e implementar leis, no âmbito da OMC, que protegessem os interesses dos agricultores, consumidores e produtores indianos.

A campanha em torno da questão genética realizada na Índia salientou, entre outros aspectos, que o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e a OMC, exigem aos Estados-membros a elaboração de um regime de patentes ou um sistema sui generis eficaz que proteja as espécies vegetais recentemente desenvolvidas, não impondo aos Estados a adopção do modelo da International Union for the Protection of New Varieties of Plants (UPOV). Desta forma, o Estado indiano pode optar entre um sistema sui generis mais adequado ao contexto indiano. O sistema da UPOV é baseado nas necessidades dos países industrializados, onde a agricultura é uma actividade comercial, ao contrário da Índia, que possui uma larga maioria de pequenos agricultores marginais. Este sistema protege os direitos das empresas de sementes, que são os principais produtores num ambiente em que a investigação sobre sementes é conduzida em instituições privadas com fins lucrativos, estando assim em desacordo com as realidades indianas, onde os agricultores são criadores que individual ou colectivamente conservaram os recursos genéticos e produziram sementes, e onde a maior parte da investigação é efectuada em instituições públicas. Em consequência, a campanha em torno da questão genética defende a promulgação, pelo Estado, de legislação sui generis para a protecção dos direitos dos agricultores enquanto produtores e consumidores de sementes.

Foi uma falta de conhecimentos técnicos, uma ignorância das opções disponíveis no acordo da OMC, uma indiferença relativa às necessidade dos produtores primários pobres ou uma leitura atenta consciente das políticas contra estes devido à pressão exercida por poderosos lobbies nacionais e internacionais ou uma soma de todos estes factores o que levou o governo indiano a remover as restrições quantitativas sobre a importação de 714 artigos, incluindo 229 mercadorias agrícolas, em Março de 2000, depois de ter perdido a batalha legal contra os EUA na OMC? O governo afirmou que a sua nova política de exportação e importação cumpria as suas obrigações junto da OMC e beneficiava os consumidores ao autorizar a importação de produtos estrangeiros mais baratos. No entanto, ao abrigo do acordo da OMC, a Índia não era obrigada nem a remover as restrições quantitativas em 2000, nem a seleccionar os artigos específicos que escolheu. De facto, se o Estado tivesse exigido a permanência das restrições quantitativas por motivos de segurança alimentar e pelo impacto negativo da sua remoção no emprego e nos modos de vida dos produtores primários pobres, poderia ter mantido a maioria das restrições quantitativas. O facto de o Governo ter escolhido defender a continuação das restrições quantitativas com base nos seus problemas na balança de pagamentos debilitou os seus argumentos, dado que já não tem nenhum défice nas trocas comerciais. É difícil dizer se esta foi ou não uma estratégia deliberadamente destinada ao fracasso. No entanto, o contraste com as políticas das nações fortemente industrializadas não podia ser maior. Os EUA, o Japão e a maioria dos governos europeus aumentaram os subsídios aos seus próprios agricultores; distorcendo assim, gravemente, os preços agrícolas e consequentemente calculando as medidas de produtividade ou competitividade com base em falsos preços relativos. Numa tal situação, ao impor, por exemplo, uma tarifa de 80% sobre as importações de arroz por parte da Índia, em conformidade com as prescrições da OMC e depois de ter levantado a restrição quantitativa sobre o arroz, é pouco provável que o Governo possa sustentar uma protecção adequada aos produtores de arroz indiano. Em conjunto com o arroz, o chá, o café, a borracha, as especiarias, o leite e os vegetais, o peixe e mais de 60 derivados de peixe podem agora ser livremente importados. O Fórum Nacional de Trabalhadores da Pesca, no seu forte protesto contra o levantamento das restrições quantitativas, alertou para a possibilidade de quebra nos preços do peixe, em resultado de importações em larga escala, olhando este último passo do Governo à luz de uma longa história de tentativas para liberalizar o regime de pesca em alto mar.

Para além disso, como afirmaram muitos críticos indianos da Ronda do Uruguai, existem muitas regras na OMC que desequilibram ainda mais a balança contra os países do Sul, ao contrário da retórica sobre a criação de um campo de jogos igualitário (Khor 2000a, 2000b). Teoricamente, pode acontecer que os países do Sul, os perdedores finais do regime TRIPs, venham a anular estas perdas através dos lucros obtidos pela liberalização do comércio agrícola e têxtil. No entanto, a maioria dos países do Norte, que têm sido muito lentos a cumprir os seus compromissos nesta área, pode recorrer à ampla provisão de salvaguarda para o comércio agrícola e têxtil. O acordo TRIPs não possui nenhuma provisão deste género, que permita aos países repor temporariamente as tarifas alfandegárias no caso de as perdas dos produtores domésticos serem superiores às esperadas (Howse, 2001). Assim, embora os custos da implementação do regime TRIPs se tenham revelado muito superiores ao previsto para a maior parte dos países em vias de desenvolvimento, o Acordo apenas concede um determinado período de carência para a sua implementação. Consequentemente, muitos destes países, incluindo a Índia, gostariam de reabrir as negociações dos compromissos que assumiram na Ronda do Uruguai, quando tinham pouca informação e se sentiam ameaçados pelo unilateralismo dos EUA (Khor 2000a, 2000b).

6. 3. Uma pluralidade de regimes jurídicos supra-nacionais incompatíveis

Duas das estratégias adoptadas pelos Estados subalternos confrontados com condicionalidades do ajustamento estrutural e com vários regimes jurídicos supranacionais foram, por um lado, o atraso da implementação ao nível nacional e, por outro, a exploração da existência de uma pluralidade de leis e tratados internacionais, por vezes contraditórios. A Índia, em conjunto com países africanos e cinco países da América Central e Latina, pediu uma revisão e uma emenda do Acordo TRIPs da OMC, bem como uma moratória de cinco anos para a sua implementação. A Organização da Unidade Africana (OUA) e a Índia exigiram que o regime TRIPs ficasse em consonância com a Convenção sobre a Diversidade Biológica e a Iniciativa Internacional da FAO sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura, o que impossibilitaria patentear formas de vida e protegeria as inovações das comunidades agrícolas locais. O governo indiano declarou que as suas obrigações sob o regime TRIPs, conflituam com algumas das suas obrigações ao abrigo da Convenção sobre a Diversidade Biológica. No entanto, as sanções do TRIPs, que permitem, por exemplo, represálias em qualquer área do comércio, são muito mais fortes do que os débeis mecanismos das leis ambientais internacionais. As ONGs indianas, em conjunto com redes transnacionais de advocacia, como a Genetic Resources Action International (GRAIN) ou a Rural Advancement Foundation International (RAFI), por exemplo, têm estado a utilizar esta pluralidade de regimes jurídicos transnacionais para questionar a legitimidade do regime TRIPs da OMC, que contraria provisões da Convenção sobre a Biodiversidade ou o Protocolo sobre Biosegurança sobre formas de vida geneticamente modificadas e que não está em conformidade com a anterior Iniciativa Internacional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que reconhece explicitamente os direitos dos agricultores às sementes.

6.4. As ONGs como mediadoras e criadoras de leis

A prolongada luta contra a Proposta Dunkel e o Acordo TRIPs mostra a variedade de contribuições vitais para a glocalização jurídica dadas pelas ONGs e movimentos sociais indianos com ligações a nível transnacional. Ao mesmo tempo que representavam os interesses dos agricultores indianos nos fóruns internacionais e transnacionais, disseminavam informação sobre as complexidades jurídicas à imprensa nacional e às comunidades locais. As suas campanhas não só criaram uma consciencialização pública das questões envolvidas, como mobilizaram agricultores e exerceram pressão sobre o Estado, como desafiaram, nos tribunais norte-americanos e europeus, a atribuição às empresas transnacionais do Norte de patentes sobre produtos agrícolas e farmacêuticos baseados nos recursos genéticos do Sul. Mas para além de servirem de mediadores entre o nível local e o nacional e nos fóruns supranacionais e questionarem os novos regimes jurídicos em várias arenas políticas e jurídicas, as ONGs e os grupos de advocacia estão também envolvidos na produção de normas alternativas, combinando normas de diversas proveniências. Em 1998, a campanha em torno da questão genética esboçou uma Convention of Farmers and Breeders (COFaB), como um tratado alternativo à UPOV, que reconhece tanto os direitos colectivos da comunidade, como os direitos individuais dos agricultores enquanto criadores; reconhece o seu conhecimento comum proveniente de fontes orais e escritas; estipula que o criador perde o seu direito se o «potencial de produtividade» constante do acto de inscrição tiver perdido validade ou se não tiver a capacidade de cumprir as exigências dos agricultores, levando à escassez de material para plantação, ao aumento dos preços de mercado e a monopólios; garante a cada Estado contratante o direito a avaliação independente da execução da variedade antes de permitir a sua protecção. O Relatório de 1999 do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano comenta este tratado como:

uma proposta internacional forte e coordenada [que] oferece aos países em vias de desenvolvimento uma alternativa à legislação europeia sobre a necessidade de proteger os direitos dos agricultores a poupar e reutilizar as sementes e a cumprir os objectivos de segurança alimentar e nutricional dos seus povos (UNDP, 1999: 74).

6.5. Fragmentação do direito estatal e soberania fracturada

A transnacionalização do direito é acompanhada por um aumento da sua fragmentação e por uma fracturação da soberania do Estado. A acção estatal torna-se cada vez mais heterogénea, perdendo o direito estatal o seu carácter unitário e coerente. Por exemplo, o direito indiano das patentes tem que ser alterado para ficar em conformidade com diversos regimes jurídicos supranacionais, os quais podem estar em contradição, como acontece no caso do regime TRIPs da OMC e da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Por outro lado, a política populacional indiana, fortemente influenciada pelo Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) e pela Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID), tem que estar de acordo, quer com o Programa de Acção da Conferência das Nações Unidas do Cairo, centrada nos direitos da reprodução, quer com a Emenda Tirhat do Congresso norte-americano, que proíbe o apoio financeiro dos EUA a qualquer programa nacional para a população que permita o aborto. Nos anos 90, as condições de empréstimo do FMI e do Banco Mundial exigiam amplas alterações no direito fiscal indiano, nas leis de licenciamento industrial e na liberalização do comércio. A diluição do direito do trabalho exigida por estas instituições iria contrariar garantias constitucionais, mas também colidir com os acordos com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e com as provisões da ICESCR. A coexistência destas diferentes lógicas de regulação por parte de diferentes instituições do Estado, ou de diferentes áreas de regulação e, por vezes, dentro da mesma área, resulta numa nova forma de pluralismo jurídico, um pluralismo no seio do direito estatal associado, por um lado, à transnacionalização do direito (Santos, 1995: 118) e, por outro, à operação simultânea de múltiplas normas transnacionais sem a sua incorporação no direito doméstico.

Por exemplo, a pluralidade de leis transnacionais sobre regimes de biodiversidade também é duplicada a nível nacional. A Proposta de Lei para a Biodiversidade 2000, recentemente apresentada e que está a ser discutida no Parlamento indiano, prevê o estabelecimento de um novo órgão regulador, a Autoridade Nacional para a Biodiversidade (ANB). No entanto, a ANB não pode ser a única autoridade a lidar com os biorecursos ou com as exigências relativas aos direitos aos biorecursos, um facto que a proposta de lei não prevê nem reconhece, não especificando nem a jurisdição da ANB sobre outros órgãos com os quais compete, nem a aplicabilidade das outras leis que regulam os direitos de propriedade intelectual e o acesso aos biorecursos. As suas provisões podem não estar em harmonia com uma lei mais antiga, a Lei para os Fármacos e Cosméticos, com a nova Proposta de Lei para os Indicadores Geográficos, ou com a Proposta de Lei para a Protecção das Variedades Vegetais e Direitos dos Agricultores. A Proposta de Lei Sobre Biodiversidade vem no seguimento da Convenção sobre a Biodiversidade de 1992, mas não consegue utilizar as suas provisões para reconhecer as reivindicações dos povos indígenas ou para permitir aos requerentes afirmar os seus direitos tradicionais. Ao investir apenas a ANB como autoridade reguladora, o Estado pode acabar, na verdade, por negar às comunidades o direito de defender os seus direitos tradicionais e de apresentar reivindicações independentemente do órgão do Estado, especialmente de um Estado que não possui uma adequada base de dados para proteger este tipo de reclamações e direitos. Dada a história do Estado indiano, uma tal centralização de todo o poder regulador num órgão burocrático, com pouca participação da sociedade civil, pode ou não ser eficaz contra a biopirataria efectuada pelas empresas multinacionais. O mais certo é vir a ser prejudicial para as comunidades locais e povos indígenas, apesar de muito falar e pouco fazer para o estabelecimento de comités locais para a biodiversidade.

6.6. Pluralismo jurídico e a emergência do cidadão ardiloso?

A existência de ordens jurídicas transnacionais múltiplas e sobrepostas dentro de um campo particular apresenta também uma terceira opção para os Estados com uma vontade política e fortes instituições democráticas: uma opção situada entre a esperança pouco realista de recuperar a autonomia jurídica nacional e o igualmente utópico sonho de uma regulação global abrangente. As normas nacionais poderiam ser acrescentadas e fortalecidas através de uma abordagem a vários níveis, a qual poderia prever vários actores públicos e privados que agissem dentro e para além das fronteiras nacionais para estabelecer regimes reguladores multinivelados públicos e privados. Ao invés de depositar as esperanças no Estado como fonte unitária de ordem normativa, é importante incluir o papel dos movimentos transnacionalmente ligados e das redes de advocacia que, como actores privados criam, mobilizam, intermedeiam e entretecem normas de diferentes sistemas em novas teias reguladoras (Trubek et al, 2000). Em vez de colocar o problema em termos de uma rígida escolha binária entre regulação jurídica nacional ou global, ou entre o direito estatal e o direito da comunidade, este capítulo tentou esboçar os contornos de uma emergente e nova paisagem de pluralismo jurídico, um mosaico de regulação supranacional, legislação nacional, tratados e políticas populares alternativos, direito de projecto (project law), direitos tradicionais e leis internacionais.

Em tal contexto, a protecção dos direitos, modos de vida e meios de subsistência da maioria dos cidadãos do Sul irá necessitar de alianças movediças com os Estados e instituições internacionais. Por exemplo, o Banco Mundial e o Estado indiano desempenham ambos o seu papel no filme da globalização neoliberal, com o duplo papel de aliados e adversários, como no cinema hindi. Confrontados com Estados ardilosos e organizações internacionais não fiscalizáveis, os cidadãos e a alianças cívicas do século XXI podem muito bem estar na posição em que esteve o governo britânico no século XIX: não têm nem amigos permanentes, nem inimigos permanentes, apenas interesses permanentes.

6.7. Continuidades pós-coloniais?

Voltemos agora por um instante ao agricultor do Sri Lanka, Rajith de Silva, que apareceu como testemunha a favor da coligação transnacional de requerentes no Instituto Europeu de Patentes, em Munique, para desafiar uma patente norte-americana sobre um derivado da árvore Neem. Os seus avós ficariam certamente muito surpreendidos se soubessem que os derivados de uma árvore do seu quintal, se poderiam tornar propriedade intelectual de uma empresa e do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos com um simples rabisco de uma caneta europeia. Mas nem o pluralismo jurídico, nem a jurisdição transnacional teriam sido estranhos aos sul-asiáticos da geração dos seus avós. Podemos dar o exemplo do Privy Council, em Londres, que tinha a autoridade suprema para decidir sobre as suas disputas de propriedade, uma vez que eram súbditos do Império Britânico. Também os direitos de personalidade para muçulmanos e cristãos no Sul da Ásia tiveram sempre uma dimensão transnacional. O direito da família que se aplicava à família de Silva enquanto membro da comunidade católica do Sri Lanka, era uma mistura híbrida das prescrições da Igreja Católica Romana e de diversas práticas locais, codificadas pelo Estado colonial num sistema de direitos de personalidade cristão homogéneo. Nas disputas relativas ao controle da terra, as noções britânicas de propriedade individual ou de «domínio eminente», dependendo da forma como a terra tinha sido classificada, teriam entrado em conflito com as normas tradicionais de acesso comunitário aos recursos naturais e com os direitos usufrutuários colectivos.

Uma sensibilidade para a história do colonialismo poderia constituir um corrector importante para o imediatismo e eurocentrismo da maioria das análises da globalização (jurídica), com a sua propensão para exagerar a singularidade do presente e para postular uma descontinuidade radical entre a vida social contemporânea e no passado recente. Por exemplo, quando na bibliografia sobre a globalização se encontram referências à erosão da soberania de um Estado-nação, a um aumento do pluralismo jurídico (quer supra, quer subnacional), ou ao hibridismo dos direitos nos inícios da sua exportação transnacional, transplante ou domesticação em diferentes contextos culturais, estes fenómenos podem representar novos desenvolvimentos para as sociedades ocidentais. Da perspectiva do mundo não-ocidental, pode parecer uma ironia da história que, invertendo Karl Marx, é possível defender que, hoje em dia, as antigas colónias espelham em muitos aspectos o futuro jurídico da Europa. Este aspecto é especialmente marcante quando se pensa em fenómenos como a jurisdição transnacional, o pluralismo jurídico supra e subnacional, o papel dos actores privados na difusão do direito, bem como o aparecimento de soberanias múltiplas e partilhadas. À semelhança das empresas transnacionais no mundo contemporâneo, a Companhia Britânica das Índias Orientais, que iniciou o processo de introduzir o direito britânico na Índia antes desta se tornar uma colónia da Coroa, era uma empresa privada. A relação entre o Estado e as empresas comerciais privadas nos países europeus nunca foi muito clara, quer no passado, quer no presente. As empresas comerciais privadas do século XIX, poderosas e parcialmente autónomas em relação ao Estado, procurando escapar ao controlo do governo e do direito da metrópole, tal como as suas equivalentes actuais, sempre contaram com os respectivos governos para alargar os seus interesses no estrangeiro. Os «Estados pós-soberanos» (Scholte, 2000) do mundo industrializado assemelham-se cada vez mais aos Estados (pós-)coloniais, onde o Estado nunca gozou do monopólio sobre a produção de direito e teve sempre que enfrentar concorrência dentro e fora das suas fronteiras. O facto de a teoria social ocidental não se aperceber desta convergência e representar a sobreposição de soberanias como uma refeudalização da Europa pode estar relacionado com o seu paroquialismo, bem como com a sua tendência para considerar o Ocidente como único e universal.

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