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Sakhela Buhlungu

O reinventar da democracia participativa na África do Sul

(texto não editado)

 

Introdução

O povo governará!

Todos os homens e mulheres terão direito de votar para e de se candidatar a todos os corpos legislativos;

Todas as pessoas participarão na administração do país;

Os direitos dos indivíduos serão iguais, independentemente da raça, cor ou sexo;

Todos os corpos de pequenas elites, quadros consultivos, assembleias e autoridades serão substituídos por orgãos democráticos de auto-governação. in The Freedom Charter, adoptada no Congress of the People, a 26 de Junho de 1955, em Kliptown, perto de Joanesburgo.

 

Toda a luta constitui um esforço de uma parte da sociedade para se emancipar de um ou outro mal social considerado repugnante por aqueles que se envolvem em tal luta. De facto, o que inspira os indivíduos em diferentes sociedades a participarem em lutas é uma visão de como as relações sociais podem (e devem) ser estruturadas ou reestruturadas. Tal visão pode exprimir-se em diferentes termos, dependendo do contexto no qual as lutas estão a ser travadas. Para uns, é simplesmente a «liberdade», enquanto para outros pode ser a «democracia», o «socialismo», etc. No entanto, cada luta, tal como a visão de liberdade ou libertação que a inspira, contém sempre uma promessa de democracia participativa ou descentralizada, a qual será inclusiva e não exclusiva. Em algumas lutas, a utopia da democracia participativa está explicitamente formulada, enquanto noutras é genericamente assumida como sendo a meta final. Em pequenos grupos sociais, a democracia participativa invoca imagens de uma assembleia em que todos os membros do grupo têm o direito de assistir e participar, em termos iguais, nos debates e nos processos de decisão. Para grupos alargados, a participação sugere um sistema altamente descentralizado em que membros de um grupo social ou de uma sociedade em geral têm o direito de participar, quer directamente, quer indirectamente, nos processos de decisão. Em suma, falar da utopia da democracia participativa é falar da expansão da cidadania tanto no sentido formal como substantivo e é, geralmente, a classe trabalhadora, e outros grupos marginalizados da sociedade, quem defende estas ideias, visto ser aquela que mais beneficia num sistema participativo.

No entanto, na história da humanidade, foram poucas as lutas e revoluções que resultaram em experiências estáveis de democracia participativa, e mesmo aquelas que foram bem sucedidas, tiveram um período de vida curto. De facto, muitas revoluções desiludiram a grande maioria daqueles que mais se sacrificaram e que estiveram nas linhas da frente da revolução. No entanto, o Estado-Providência e o regime de regulação social que o acompanhou percorreram um longo caminho na atenuação do impacto da marginalização das classes subordinadas e, como tal, ajudaram a manter um certo grau de credibilidade ao sistema económico capitalista. A substituição do regime de regulação social do Estado-Providência pela regulação do mercado a partir dos anos 70 resultaram em exclusão social e marginalização sem precedentes de milhões de pessoas das classes subordinadas. Esta exclusão e marginalização é sinónima da actual fase de globalização e da ideologia hegemónica que lhe está associada - mercados livres, intervenção estatal mínima, rigor fiscal e cortes orçamentais em todos os serviços fornecidos pelo Estado.

Existem noções de democracia diferentes e rivais, todas elas girando em torno do modelo de cidadania em análise. Parry e Moyser (1994) sugeriram duas categorias amplas ou noções de democracia, nomeadamente, a concepção «participativa ou radical» e a concepção «realista». Segundo estes autores, a escola participativa, encorajando a população a «tomar parte activa» na governação, procura expandir a participação cívica para além das formas tradicionais, tais como o voto e a assinatura de petições (1994: 45 - 46). A genealogia destas ideias remonta a modelos de cidadania apresentados por teóricos como Rousseau e J. S. Mill, mas deve acrescentar-se que a sua influência permeou as correntes mais modernas da ciência social radical. A concepção realista, por outro lado, defende uma noção de participação muito mais conservadora e limitada que não vai muito além do voto em intervalos regulares. A teoria da democracia de Schumpter (1987), que tem por base a visão de que «o eleitorado é incapaz de outra acção que não o pânico em massa» (1987: 283), é um exemplo desta concepção conservadora de democracia. O modelo de cidadania em que esta noção de democracia está implícita é um modelo excludente que serve apenas os interesses das elites da sociedade.

A África do Sul acabou de emergir de um período de prolongado conflito em que a maioria da população travou lutas heróicas contra a injustiça do regime do apartheid. Esta luta representou uma tentativa de alcançar a expansão da cidadania através da inclusão de toda a população na vida social, económica e política do país. De facto, a Freedom Charter, um documento social democrata adoptado em 1955 pelo multi-racial «Congress of the People», representou uma tentativa de incluir todos os cidadãos nos assuntos do país, apelando ao seguinte:

  • o direito de todos os cidadãos verem garantidos os seus direitos políticos;
  • direitos iguais para diferentes grupos sociais;
  • a nacionalização de sectores estratégicos da economia;
  • um programa radical de reforma agrária;
  • a protecção dos direitos humanos de todos os cidadãos;
  • a garantia de trabalho e segurança para todos;
  • a provisão de educação e habitação para todos;
  • o respeito pelos direitos e soberania de todas as nações.

No contexto da África do Sul do apartheid, a Carta representou um projecto contra-hegemónico que procurava afrontar as desigualdades e a exclusão social do sistema. No coração do documento está o grito de ordem «O Povo Governará!», o qual foi inspirado em noções de participação e auto-governação aos níveis mais baixos da estrutura social. A Carta foi usada por várias gerações de activistas em diferentes áreas, como sejam a acção cívica, a educação e a saúde, servindo também de guia de acção em lutas para a criação de «órgãos de poder popular». No entanto, a Carta da Liberdade não foi a única origem das noções de formas participativas de democracia. Um movimento sindical altamente progressivo tem estado activo desde inícios dos anos 20 e, pelos anos 50, este movimento possuía estruturas de representação e liderança relativamente fortes democraticamente eleitas (Lambert, 1988). Quando o movimento foi esmagado nos anos 60, levou algum tempo a reemergir, mas quando o fez, no início dos anos 70, nutria, conscientemente, uma tradição de democracia que combinava elementos de participação directa e regras de representação democrática nas suas estruturas. Este capítulo relata a emergência e o desenvolvimento do discurso da democracia participativa na África do Sul durante e depois da luta pela libertação, partindo de exemplos das arenas cívica e sindical dessa luta. Procura ainda identificar e sublinhar factores e processos sociais que têm abalado a democracia participativa desde o início dos anos 90, particularmente sob o regime democrático que foi inaugurado em 1994.

 

1. A tradição da participação democrática na África do Sul

Desde inícios do século XX, a luta pela liberdade tem percorrido fases qualitativamente diferentes, todas elas procurando expandir a definição de liberdade considerada. No entanto, duas dessas fases tiveram um impacto continuado no discurso da democracia, o qual emergiu no auge da luta pela liberdade, nos anos 80 e inícios dos anos 90. O primeiro período foi nos anos 50, quando a agitação de massas fez nascer noções radicais de democracia. A Carta da Liberdade, referida anteriormente, captou este novo espírito de um discurso radical com o grito de ordem «O Povo Governará!». Nessa altura, esta noção era bastante radical na medida em que era inspirada nas ideias dos socialistas, muitos dos quais eram activistas do Communist Party of South Africa (mais tarde renomeado South Africa Communist Party - SACP) e no movimento nacional de libertação que ganhava proeminência nos territórios colonizados de todo o mundo. No entanto, a repressão estatal e a proibição dos movimentos de libertação, em inícios dos anos 60, frustrou progressos em direcção ao objectivo de assegurar que seria o «povo» quem governaria a África do Sul.

Nos finais dos anos 60 e 70, ideias de democracia participativa ganharam popularidade acrescida dentro do movimento de libertação que, por sua vez, tiveram expressão através das experiências de participação democrática nas zonas libertadas criadas pelos movimentos nacionais de libertação noutros territórios colonizados. O relato de Basil Davidson (1981) acerca do estabelecimento de formas representativas e participativas de democracia nas zonas libertadas da Guiné Bissau ilustra a centralidade de instituições de auto-governo político e social na «transformação do apoio ou simpatia em participação voluntária e activa das multidões rurais» (1981: 163). No auge da fase de mobilização de massas da luta pela libertação na África do Sul, concepções semelhantes de zonas libertadas influenciaram activistas e líderes de movimento. Por exemplo, em 1986, o periódico da United Democratic Front (UDF), Isizwe, observou que a exigência de governo pelo povo estava a ser feita por milhões de sul-africanos comuns.

A construção do poder do povo é algo que já começa a acontecer no percurso da nossa luta. Sentar atrás e apenas sonhar com o dia em que o povo governará não é para nós. É nossa tarefa atingir tal meta agora. Temos que começar o processo de libertação da África do Sul. Temos que começar a colocar o poder nas mãos do povo, em todas as esferas - economia, educação, cultura, controlo criminal, saúde, de facto, onde quer que seja possível (UDF, 1986: 2).

O periódico continuava elaborando sobre a forma que este tipo de governo tomaria.

Estamos a lutar por um sistema diferente em que o poder não esteja mais nas mãos dos ricos e poderosos. Estamos a lutar por um governo em que todos nós votemos. Estamos a lutar por corpos eleitos nas nossas escolas, fábricas e comunidades. Queremos leis que sejam largamente discutidas por todo o país, comité de rua por comité de rua, antes de serem sequer debatidas no parlamento. Queremos tribunais em que trabalhadores, camponeses e professores possam ser eleitos magistrados. Queremos magistrados eleitos enraizados nas comunidades que servem. Queremos um exército que pertença a todos, num país em que todos os cidadão estejam armados (UDF, 1986: 4).

As lutas municipais dos anos 80 foram inspiradas por estas ideias e, de facto, muitos activistas procuraram implementar um modelo participativo de democracia em várias arenas, incluindo associações cívicas e de residentes, escolas e universidades e locais de trabalho. Todavia, todas estas tentativas e experiências estavam repletas de contradições e tensões, sobretudo devido à hostilidade dos agentes estatais e de outras autoridades. O livro de Mayekiso (1996) sobre políticas municipais no município de Alexandra em Joanesburgo é um dos melhores relatos da dificílima tarefa de estabelecer «órgãos de poder do povo» durante a luta pela libertação na África do Sul.

A segunda fase de mobilização e luta influenciada pelo discurso democrático é aquela que teve início em princípios dos anos 70, sensivelmente na mesma altura em que o novo movimento sindical emergiu. Apesar desta fase ficar a dever as suas origens ao início do período de mobilização de massas e activismo, a formulação filosófica e organização das suas ideias tem uma derivação intelectual muito mais forte que a anterior. Neste sentido, o trabalho de Richard Turner, um jovem filósofo que estudou na Cidade do Cabo e em Paris, representa a mais desenvolvida busca de emancipação que foi além de tradições e noções de democracia herdadas. A sua obra embrionária, The Eye of the Needle: Towards Participatory Democracy in South Africa, foi inspirada por aquilo que denominou «a necessidade de pensamento utópico». Turner defendia a necessidade e possibilidade do afastamento da noção de que a sociedade e as instituições sociais são «entidades naturais, parte da geografia do mundo em que vivemos» (1980: 2).

Se queremos reflectir nos nossos valores, então, temos que ver quais dos aspectos da nossa sociedade que necessariamente resultado dos imperativos da natureza humana e das organizações e quais dos seus aspectos são modificáveis. Depois, temos que tornar explícitos os princípios de valor enquadrados no nosso comportamento actual e criticá-los à luz de outros valores possíveis. Até tomarmos consciência de quais os outros valores e quais as outras formas sociais possíveis não poderemos julgar a sociedade existente (1980: 3).

Turner procedeu então à discussão da sua «sociedade ideal possível» que girava em torno da noção de democracia participativa. Os dois principais requisitos deste tipo de sistema social são: «ela permite que os indivíduos tenham o máximo controlo sobre o seu ambiente social e material, e encoraja-os a interagirem de forma produtiva com os outros» (1980: 34).

As duas fases da luta sul-africana podem ser vistas como estádios que se sobrepõem e se consolidam mutuamente na evolução do pensamento utópico na busca da emancipação social na África do Sul. Durante a primeira fase, a ênfase era colocada na definição de democracia participativa como ideal ou meta a ser atingida no momento da libertação. O apelo da Carta da Liberdade ao estabelecimento de «órgãos democráticos de autogoverno» numa sociedade pós-apartheid fazia parte deste discurso. Durante a segunda fase, a democracia participativa não era apenas um objectivo a atingir no futuro; era vista também como prática no interior de organizações do movimento pró-democrático. De certo modo, esta intensificação do discurso que acarreta a tradução do ideal para uma «utopia real» poderia ser observada mais claramente nas lutas sindicais e comunitárias/cívicas dos anos 70 em diante.

Uma das tradições de que o movimento sindical pós-1973 se continuou a orgulhar foi a da democracia e controlo por parte dos trabalhadores das estruturas e processos de decisão internos. Freund defende que isto era «um tipo nítido de democracia do povo» visto que «as decisões respeitantes a assuntos organizacionais chave eram tomadas num formato que acarretava um elevado grau de envolvimento e consentimento por parte dos membros simples» (1999: 438). Esta tradição remonta à formação destes sindicatos no início dos anos 70. Em muitos deles, o princípio do controlo pelos trabalhadores penetrou todos aspectos da sua organização e funcionamento, como por exemplo:

  • a ênfase nas estruturas de base da empresa orientadas por delegados sindicais (eleitos democraticamente;

  • a criação de estruturas representativas em que os representantes dos trabalhadores são maioritários;
  • a prática de processos mandatados de decisão e apresentação regular de relatórios de actividades aos membros;
  • a negociação ao nível da fábrica que permitia aos trabalhadores e delegados sindicais manterem controlo sobre a agenda de negociação;
  • a subordinação dos funcionários a tempo inteiro ao controlo por parte das estruturas dominadas pelos trabalhadores;
  • o envolvimento dos trabalhadores, a todos os níveis, no desempenho dos oficiais a tempo inteiro.

O princípio do controlo pelos trabalhadores foi inscrito na constituição fundadora da Federation of South African Trade Unions (FOSATU), em 1979, e na do Congress of South African trade Unions (COSATU), estabelecido em 1985. De acordo com Baskin, o princípio seguido foi «impedir que os funcionários dos sindicatos controlassem as estruturas do COSATU» (1991: 57). Mas, mais importante, o controlo por parte dos trabalhadores tinha como objectivo assegurar a durabilidade das estruturas sindicais, ao permitir que os trabalhadores assumissem total responsabilidade pelo funcionamento dos seus sindicatos. Isto era necessário devido à hostilidade dos patrões e do Estado que resultava numa implacável perseguição e detenção das lideranças.

Os anos 80 assistiram a níveis de militância e mobilização de massas sem precedentes em muitos municípios do país. Estes processos foram acompanhados pelo intenso crescimento de organizações cívicas que visavam contestar o poder num contexto em que as estruturas fantoche do regime apartheid tinham a seu cargo a administração cívica. Mzwanele Mayekiso, então activista cívico em Alexandra, Joanesburgo, defende que 1986 constituiu o ponto alto da mobilização e intervenção política de massa no município.

O nosso período mais impetuoso de organização municipal ocorreu nos primeiros meses de 1986 em que realmente podíamos afirmar que a lei do apartheid estava a ser demovida, rua por rua, pela nossa própria forma de autogoverno. Foi uma experiência libertadora, embora pouco duradoura (1996: 67).

A forma de auto-governo discutida por Mayekiso tinha uma forte dimensão participativa que girava em torno do estabelecimento de «órgãos de poder popular», como comités de rua e de área, «tribunais populares», amabutho (unidades de auto-defesa constituídas por voluntários) e assembleias representativas de estudantes. As virtudes destas formas de organização eram duplas. Primeiro, asseguravam a participação popular ao nível mais baixo da organização social, nomeadamente a rua. O comité de rua era, de facto, uma reunião geral de todos os residentes de determinada rua, o que fomentava a unidade e o envolvimento político de todos em assuntos que a todos diziam respeito. Embora fossem frequentes os problemas e tensões no interior destas estruturas, como aqueles entre os membros mais novos e os mais velhos das comunidades, os comités de rua eram, regra geral, eficazes no que respeita ao encorajamento da participação de massas ao nível da vizinhança no município. Os comités de rua elegiam, então, representantes para os comités de área, os quais, por sua vez, elegiam representantes para associações cívicas maiores no município. A organização cívica era um corpo coordenado de lutas e campanhas que abrangia todo o município.

Era frequentemente estabelecida uma série de outras estruturas paralelas, tais como tribunais populares e unidades de auto-defesa, particularmente naqueles municípios em que os comités de rua e área funcionavam relativamente bem. Os tribunais populares mais eficientes eram aqueles que tinham sido estabelecidos com o apoio de comités de rua e área de modo a assegurarem alguma obrigação de pedido e de justificação de contas políticas. No caso do município de Alexandra, Mayekiso chama também a atenção para o facto de a integridade dos concelhos depender sempre do «mandato da comunidade» e de, uma vez que as estruturas estavam enfraquecidas e as lideranças ausentes pela por motivos de detenção, os conselhos correrem o risco de se transformarem em tribunais ilegais. Estes tribunais eram abertos à participação de todos os membros da rua. A concepção de tribunal popular surgiu como alternativa ao injusto sistema judicial do apartheid. Assentava na entrega dos casos, por parte dos membros da comunidade, àquele tribunal, em vez da entrega aos tribunais convencionais. O sistema inspirou-se, em boa parte, no sistema judicial africano em que a ênfase era posta na reabilitação, em vez da punição. Mayekiso (1996) descreve o exemplo de um tribunal popular bem sucedido na Avenida 7, de Alexandra:

De início era gerido pelos jovens, no entanto os mais velhos foram, depois, chamados a presidir. A própria sala do tribunal era uma apertada chapa ondulada com bancos para as pessoas se sentarem e uma mesa sobre a qual a secretária escrevia. Tanto os acusados como os queixosos sentar-se-iam entre as pessoas respeitadas na comunidade. O moderador abriria a discussão sobre o assunto. O acusado e o queixoso apresentariam as suas versões da história. A assembleia deliberaria sobre o assunto. Uma regra seria a de que ninguém seria menosprezado ou ameaçado. Tipicamente, no final, seria alcançada uma solução amigável para o problema. Ambas as partes se abraçariam (1996: 82).

A discussão vira-se agora para a invenção da tradição democrática no interior do movimento de massas na África do Sul. Hobsbawm (1983) usou a noção «tradição inventada» para referir um conjunto de práticas que são, normalmente, reguladas por determinadas regras para produzir normas e valores particulares. Argumentou que a repetição implícita neste processo implica continuidade com o passado. Para o objectivo desta discussão tem relevância a sua asserção de que «materiais anciãos» são, frequentemente, utilizados para «construir novos tipos de tradições inventadas para objectivos igualmente novos» (1983: 6).

Uma vasta parte desses materiais acumula-se no passado de qualquer sociedade e uma linguagem elaborada de práticas simbólicas e comunicação está sempre disponível. Por vezes, novas tradições poderiam ser prontamente enxertadas nas antigas, por vezes poderiam ser delineadas tomando de empréstimo, dos bem fornecidos arquivos de rituais oficiais, simbolismo e incitação moral - religião e esplendorosa pompa, folclore e maçonaria (ela própria uma tradição inventada de grande força simbólica) (1983. 6).

Na África do Sul, democracia, em geral, e democracia participativa, em particular, são dimensões de uma tradição que foi inventada pelo movimento de libertação enquanto um todo, incluindo os sindicatos e as organizações cívicas. A emergência da tradição democrática na África do Sul é frequentemente atribuída em exclusivo aos intelectuais de esquerda. Por exemplo, a tradição do sindicalismo democrático é muitas vezes exclusivamente interpretada como a contribuição da jovem geração de activistas envolvida na reemergência dos sindicatos após 1973. Alguns, como Friedman (1987), foram ao ponto de sugerir que os estudantes activistas e os intelectuais universitários brancos eram a principal fonte de ideias democráticas, as quais seriam alheias aos trabalhadores negros que eram os membros desses sindicatos. Todavia, um olhar mais atento às evidências sugere que a tradição democrática nos sindicatos e organizações cívicas deve as suas origens a um leque muito mais vasto de influências e fontes, entre as quais se encontravam influências culturais, tradicionais, políticas e intelectuais. Como tal, a evidência mostra que qualquer tentativa de examinar e compreender como a cultura e tradição democrática foram inventadas tem que ir além da noção simplista de que apenas um grupo restrito de intelectuais trouxe a cultura democrática para o movimento de massas.

Uma análise de como estas tradições foram inventadas é, simultaneamente, uma tentativa de compreender o carácter social dos sindicatos e das organizações cívicas e de como estes trazem a marca da tradição cultural e das experiências sociais dos seus membros e dirigentes activistas. A tradição democrática nos sindicatos e associações cívicas apareceria como uma complexa amálgama de experiências vividas de igualitarismo e participação popular, partilhada pelas pessoas da classe trabalhadora e activistas intelectuais vindos de diferentes contextos políticos e sociais. Esta secção do capítulo é uma tentativa de identificar algumas dessas contribuições e experiências e discutir o contexto político e económico no qual uma robusta tradição de participação democrática emergiu nos sindicatos e no movimento cívico.

 

2. Democracia participativa e as experiências vividas pela classe operária

A formação do movimento de massas, e as formas de associação que este origina, envolvem uma série de processos sociais e a construção de novas formas de solidariedade e novas identidades. E é na construção destas formas de solidariedade e novas identidades que se tornam cruciais as experiências de vida sociais dos diferentes grupos que se juntam. Por outras palavras, um grupo social não integra novas formas associativas como se fosse tábua rasa. No seu trabalho seminal sobre o surgimento da classe trabalhadora inglesa, E. P. Thompson (1963) reporta-se à formação, em 1932, de uma sociedade de tecelões em Rippondeu, uma aldeia de tecelões nos Pennines e à extraordinária tónica radical das regras fundadoras desta sociedade, baseadas em noções de cooperação comum e igualitarismo. Isto aconteceu quando a influência intelectual de Robert Owen sobre a classe trabalhadora estava no seu auge. As observações de Thompson no que diz respeito ao significado das regras da sociedade têm relevância para a nossa discussão.

Não se trata apenas da tradução das doutrinas de Owen para o contexto de uma aldeia de tecelões. As ideias foram laboriosamente moldadas à experiência dos tecelões; a ênfase foi mudada; em lugar da estridência messiânica, coloca-se uma simples questão: Porque não? Um dos pequenos periódicos cooperativos foi adequadamente intitulado ‘Senso Comum’: colocava a ênfase nas ‘Associações Sindicais’ (1963: 794).

O relato de Thompson sublinha o nosso argumento nesta discussão, de que as influências intelectuais raramente têm origem no vácuo. Estas são quase sempre recebidas num meio social e cultural que produziu as suas próprias tradições, normas e valores, as quais moldam as vidas das pessoas de determinadas formas. Assim, a adopção de novas doutrinas deveria surgir como uma mistura dialéctica de influências intelectuais e experiências da classe trabalhadora. No caso dos novos sindicatos na África do Sul, os diferentes grupos de trabalhadores que faziam parte dos novos processos de mobilização trouxeram consigo uma série de experiências de vida sociais e culturais que se fundiram naquela que viria a ser a tradição democrática destes sindicatos. Algumas destas experiências não eram, em si, necessariamente democráticas, mas promoviam a procura, por parte dos trabalhadores, de alternativas mais igualitárias. A discussão abaixo identifica e discute algumas dessas experiências de vida.

2.1. Influências religiosas

Muitos dos trabalhadores que se sindicalizaram durante e depois de 1973 tinham raízes profundamente religiosas, enquanto muitos outros tinham ligações remotas a diferentes formações religiosas nas suas comunidades. A religião dominante era a fé cristã, praticada através de denominações diferentes. A religião tinha uma grande a influência sobre os novos sindicatos dos anos 70 e, em muitos casos, isto era ainda visível nos anos 80. Em primeiro lugar, imbuía muitos de um sentido de justiça e fornecia-lhes uma base racional para desafiar relações sociais opressoras e exploradoras. Assim, Salie Manie, então líder do South African Municipal Workers Union (SAMWU) no Western Cape, não via contradição entre a sua fé islâmica e o seu activismo.

A minha mãe era monitora religiosa na mesquita. A religião teve desde sempre um papel central na minha vida. O conceito de justiça estava embrenhado na nossa família. A minha mãe educou-nos para não fazermos concessões naquilo que está certo. Acredito em Deus. Acredito também na justiça social. Vejo-me como muçulmano, mas vejo-me também como socialista (Gabriels, 1992: 77).

A nova «teologia negra», surgida nos primeiros anos do Black Consciousness Movement (BCM), estabeleceu uma ligação explícita entre os ensinamentos da religião cristã e a luta pela democracia no país. De facto, muitas organizações e centros de igrejas começaram nos anos 70 e 80 a tomar uma posição sobre de que lado estavam, disponibilizando centros para encontros sindicais. Isto aconteceu num período em que muitos hotéis e locais de encontro nas «cidades brancas» se mostravam hostis aos sindicatos negros e outras organizações liberais. Emma Maschinini, a primeira secretária geral do Commercial, Catering and Allied Workers’ Union of South Africa (CCAWUSA), relembra que, aquando da fundação do sindicato em 1975, não podia alugar um escritório em seu nome devido ao Group Areas Act e foi, então, obrigada a pedir autorização ao National Union of Distributive Workers branco para arrendar o local em seu nome. O senhorio acabou por mais tarde expulsar o sindicato, porque não gostava do regular «vaivém» de trabalhadores militantes no local. Foi então que ofereceram a Mashinini a utilização de escritórios na Khosoto House, o edifício onde se encontrava o escritório nacional do South African Council of Churches (Zikalala, 1993).

Em segundo lugar, havia casos em que a religião ou rituais religiosos funcionavam como força unificadora nos novos sindicatos. Um destes rituais era a oração no início das reuniões sindicais, uma forma não só de unir os que oravam mas também de conferir legitimidade e respeitabilidade à luta. As orações no início de cada reunião estavam associadas à geração mais velha de trabalhadores e manteve-se como um ritual importante até uma geração mais nova e mais militante tomar as rédeas da liderança nos anos 80.

Em terceiro lugar, um exemplo da influência da religião nos novos sindicatos é a forma como hinos religiosos foram adaptados ao contexto de luta e como os sindicatos aprenderam a utilizar o poder da canção para mobilizar os trabalhadores para a acção. Este poder encontrava-se não só nas letras mas também no ritmo. Da mesma forma que a canção e a dança desempenham um papel importante na vida cultural africana, vieram a variantes religiosas.

Finalmente, muitos dos que vieram a ocupar posições de liderança nos novos sindicatos já tinham experiência de liderança em organizações religiosas de variados tipos. Um exemplo destes líderes é Sipho Kubheka, que se tornou secretário geral do Paper, Printing, Wood and Allied Workers Union (PPWAWU). Kubheka era um pregador laico numa das igrejas independentes africanas antes de se associar aos sindicatos no início dos anos 70, tendo assim ganho experiência de falar em público, negociação e organização. Desde que saiu do sindicato em 1996, voltou à actividade como pastor numa igreja em tempo parcial. Philemon Bokaba, ex-administrador da NUMSA nos African Telephone Cables (ATC), perto de Pretória, que se manteve como vice-presidente nacional durante muito tempo nos anos 80 e 90, foi um membro activo da sua igreja durante dez anos, antes de se unir ao sindicato. Ele afirma que as competências que adquiriu enquanto membro da igreja foram muito úteis pelo facto de o terem capacitado para cumprir os seus deveres sindicais.

Assim, resumidamente, embora a igreja seja uma organização hierárquica, teve um papel muito influente na construção das tradições democráticas do movimento sindical. De facto, no contexto do apartheid sul-africano, muitos corpos clericais tinham um sistema de auto-governação e participação popular relativamente desenvolvido.

2.2. Influências tradicionais

Os novos sindicatos deviam também algumas das suas características ao que restava da política cultural tradicional africana, em particular à tradição de debate e tomada consensual de decisões por parte dos membros da comunidade reunidos num imbizo ou letgotla. Moses Mayekiso defende que as experiências resultantes destas estruturas tradicionais em cenários rurais faziam parte do mosaico de experiências de vida que deram origem à tradição democrática do sindicalismo nos anos 70. Há muitos exemplos que mostram que isto poderia ser adaptado e transferido para cenários proletários e outros não tradicionais. Muitos trabalhadores migrantes utilizavam este tipo de reuniões para debater questões e resolver disputas entre grupos de arruaceiros das áreas urbanas e dos complexos mineiros na África do Sul. De facto, parte da razão pela qual muitos sindicatos tiveram um enraizamento relativamente rápido em abrigos ou recintos urbanos e para mineiros é o facto de estas estruturas terem funcionado como fóruns de mobilização para actividades sindicais.

Há, no entanto, que acrescentar, que, da mesma forma que as instituições religiosas, as estruturas tradicionais tendiam a ser hierárquicas e a favorecer os homens mais velhos, uma vez que masculinidade e idade eram associadas a experiência e sabedoria. Podemos afirmar que estas experiências influenciaram a emergência de uma cultura mais democrática na forma de tratar as questões sindicais, em particular de uma cultura em que se debatem as questões até haver consenso. No seu livro, Command or Consensus, Hammond-Tooke (1975) descreve o funcionamento de concelhos administrativos locais (um imbizo e um inkundla) num cenário tradicional das aldeias rurais de África do Sul.

O ‘presidente’ do concelho é, evidentemente, o líder. Teoricamente, é ele que lidera a discussão e as decisões são tomadas em seu nome; na prática, muito depende da sua personalidade e das forças a favor ou contra ele no comité. Vimos como no processo tradicional de tomada de decisões era colocado grande ênfase no consenso, de tal forma que a tomada de decisão era o produto de uma interacção essencialmente ‘política’ entre os membros do concelho que eram iguais entre si. Na estrutura burocrática, a posição oficial do líder tendeu a enviesar este rigoroso sistema democrático, pois ele é agora apoiado pela Administração (1975: 141).

Hammond-Tooke referiu-se a estas estruturas como «democracias tribais» onde a «‘autoridade’ era relativamente pouca e estava ligada a delegados políticos indígenas. Estes delegados podiam comandar, mas apenas depois de terem recebido ordens formuladas por consenso geral» (Hammond-Tooke, 1975: 216). O local de reuniões gerais do sindicato e o concelho local de delegados sindicais assemelha-se em muitos aspectos ao imbizo, especialmente na forma como o debate é conduzido e o consenso atingido.

2.3. Experiência em organizações culturais e desportivas

A supressão da actividade política e sindical nos anos 60 não significou o eliminar de outras formas sociais e culturais de organização da população negra sul-africana. De facto, em muitas áreas, a falta de actividade política levou muitos a procurarem conforto noutras actividades «não-políticas» sociais e culturais, tais como desporto, clubes de dança, coros, etc. Muitos destes corpos culturais funcionavam em linhas formais e relativamente democráticas, dando, desta forma, oportunidade aos envolvidos para ganharem algumas competências de organização, nomeadamente presidir a reuniões, operar com contas bancárias, fazer minutas, participar em debates públicos e na eleição dos líderes. A contribuição destas experiências, particularmente no que respeita à aquisição de competências, para a construção do movimento sindical democrático não deve ser subestimada.

2.4. Clubes ou «sociedades» de apoio mútuo

Igualmente importante para a construção do movimento sindical democrático é a experiência da classe trabalhadora negra sul-africana, adquirida na ajuda voluntária a variados clubes de apoio mútuo. Estes podem assumir formas variadas, dependendo da sua função. A masingwabane ou sociedade funerária é uma associação voluntária fundada por pessoas que passam a juntar, num fundo comum, dinheiro recolhido mensalmente que será utilizado caso se dê o falecimento de um dos membros ou de seus parentes. O que é relevante nesta forma de associação é a forma como gere os seus assuntos. Uma masingwabane bem desenvolvida terá a sua conta bancária, oficiais eleitos - presidente, secretário, tesoureiro - e manterá um registo das reuniões realizadas a intervalos regulares. Terá, adicionalmente, uma forma democrática de tomar decisões e apresentar justificação para o dinheiro gasto. Nos municípios, o stokvel e as suas muitas variantes, como é o caso do moholisano e a «sociedade», formam-se como clubes de poupança em que os membros fazem turnos para receber todos os fundos recolhidos mensalmente. Mas, em todos estes clubes, há reuniões regulares e debate democrático sobre o montante das contribuições, as admissões no clube, etc.

2.5. Lutas estudantis

Muitos dos trabalhadores que formaram os novos sindicatos nos anos 70 passaram por um período turbulento no sistema educativo em que foram impelidos para posições de liderança, nas lutas contra as autoridades educativas autoritárias. Embora muitas destas experiências não tenham necessariamente resultado na formação de estruturas democráticas, não deixam de ser importantes na medida em que foi nestas lutas que estes activistas vieram a abraçar a democracia como um ideal. Nelson Ndinisia, por exemplo, antigo delegado sindical e ex-presidente do então South African Railways and Harbours Union (SARHWU) relembra uma prolongada luta na sua escola, Liceu Osborne, em Mount Frere, que acabou por levar à sua expulsão definitiva antes que se pudesse matricular. Ele afirma que a certa altura daquela luta já desempenhava um papel de liderança, uma vez que podia perceber que as coisas não estavam bem. Atribui a sua consciência política a um professor de História na escola.

Enquanto ensinava História dava-nos mais ideias do que estava a acontecer. Assim, ele era de facto o tal, de forma que, quando as coisas aconteciam em Soweto, tínhamos uma maior compreensão sobre elas. Quando se deu a independência [do Transkei], ele podia falar do seu significado. Normalmente as pessoas das áreas rurais não compreendiam. Mas tentámos formar um grupo de estudantes daquele lado e dissemos que as pessoas têm realmente que entender que o que estamos a ter não é verdadeira independência. Assim, era este o pano de fundo quando começámos a perceber que algo estava errado. Sempre acreditei que aquele professor desempenhava um papel crítico porque podia explicar e analisar a situação. Claro, eu era um bom leitor de história negra e essas coisas, de onde viemos, porquê, etc.

Bobby Marie foi também um activista estudantil antes de se juntar aos sindicatos. Foi durante este período que a sua consciência política se desenvolveu e o seu idealismo estudantil o levou a envolver-se em organizações democráticas na comunidade.

2.6. Experiência sindical anterior

Muitos dos trabalhadores que se juntaram a sindicatos nos anos 70 tinham já experiência sindical, tendo grande parte deles pertencido a sindicatos ligados ao South African Congress of Trade Unions (SACTU). Lambert (1989) mostrou que muitos destes sindicatos funcionavam de forma democrática. De facto, um estudo conduzido por Webster em 1974 revelou que muitos membros dos novos sindicatos na área de Durban, Pietermaritzburg viam Moses Mabhida, um líder do SACTU, como um dos líderes mais influentes naquela província (1989: 161-231). Mais tarde, muitos destes trabalhadores tornaram-se activistas e líderes nos novos sindicatos.

2.7. Movimentos políticos e cívicos

Muitos dos membros dos sindicatos do pós 1973 possuíam já experiência como membros de movimentos políticos ou de libertação que haviam abraçado como seu ideal a democracia. Grande parte participou em actividades de movimentos durante os anos 50 e 60, trazendo alguma da sua experiência para os novos sindicatos depois de 1973. De acordo com Baskin (1991), muitos tornaram-se activistas de primeira linha na luta pelo estabelecimento destes sindicatos.

Nos últimos anos, activistas civis da United Democratic Front (UDF) e de organizações do Africanist and Black Consciousness Movement juntaram-se aos sindicatos, trazendo experiência e competência no âmbito da mobilização de massas e organização. Mas é igualmente verdade que muitos líderes sindicais trouxeram a sua experiência para estes movimentos.

2.8. Comités de ligação

Depois do Black Labour Regulation Act, em 1973, muitos empregadores formaram comités de ligação como estratégia para iludir ou evitar os sindicatos. Muitos dos trabalhadores que viriam a tornar-se líderes sindicais participavam nestes comités. Estas estruturas não eram democráticas, mas alertavam os envolvidos para os problemas do trabalho em estruturas pouco desenvolvidas. No entanto, seria errado pôr de lado toda esta experiência. Alguns trabalhadores adquiriram nestas estruturas competências organizacionais essenciais à condução da organização democrática, como por exemplo, presidir a reuniões, escrever minutas, fazer relatórios, negociar.

2.9. Experiências negativas do autoritarismo do apartheid

O presidente do SAMWO, Petrus Mashishi, diz que a maioria dos trabalhadores negros não se juntava a sindicatos por gosto: «unimo-nos aos sindicatos pela forma como éramos tratados» (Ginsburg e Matlala, 1996: 88). De uma maneira ou de outra, milhões de trabalhadores negros experienciaram a natureza autoritária do apartheid e estas experiências negativas predispuseram-nos para alguma forma de democracia, quer como prática no seio do seu sindicato, quer como forma ideal de governo para a sociedade. De facto, para aqueles que participaram na luta geral pela libertação, pertencer a uma organização democrática e estar envolvido na luta pela democracia colocava-os numa espécie de elevado patamar moral, face-a-face com os seus opressores do apartheid.

 

2.10. O medo da repressão

Muitos activistas que participaram nos primeiros anos da organização sindical afirmavam que os sindicatos não tinham outra opção que não a democrática. Jeremy Baskin defende que os sindicatos do pós 1973 «fizeram da necessidade uma virtude». A democracia, afirma, tornou-se necessária devido ao ambiente hostil da resistência dos empregadores e à repressão estatal e para evitar vitimização de alguns indivíduos. Garantia também que, no caso de os líderes serem lesados, a organização continuaria a funcionar, uma vez que os membros se tornariam responsáveis pela sobrevivência do sindicato.

A contribuição da vivência acima sublinhada tem sido posta um pouco de lado pelos intelectuais do movimento sindical sul-africano. Uma das razões desta omissão pode residir no facto de algumas destas experiências não terem tido origem em meios organizacionais conhecidos por serem democráticos. De facto, muitas tiveram mesmo origem em ambientes não democráticos. No entanto, todas elas sublinham a importância das experiências de vida dos trabalhadores e o facto de formas associativas transformadoras, modos de solidariedade e identidades colectivas nunca se construírem apenas com base em antecedentes puros, mas emergirem, sim, da vida tal como é vivida pelos que participam na construção daquelas novas formas associativas, de solidariedade e identidades. Esta abordagem afasta-nos das abordagens elitistas, as quais atribuem sempre as ideias novas a um «estranho inteligente».

Após o que foi dito, note-se ainda que muitas das organizações e arenas em que estas experiências tomavam lugar eram, frequentemente, conservadoras e reaccionárias. As experiências de vida conservadoras ou negativas, podiam ser também mobilizadas por diferentes motivos. Por exemplo, as experiências tradicionais podiam ser mobilizadas por grupos étnicos, cujo objectivo era colaborar com o governo do apartheid. Da mesma forma, grupos conservadores podiam explorar sentimentos religiosos para desencorajar o envolvimento político ou para encorajar a colaboração com o apartheid. Assim, «experiências de vida» são uma faca dois gumes, sendo que algumas delas podem ser mobilizadas de forma progressiva e outras em direcção regressiva. Disto decorre a importância da liderança e dos intelectuais, uma vez que têm um papel no agregar e mobilizar destas experiências de vida para que se encaixem no projecto transformador. Esta discussão vira-se agora para o contributo dos intelectuais na emergência da tradição do sindicalismo democrático. A palavra «intelectual» é, aqui, usada no seu sentido mais lato, de modo a incluir intelectuais orgânicos e outros que têm um papel de liderança em organizações.

2.11. Contributo dos intelectuais para a emergência do sindicalismo democrático

O contributo dos intelectuais para a emergência da tradição sindical democrática na África do Sul não está em questão. O que está em questão é a forma que este contributo tomou, assim como a composição do grupo de intelectuais envolvido na organização e mobilização sindicais. No que diz respeito ao movimento sindical sul-africano, o termo «intelectual» tem vindo a ser associado apenas a um grupo particular de activistas composto por indivíduos brancos com formação universitária. Muitos destes activistas trabalhavam nos sindicatos, mas alguns fixaram-se nas universidades como investigadores e professores. Entre alguns delegados e líderes sindicais negros, o termo aplicava-se a delegados brancos com competências administrativas e analíticas que lhes permitiam «teorizar» sobre o sofrimento dos trabalhadores negros. Muitos destes líderes e delegados negros ressentiam-se com o poder dos intelectuais, resultante do seu passado privilegiado nas classes médias da sociedade branca. Assim, o termo «intelectual» tinha a conotação de «colega viajante privilegiado», para quem a luta não era uma questão de vida ou morte.

No âmbito desta discussão, o termo é usado num sentido muito mais lato, o qual pode incluir as duas categorias de Gramsci de intelectuais orgânicos e tradicionais. Webster (1992) também usou o termo neste sentido em relação aos sindicatos. Foi, no entanto, mais longe, ao desagregar a categoria dos intelectuais orgânicos em cinco subcategorias, nomeadamente a categoria dos intelectuais com treino profissional, intelectuais de partido, intelectuais investigadores freelance, intelectuais de sindicato e intelectuais populares. Para o objectivo deste capítulo, o papel mais importante dos intelectuais no movimento sindical estava no «empacotar» de uma série de ideias numa ideologia e num programa político coerente. Para tal, os intelectuais teriam que possuir capacidades analíticas e administrativas, bem como uma compreensão das experiências de vida dos trabalhadores que organizavam. Poucos dos grupos de intelectuais aqui identificados possuíam as duas forças. De facto, a força da contribuição intelectual para o desenvolvimento dos sindicatos do pós 1973 era a combinação de grupos diferentes com características diferentes. Por exemplo, o ponto forte de um líder e delegado dos trabalhadores como Moses Ndlovu, em Pietermaritzburg, era o facto de compreender as experiências de vida dos trabalhadores que representava e conseguir traduzir termos abstractos numa linguagem que os trabalhadores compreendiam. Pelo contrário, muitos dos delegados brancos com quem ele trabalhava tinham a capacidade de ler muitos livros sobre teorias sindicais mas precisavam de combinar essa força com a sabedoria de Ndlovu para garantir a eficácia das novas estratégias.

 

3. Democracia participativa como forma de emancipação

É agora altura de nos centramos no tema central deste capítulo, nomeadamente, o valor emancipatório da democracia participativa e o porquê da sua centralidade em qualquer projecto de emancipação social. A este respeito, devemos recordar que, na sua obra O Contrato Social, Rousseau identifica duas proposições respeitantes à importância da democracia participativa. Em primeiro lugar, a democracia participativa é importante porque proporciona a cada cidadão oportunidade de participar na tomada de decisões políticas. A importância está no facto de esta forma de democracia permitir a expansão da cidadania e a inclusão daqueles que, de outra forma, seriam excluídos dos assuntos da comunidade ou da sociedade como um todo.

Em segundo lugar, Rousseau avaliou o valor psicológico da democracia participativa nos seus participantes, «garantindo que há uma inter-relação contínua entre o trabalho das instituições e as qualidades psicológicas e atitudes dos indivíduos que interagem no seu interior» (Pateman, 1971: 22). No centro desta proposição está a noção de que a participação é livre de coerção, significativa e uma expressão da autonomia dos participantes.

Estas proposições são pertinentes para a nossa discussão, particularmente por nos ajudarem a desmascarar noções convencionais de liberdade e democracia, que se baseiam em duas dicotomias desorientadoras. A primeira dicotomia, «opressão versus democracia», apresenta as questões num modelo de soma-zero. Por outras palavras, muitos argumentariam que ou há liberdade, ou há opressão, mas não se pode ter ambos os elementos ao mesmo tempo. Este tipo de raciocínio conduz à convicção de que, libertando-se da opressão, se alcança um sistema democrático em que todos participam na tomada de decisões. No entanto, provas reais demonstram que a maioria das transições democráticas não resultam necessariamente numa inclusão da maioria em processos de tomada de decisão, nem levam à emancipação psicológica teorizada por Rousseau. Resultam, sim, numa forma de democracia em que a participação da maioria é limitada à participação em eleições periódicas.

Da mesma forma, sob um regime opressivo há sempre espaço para que os oprimidos exerçam algum controlo e participem de alguma forma em questões respeitantes a aspectos que afectam as suas vidas. Esta participação e este controlo tornam-se mais visíveis à medida que a luta se intensifica e a população em geral se apercebe que tem que «construir hoje o futuro». Até certo ponto, o período entre meados dos anos 80 e princípios dos anos 90 foi um desses períodos na África do Sul em que as instituições e políticas alternativas substituíram, ainda que temporariamente, as instituições hegemónicas do regime do apartheid. Assim, os tribunais populares, os comités de área e de rua, os comités de trabalhadores por área industrial, os comités de delegados sindicais e as reuniões gerais no local de trabalho deste período representaram um momento de emancipação para os envolvidos. No entanto, o problema destes enclaves de emancipação é o facto de a sua acção estar circunscrita e a sua influência confinada às pequenas comunidades locais, as quais estão constantemente sob ameaça de serem desmembradas e reincorporadas na órbita do regime opressivo.

A segunda dicotomia frequentemente enganadora é a «reforma versus ruptura revolucionária» e a forma como a primeira se associa à opressão contínua (se bem que de forma modificada) e a segunda à liberdade e democracia. Muitos activistas de luta e intelectuais tendem a ver uma separação entre a luta em si e o objectivo máximo dessa luta. Por outras palavras, falha-se frequentemente ao não se conceber a luta em si como um momento emancipatório em que os oprimidos rejeitam conscientemente os constrangimentos impostos pelos opressores e iniciam um trabalho em direcção a uma nova sociedade baseada em novos princípios de organização social e governação. Assim, a obsessão pelo momento de ruptura revolucionária leva a que muitos não se apercebam do significado dos momentos embrionários de emancipação social que se vão desenrolando durante a própria luta. No entanto, o que a história demonstrou foi que o momento de ruptura, seja ele conduzido por uma revolução violenta ou por negociações pacíficas, raramente está à altura das expectativas no que diz respeito às suas possibilidades emancipatórias. Pelo contrário, o resultado é o desarme dos activistas e a desmobilização de todos aqueles que, nas suas comunidades, locais de trabalho, escolas e organizações, se empenhavam na construção de utopias reais que davam sentido às suas vidas.

A discussão anterior tem por objectivo realçar a centralidade da democracia participativa no discurso da emancipação. Sugere também que a participação pode ser um método de conduzir a luta, assim como um objectivo dessa mesma luta. Esta observação tem implicações na forma como concebemos os conceitos de liberdade e democracia, uma vez que ajuda a evitar abordagens dicotómicas que limitam o entendimento da natureza dialéctica da mudança social.

Uma questão adicional relacionada é o que Pateman (1970) designa por função «educativa» ou de «treino social» da democracia participativa que a leva a caracterizar o modelo de participação democrática como

um modelo que requer o máximo input (participação) e em que o output não inclui apenas planos de acção (decisões), mas também o desenvolvimento das capacidades sociais e políticas de cada indivíduo, de forma a que haja comunicação do output para o input (1970: 43).

Na África do Sul, isto verificou-se de forma mais evidente no movimento sindical dos anos 80 e início dos anos 90. As estruturas de base dos sindicatos, sob a forma de reuniões gerais no local de trabalho e concelhos de delegados sindicais, serviram de campo de treino para milhões de trabalhadores organizados, enquanto deliberavam sobre questões da política sindical interna questões relacionadas com salários e condições de emprego e assuntos políticos do momento de âmbito mais alargado. Estes sindicatos de trabalhadores tinham-se tornado verdadeiras «escolas da democracia» e, com a experiência adquirida, muitos trabalhadores obtiveram formação para virem a desempenhar papéis a nível regional e nacional. A partir do momento em que se deu a transição política democrática, muitos destes homens e mulheres foram chamados a desempenhar papéis de liderança em palcos diferentes, nomeadamente como políticos de governos locais, de província e nacionais, como funcionários públicos, administradores do sector privado e figuras de proa de organizações não-governamentais.

No seu estudo comparativo do desenvolvimento da democracia e do capitalismo do século XX, Rueschsmeyer, Stephens e Stephens (1992) defendem que a classe trabalhadora é a «força pró-democrática mais consistente», uma vez que está interessada em atingir a sua inclusão política e social (1992: 8). Na África do Sul, esta classe também tomou a dianteira na experiência com modelos de democracia, quer participativa quer representativa, na sua forma de organização e na luta pela democracia como um ideal para toda a sociedade. De facto, a força mobilizadora do movimento pró-democrático deveu-se em grande parte ao carácter democrático e participativo das formações organizadas do movimento. A secção seguinte revê alguns dos pontos mais fortes e mais fracos destas experiências e reflecte sobre alguns dos factores que levaram ao declínio da tradição participativa durante a transição para uma sociedade pós-apartheid.

 

4. O declínio da democracia participativa durante a transição para uma sociedade pós-apartheid

Segundo Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992), uma classe trabalhadora relativamente fraca permite que as classes médias desempenhem um papel de liderança em lutas pela democratização, o que frequentemente tem como consequência a limitação da democracia. Estes autores chamam, no entanto, a atenção para o facto de ser necessário, para cada caso histórico, examinar a configuração específica das coligações de classe e a força relativa de classes diferentes de modo a ser mais fácil compreender como o equilíbrio de poderes molda as perspectivas de mudança democrática. Uma análise do caso sul-africano mostra que as classes trabalhadoras não eram fracas. Na verdade, a classe trabalhadora era altamente mobilizada e bem organizada numa série de frentes, particularmente nos seus sindicatos e organizações cívicas. Antes das eleições de 1994, o principal movimento de libertação, o African National Congress(ANC), que teve que restabelecer-se como partido político de massas depois de trinta anos de aprisionamento, exílio e operações subterrâneas, chegou à conclusão de que não havia outro caminho que não o das noções radicais de democracia política e redistribuição económica, tal como fora delineado pelo Reconstruction and Development Program (RDP), iniciado pelos sindicatos. Como foi então que o país acabou por ficar com um modelo convencional de democracia que deixa muito pouco lugar à participação de massa? A resposta encontra-se na configuração das forças de classe dentro do movimento de libertação, nas relações entre as diferentes redes do movimento liberal e no realinhamento das forças de classe a partir de 1990.

Antes do retorno dos exilados do ANC, do SACP e do Pan-Africanist Congress (PAC) de 1990, o palco dos políticos da oposição com o apoio das massas era ocupado pelo movimento sindical, o UDF, organizações cívicas e uma série de outras organizações da sociedade civil. Mas, as forças mais poderosas e mais bem organizadas eram, de longe, os sindicatos, particularmente o Congress of South African Trade Union (COSATU) e as organizações filiadas no UDF. Em todas estas organizações, ideias de estabelecimento de «órgãos democráticos de auto-governação» eram muito influentes, tal como previsto na Carta da Liberdade. Pretendia-se que estas estruturas se tornassem nas novas formas institucionais, através das quais se exerceria o poder numa África do Sul libertada. Assim, em 1996, um líder proeminente da comunidade fez uma avaliação muito optimista das novas estruturas do «poder popular», afirmando que, em alguns municípios, o povo tomava o poder, «começando a gerir esses municípios de forma diferente» (Sisulu, 1986: 104). Continuou, identificando alguns desenvolvimentos a este respeito:

O povo exercia o poder ao começar por tomar o controlo em áreas como o crime, o desbravamento dos municípios e a criação de parques para o povo, o fornecimento de primeiros socorros e até nas escolas. Quero aqui enfatizar que estes avanços foram possíveis devido ao desenvolvimento de orgãos democráticos, ou comités, de poder popular. O nosso povo criou corpos que eram controlados pelas massas populares de cada área, a quem tinham que prestar responsabilidades. Em tais áreas, desapareceu a distinção entre o povo e as suas organizações. Todas as pessoas, novas e velhas, participavam em comités, desde aqueles ao nível da rua até aos de níveis mais elevados. O desenvolvimento do poder popular tomou a imaginação do nosso povo, mesmo onde as lutas estão a surgir pela primeira vez. Existe uma tendência crescente para o transformar do caos governativo em formas elementares de poder popular à medida que o povo vai tomando a liderança das zonas semi-libertadas (1986: 104).

Do mesmo modo, os sindicatos haviam-se tornado órgãos de poder popular e levantavam questões fundamentais sobre a economia e a forma como esta deveria ser gerida. Muitos começavam a clarificar a forma de gestão planeada, através dos concelhos de trabalhadores, que seriam semelhantes aos vigentes sob o sistema jugoslavo de auto-gestão dos trabalhadores. A este propósito, Richard Turner (1980) dedicou uma parte considerável do seu livro à discussão da democracia participativa e ele era também a favor da autogestão dos trabalhadores através dos concelhos de trabalhadores.

No entanto, a partir de 1990, assistiu-se a um declínio acentuado do discurso da participação democrática e podem apontar-se diversas razões para este facto. Em primeiro lugar, a natureza negociada da transição democrática tinha um efeito desmobilizador entre os cidadãos comuns, destruindo, desta forma, esforços de auto-organização a nível popular. Durante a fase de negociação da transição, o futuro do país parecia depender mais dos acordos feitos por alguns líderes e as estruturas democráticas surgidas no decorrer das lutas parecia não interessar a estes líderes. Em 1991, um sindicalista desiludido expressou estes sentimentos quanto à posição do ANC nas negociações políticas:

Como é que consegue mobilizar a sua própria associação de massas para a acção em torno de determinadas exigências, quando, a qualquer momento, alguém pode voltar a negociar com o seu opositor - não sabe com que legitimidade o fez e o que foi acordado? Isto, simplesmente, confunde as pessoas. Não sabem por que fim agem e assim acabam por não fazer nada (citado em van Holdt, 1991: 19).

Como resultado, o poder escorregou lentamente das mãos das estruturas populares, nomeadamente comités de rua, organizações cívicas, estruturas sindicais locais, organizações de mulheres e grupos juvenis, e centralizou-se nas mãos dos que estavam próximos, ou faziam parte, do processo de negociações políticas. Desde 1994 que esta desmobilização se traduziu numa espécie de inércia massificada e numa expectativa de que a liderança e o governo democrático «entreguem» os serviços.

Em segundo lugar, a liderança dos regressados do ANC trouxe ao movimento democrático de massas um estilo diferente de liderança. A maioria destes líderes tinha acabado de sair da prisão ou do exílio e não estava a par dos desenvolvimentos dentro do movimento democrático. Os aspectos negativos do seu estilo de liderança são o secretismo, a falta de consulta (dos membros do ANC e das organizações suas aliadas), a confiança em algumas personalidades como Mandela e o facto de a maioria destes líderes não vir de círculos eleitorais definidos em forma de estruturas locais e ramificadas. Tudo isto desencorajou qualquer forma de participação directa ou indirecta por parte dos que operavam em estruturas locais do movimento de massas.

Em terceiro lugar, muitos dos líderes exilados que regressaram ao movimento democrático tinham «uma ideia errada da organização e acção de massas» (von Holdt, 1991) e dominavam os lugares de liderança do ANC. No exílio, quase todos estes líderes tinham sido acolhidos por regimes autoritários e alguns assimilaram as práticas negativas dos governos que os acolheram. Embora proclamassem a vontade de estabelecer um sistema democrático com base no espírito de governação popular expresso na Carta da Liberdade, foram muitos os que abraçaram a noção schumpeteriana de que às massas não é permitido participação ou governo. No entanto, estes líderes do ANC, «exilados» ou «prisioneiros», permaneceram extremamente poderosos dentro do movimento devido à «aura revolucionária» que muitas pessoas associam ao estar preso ou exilado. De facto, muitos dos chamados líderes internos também se sentiram obrigados a entregar a liderança àqueles que tinham ganho esse estatuto em virtude de terem feito o sacrifício de ir para a prisão ou para o exílio. No momento de entusiasmo, com líderes importantes e acordos que prometiam trazer o que parecia impossível mesmo no pico das lutas de massas nos anos 80, muitos começaram a tomar como garantida a tradição de participação democrática e a assumir que um tipo de democracia representativa levaria aos mesmos resultados. Nas mentes de muitos, parecia impossível que uma tal liderança «experimentada e testada» pudesse desviar-se do curso democrático e agir em desacordo com as aspirações da maioria.

Em quarto lugar, a transição sul-africana deu-se ao mesmo tempo que o colapso do socialismo estatal, para muitos, o símbolo de uma alternativa radical ao capitalismo. Com o colapso do Bloco de Leste desapareceram também noções utópicas de transformação social, deixando que muitos activistas e intelectuais do movimento se contentassem com noções limitadas e elitistas de democracia. Muitos destes activistas e intelectuais foram vencidos pela ideia de que «There Is No Alternative» (TINA) e muitos deles, na verdade, juntaram-se às fileiras da classe capitalista ao entrarem na onda do chamado «empoderamento económico negro».

Em quinto lugar, os processos de formação de classes ou de formação de elites aceleraram, com muitos dos principais activistas que faziam parte da tradição de participação democrática a beneficiarem das novas oportunidades criadas pela desracialização da sociedade. Assim, o discurso de uma cultura democrática participativa colectiva foi superado por uma cultura de individualismo e de construção de carreiras, em que a obtenção de poder é vista como resultado do aproveitamento das oportunidades criadas pela desracialização.

Em sexto lugar, a campanha de violento terror lançada sobre o movimento democrático logo após o regresso dos membros do ANC e a libertação de Nelson Mandela, promovida pelo Estado, teve um efeito debilitador na prática de democracia nas organizações. Claramente, a violência tinha como objectivo desmoralizar comunidades, aterrorizar activistas e esmagar formas inovadoras de resistência e organização que se tinham desenvolvido ao longo dos anos. Muitas estruturas locais, como comités de rua e concelhos de delegados sindicais, cessaram os seus encontros e muitos activistas e membros de organizações deixaram de comparecer às reuniões. Nestas circunstâncias, a tomada de decisões ficou a cargo de um pequeno grupo de indivíduos, gerando um novo estilo de liderança ao qual faltava pedir e prestar contas.

Por fim, muitos outros factores conduziram a uma diminuição da tradição democrática nas organizações de massa no início dos anos 90. Entre estes, esteve a mudança geracional nas organizações de massa que faziam parte da luta. Por exemplo, muitos dos activistas sindicais de inícios dos anos 70 até inícios dos anos 90 saíram, dando lugar a uma nova geração de activistas mais jovens que não participaram nas experiências sociais do período inicial.

Tudo isto se fundiu numa nova cultura de organização e liderança que entra em contradição com a tradição nascente de participação democrática na África do Sul. Esta cultura democrática elitista coincidiu com o intensificar da integração da África do Sul na economia global. Todos estes processos geraram uma nova cultura política nas organizações e orgãos do Estado que é devedora dos interesses capitalistas nacionais e globais. Esta cultura, ao invés de desafiar, procura reforçar os processos hegemónicos da globalização e é sobre marginalização - em vez de concessão de poder - de classes subordinadas, movimentos populares e comunidades locais. Na verdade, apropria a linguagem e o discurso da democracia para oprimir, marginalizar e atomizar em vez de emancipar. Deste modo, hoje, face ao crescente desafio por parte dos movimentos populares e dos activistas, o refrão habitual de muitos representantes do governo é «o governo tem o dever de governar». Longe estão os slogans sobre «órgãos de poder do povo» ou os gritos de ordem dos dias impetuosos da luta democrática nos anos 80, tais como «O Povo Governará».

Em 1991, o Sindicato Nacional de Mineiros (NUM), o maior e mais influente sindicato, filial do COSATU, adoptou uma resolução na aliança política entre o COSATU, o ANC e o SACP, na qual se afirmava que «décadas de ilegalidade impuseram sérias limitações ao ANC». A resolução afirmava então que os sindicatos com experiência de liderança tinham o dever de construir o ANC e que «a experiência acumulada de democracia participativa, responsabilidade e mandatos do movimento sindical tem que permear as estruturas do ANC a todos os níveis» (citado em von Holdt, 1991: 27). No entanto, estas boas intenções falharam na materialização. Não só os sindicatos e outras organizações de massa falharam na inclusão da sua cultura de participação democrática no ANC, como também muitos dos próprios sindicatos e organizações da comunidade foram perdendo aquela cultura de participação e responsabilização da liderança e dos mandatos. Uma das desculpas mais eficazes usada actualmente por inúmeros líderes de organizações é a de que assuntos relacionados com a restruturação económica global são complexos e, sob este pretexto, pequenos grupos de indivíduos acabam por tomar todas as decisões.

 

5. Em direcção a uma tradição de participação democrática

Apesar da alteração das condições nacionais e globais, há lugar para a revitalização da tradição de participação democrática na África do Sul. De facto, a ordem nacional democrática abre realmente espaço para a contestação política e a mobilização sem a ameaça de repressão estatal. No entanto, para que tais tentativas de ressuscitar a tradição de participação democrática sejam bem sucedidas, têm que existir determinadas condições. Em primeiro lugar, tem que haver uma crítica consciente da ordem actual e uma contestação da própria noção de democracia. Tais críticas e discussões teriam como objectivo a reapropriação dos ideais de democracia e a injecção de um conteúdo emancipatório no discurso e prática da democracia. Têm também que procurar colocar, no centro do novo discurso, a democracia participativa como um meio para atingir o fim, nomeadamente, justiça social e emancipação.

No contexto da África do Sul e de muitos outros países em vias de desenvolvimento, a emancipação social deve ser entendida no contexto das realidades que as classes subordinada têm que enfrentar, nomeadamente, pobreza, fome, violência e crime, patriarcalismo, racismo, marginalização social e legado do colonialismo sob a forma de dependência dos países desenvolvidos. Todas estas realidades, ao exacerbarem a marginalização social e a exclusão dos grupos e classes subordinados, constituem obstáculos à inclusão social e à emancipação. Neste sentido, a democracia participativa é um dos caminhos que garante, num sistema social reformado, a inclusão social e política das classes marginalizadas e oprimidas. Isto implica que um projecto de emancipação social, para além de procurar expandir arenas de participação democrática popular, deve procurar ainda identificar e ressuscitar o passado e preservar as estruturas existentes que realcem a participação ao nível de base da sociedade. Neste sentido, os elementos de participação dos modelos tradicionais de governo africanos, discutidos atrás neste capítulo, poderiam ser adaptados e combinados com formas de representação. A experiência de movimentos sindicais e organizações cívicas mostra que é possível fazer isto sem que estas formas percam a integridade. No entanto, este ressuscitar e preservar de certas formas de governo e tomada de decisão teria que ser acompanhado pelo reconhecimento de que a participação é uma dimensão crucial da emancipação social que permite que as classes subordinadas articulem os seus interesses e afirmem o seu poder. Intelectuais de esquerda e intelectuais orgânicos destas classes teriam então que contestar a noção de que a democracia representativa é a única forma de tomar decisões e governar nas sociedades modernas. Teriam que mostrar que o refrão popular divulgado pelas elites e seus intelectuais de que «a participação nas sociedades contemporâneas é impossível», devido à complexidade das questões e ao volume da população, não é mais que uma justificação para a exclusão da maioria no delinear do seu futuro.

No entanto, afirmar as virtudes da democracia participativa não é uma tarefa fácil, particularmente sob o actual paradigma hegemónico em que a tomada de decisão descentralizada é considerada ineficiente e primitiva por muitos, enquanto a representação por representantes e consultores eleitos é considerada eficiente e moderna. Este cinismo e elitismo é encontrado, quer no passado, quer no presente, entre activistas nas comunidades e sindicalistas. Um antigo sindicalista argumentou que num contexto em que a pertença sindical cresceu a um ritmo muito acelerado e «uma vez que os problemas se tornam mais complexos» os sindicatos têm que aceitar que «a tomada substancial de decisões tem que acabar nas mãos de alguns indivíduos em vez de em estruturas de qualquer tipo» (Shreiner, 1994: 47). Um projecto de emancipação social tem que rivalizar com este elitismo e cinismo e utilizar uma argumentação convincente que demonstre porque é que a participação democrática é um requisito mínimo para a emancipação das classes subordinadas.

Em segundo lugar, o que ficou dito sugere uma necessidade de ir além da crítica e começar a explorar «utopias reais» que permitam às comunidades locais e estruturas populares dar forma à agenda da emancipação social. Este seria um grande passo em direcção ao suavizar da alienação associada ao que Rose (1967) designou por «a sociedade de massas» em que os indivíduos se encontram socialmente isolados uns dos outros. Mas mais importante, atingir-se-iam os objectivos que Turner identificou como sendo da máxima importância para o projecto de emancipação social.

É dar aos indivíduos o máximo controlo possível sobre o que lhes acontece e, portanto, a máxima liberdade para decidirem o que querem e, depois, para agirem de modo a alcançarem-no. O objectivo é libertar o indivíduo quer do poder directo dos outros, quer do poder das forças sociais latentes. Não é uma escolha mas uma estrutura dentro da qual se torna possível escolher (1980: 83).

 

Em terceiro lugar, as tentativas de reinventar a democracia e a emancipação social têm que falar a língua das pessoas reais que lutam com problemas reais em todas as esferas da sociedade. Casos bem sucedidos de mobilização e organização de comunidades e de trabalhadores na luta da África do Sul revelam que a democracia participativa é melhor sucedida quando as classes subordinadas são capazes de apropriar e traduzir discursos intelectuais em acções visando melhorarem as suas condições. Isto implica que tais discursos sejam suficientemente inteligíveis para tomarem a forma de aplicações e experimentações práticas e significativas. Deste modo, tais discursos devem também propor metas realistas e exequíveis que se procurem atingir cumulativamente, em direcção a mudanças mais fundamentais.

Em quarto lugar, é necessário que novas redes locais, regionais, nacionais e internacionais façam a ligação entre lutas locais e construam solidariedades globais que permitam a partilha de experiências e o desaparecimento da atomização das classes subordinadas e suas lutas. No essencial, o objectivo será a livre ou voluntária troca de experiências e conhecimentos, em vez da criação de estruturas burocráticas. Isto implicaria uma utilização criativa dos diferentes meios de comunicação social e novas formas de comunicação de modo a assegurem novas formas alternativas ou contra- hegemónicas de globalização.

Finalmente, tudo isto implica uma necessidade de reinventar a própria esquerda de forma a englobar os desafios da construção de lutas contra-hegemónicas globais e de experiências de formas alternativas de organização social. Também significa que a esquerda deve repensar o seu papel, considerando as condições em mudança da globalização neoliberal. De modo particular, o papel dos intelectuais de esquerda deve ser avaliado, porque, embora estejam numa posição bastante poderosa para criarem discursos, há sempre o perigo de alguns abusarem do poder e da autoridade, pelo facto de confundirem o seu papel de intelectuais com liderança política. Isto é importante na medida em que os intelectuais têm o poder de dar legitimidade a certos discursos e deslegitimar outros.

Assim, visto que o centro da emancipação social e da revitalização é, simultaneamente, um projecto político e intelectual, requer, como tal, contestação a ambos os níveis. Na era do neo-liberalismo global, tal contestação tem que ocorrer a todos os níveis, incluindo a arena global. Entre outras coisas, tem que contestar a trivialização de tudo o que é local e opor-se à glorificação da aclamada aldeia global, cuja essência está inscrita nos interesses do capitalismo.

 

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