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Zander Navarro

O MST e a canonização da ação coletiva (resposta ao artigo de Horácio Martins Carvalho)

 

 

Introdução

Uma posta de carne de serpente

Fervei, cozei, no caldeirão bem quente.

Olho de salamandra e pé de sapo,

Língua de cão e pêlo de morcego,

Dente de cobra venenosa e suja,

Pé de lagarto e asa de coruja. (...)

Macbeth - Que fazeis?

Feiticeiras - Ação que não tem nome

(Shakespeare, Macbeth, Ato IV, Cena I)

Sob a condição de porta-voz do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o capítulo de Horácio Martins Carvalho é, a um só tempo, alvissareiro e, também, melancólico em seus contra-argumentos e, talvez, sombrio em seus presságios. O documento deve ser saudado, primeiramente, por ser fato raríssimo esta decisão da organização, em seus quase vinte anos de existência, de responder a uma análise crítica sobre a qual foi informada. Em sua história, o Movimento usualmente preferiu optar pelo silêncio em relação aos analistas e observadores que eventualmente tenham problematizado decisões e escolhas realizadas pela organização. Desta forma, à luz da réplica apresentada, talvez ainda seja possível manter esperanças de que o MST poderá repensar sua trajetória de relacionamento com outras organizações populares, entidades de apoio e assessoria, representações variadas da sociedade, intelectuais progressistas e instituições diversas, tornando-se permeável ao diálogo mais aberto e sem pré-definições sobre os rumos do desenvolvimento agrário e suas possibilidades de transformação sócio-econômica e, em especial, em relação às chances reais de emancipação política dos setores sociais subalternizados do vasto mundo rural brasileiro.

Contrariamente ao sugerido por Carvalho, a interdição do MST ao diálogo político com o chamado «campo democrático e popular» distancia-se de uma fantasiosa «firmeza ideológica», mas demonstra, inversamente, uma nítida fragilidade, pois vem forçando seus dirigentes e militantes ao malabarismo retórico, à apologia da própria organização e à estreiteza analítica. A repetição de formas de ação coletiva e de «visões de mundo» esposadas por seus dirigentes, espantosamente únicas e pasteurizadas nos diversos estados, em um país, pelo contrário, tão diverso e heterogêneo, reflete, isto sim, insegurança ideológica e incerteza quanto aos caminhos a serem trilhados. Formando seus jovens militantes a partir de limitados quadros de referência, a organização recorre a uma visão instrumentalista da política, como meio de incidir, através de militantes que deveriam comandar seu próprio arbítrio e liberdade de interpretação, não na realidade sobre a qual atuam, mas servindo, antes de mais nada, a outros propósitos (igualmente apontados no artigo original), nem sempre claramente manifestados a todos os membros do Movimento. Adicionalmente, como é notório, praticamente nenhum dos convênios celebrados pela organização com as universidades públicas, citados por Carvalho, amplia realmente um conjunto de conhecimentos novos para os militantes sem-terra participantes, mas usualmente apenas chancelam a própria visão política do Movimento sobre o mundo rural. Desafortunadamente, em nome da disciplina e de incontáveis receituários comportamentais impostos, seus militantes sequer alcançam algum tipo de consciência política própria, pois são compelidos à repetição monocórdia do discurso dos dirigentes principais, retirando-lhes expressiva margem de especificidade de ação e interpretação de formas de lutas adequadas à diversidade regional do país, tolhendo talentos organizativos e cerceando a formação livre e genuína de novas lideranças.

Ainda assim, como resultado de sua visibilidade social tão expressiva, que Carvalho corretamente ressalta, atualmente já são inúmeros os estudos realizados sobre partes da ação política, características da organização e as diversas facetas da vida social sobre as quais o MST relaciona-se, embora, como também enfatizado, são ainda raros os estudos que ousaram debruçar-se sobre tal processo social como um todo. Provavelmente, analisando-os globalmente, podem ser tipificados em dois os tipos de estudos até aqui realizados, excluindo-se a literatura propagandística, os artigos jornalísticos ou aqueles que atendem às finalidades meramente partidárias. Primeiramente, incluindo a maioria das referências acadêmicas até aqui produzidas, encontram-se os estudos norteados pelo «encantamento ingênuo», fruto não necessariamente da incapacidade de investigação social de seus autores, mas derivados de análise que é antecedida de pressupostos falsos, qual seja, uma idealização do objeto de estudo e uma «positividade» a priori estabelecida, que santifica, antes mesmo de conhecê-las, as organizações que representam as classes subalternas, tornadas virtuosas por definição prévia. Normalmente, são estudos realizados de forma apressada, quando implicam em visitas a campo e coleta de dados e, assim, permanecem na superfície dos fenômenos e processos sociais. Seus autores são, quase sempre, membros das classes médias urbanas e tal enfeitiçamento pode, muitas vezes, assumir feições patéticas, inclusive inesperadas aberrações antropológicas. Quando, por exemplo, esses estudiosos espantam-se com as «falas» de sem-terra e de membros das famílias rurais mais pobres, as quais, se são consistentes em sua expressão, às vezes são banais opiniões sobre a vida cotidiana, porém incluídas cerimoniosamente em tais estudos, como provas do «saber popular», como se tais pessoas, por mais humildes e marginalizadas que fossem, habitassem outro mundo e não uma sociedade que se transformou notavelmente nos últimos cinqüenta anos. Neste período, foram ampliados os níveis de informação, a intensidade dos relacionamentos sociais, os meios de transporte e, sobretudo, quando são indivíduos participantes (ainda que marginalizados) de um processo mais geral de mercantilização da vida social que é típico do Brasil, no mesmo período. Tal processo de mudança geral, muitas vezes também ignorado, destruiu o «mundo do passado», onde pontificava o isolamento exacerbado e o domínio da grande propriedade territorial, como soberana incontestável dos ambientes agrários, sobredeterminando a multitude dos processos sociais existentes em tais esferas da vida social.

O segundo conjunto de estudos sobre as lutas sociais no campo inclui o que poderia ser chamado de «dogmatismo passadista», referindo-se a outro tipo de interpretadores, normalmente aderentes a tradições marxistas ortodoxas e pouco afeitos a qualquer tipo de abertura analítica. São autores que pontificam sobre o (ilusório) vigor econômico da atividade agropecuária e emprestam importância social e política a atores e classes sociais que em nossos dias foram fortemente enfraquecidos. Seu incondicional apoio, exclusivamente ideológico, ao MST, mitificando a organização e suas potencialidades, não reside, realmente, em conhecimento aprofundado sobre o meio rural e suas populações e, menos ainda, sobre a economia agrária brasileira, mas apenas em uma leitura religiosa da mudança social, introduzindo categorias (como «latifúndio») cuja proeminência política é diminuta atualmente, tomadas no entanto por tais autores como peças «decisivas» para a transformação social brasileira. Infelizmente, muitos mediadores religiosos são também incansáveis difusores de tal perspectiva. Talvez por atuarem em regiões mais remotas e isoladas, onde, ecoando o passado, tais propriedades ainda existem, aderem quase sempre de forma pueril a este ideário dogmático passadista.

Os estudos e análises integrantes deste segundo grupo, não obstante incluírem os temas recentes e até algum jargão terminológico moderno, não se desvencilham das âncoras que os imobilizam no pântano do marxismo vulgar. Sua orientação é conceitualmente reificadora e o capítulo de Carvalho, certamente, encontra-se neste grupo e sua réplica, sob tal categorização, igualmente representa a mesma orientação que identifica os dirigentes principais do Movimento, notadamente os poucos textos que seu dirigente principal, ocasionalmente, publica.

A idealização da vida social e das lutas políticas, típica deste último grupo, é expressa de forma clara no capítulo-réplica, quando o autor insinua que a ação política do MST organiza «processos revolucionários», ou quando, no parágrafo final, sugere que «o socialismo, e os valores que intrinsecamente pressupõe, já não mais assustam ou desmobilizam amplas parcelas das classes subalternas do campo, hoje identificadas como Sem Terra». Reforçada pela referência ao uso ritualístico e doutrinário de ícones do pensamento socialista, em atividades e eventos da organização (emoldurados pela mágica palavra «mística», incorporada pelo discurso religioso que deu origem ao Movimento), esta menção é surpreendente em face da realidade vivida pelas famílias rurais na vasta maioria das regiões agrárias brasileiras. De fato, o que aqui subsiste, refletindo a orientação estratégica da organização, resume-se à adesão a uma perspectiva fundamentalista da ação política, dissociada inteiramente da realidade agrária brasileira. De forma ainda mais direta, Carvalho já argumentou, em outro texto, o sentido mais geral das mudanças propostas, como assim entende:

Seriam três os objetivos estratégicos de um projeto para o desenvolvimento rural e a democratização no campo [...]: romper com a estrutura de poder econômico, político e ideológico dos oligopólios e das oligarquias no campo [...]; desmantelar o caráter corporativo do Estado [...]; apoiar e estimular as mais diversas formas de associativismo, dando ênfase à cooperação no processo de produção e aos coletivos de agroindustrialização de maneira a superar-se o viés do privatismo, da livre iniciativa e do individualismo, como valores ideológicos da burguesia liberal [...] seriam necessárias várias medidas políticas e econômicas e antes de tudo, sem dúvida, uma concepção de mundo que negue o modo de produção capitalista como a única alternativa possível para o desenvolvimento da sociedade [...]. A luta pela terra no Brasil e o associativismo gestado nos assentamentos de reforma agrária, assim como o modelo tecnológico alternativo que vem sendo adotado por milhares de produtores rurais, são evidências de que os setores populares no campo têm uma proposta integral alternativa para a economia rural (1998: 230 e 233).

À luz dessas formulações, é deplorável que a réplica não possa ter sido beneficiária da experiência que seu autor recolheu em sua trajetória profissional, tendo sido forçado a produzir mera peça propagandística. É problemático debater, por exemplo, a afirmação que insiste que «as ações diretas pelos movimentos de massa não demandam mediações formais de representação de interesses», quando Carvalho iguala as ocupações de terra às «ações diretas». Conquanto as lutas sociais sempre requerem um vasto repertório de mediações, não podendo ater-se tão somente aos espaços de representação convencionais, mormente em sistemas políticos que carregam forte herança autoritária, e as ações diretas (quase sempre não institucionais), certamente, desempenhem um papel decisivo no sucesso do Movimento, a proposição de Carvalho, pelo menos, está mal formulada. O problema central, tantas vezes repetido neste debate, diz respeito, por um lado, ao alheamento de seus militantes e sua base social quanto às escolhas das formas de luta social, que jamais foram transparentes (ou seja, inexiste a responsabilização como legítimo mecanismo interno). Externamente, por outro lado, a oposição entre a desqualificação ideológica da «política» lato sensu (o que inclui as formas de representação existentes) e a incansável busca de ocupação dos espaços institucionais, o que cria uma inevitável sensação de aberto oportunismo político. Assim, quanto a esta proposição, caberia apenas a pergunta: no caso específico do MST, que papel caberia então à Associação Nacional de Cooperação Agrícola (ANCA), existente desde o nascimento do Movimento, exatamente para atuar como «representação de interesses»? Ou ainda, levado ao extremo que o argumento sugere, Carvalho acreditaria na possibilidade de uma sociedade organizada a partir apenas de «ações diretas», sem qualquer forma de representação? Também não se discutirá aqui, por outro lado, os números apresentados por Carvalho, extraídos dos panfletos de divulgação do MST, a maioria deles pelo menos discutíveis, embora ainda assim representando, mesmo que em menor magnitude, iniciativas que, muitas vezes, são de extraordinário mérito social (como ressalvado no capítulo original). É decisivo, nesta quadra da história brasileira, isto sim, discutir os pontos centrais de divergência, malgrado o tom arredio e disfarçado dos contrapontos apresentados. Assim, sinteticamente, parecem ser pelo menos seis os principais temas que integram a controvérsia, os três primeiros mais gerais e os demais relacionados às características internas da própria organização.

 

1. O «projeto estratégico»

Primeiramente, sobre o intitulado «projeto político» das famílias rurais, que na opinião de Carvalho (e do MST) seria identificado pelas famílias rurais sem-terra como sendo o «socialismo» (jamais explicitada a sua forma e natureza), tal proposição aproxima-se ipso facto de flagrante delírio ideológico, sendo imediata a sua refutação. De fato, não existe, em nenhuma região brasileira, aceito por qualquer agrupamento social visível (sequer nos assentamentos), a adesão, vaga que fosse, a alguma idéia de socialismo, a não ser que este fosse definido apenas na forma de valores mais solidários a serem compartilhados (deixando portanto de ser um «projeto de sociedade»). Tal verificação não implicando, certamente, que assim não poderá ser, em algum momento futuro, sendo gestados coletivos sociais que compartilhem de um ideário socialista. Mas o fato é que atualmente, neste período histórico, nada seria mais estranho ao imaginário social e político das famílias rurais, incluindo as mais pobres. Há aqui, por certo, uma óbvia confusão entre desejo e realidade, causando alguma surpresa que dirigentes da organização e seus intelectuais prefiram compreender o mundo rural através de viseiras mistificadoras, mas não a partir do concreto vivido. Esta assintonia entre realidade e o ilusionismo verbal também é evidente na proposta submetida ao MST, igualmente de Carvalho, de transformar os assentamentos rurais sob sua influência em «comunidades de resistência na terra», nos quais, em sua formulação, as famílias rurais deverão conformar-se com seu estado de pobreza, porque «as possibilidades de acumulação ficariam adiadas, seja porque o modelo econômico vigente já está negando as condições para tal, seja porque a prioridade passa a ser o resistir, para mudar o mais geral da sociedade e não o particular de cada um: uma oção política» (Carvalho, 2000: 3).

 

2. O desenvolvimento agrário e sua interpretação

Rejeitada tal transformação e ruptura sócio-política, por sua impossibilidade objetiva em um período de tempo médio previsível, decorre um segundo aspecto, igualmente estrutural e macrosocial, neste caso informado pela lógica da sociedade capitalista sob a qual vivemos. Como interpretar o desenvolvimento agrário recente, para além do jargão que é apontado no capítulo-réplica? Embora tema de óbvia controvérsia, talvez seja possível perceber algumas mudanças, nos anos mais recentes, as quais são balizadoras do desenvolvimento agrário e, ainda mais, constituintes, de fato, do espaço possível para ações na direção do desenvolvimento rural no Brasil. Em grandes linhas, tais mudanças são apresentadas a seguir, em seção específica.

2.1 Pequeno bosquejo sobre o desenvolvimento agrário brasileiro recente e suas características principais

Os anos 1990 abriram um capítulo novo na história econômica e no desenvolvimento social brasileiro, cujos determinantes mais gerais são ainda objeto de aceso e intenso debate mas, certamente, remetem-se às reorientações macroeconômicas, tecnológicas e políticas em curso no mundo (normalmente, sob o rótulo, correto ou não, da noção de «globalização»). E o campo brasileiro, sob o impacto dessas mudanças? Neste caso, em especial em suas regiões agrárias mais desenvolvidas e subordinadas mais rigidamente aos circuitos econômicos e financeiros, principalmente aquelas nascidas do intenso processo de modernização antes citado, talvez seja possível sintetizar algumas das principais transformações que vem sendo observadas, nos últimos anos e, em conseqüência, esboçar alguns dos desafios e impasses do presente. Do ponto de vista tecnológico, por exemplo, o que parece ser atualmente relevante é a verificação de um patamar da produção agropecuária alcançado. Por este ângulo, o mesmo parece ser inteiramente «satisfatório» à demanda interna, pois os intensos processos de urbanização dos anos 1960 e 70, embora arrefecidos nos anos recentes, parecem ter estabilizado a procura de alimentos e matérias-primas. Assim, a exigência agregada de produção agrícola parece hoje estar inteiramente determinada pelo crescimento demográfico e por um padrão de distribuição de renda que, por sua vez, não parece ser passível de alterações expressivas em prazo relativamente curto. Bastaria, por exemplo, associar tal fator à multiplicação de assentamentos rurais no Brasil e à necessidade das famílias rurais assentadas de vender seus eventuais excedentes, neste contexto de empobrecimento da agricultura e de queda dos preços pagos, para perceber os crescentes limites à viabilização econômica dessas novas áreas.

Em conseqüência, é pelo ângulo econômico-comercial que as transformações mais marcantes estão sendo materializadas, acarretando impactos significativos na atividade agropecuária. A abertura comercial (e a constituição do Mercosul) vem modificando fortemente as regiões produtivas, especialmente no Sul do país, afetando em particular os agricultores familiares mais pobres. No geral despreparados para o confronto com ambientes comerciais mais concorrenciais, os agricultores têm encontrado dificuldades crescentes para manter suas atividades e assegurar receitas que garantam a continuidade de seus empreendimentos. A intensificação das trocas comerciais tem produzido um barateamento geral dos preços dos produtos agrícolas, reduzindo a renda rural e generalizando uma situação crítica nos ambientes produtivos da agricultura do país, o que afeta a dinâmica econômica dos municípios e regiões dependentes das atividades rurais. A partir de 1994, com a implantação do Plano Real, que sobrevalorizou o câmbio (pelo menos até o início de 1999), também os setores agroexportadores foram ainda mais penalizados, por esta dificuldade adicional.

Quanto às ocupações rurais — e esta tem sido outra modificação importante, experimentada especialmente a partir da década de 1990 —, são de duas ordens as mudanças recentes. Primeiramente, uma situação relativamente nova em que se atingiu, fruto dos processos antes mencionados, um aparente teto de demanda de trabalho (de base agrícola), que somente tem sido ampliado quando as estatísticas são agregados nacionais, pois novas regiões de produção (no Centro-Oeste e no Norte) são lentamente incorporadas ao sistema produtivo agrícola nacional. Nas regiões agrárias consolidadas e tradicionais (como o Nordeste rural, em grande parte, ou ainda o Sul), no entanto, este esgotamento do padrão do emprego agrícola é visível. Em diversas regiões do interior, a redução das formas de ocupação rural tem estimulado, por certo, a adesão ao MST, pois constituiu-se uma «população sobrante», que parece não poder recorrer mais, nem às cidades (onde as chances de emprego também se reduziram) e nem às regiões de fronteira livre, no Norte, em vista da apropriação privada dessas terras, em larga medida, impedindo o fácil acesso à terra em tais regiões.

O segundo aspecto importante a salientar em relação à nova estrutura do trabalho rural não é ainda suficientemente conhecido, pois sua investigação é recente. Refere-se à aparente ampliação das possibilidades de ocupação em áreas rurais, mas em atividades não-agrícolas, cujo crescimento tem sido expressivo nos anos recentes. Neste sentido, conforme já enfatizado por diversos estudiosos, o meio rural brasileiro deixou de ser principalmente agrícola e nem mais o comportamento do mercado de trabalho rural está exclusivamente associado ao calendários das atividades agrícolas, pois desenvolve-se crescentemente um conjunto de atividades não-agrícolas que parece determinar, cada vez mais, a dinâmica das ocupações em áreas rurais do país.

Quanto às mudanças políticas, na mesma década, vêm obedecendo a três determinantes principais. Primeiramente, e também como decorrência das modificações produtivas dos últimos trinta anos, o relativo enfraquecimento das organizações rurais mais tradicionais, tanto dos grandes proprietários territoriais como aquelas representativas dos interesses dos pequenos produtores, englobados usualmente pelo sindicalismo rural. O resultado tem sido a proliferação de novas formas de organização no meio rural brasileiro, desde a emergência de movimentos sociais, que se institucionalizaram eventualmente em organizações (como é o caso do MST), à multitude de pequenas formas organizativas que tem se expandido no âmbito local e/ou regional passando, por certo, pelas reorientações das representações dos grandes proprietários de terras e empresários rurais. Destaca-se, em relação a estas últimas, o virtual desaparecimento da organização patronal que, em certo período, desempenhou o papel de contraponto dos latifundiários ao emergente MST. A União Democrática Ruralista (UDR), formada em 1986, deixou de existir posteriormente e, sendo reaberta no final dos anos 1990, é apenas pálida imagem da organização de grandes proprietários de terra que, nos seus anos iniciais, afrontou o tema da reforma agrária proposto pelo primeiro governo civil após o ciclo militar e realizou um grande número de ações confrontacionais destinadas a eliminar o Movimento e as organizações populares do campo. O virtual desaparecimento da UDR é, igualmente, um claro sinal do enfraquecimento generalizado da agricultura comercial tradicional e do desatrelamento de seus inúmeros benefícios financeiros antes formalizados pelas políticas públicas. Quase sempre, as análises atualmente realizadas têm ignorado este fato inédito em nossa história agrária, qual seja, o enfraquecimento sem precedentes de uma classe social que, desde sempre, dominava o campo brasileiro de forma virtualmente absoluta, assenhorando-se, muitas vezes, das esferas públicas e, em conseqüência, substituindo o próprio Estado.

Ainda no campo da «política em geral», é também relevante citar dois outros aspectos de notável significação a partir dos anos 1990: a descentralização política inaugurada pela promulgação da Constituição Federal, em 1988, é um desses fatos expressivos, pois esta mudança tem remetido aos municípios uma crescente parcela de responsabilidades, de ordens variadas, a maior parte das vezes, no entanto, sem contrapartidas orçamentárias. Se este processo de redistribuição de responsabilidades formais prosseguir e se consolidar, como parece ser a tendência mais geral, o município, cada vez mais, passará a ser o ambiente par excellence da atuação dos diferentes atores sociais ligados ao mundo rural. Esta é uma das razões centrais para explicar o (re)surgimento da demanda social de «desenvolvimento rural» em tantas regiões agrárias, rapidamente incorporada à agenda das organizações de trabalhadores rurais e pequenos produtores (escapando, portanto, à quase sempre inacessível formulação federal e introduzindo as formas de ação e disputas sociais para um ambiente onde são maiores as probabilidades de intervenção e influência). Ao privilegiar a ação nacional, em especial, e a homogeneidade de sua agenda em todo o território, algumas organizações do campo (como o MST) encontram situações de óbvios desacertos políticos e fragilização de suas ações. Em vista da imensa diversidade econômico-estrutural e social existente no campo brasileiro (acentuada pelo processo de modernização seletivo dos anos 1970), políticas diferenciadas, inclusive em relação à reforma agrária, representam atualmente uma relativa obviedade, embora ainda ignorada pela maior parte das organizações rurais. É justo que seja ressaltado, entretanto, como Carvalho aponta com propriedade, que o Movimento tem tentado estimular diferentes formas de gestão nos assentamentos sob sua influência, não se fixando mais exclusivamente na proposta original das cooperativas coletivizadas, mas reconhecendo outras possibilidades.

Assim, o outro e terceiro fator de ordem política a ser ainda citado refere-se à recente aceitação governamental da noção de «política diferenciada» para o mundo rural, com a expressão «agricultura familiar» ganhando, na presente década, um estatuto político-institucional antes inexistente. Independentemente dos problemas de natureza teórico-conceitual associados a esta última expressão, o fato é que, pela primeira vez na história do Brasil, o mundo rural passou a ser visto de forma segmentada, com os agentes sociais rurais não mais universalizados na genérica categoria de «produtores». A introdução da noção de agricultura familiar, a indicar um conjunto social de interesses próprios, padrões de sociabilidade diferenciados e um modus operandi específico no mundo rural, é provavelmente a mais extraordinária mudança político-institucional nos anos recentes, pois vem oportunizando novas e promissoras possibilidades de ação política e de intervenção no campo brasileiro, inclusive novos espaços de demanda social e de estruturação de inovadoras formas organizacionais.

 

3. As políticas públicas e a deslegitimação do Estado

O terceiro tema central de debate sobre o futuro do mundo rural, ainda mais geral, refere-se ao Estado. No contexto de mudanças antes apontado, passa a ser essencial uma nova relação dos movimentos sociais rurais (incluindo, é claro, o MST) e o Estado, restando, novamente, a surpresa da deslegitimação retórica do Estado, repetida discursivamente em todos os momentos, não obstante a fácil e rápida integração sistêmica das práticas do Movimento, em todos os estados e regiões onde atua. Segundo Carvalho, impávido neste argumento pelo menos ilógico, não há aqui nenhuma contradição. Segundo o autor, o MST optou por não «aguardar pela ação do Estado para a realização da reforma agrária no Brasil. Portanto, emancipava-se do Estado», quando escolheu as ocupações de terra como sua arma de pressão principal. Mas, acrescenta, «sem abdicar da disputa pelos recursos e serviços públicos». Se não é mero artifício, mas imaginando existir seriedade no argumento, caberia talvez perguntar quem legitima os tais «recursos e serviços públicos», seriam outras formas de Estado, abrigadas em estruturas normativas supra-nacionais? Se as ocupações de terra (uma arma de luta social eficazmente utilizada pelo MST) realmente aceleraram a formação de novos assentamentos, há algum assentamento rural, no Brasil, que não tenha tido sua regularização outorgada pelo Estado? Portanto, voltando ao tema central: qual a lógica operativa de uma organização que ideologiza e reduz ao extremo as suas práticas políticas, a formação de seus militantes, sua agenda discursiva e suas formas de luta social, enquanto celeremente busca a integração sistêmica, abrigada no mesmo Estado? É forçoso admitir que, sem tal coerência entre o itinerário discursivo e os resultados do repertório de ações coletivas, o risco será, logicamente, avaliar as práticas políticas do Movimento como um embuste ou, ainda mais grave, como mistificadora manipulação das famílias rurais mais pobres.

 

4. O controle social sobre os assentados

À luz do quadro de mudanças e também os desacertos políticos, antes apontados, os demais aspectos essenciais, completando o sexteto de temas centrais que atualmente contrapõe o MST ao objetivo do desenvolvimento rural, da reforma agrária e das relações com as demais organizações do campo, remetem-se à própria organização e a suas escolhas estratégicas, que foi o objeto primordial de análise do capítulo original. É por esta razão que, quanto a estes temas, o capítulo-réplica assumiu resultados insatisfatórios e, realmente, optou por não discuti-los. Desta forma, o quarto tema refere-se ao controle social (e político) dos assentados nas áreas sob influência e hegemonia do MST. Em vista dos argumentos antes apresentados, cabe apenas repetir que esta presença marcante nos assentamentos tem sido utilizada, em especial, para recrutar quadros, normalmente jovens assentados, para as atividades de formação e, posteriormente, para as ações externas realizadas. Permanece assim apenas a pergunta mais geral: quando a organização permitirá, em «seus» assentamentos, que os próprios assentados decidam sobre suas formas de cooperação (se não preferirem a ocupação familiar de suas parcelas específicas), como melhor entenderem (ou seja, respeitando-se sua autonomia) e, em particular, quando deixará de utilizar fundos públicos para exercer diferentes formas de controle social sobre as famílias instaladas nestas novas áreas? Ou seria inaceitável, como alguns julgam, submeter tal pergunta ao Movimento, quando este atua no espaço público da política e, adicionalmente, sustenta-se majoritariamente sobre fundos igualmente públicos?

 

5. Alianças e relações com outras organizações

Considerando-se o conjunto de mudanças recentes, antes apontadas, é curioso que o Movimento se julgue portador de força política suficiente para se contrapor às transformações macrosociais operadas. Parece também aqui que se encontra mais uma das decisões que certamente intrigará futuros observadores, quando analisarem esses anos. Verificarão uma conjuntura que talvez tenha sido, comparativamente, a mais favorável à implementação de mudanças significativas para os mais pobres do campo. Primeiramente porque os grandes proprietários territoriais enfraqueceram-se, como nunca antes ocorrido em nossa história agrária, vitimados pela queda constante dos preços dos produtos agrícolas (e de suas terras) e igualmente encurralados pela crescente concorrência nos diversos mercados onde atuam. Nos mesmos anos, o crescimento da força das organizações rurais representativas dos setores sociais mais pobres do campo (inclusive o MST, como tem sido sempre destacado) e, finalmente, uma abertura inédita de canais e de espaços reais de implementação de políticas públicas, no âmbito do governo federal, também sem precedentes em nossa história. Por que não foi aproveitada esta oportunidade histórica, talvez única? A resposta não nos remete apenas às características internas da organização e suas escolhas políticas e organizacionais, mas à permanente recusa de construir qualquer tipo de aliança (ao contrário do apregoado por Carvalho, que corajosamente, refutando todos os fatos conhecidos, julga que o Movimento age «solidariamente com outros movimentos e organizações sociais»), pois a noção de aliança que o MST vem defendendo ao longo dos anos tem sido sinônimo de dominação e não de compartilhamento, respeitando-se as opções e escolhas das demais organizações. Desde meados da década de 1980, adentrando a «segunda fase» referida no artigo original, que o MST recusa-se, categoricamente, a qualquer aliança política, definida como tal, com outras organizações populares do campo, preferindo, pelo contrário, combatê-las e, se possível, dominá-las (para tanto, criando seu departamento sindical, o chamado Movimento dos Pequenos Agricultores, além de fagocitar outros movimentos sociais rurais). Permaneceria, em decorrência, a pergunta-síntese: em ambientes agrários crescentemente complexos e heterogêneos, o MST julga que poderá construir processos de desenvolvimento rural e de emancipação política dos pobres do campo fundado no monopólio organizativo?

 

6. Por que não apostar na democracia?

Este é o tema central e decisivo, de fato, quem sabe estendendo-se às demais organizações populares e aos partidos e movimentos políticos que buscam criar alternativas societárias, em face das grandes transformações que marcam a humanidade, na entrada do novo milênio. Desafortunadamente, parece que aqui se constrói, como no poema, uma falsa linha do horizonte para a tantos inspirar, embora a prática social continue, isto sim, confinada à inquietante escuridão das vielas estreitas e sombrias. Por desprezar, continuadamente, a idéia de democracia e seus correlatos, como a constante materialização de esferas públicas, avaliados como uma «herança burguesa» da modernidade, parcelas do pensamento socialista (e particularmente a tradição marxista) não tem percebido as incessantes reformulações que tal noção tem recebido, seja pelo impulso teórico do pensamento mais progressista ou, então (e especialmente) forçado pelas circunstâncias históricas do período recente. Não se abrindo ao debate político, mas aferrando-se ao marxismo vulgar, a organização parece, de fato, desconhecer os esforços teóricos, especialmente do chamado «marxismo ocidental», de reconstruir a base democrática do socialismo. A «crise da política» e suas instituições tem animado, exatamente, a reconstrução do próprio significado e o sentido potencialmente transformador da democracia, nem sempre tal mudança sendo percebida pelas maioria das organizações populares ou parte dos intelectuais socialistas. A noção de democracia deste novo século, muito provavelmente, ainda sofrerá outras sensíveis e rápidas mudanças, inclusive (ou principalmente) pela ação virtuosa de diversas práticas sociais e formas de luta política de organizações populares. Uma dessas tantas características, que rompe com a feição normativa e procedimentalista da noção de democracia herdada da modernidade refere-se, exatamente, à incorporação do conflito como elemento constitutivo da política, deixando de ser uma anomalia a ser naturalmente combatida. As ocupações de terra, por exemplo, nesta nova concepção democrática, mesmo que mantendo-se eventualmente ilegais, passariam a ser politicamente recebidas como legítimas formas de pressão de grupos sociais desigualmente situados na estrutura social. Ou seja, em sociedades desiguais, as armas de luta social passariam a ser incorporadas, sob uma perspectiva revisada da democracia, como formas de pressão legítimas usadas para combater a desigualdade social e as formas de exclusão política. Esta é apenas uma sucinta ilustração da complexa e imensa tarefa que tantos atores sociais modernos (entre os quais o MST) atualmente têm à sua frente, neste caso específico ecoando o que Boaventura de Sousa Santos (2001) intitulou de elaboração de uma «teoria democrática da ilegalidade não violenta». Se ignorado o desafio de disputar a reconstrução do formato democrático que moldará os arcabouços normativos ora sendo arquitetados, as classes subalternizadas correrão o risco, comportando-se como equivocados coadjuvantes, repetindo outras encruzilhadas históricas cruciais, de apenas observarem as novas roupagens da continuidade da ordem social, ou ao espetáculo da «mudança da não-mudança», parafraseando a conhecida formulação. As novas avenidas societárias, abertas nas últimas três ou quatro décadas pelas mudanças operadas pela globalização, que tantos desafios e dilemas têm criado à emancipação social (em seu sentido amplo), não podem ser percorridas voltando-se ao passado, como muitas vezes parecem ser os itinerários principais da organização dos sem-terra no Brasil. A democracia, não como uma estruturação sócio-política derivada meramente de um receituário procedimentalista, como apregoado pela ciência política liberal, mas reconceituada, elevando-a à forma política transformadora e de real significação emancipatória, esta sim parece ser a aposta de um novo mundo, onde prevaleçam os valores maiores da convivência humana.

 

Bibliografia

 

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