Consenso, conformismo e democracia
Publicado no Diário de Coimbra em 19 de Março de 2008
No período do PREC fazia-me uma certa confusão quando
ouvia gritar "unidade, unidade, unidade!", perante qualquer voz
dissonante que se fizesse ouvir em comícios, manifestações politicas ou
reuniões sindicais, por exemplo. Vivemos entretanto quase 34 anos de
aprendizagem democrática. Porém, dá por vezes a sensação de que
progredimos muito pouco nessa matéria. A pretexto deste ou daquele
protagonismo, deste ou daquele candidato, de tempos a temos lá vêm os
apelos ao consenso e à unidade. Vem por isso a propósito perguntar,
afinal, o que é o consenso? Qual a diferença entre consenso e
conformismo? É o consenso importante para a democracia?
Serge
Moscovici e Willem Doise, num livro traduzido em português (Dissensões
e Consenso, 1997), ajudam a esclarecer alguma confusão instalada a este
respeito. Há dois tipos essenciais de funcionamento da dinâmica de
grupos, ou seja, duas formas de participação distintas: a participação
consensual e a participação normalizada. Ora, o que acontece é que
muitas vezes as duas coisas se confundem. Antes de mais, importa
esclarecer que, segundo esta visão da psicologia social, o consenso não
é o resultado mas sim o processo. Uma decisão por consenso implica que
os diferentes indivíduos nela envolvidos participaram na discussão
colectiva em pé de igualdade uns com os outros. Ao longo do processo de
diálogo – no qual os diferentes argumentos e recursos de conhecimento
dão lugar a uma luta argumentativa – os intervenientes vão alterando as
suas posições iniciais, guiados pelos princípios da racionalidade e da
aceitação de que a opinião contrária é tão válida como a do próprio, o
que permite que se mude de opinião ou se clarifiquem posições em face
dos outros contra-argumentos. Assim, o resultado final leva a que cada
um se identifique e se reveja nas conclusões alcançadas pelo colectivo,
mas todos alteraram de algum modo as suas opiniões de partida. A
participação consensual pressupõe, portanto, a acção de indivíduos
livres e iguais, segundo os princípios democráticos e da ética
republicana na construção da esfera pública.
Coisa bem diferente é
a chamada participação normalizada. Nesta, os participantes estão
inseridos num dado sistema de relações sociais, no qual ocupam
diferentes estatutos e competências, que são do conhecimento dos
participantes (ainda que de forma implícita ou intuitiva), deixando-se
em geral condicionar nas suas tomadas de posição – manifestações de
acordo, de desacordo ou apenas silêncios e aceitação – perante as
posições de poder ou o estatuto que outros ocupam no mesmo espaço
social. Porém, as estruturas normativas não o são apenas por serem
impostas de cima. São os próprios indivíduos que, ao incorporarem, pelo
menos em parte, as normas do sistema ou sub-sistema onde se inserem
(que pode ser um grupo ou uma estrutura partidária, por exemplo),
estruturam esquemas mentais e normativos (representações sociais), que
por sua vez determinam os seus próprios comportamentos e atitudes. O
“actor” (mesmo individual) resulta sempre da sua relação com os valores
sociais e culturais que o cercam. Trata-se de um processo dinâmico de
classificação através do qual cada um é levado a projectar o pensamento
dos outros, ficando assim as suas acções e respostas largamente
condicionadas por esse jogo de expectativas. Um “jogo social” em que se
misturam o lado consciente e reflexivo com o lado sub-consciente e
afectivo. Mas, mesmo admitindo que todos participamos nesse jogo, a
capacidade de “ir contra a corrente” ou a probabilidade de adaptação à
posição maioritária (ou dominante) varia sempre em função do poder
relativo de cada actor no seio do grupo. Assim, o resultado alcançado
não deriva da participação alargada, mas da aceitação e do conformismo
de uma parte (maior ou menor) dos membros do grupo. Sem esquecer que,
regra geral, o indivíduo procura a aceitação por parte dos outros e só
excepcionalmente prefere a divergência, pois, esta comporta maiores
riscos face às necessidades de integração e segurança.
É claro que
estes dois modelos da dinâmica de grupos se encontram geralmente
misturados. Mas é importante pensar neles para percebermos como a
maioria das nossas estruturas organizadas – instituições, associações,
empresas, sindicatos e partidos – tendem a confundir, deliberadamente
ou não, o consenso com o conformismo. Alcançar um verdadeiro consenso
pressupõe, portanto, a existência de diversidade de opiniões e de
condições para que elas se exprimam abertamente. Tais condições são um
requisito para promover a cultura democrática das organizações e da
sociedade. Mas, infelizmente, nos tempos que correm, a mentalidade
instalada – sobretudo nas estruturas dirigentes – prefere confundir
democracia com seguidismo (ou caciquismo) e divergência com deslealdade
ou traição. E assim o processo de participação democrática (consensual)
é pervertido em favor de aparentes unidades e falsos unanimismos.
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