Pelas
ruas da democracia
Publicado no Público
em 3 de Abril de 2008
As recentes manifestações públicas serviram de
pretexto a alguns cronistas de serviço para destilarem todo o seu ódio
ao chamado poder da "rua", que é como quem diz, o seu assumido desprezo
pelo povo. O texto de Rui Ramos ("Pelas ruas da amargura", Público,
12/03/2008; e em parte também o de Vasco Pulido Valente, 22/03/08),
ostentando o mais evidente elitismo "snob", protesta contra a
"multidão uniforme", o "espectáculo fabricado", a "negação do espaço
público democrático" e caricatura as acções de luta como uma simples
"ocupação temporária entre dois prédios", onde não há lugar para a
razão, etc, etc. Esta visão redutora e demagógica merece, pois, ser
contestada.
Em democracia, as manifestações constituem meios –
legítimos – de dar vazão ao descontentamento colectivo perante
injustiças de índole diversa. Tal como as greves, são um último
recurso, ou seja, são a continuação da negociação "por outros meios".
Exprimem a indignação dos cidadãos e o pulsar da sociedade perante o
poder político. Constituem momentos de emergência de novos actores e
protagonistas do conflito social de que se alimenta o sistema
democrático. Imagine-se o que seria da nossa democracia se tudo fosse
deixado às instituições. Se as mudanças e reformas se fizessem apenas
através da actividade legislativa e dos actores políticos
convencionais, num mar de cidadãos apáticos, provavelmente ainda
estaríamos na idade média. E quando se trata de uma sociedade com
flagrantes défices de desenvolvimento e de cidadania – como a
portuguesa –, o que é ridículo é ridicularizar as manifestações.
A
rua pode ser o lugar de nascimento e também da morte da democracia.
Como sabemos, também os movimentos nazi e fascista, por exemplo,
passaram por fortes manifestações de massas. Mas por isso mesmo é que,
antes de se tecerem juízos quanto à "rua" e às manifestações em
abstracto, é conveniente sabermos de que tipo de acções colectivas
estamos a falar. É que, por muito que se queira confundir as coisas,
continua a haver uma diferença fundamental entre os protestos que
injectam mais democracia à democracia e os que apostam em combatê-la.
Entre os movimentos progressistas e os de carácter anti-democrático ou
– para usar uma palavra fora de moda – "reaccionários", persistem
diferenças e projectos políticos marcados pelo antagonismo.
Percebe-se
bem de que lado está o autor do citado texto. Além disso, é demagógico
colocar no mesmo saco as lutas de trabalhadores e sindicatos e as
iniciativas políticas do governo ou do partido que o apoia. Por outro
lado, clamar contra a rua em geral é ignorar o significado histórico de
movimentos sociais fundadores do próprio modelo democrático (a começar
pelo movimento operário). O que, vindo de um historiador, é
particularmente grave. Será preciso lembrar que antes de existirem
instituições existem movimentos? E que até a mudança institucional
passa por eles?
Claro que numa manifestação ou num comício pode
criar-se uma identificação uniforme entre a multidão e o seu líder,
susceptível de manipulação (e onde é que ela não existe?...). Porém, o
que se perde em racionalidade individual ganha-se em identidade
colectiva, em solidariedade e em capacidade de agir para a mudança. É
na acção colectiva que se forjam os sentimentos de comunhão e de
partilha sem os quais o espaço público e a própria política seriam
apenas conceitos inócuos. De resto, as democracias parlamentares e as
reformas sociais dos últimos dois séculos sempre resultaram da
permanente tensão entre as instituições e a mobilização de rua. Acresce
que, no caso português, se podemos falar do 25 de Abril como uma
revolução é porque aquela "ocupação temporária de um espaço entre dois
prédios" (sic) se espalhou a muitas ruas e a muitos prédios e cidades
por esse país fora, obrigando o poder a ouvir as vozes da rua. Foi a
rua que garantiu a liberdade que hoje temos, inclusive para podermos
falar contra a "rua".
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