Ainda há esquerda dentro das «esquerdas»
Publicado no Jornal Público em 22 de Julho de 2008
Os
sinais de crescimento eleitoral dos partidos à esquerda do PS e a
provável perda da maioria absoluta pelo actual partido no poder
requerem uma reflexão séria sobre "a esquerda" e os seus desafios. Se o
proclamado "socialismo moderno" de Sócrates vier em breve a
desvanecer-se no ar, uma mudança paradigmática na esquerda terá de
ocorrer se não quisermos hipotecar em definitivo o futuro da
democracia.
Mas, ainda que a linguagem canónica de uma certa
esquerda esteja esgotada, há esquerda dentro das "esquerdas" (e dentro
dos partidos de esquerda). Esgotaram-se os velhos modelos e certezas,
mas persistem alguns núcleos de irreverência, espaços de inquietação e
de inconformismo capazes de suscitar novas promessas e abrir caminhos
alternativos. No plano partidário, o que resta da ideologia e da
própria ética de esquerda (republicana, socialista, comunista, etc.)
debate-se hoje com tremendas dificuldades perante os excessos de
ortodoxia, de aparelhismo e dogmatismo. Por um lado, um possível
revigoramento da esquerda não pode ser indiferente às heranças e marcas
doutrinárias dos actuais partidos (de esquerda), desde a
social-democracia (PS) ao comunismo (PC), passando pelo BE (com as suas
diversas tradições ideológicas) e pelo movimento sindical. Por outro
lado, os valores e posturas de esquerda perpassam, de um modo ou de
outro, pelos interstícios desse leque de referências partidárias, ou
seja, como sempre acontece, a pulsão criativa passa ao lado dos
"núcleos duros" instalados. É nos lugares de fronteira e entre as
correntes minoritárias que nascem as dinâmicas de renovação. A mudança
nasce das margens para o centro e não ao contrário.
Renovar a esquerda significa, portanto, renovar os partidos e
organizações de esquerda. Concretizando: a) a tradição republicada e
socialista do PS, apesar de oprimida e marginalizada hoje no partido –
quando não a sofrer uma fase de auto censura induzida por um clima de
medos e formas mais ou menos subtis de coacção –, não desapareceu. Há
vozes que se ouvem a espaços, há silêncios que se acumulam, há
sentimentos de indignação calados pela necessidade do momento. Mas tudo
isto pode mudar, a curto ou médio prazo, em especial se se acentuarem
as tendências de quebra eleitoral do PS; b) as sensibilidades
renovadoras do PC que se demarcaram da ortodoxia (e que se curaram do
trauma soviético) sem abdicar de uma procura utópica alternativa, no
respeito pelos valores democráticos, podem dar um contributo
inestimável para abrir novos caminhos de esquerda; c) o campo do
sindicalismo, que tem resistido com vigor à cultura anti-sindical e
combatido com bons argumentos a nova legislação laboral, irá sem dúvida
protagonizar novas acções, evidenciando a centralidade do trabalho para
uma sociedade coesa e sustentável. Os líderes sindicais ou pelo menos
alguns deles são referências incontornáveis de uma esquerda que
recupere e actualize a perspectiva humanista e emancipatória do
trabalho e a defesa do novo proletariado emergente; d) e finalmente, o
Bloco de Esquerda cuja cultura de contra-poder aliada a uma expectativa
de crescimento aconselha a uma redefinição identitária que supere os
velhos dogmas e estimule alternativas (viáveis em democracia),
permitindo maior sintonia de linguagens com as restantes correntes de
esquerda. Além disso, a ligação do BE a novos movimentos sociais e
sectores associativos mais jovens constituem um enriquecimento
acrescido para uma esquerda renovada.
Sem a confluência de contributos oriundos de cada uma destas áreas a
busca de novos caminhos de esquerda será improvável. É, pois,
necessário discutir em conjunto, embora sem pôr em causa a identidade
própria de cada corrente. Só a partir da diversidade se pode fortalecer
a cultura democrática e construir visões progressistas do país que
respondam às perplexidades políticas da actualidade. A esquerda é
plural e isso tem de ser abertamente assumido. Mas só com alianças
alargadas se podem mobilizar vontades que ajudem a virar esta maré. A
maré que conseguiu calar muitas vozes dissonantes do PS (não todas,
felizmente!) ou reverte-las em simples vozes de meninos de coro. A maré
do dito "socialismo moderno", que não se cansa de emitir repetidos
sinais reveladores de como a democracia participativa é pouco
conveniente e o debate alargado aos cidadãos, trabalhadores,
sindicalistas, professores, etc., algo dispensável. |