O sindicalismo português: um breve balanço Publicado na Revista de Opinião Socialista, Julho de 2008
A
identidade de um movimento ou de uma instituição é sempre feita a
partir das experiências do passado, bem como da memória e da narrativa
dessas experiências. Assim, para compreendermos os problemas e
contradições do sindicalismo português, importa começar por situar esse
passado e essas experiências.
O ponto de partida para esta
breve reflexão liga-se a um tema que tem estado nos últimos tempos na
ordem do dia. Procura responder à interrogação que muitos portugueses
colocam hoje, que é a de saber por que é tão difícil alcançar um pacto
social alargado em Portugal em torno dos problemas laborais? Por que é
tão difícil promover acordos “tripartidos” que envolvam todos os
parceiros e sejam subscritos pelas duas principais confederações
sindicais (CGTP e UGT) e não apenas por uma delas?
Origens Embora
a actividade sindical tenha raízes fortes no movimento operário, tal
não significa que o sindicalismo se assuma, todo ele, na defesa dessa
herança. Desde sempre que as organizações sindicais foram palco de
múltiplas influências tais como as do velho sindicalismo corporativo da
sociedade pré-industrial (o mutualismo, o socorrismo), a doutrina
social da igreja, ou as novas correntes revolucionárias, anarquistas,
reformistas e internacionalistas promovidas pelas internacionais
operárias de finais do século XIX. Além disso, como assinalaram alguns
teóricos do movimento sindical (o casal S. e B. Webb), há que referir a
primazia dedicada por muitos sindicatos às vertentes economicista,
reivindicativa e funcional – o chamado “sindicalismo de mercado” –,
dando lugar às modalidades mais corporativas e institucionais do
sindicalismo moderno, que ainda hoje prevalecem em muitos países (e que
em Portugal possui maior expressão na UGT).
Para
compreendermos o sindicalismo português importa considerar as suas
origens e a importância das doutrinas e ideologias mais influentes no
seu seio. É preciso recordar o desmantelamento do sindicalismo
autónomo do período republicano – que desde finais do século XIX até à
queda da República foi bastante vigoroso no nosso país – com a
implantação da ditadura, em 1926, então substituído por sindicatos
corporativos controlados pelo regime do Estado Novo. E merece
particular realce o papel do Partido Comunista desde os anos 30 e
durante todo o período salazarista. O PCP iniciou nessa altura o seu
trabalho clandestino e começou a afirmar-se junto da classe
trabalhadora como a única força organizada capaz de defender os seus
interesses e resistir ao fascismo. A sua crescente influência viria
mais tarde a dar frutos. Já nos finais da década de 1960, perante a
relativa abertura permitida pelo marcelismo e na sequência de alguns
movimentos grevistas, os sindicatos ganharam autonomia e dinamismo. Foi
nesse contexto que, no ano de 1970, teve lugar a criação da CGTP (então
apenas chamada Intersindical).
O pós-25 de Abril Mas
foi sobretudo após o 25 de Abril, no contexto revolucionário que então
se viveu no nosso país, que o sindicalismo se expandiu e consolidou. A
escassa pluralidade interna foi progressivamente reduzida. O I
Congresso da Intersindical, que ocorreu em 1975, coincidiu com a
aprovação da famosa lei da “unicidade sindical”, que reconhecia a CGTP
como única estrutura federativa, representativa do conjunto dos
sindicatos portugueses. Surgiu aí a grande clivagem do movimento
sindical, dando lugar ao movimento “carta aberta”, contra a unicidade e
em defesa da liberdade e do pluralismo sindical. Revogada essa lei (em
1976), a UGT seria fundada dois anos mais tarde.
É claro que
nestas lutas pontificaram as fortes clivagens político-ideológicas,
tendo por detrás as disputas partidárias da época. De um lado, o
sindicalismo de base operária da CGTP/ Intersindical, dominado pelo
discurso revolucionário e em larga medida instrumentalizado pelo PCP
(apesar de se manterem no seu seio outras correntes minoritárias). De
outro lado a UGT, apoiada desde a sua génese pelo Partido Socialista,
em aliança com o então PPD – Partido Popular Democrático (hoje PSD) –,
bem mais predisposta ao diálogo e negociação com o poder, já que, desde
sempre, esteve mais próxima do governo e a estratégia política da sua
criação se destinava em primeira mão a travar o PCP .
Assim,
quanto à “autonomia” do movimento sindical, pode dizer-se que, por um
lado, nenhuma das centrais possui verdadeira autonomia, pois ambas
foram largamente criadas e dinamizadas pela actividade partidária. Por
outro lado, ambas são autónomas do ponto de vista formal. Porque são
criadas por sindicatos livres, porque as suas estruturas dirigentes são
eleitas em congresso, porque a democracia se funda na existência de
partidos e porque, naturalmente, os trabalhadores são livres de terem
uma filiação partidária.
Constata-se, portanto, que a divisão no
seio do sindicalismo português tem sido uma constante. Se exceptuarmos
esse momento singular de celebração unânime da liberdade – que foi o 1º
de Maio de 1974 – as duas centrais sindicais construíram a sua
identidade em boa medida por oposição e demarcação uma em relação à
outra. Ao longo do tempo essa rivalidade foi-se tornando inevitável,
pois ela funciona como alimento da própria construção identitária. Cada
uma afirma-se na base de um discurso de diabolização da sua rival. Uma
considera que a outra está ao serviço do patronato, que aceita as
propostas do governo em troca de simples vantagens materiais e que não
tem carácter de movimento; a outra considera que a rival é
conservadora, que tem um discurso dogmático e ultrapassado, que obedece
à estratégia política de um partido e que está sempre contra.
Duas visões contrárias Um
ponto decisivo que é necessário realçar é que essa divisão corresponde
não apenas a distintos interesses e ideologias mas é reflexo de duas
visões contrárias do mundo e da vida social. E essas duas concepções
encontram suporte na sociedade, expressão de antagonismos entre
subjectividades colectivas e individuais profundamente instaladas. A
realidade é a mesma, só que, é perspectivada sob visões completamente
díspares.
A primeira perspectiva diz-nos que os trabalhadores
são indivíduos e, como indivíduos, competem uns com os outros pelo
melhor salário, pelas oportunidades de carreira e pelo reconhecimento
de chefias e de patrões, procurando recompensas de acordo com a sua
percepção de justiça relativa e segundo as suas aptidões, dedicação e
competências individuais. A competitividade empresarial e todas as
grandes mutações ocorridas no mundo do trabalho alteraram a realidade
laboral de tal modo que os sindicatos – cujo modelo organizativo e
estratégias de acção foram concebidos num quadro laboral que entretanto
se desagregou – se mostram hoje desfasados da realidade económica e
social. Perante um panorama de crise e dificuldades, torna-se
necessário que os empresários e os trabalhadores valorizem antes de
mais os pontos de consenso e os interesses que têm em comum. Esta
concepção tende a ignorar a importância do colectivo, bem como a força
das estruturas sociais e dos mecanismos de poder. Trata-se no fundo da
visão liberal e individualista da vida social. O que é bom para as
empresas é bom para os trabalhadores. Quanto mais aquelas se modernizem
e se tornem competitivas mais possibilidades têm de criar emprego. Se
há desemprego, importa que quem possui menos aptidões e tem mais
dificuldades em se adaptar às exigências do mercado, da inovação
tecnológica e da produtividade dê lugar aos outros que estão no
desemprego ou que não conseguem aceder a um primeiro emprego. Para
tanto é necessário flexibilizar e adaptar a legislação para que o
mercado possa funcionar. Esta é, portanto, a visão tecnocrática e
funcional do trabalho e da vida das empresas, uma visão que, como se
vê, está mais próxima do sindicalismo de mercado.
Uma segunda
perspectiva aponta num sentido totalmente diferente. Existem estruturas
sociais fundadas em desigualdades económicas e relações de poder
assimétricas. E tanto no trabalho como na sociedade mais geral a força
de trabalho está dependente e é no fundo a vítima de um sistema
injusto. O trabalhador é o elo mais fraco e não tem possibilidade de se
defender ou de negociar as suas condições de trabalho em termos
individuais. É um ponto de vista que assenta na primazia do colectivo
sobre o individual e enfatiza por isso a defesa dos direitos
alcançados. Esta concepção – mais consentânea com a linha e o discurso
da CGTP –, por um lado, vão ao encontro de subjectividades instaladas
na sociedade que percepcionam o mundo como pautado por injustiças,
divisões de interesses e por formas de exploração em que uns enriquecem
à custa do esforço de outros. Mas, ao mesmo tempo, também se pressupõe
que os trabalhadores produzem menos e trabalham pior se não se sentirem
minimamente seguros. Melhores condições de trabalho criam mais estímulo
e mais satisfação no trabalho. Pode também dizer-se que este discurso
é, no fundo, autojustificativo, ou seja, pretende afirmar a necessidade
e a importância das estruturas sindicais enquanto instâncias capazes de
reequilibrar um sistema assente em fortes desigualdades.
O consenso é possível? É
possível que nesta dialógica resida o “nó górdio” da questão. Apesar de
serem visões encaixadas em paradigmas antagónicos, não significa que
não possam evoluir para novos consensos. O problema é que os principais
protagonistas dessas vozes desavindas se mostram incapazes de fazer
emergir pontos de convergência. Tratando-se de uma dialéctica, pode
dizer-se que ambas as leituras são verdadeiras. O que necessitamos é de
uma nova síntese que nos lance para o futuro.
Estas visões
contrastantes exprimem-se nas posições assumidas por cada uma das
correntes sindicais quanto à recente proposta governativa de um novo
código do trabalho. No acordo recentemente assinado pelos parceiros
(excepto a CGTP) há um vasto leque de matérias, mas na verdade os
pontos importantes – e factores de maior discordância entre o governo e
os sindicatos – resumem-se a três ou quatro pontos. Na questão do
combate à precariedade (contratos a termo certo e recibos verdes), bem
como em diversos outros aspectos favoráveis aos trabalhadores, haveria
consenso fácil, já que ambas as centrais reconheciam vantagens à
proposta do governo. Os pontos mais quentes foram: horários, princípio
do tratamento mais favorável, caducidade das convenções colectivas,
adaptabilidade /despedimentos. Destes, o governo recuou no último,
deixando cair o artigo da adaptabilidade “funcional”, que significaria,
na prática, o despedimento em larga escala, dependendo apenas da
vontade do patrão. Nos outros três aspectos parece ser evidente a quem
favorece esta legislação – as empresas.
Em suma, a
grande dúvida que hoje se nos coloca não é tanto a de saber se a
reforma das leis laborais é ou não necessária. Todos sabemos que é. Não
é tanto saber de que lado está a razão. Todos sabemos que ninguém é
dono exclusivo da verdade. Também não é a de saber qual das duas
centrais sindicais é mais livre e autónoma. Porque os limites à
liberdade e à autonomia são fortes tanto numa como noutra, e isso faz
parte da sua própria história. Vale a pena perguntar é se esta nova
legislação laboral irá contribuir para estimular a criação de emprego,
promover a competitividade da economia e combater a precariedade
(sobretudo quando se sabe que o Estado não dá o exemplo na sua própria
casa).
Pode também perguntar-se se de um governo socialista
seria de esperar que flexibilizasse horários (sem o devido pagamento de
horas extraordinárias), que facilitasse despedimentos, e que
esquecesse (ou secundarizasse) o princípio do tratamento mais favorável
(rompendo com posições anteriores assumidas pelo PS). Se um partido que
tem no marxismo uma das suas principais referências doutrinárias deve
assacar aos trabalhadores a exclusiva responsabilidade dos défices de
produtividade. Finalmente, cabe ainda perguntar se os objectivos (mal
disfarçados) de fragilização do sindicalismo trarão efectivamente
vantagens para os trabalhadores e para as empresas. No grau em que
estamos quanto aos nossos défices democráticos, estou convencido de que
a fragilização do sindicalismo mais combativo é sinónimo de
fragilização da democracia. E pior ainda: num país tão marcado por
dependências, tutelas, abusos de poder e retraimentos no trabalho, os
estímulos à produtividade requerem antes de mais uma estratégia de
desenvolvimento que comece por oferecer garantias de segurança a quem
produz; perspectivas de futuro a quem está à beira da pobreza ou
sobre-endividado; e que exija iniciativa, respeito pela lei e visão
estratégica a quem é suposto liderar as empresas.
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