Opinião

Elísio Estanque
estanque@fe.uc.pt

A tradição, a festa e o sexismo entre os estudantes
Publicado no jornal Diário de Coimbra em 30 de Abril de 2009

Ao contrário de anos anteriores, o cartaz da Queima das Fitas de Coimbra exibe uma mulher. Bem, reconheça-se que, de um modo geral o cartaz da queima não tem sequer figuras. Mas, enfim, agora os organizadores acharam por bem meter lá uma menina. Temos de os felicitar por isso. Numa altura em que as raparigas correspondem a cerca de 55% da universidade, já têm, ao menos, direito a uma presença figurativa de 25%. É um progresso, sem dúvida. Sentada, ao lado do caldeirão onde as fitas vão ser queimadas, lá está ela, sorridente, tal como os seus companheiros. Destes, dois deles parecem escalar pela academia acima (supõe-se), agarrados às fitas, enquanto o terceiro dedica uma balada à sua colega aloirada, que se mostra deliciada e divertida. Os ícones das festas estudantis são sem dúvida um meio onde as representações sociais dos seus autores se projectam e onde, muitas vezes, o subconsciente diz muito mais do que as intenções. É aliás para esses pequenos detalhes dos comportamentos quotidianos que teremos de dirigir o nosso olhar se pretendemos aferir até que ponto a divisão de papéis entre os dois sexos é hoje igualitária ou discriminatória para a mulher.

O fenómeno da feminização introduziu uma importante dissonância na cultura estudantil de Coimbra, uma vez que a tradição académica é fortemente masculinizada.   O peso demográfico das raparigas na UC tem vindo a crescer de forma constante desde meados do século XX (29% em 1952, 40% em 1961, 50% em 1974 e cerca de 55% na actualidade); entre os grupos de activistas dos anos 60 contavam-se já algumas figuras femininas; um dos primeiros movimentos que questionou o lugar da mulher na sociedade começou em Coimbra, com a publicação da “Carta a uma jovem portuguesa” (no jornal académico Via Latina, em 1961).

Porém, a presença de mulheres nos lugares dirigentes das estruturas associativas tem sido escassa. Mesmo quando elas estão presentes, continuam em geral a ser os rapazes a monopolizar o protagonismo. Nos rituais académicos e nas práticas da praxe persistem os códigos, as linguagens e os comportamentos marcados pela masculinidade. Os rituais festivos, os cortejos, as próprias canções associadas à nostalgia são todos eles imbuídos de valores patriarcais e tutelares perante a rapariga. Por exemplo, não é permitido às mulheres cantarem o fado de Coimbra; os dirigentes associativos e os activistas são maioritariamente rapazes; as jovens que ocupam posições na estrutura dirigente da associação ou nos “núcleos” de curso das faculdades, inserem-se sempre em pelouros de pendor mais “feminino” (de acordo com o cânone tradicional); na Direcção Geral, as “meninas” (além de serem minoritárias) surgem sempre na segunda ou na terceira fila nas diversas cerimónias oficiais onde a associação está representada.

É certo que esta questão é alimentada simultaneamente por rapazes e raparigas. Portanto, não se trata de vitimizá-las a elas e acusá-los a eles (o problema é de natureza sociocultural). O que podemos é interrogar-nos até quando esta alegre e despreocupada indiferença vai manter-se? Até quando iremos ter uma Universidade feminizada no conteúdo (onde as mulheres são mais e têm melhores resultados escolares), mas masculinizada nos comportamentos? É certo que a Universidade é reflexo da sociedade, mas não deveria ela ser a "vanguarda" e antecipar tendências?