Opinião

Tiago Santos Pereira
tsp@ces.uc.pt

Carreiras de investigação e carreiras docentes ou uma única carreira académica?
Publicado na ENSINO SUPERIOR – Revista do SNESup, 33, Jul/Ago/Set 2009, pp: 27-31

Tendo-se agora realizado o processo de revisão do Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU), bem como do Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico (ECPDESP), após várias tentativas de reforma não concluídas, cabe perguntar se o Estatuto da Carreira de Investigação Científica (ECIC) necessita também de enveredar por semelhante processo de revisão. Ao contrário do ECDU e do ECPDESP, o ECIC tinha sido objecto de revisão mais recente, incluído num pacote de revisão de legislação de base do sistema de investigação realizado em 1999 pelo Ministro Mariano Gago, então Ministro da Ciência e da Tecnologia, e que incluiu também o Regime Jurídico das Instituições de Investigação e o Estatuto do Bolseiro, este último já objecto de revisão posterior. Aliás, o actual processo de revisão dos estatutos das carreiras do ensino superior teve em larga medida inspiração em alterações anteriormente introduzidas aquando da revisão do ECIC. São disto exemplo as alterações relativas ao nível de qualificação exigida para o ingresso na carreira, agora o doutoramento, ou a exigência de concursos externos em processos de recrutamento, tal como também estipulado na revisão do ECIC.
Neste sentido, a revisão do ECIC, que já não irá acontecer na presente legislatura, apresentava-se claramente como menos premente do que as revisões dos estatutos das carreiras docentes do ensino superior. Certamente que há aspectos merecedores de revisão no ECIC, à luz da experiência bem como das dinâmicas do sistema de investigação público em anos recentes, nomeadamente face ao novo processo de reforma dos Laboratórios do Estado.
No entanto, não irei no presente texto discutir esses aspectos, ou possíveis propostas de alteração. Irei antes deter-me sobre um aspecto contextual aos estatutos das carreiras, que considero crucial face, por um lado, a mudanças recentes no sistema de investigação português e, por outro lado, a perspectivas futuras do desenvolvimento de carreiras de investigação em Portugal. A meu ver, mais do que a revisão de carreiras específicas, sejam elas primordialmente docentes ou de investigação, o principal desafio em aberto está relacionado com o desenvolvimento de um modelo global de carreiras que integre, de modo coerente, as múltiplas trajectórias académicas e institucionais em Portugal. Neste sentido, mais do que a diferenciação que os múltiplos estatutos definem, torna-se importante desenvolver um enquadramento que integre as várias funções desenvolvidas neste âmbito, nomeadamente a docência e a investigação, sem que a prioridade entre estas signifique carreiras diversas mas antes momentos de trajectórias mais alargadas que incluem componentes de docência e de investigação (para além de outras como a gestão ou a extensão), e o modelo institucional específico do contexto português.

Docência e Investigação: Carreiras distintas?
Desde logo, a existência de uma carreira identificada como sendo de investigação parece enganadora face ao facto de que a investigação é uma componente igualmente central da carreira dita docente, em particular nas universidades. Se o contrário não se aplica do mesmo modo, não deixa também de ser importante na actual carreira de investigação uma componente lectiva, ou de formação, nomeadamente ao nível da orientação de estudantes de pós-graduação que desenvolvem trabalho de investigação, a que acrescem outras contribuições em actividades de formação.
Para além de que, como vemos, ambas as carreiras incluem componentes que identificam a ‘outra’ carreira, as dinâmicas do sistema académico evoluem no sentido de uma alternância entre períodos de docência e de investigação. Se em Portugal o docente não tem ainda efectiva opção de escolher períodos de dedicação exclusiva a investigação, ou de reduzida carga lectiva (para além das modalidades já explicitamente previstas, tais como a licença sabática), em resultado do sucesso na obtenção de financiamentos que o obriguem a dedicar maior tempo à investigação, e que permitam formas de compensação do tempo não dedicado à docência através da sua substituição, a tendência global e ao nível do discurso político evolui neste sentido, de uma maior ‘troca’ entre carreiras. Obviamente que é importante regular estes processos, para que a docência continue a garantir a contribuição dos nossos investigadores de mais alto reconhecimento científico e não passe a significar menor qualidade, mas uma maior flexibilidade nas trajectórias parece ter também aspectos benéficos. Apesar de a dedicação exclusiva à investigação permitir um aumento da produtividade científica, face à maior disponibilidade de tempo, alguns estudos têm defendido que existem vantagens da junção da investigação com a docência (desde logo em termos da organização dos espaços), nomeadamente a nível de estudos pós-graduados (2º e 3º ciclos), permitindo uma fértil troca de ideias, a consolidação de trabalhos e agendas de investigação em paralelo com a construção de currículos de pós-graduação inovadores, a sinergia na apresentação do estado da arte, e a maior facilidade de identificação e de atracção de jovens investigadores de qualidade. É também neste sentido que se tem vindo a orientar o discurso político, como por exemplo reflectido na Carta Europeia do Investigador, fomentando todos os tipos de mobilidade, incluindo entre a docência e a investigação. Deste modo, a distinção intrínseca entre duas carreiras apresenta-se como uma barreira a esta forma de mobilidade.
É certo que a nível institucional existem diferenças importantes entre as missões universitária, do ensino superior politécnico, ou dos Laboratórios de Estado, mas não há razão para estas não serem apenas vertidas nos regimes jurídicos de cada uma destas instituições e de diferenciarem também carreiras académicas. Na situação actual a transição entre uma e outra carreira não é fácil, e também não é verdadeiramente incentivada. Aliás, o recente processo de consolidação de carreiras da administração pública teria proporcionado uma interessante oportunidade para a consolidação das carreiras docentes do ensino superior e de investigação, integrando as especificidades que diferenciam as suas actividades e funções em carreira única.

Novos Investigadores: Que carreira?
Para além deste aspecto estruturante do sistema, na diferenciação das carreiras docentes e de investigação, mudanças recentes no emprego científico em Portugal contribuem também para a necessidade de se pensar no seu enquadramento global. As oportunidades de emprego científico em Portugal em anos recentes não têm sido dinamizadas especificamente no âmbito das carreiras existentes mas antes fora delas. Na verdade, a contratação de novos docentes universitários, ou de investigadores para os Laboratórios de Estado tem sido reduzida (particularmente nestes últimos, em longo processo de reforma e de diminuição do seu peso no sistema nacional), e certamente muito diminuta face às oportunidades criadas fora deste âmbito, nomeadamente através dos Laboratórios Associados e, mais recentemente, das iniciativas Ciência 2007 e Ciência 2008 (nestes últimos casos foram contratados mais de 1000 novos investigadores). Estes investigadores recém-contratados foram-no em grande parte por instituições privadas sem fins lucrativos (IPSFLs) – e como tal, não sendo no sector público, não enquadrados formalmente ao abrigo do ECIC –, mas também por universidades, neste caso para lugares de investigação e deste modo em carreira diversa (ECIC) da carreira dominante nas instituições universitárias (ECDU).
No primeiro caso, apesar de as IPSFLs terem liberdade na instituição de carreiras próprias, estão aqui efectivamente limitadas pelo financiamento público que incentivou essas contratações, e que lhes impõe limites salariais, tipicamente por equiparação aos escalões inferiores das carreiras públicas. Deste modo, apesar de estas oportunidades concretizaram novos horizontes num sistema até aqui crescentemente fechado à entrada de novos investigadores, não só não enquadram uma noção de carreira associada, sem uma perspectiva de progressão associada, como dificilmente permitem a entrada de investigadores em diferentes fases da carreira, privilegiando antes o ingresso no lugar inicial da carreira.
Em grande parte fortemente dependentes de financiamentos públicos (por isso mesmo, e devido ao seu sistema de incentivos de base académica, as IPSFLS apesar de privadas são tipicamente consideradas como integrando o sector público de investigação), as condições de progressão na carreira nestes casos são na verdade pouco claras. Sem alterações nos financiamentos públicos para as respectivas posições existirão mecanismos para promover, e suportar a progressão na carreira, e correspondente progressão salarial? E no caso dos recém contratados nos programas Ciência 2007 e Ciência 2008, que perspectivas se prevêem para além dos 5 anos estipulados nos contratos? Estas são questões que se manterão em aberto sem a existência de um estatuto de carreira que não se limite apenas às instituições da administração pública, e sem a perspectiva de programas sucessores, ou complementares, dos programas Ciência 2007 e 2008 que premeiem os resultados e que construam modelos de financiamento que permitam a progressão na carreira dos melhores investigadores.
Já no caso dos novos investigadores contratados por centros de investigação de universidades públicas colocam-se outras questões, para além das mesmas questões de sustentabilidade financeira. Desde logo, a carreira de investigação foi essencialmente pensada para enquadrar a investigação nos Laboratórios do Estado, onde se desenvolve investigação orientada para as missões de intervenção do Estado, e não para as Universidades. Deste modo, não sendo um caso novo (no seguimento da extinção do INIC e da integração dos seus centros em Universidades foram vários os casos de investigadores de carreira integrados em Universidades, ou mesmo da criação de novas unidades orgânicas de investigação), estes novos investigadores vieram dar uma nova dimensão à carreira de investigação nas Universidades, levantando também assim novas questões.
Existem sinais de que docentes universitários olham para estes novos lugares de investigação com algum receio. A criação de uma (nova) carreira de investigação, sem funções de docência e com dedicação exclusiva à investigação, paralela à carreira docente e dentro do mesmo ambiente institucional é vista por alguns como uma ameaça à sua própria capacidade de progressão na carreira, numa altura em que os critérios de avaliação para a progressão na carreira incidem crescentemente em indicadores de publicações científicas. Ora aqueles que se dedicam “exclusivamente” à investigação são vistos como estando em posição privilegiada para melhorar o seu currículo académico com um maior número de publicações científicas internacionais, ficando assim eventualmente melhor colocados em eventuais concursos futuros de progressão de carreira. Existindo alguma validade nesta observação, face à distinção de funções e de objectivos, a preocupação que dela resulta não é no entanto igualmente clara. De facto, os novos investigadores não só partem tipicamente de uma situação anterior de menor experiência e estabilidade, e de menor produtividade científica, como também a novidade da sua inserção institucional, não apenas para eles próprios mas também para as suas instituições, coloca-lhes uma responsabilidade acrescida, face aos seus pares na carreira docente, na procura de financiamentos para a investigação, na ligação com outros actores, no sector privado ou público, ou na contribuição para a formação avançada (de novo o cruzamento das carreiras). Ou seja, sendo que na verdade beneficiam de condições privilegiadas para o desenvolvimento da investigação, a realidade da prática da investigação não é apenas a da bancada do laboratório e do processador de texto mas envolve um conjunto alargado de outras actividades e eventuais responsabilidades acrescidas, num contexto por vezes de ‘incerteza’ nas relações institucionais.
O paradoxo parece ser que aqueles que estão na carreira docente olham por vezes para a carreira de investigação como um modelo ideal, mesmo que temporário, onde podem dedicar-se em exclusivo à investigação. Pelo contrário, investigadores de carreira vêem na carreira docente um modelo institucional mais diversificado, com o benefício do contacto com alunos e do desenvolvimento de programas curriculares, eventual maior estabilidade profissional, bem como um maior estatuto social atribuído à carreira docente universitária. Parece claro que ambos têm razão, pelo simples facto de que a rigidez dos percursos profissionais associados à clara distinção de carreiras é precisamente o que ambos procuram ultrapassar. Neste sentido, a noção de uma única carreira académica, capaz de enquadrar adequadamente a valorização de diferentes percursos profissionais, e dos seus resultados, reconhecendo a importância da publicação científica, mas também das competências docentes, ou mesmo de gestão e de extensão, poderia melhor permitir que a ‘competição’ não fosse entre carreiras, mas sim uma competição saudável que contribua para moldar trajectórias profissionais de acordo com as diferentes competências científicas e profissionais dos investigadores (docentes necessariamente incluídos) do sistema científico nacional.
Haverá certamente aspectos importantes a considerar para que uma tal proposta possa ser efectivamente operacionalizada, mas de algum modo a recente alteração legislativa ao processo de atribuição do título académico de agregado (DL nº 239/07, de 19 de Junho) preconiza também tal evolução. Equiparando os aprovados em provas de habilitação científica e os aprovados em provas de agregação assume o propósito “de incrementar o paralelismo entre a carreira docente universitária e a carreira de investigação científica, tendente quer a premiar o bom desempenho científico e académico em todas as dimensões da profissão docente e de investigação quer a facilitar a mobilidade entre os diversos perfis e instituições, entre carreiras docente e de investigação e entre carreiras académicas e actividades profissionais fora do ensino.”
A existência de um modelo de carreira mais abrangente, que chamo aqui de carreira académica, permitiria facilitar estes processos de equiparação e fomentar a reflexão sobre as modalidades de progressão e do seu reconhecimento nos diversos modelos institucionais existentes no sistema nacional, não se limitando assim às instituições públicas. O acordo colectivo entre diferentes instituições, incluindo não apenas instituições públicas mas também IPSFLs dedicadas à investigação e as universidades privadas, tal como existe no sistema holandês, permitiria uma regulação mais adequada do mercado de trabalho científico, garantindo condições para a diversidade, flexibilidade e mobilidade no sistema.

Carreiras e bolseiros: a mesma questão?
A questão geral aqui debatida, sobre a distinção de carreiras e a possibilidade de uma carreira académica única, abrangente, levanta ainda uma questão final não abordada nos parágrafos anteriores, relacionada com a abrangência vertical deste eventual estatuto único e a discussão em aberto sobre o Estatuto do Bolseiro. Aliás, tal como a discussão acima o indica, as oportunidades agora criadas com os programas de contratação de doutorados que vieram contribuir para acabar com a figura do sucessivo pós-doutoramento, podem na verdade ter adiado este problema, mesmo que mais dissipado, já que se poderá voltar a colocar questão semelhante se os recém-contratados não tiverem efectivas perspectivas de progressão.
O actual ECIC (e o novo ECDU de forma equivalente) resolve a questão dos Bolseiros de Investigação de forma relativamente clara ao requerer no início da carreira o grau de doutoramento (mantendo a figura do Assistente de Investigação e do Estagiário de Investigação como excepcionais) e ‘relegando’ assim a ocupação destes lugares em projectos de investigação para os Bolseiros de Investigação (a possibilidade de os BIs serem titulares de doutoramento – pouco praticada, é certo – é, no entanto, menos clara).
Apesar de a questão da carreira académica única não implicar, necessariamente, a sua abrangência à actual posição do bolseiro, creio, no entanto, que uma mudança no sentido do que aqui defendo, da existência de uma carreira académica geral, menos rígida do que as actuais em termos formais, e com maior ênfase nos resultados e no sentido do reconhecimento de diferentes trajectórias que definem a inclusão numa comunidade académica, deverá vir a ser extendida à inclusão em modelo contratual de trabalho, e como tal no âmbito da carreira académica, dos actuais Bolseiros de Investigação em projectos, mas com vínculos correspondentemente limitados no tempo. O conceito de ‘tenure’, diferenciando o modelo de vínculo com base em critérios científicos, também facilita esta maior abrangência, sem contrariar os princípios pelos quais o modelo de ingresso na carreira foi agora alterado. A inclusão em carreira considera tanto o modelo de incentivos nela vigente, como o reconhecimento dos resultados e do trabalho prestado, aumentando a atractividade da carreira e a sua exigência, e o melhor modo de limitar a extensão consecutiva da figura do bolseiro. O actual modelo de segurança social para os bolseiros ainda vigente (e agravado nos seus custos pessoais com a recente reforma) é certamente um dos principais obstáculos a esse reconhecimento justo.
O mesmo modelo não se aplicaria, no entanto, a bolseiros que beneficiem de bolsas individuais por serem claramente atribuídas para formação individual e não no âmbito de obrigações institucionais. É óbvio que as implicações financeiras destas mudanças terão impactos a curto-prazo ao nível dos indicadores nacionais de C&T, mas, se estes são importantes para a atractividade internacional do sistema, um funcionamento adequado dos mecanismos de incentivos, de prémios e de reconhecimento social do trabalho académico é essencial ao desenvolvimento do mercado de trabalho académico e à atractividade das carreiras científicas.

A propósito da internacionalização da carreira
Resta referir que, a exemplo do que acontece na Holanda, onde o Acordo Colectivo Laboral das Universidades Holandesas está traduzido para inglês, a legislação portuguesa nesta matéria deveria tendencialmente vir a ser disponibilizada em inglês, tendo em conta o número não negligenciável de investigadores estrangeiros em Portugal, nomeadamente após os recentes concursos Ciência 2007 e Ciência 2008 – anteriormente a este processo, estudo recente em que participei (José Reis et al., Imigrantes em Portugal, Edições Almedina, no prelo) estimou em cerca de 5% o número de investigadores estrangeiros em Portugal, e é de esperar que este número tenha aumentado nos últimos anos. Talvez este possa ser um serviço disponibilizado pelo próprio SNESup.