Oficina de Poesia
 
 


n.2 - 2ª série
Especial: Artes em Belgais

Data de Publicação: Dezembro 2002

 
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Editorial

A aventura do caminho escolhido por Belgais começa no próprio caminho que nos leva até essa construção em pedra, paradoxal fortificação da fragilidade que é a arte, perfeitamente integrada na ruralidade beirã. Lembrando-me de Sena, chamei-lhe uma vez "uma pequenina luz", uma luz na limpidez do ar daquela região, uma luz que resiste, e que insiste em permanecer viva apesar de todas as dificuldades. O espaço agreste em que se desenha e a dificuldade do trilho parecem estar lá para afirmar a própria sobrevivência - da gente e do projecto. Depois dos 25 minutos de solavancos e destreza na condução, chegar ao cimo da colina e ver Belgais ao fundo dá-nos a medida certa da heroicidade que lhe subjaz. Por isso, o reconhecimento pela UNESCO foi só uma questão de justiça. Por isso, a falta de reconhecimento só pode basear-se na ignorância ou no medo da infinita possibilidade que a arte abre à existência. Disso nos fala Maria João Pires, no texto que dá início a este volume.
O desafio que foi lançado à Oficina de Poesia da Universidade de Coimbra transformou-se numa enorme aventura: numa experiência inesquecível de partilha, de fruição estética e de vida, de emoção e trabalho criativo, de reconhecimento ancestral e telúrico - uma experiência de crescimento pessoal para cada um de nós.
Como coordenadora da Oficina de Poesia tive o enorme privilégio de participar num número maior de actividades deste Centro para o Estudo das Artes, mas muitos dos jovens poetas que comigo trabalham nesta Oficina puderam colaborar, ao longo de um ano (fins-de-semana), com outros artistas e outras linguagens, num projecto tão aliciante quanto o Curso de Iniciação às Artes para Crianças (com crianças de aldeias beirãs como a Mata, Escalos de Baixo, Escalos de Cima, Ladoeiro e Lousa). Esses jovens poetas foram: João Rasteiro, Andreia Rafael, Cristina Néry, Carlo Rua, Célia Gonçalves, Miguel Carvalho, Cláudia Pinto, Emiliana Cruz e Carla Vaz. Alguns dos poemas escritos pelas crianças estão aqui representados, mas esperamos que um pequeno livro venha a compilar uma selecção mais alargada, num futuro não muito distante. Desafiámos estas crianças a brincar com as palavras, enquanto nos falavam da experiência dos vários materiais com que trabalhavam a arte: da experiência da matéria que constitui o seu próprio corpo - na voz, no movimento, no ouvido, nos pés, nas mãos - e da experiência do corpo da natureza - nas pedras, nas árvores, no rio. Descobrimos que, quanto menos cientes das regras para trabalhar as palavras, mais fácil lhes era a liberdade poética de as combinar numa brincadeira divertida. E aprendemos, nós adultos, com essa liberdade - a liberdade que todas as regras e todas as escolas nos ensinam a esquecer.
Publicam-se também, neste número especial dedicado a Belgais, poemas de outras oficinas, escritos por alunos de piano e de composição, que se deixaram desafiar pela palavra, uma outra forma de expressão artística. Reflectimos sobre o diálogo possível entre as nossas formas de expressão e, entre uma cantiga para musicar (composição) e uma árvore que pretendíamos ouvir (piano), escreveram-se os poemas nas secções 11 e 111. Destaco aqui a canção escrita pelo compositor norte-americano James DeMars, famoso pelo seu trabalho com a música dos índios norte-americanos.
A consultora em Escrita Criativa do Projecto das Crianças, a poeta norte-americana Sheryl Robbins, encarregou-se de mais um curso. Com trinta anos de experiência em escolas primárias e secundárias do estado de Nova lorque, Robbins veio a Belgais para acompanhar a fase final do trabalho de escrita das crianças e dirigiu uma oficina em que se inscreveram estudantes universitários, professores da região centro e animadores culturais. Publicam-se aqui também alguns exemplos desses dois intensos dias de trabalho (IV), bem como um texto de Robbins sobre a experiência daquele espaço e ainda alguns dos seus poemas.
A bailarina e filósofa Cristo Torres escreveu o texto sobre a Especial Intimidade das Crianças com a Arte, uma conferência dramatizada, que se representou/dançou em Belgais, e da qual escolhemos apenas alguns excertos.
O pianista Caio Pagano contribui também com um pequeno texto sobre a sua vivência deste espaço e desta aventura. Finalmente, e depois dos poemas do mesmo teor escritos pelos jovens poetas da Oficina de Poesia, Andreia Rafael, na altura ainda estudante de Jornalismo, mas hoje já uma profissional, faz-nos uma reportagem sobre a Oficina para Crianças. Além de um texto sobre a poesia da pedra, por Marco Daniel Duarte, o volume inclui ainda o ensaio do especialista de literatura e músico de jazz, Michel Delville, apresentado no IV Encontro Internacional de Poetas de Coimbra, um ensaio que reflecte, de forma muito provocatória, sobre música contemporânea e poesia modernista.
O destaque ainda para dois poetas, Ana Luísa Amaral e Fernando Aguiar, que aceitaram o nosso convite para nos acompanhar através desta viagem pelo corpo da música, com alguns dos seus inéditos.
As fotografias de Luís Almeida trazem-nos, além da palavra e da música, uma outra linguagem e uma outra experiência de Belgais através da imagem a preto e branco.
Como nota última, a referência a esse texto escrito a várias mãos - por Frederico, João André e Paulo Renato Cardoso de Jesus também aqui só em alguns fragmentos, e que tem por título "Diafonia". Nele encontro a perfeita descrição de Belgais:
       "Diafonia é uma casa sem paredes     é só portas e janelas
casa de ar     respiração
Nidificação da metamorfose: luz oceânica redigindo o cume futuro dos montes".

Graça Capinha