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Conhecimento Prudente para uma Vida Decente
"Um Discurso sobre as Ciências" Revisitado

Boaventura de Sousa Santos (Org.)

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Introdução

Este livro pretende contribuir para o aprofundamento do debate sobre a ciência enquanto forma de conhecimento e prática social. O conhecimento científico é hoje a forma oficialmente privilegiada de conhecimento e a sua importância para a vida das sociedades contemporâneas não oferece contestação. Na medida das suas possibilidades, todos os países se dedicam à promoção da ciência, esperando benefícios do investimento nela. Pode dizer-se que, desde sempre, as formas privilegiadas de conhecimento, quaisquer que elas tenham sido, num dado momento histórico e numa dada sociedade, foram objecto de debate sobre a sua natureza, as suas potencialidades, os seus limites e o seu contributo para o bem-estar da sociedade. De uma forma ou de outra, a razão última do debate tem sido sempre o facto de as formas privilegiadas do conhecimento conferirem privilégios extra-cognitivos (sociais, políticos, culturais) a quem as detém. Só assim não seria se o conhecimento não tivesse qualquer impacto na sociedade, ou, tendo-o, se ele estivesse equitativamente distribuído na sociedade. Mas não é assim.
Por um lado, só existe conhecimento em sociedade e, portanto, quanto maior for o seu reconhecimento, maior será a sua capacidade para conformar a sociedade, para conferir inteligibilidade ao seu presente e ao seu passado e dar sentido e direcção ao seu futuro. Isto é verdade qualquer que seja o tipo e o objecto de conhecimento. Mesmo que a natureza não existisse em sociedade - e existe - o conhecimento sobre ela existiria. Por outro lado, o conhecimento, em suas múltiplas formas, não está equitativamente distribuído na sociedade e tende a estar tanto menos quanto maior é o seu privilégio epistemológico. Quaisquer que sejam as relações entre o privilégio epistemológico e o privilégio sociológico de uma dada forma de conhecimento - certamente complexas e, elas próprias, parte do debate -, a verdade é que os dois privilégios tendem a convergir na mesma forma de conhecimento. Esta convergência faz com que a justificação ou contestação de uma dada forma de conhecimento envolvam sempre, de uma maneira mais ou menos explícita, a justificação ou contestação do seu impacto social.
Desde o século XVII, as sociedades ocidentais têm vindo a privilegiar epistemológica e sociologicamente a forma de conhecimento que designamos por ciência moderna. Quaisquer que sejam as relações entre esta ciência e outras ciências anteriores, ocidentais e orientais, a verdade é que esta nova forma de conhecimento se auto-concebeu como um novo começo, uma ruptura em relação ao passado, uma revolução científica, como mais tarde viria a ser caracterizada. Desde então, o debate sobre o conhecimento centrou-se na ciência moderna, nos fundamentos da validade privilegiada do conhecimento científico, nas relações deste com outras formas de conhecimento (filosófico, artístico, religioso, etc.), nos processos (instituições, organizações, metodologias) de produção da ciência e no impacto da sua aplicação. O que distingue o debate moderno sobre o conhecimento dos debates anteriores é o facto de a ciência moderna ter assumido a sua inserção no mundo mais profundamente do que qualquer outra forma de conhecimento anterior ou contemporânea: propôs-se não apenas compreender o mundo ou explicá-lo, mas também transformá-lo. Contudo, paradoxalmente, para maximizar a sua capacidade de transformar o mundo, pretendeu-se imune às transformações do mundo.
Nos termos da consciência de si próprios que a ciência e os cientistas tenderam, dominantemente, a formar desde os tempos da revolução científica até um período muito recente, o privilégio epistemológico que a ciência moderna se arroga pressupõe que a ciência é feita no mundo, mas não é feita de mundo. A ciência intervém tanto mais eficazmente no mundo quanto mais independente é dele. A ciência opera autonomamente segundo as suas próprias regras e lógicas para produzir um conhecimento verdadeiro ou tão próximo da verdade quanto é humanamente possível. A verdade consiste na representação fiel ou, pelo menos, o mais aproximada possível da realidade que existe, independentemente das formas que assume e dos processos através dos quais é produzido o conhecimento que se tem dela. Uma vez criadas e estabilizadas as condições institucionais que garantem a autonomia da ciência, tal verdade e tal representação não estariam sujeitas ao condicionamento ou à manipulação por parte do mundo não científico.
Ao longo dos últimos três séculos, os debates sobre a ciência tiveram sempre estas duas vertentes: a natureza e o sentido das transformações do mundo operadas pela ciência; a natureza e a validade do conhecimento científico que produz e legitima essas transformações. Em alguns períodos, dominou uma das vertentes e noutros, a outra. Os debates começaram por ser entre cientistas e titulares de outros conhecimentos - filósofos, teólogos, artistas, etc. -, mas, à medida que a ciência se expandiu e diversificou, passaram a travar-se igualmente entre cientistas, ainda que, por vezes, o debate tenha sido sobre o que é ser cientista e sobre quem o é.
A evolução dos debates tem a ver com uma pluralidade de factores: com o crescimento exponencial da produção científica e a consequente proliferação das comunidades científicas; com o extraordinário aumento da eficácia tecnológica propiciada pela ciência, uma eficácia posta tanto ao serviço da guerra como da paz; com as transformações na prática científica à medida que o conhecimento científico foi transformado em força produtiva de primeira ordem e a questão das relações entre a ciência e o mercado se transmutou na questão da ciência como mercado.
Os debates têm assumido muitas formas. A mais recente ficou conhecida por "guerras da ciência" e incidiu preferencialmente sobre a natureza e validade do conhecimento que produz e legitima as transformações do mundo através da ciência. Foi um debate essencialmente entre cientistas, ainda que o estatuto de cientista tenha sido, ele próprio, parte do debate, e de tal modo que se, para alguns dos participantes, o debate era entre cientistas, para outros tratava-se de um debate entre cientistas e intelectuais estranhos ao mundo da ciência. Foi, acima de tudo, um debate entre cientistas em geral e cientistas cujo objecto de investigação é a própria ciência enquanto fenómeno social. Eis algumas das questões que dominaram o debate: qual é a relação entre o conhecimento científico e a realidade que ele pretende conhecer? O conhecimento científico representa, descobre, cria ou inventa a realidade que pretende conhecer? Quais os critérios por que se afere a adequação ou a correcção destas relações? O conhecimento científico aspira à verdade, à eficácia, à verosimilhança, à coerência, à referencialidade? Se as verdades científicas de um dado momento histórico têm sido refutadas em momentos posteriores, há algo mais na verdade do que a história da verdade? O modo como a ciência está organizada e o modo como se realiza na prática interfere no tipo e na validade do conhecimento que se produz? Quais as relações entre a ciência e outras formas de conhecimento? Qual o verdadeiro papel do conhecimento científico? Como devem interagir os cientistas com o "resto da sociedade" nos processos de decisão?
Este último debate eclodiu no início dos anos 1990 no Reino Unido e nos EUA e alastrou a outros países. Um dos seus momentos mais intensos foi constituído pelo caso Sokal. Eis, sucintamente, aquilo em que ele consistiu e o contexto em que ocorreu.
Até à década de 1990, os debates sobre o estatuto epistemológico das ciências modernas estavam confinados aos domínios especializados da filosofia das ciências e da história das ciências. A publicação em 1992, em Inglaterra, de The Unnatural Nature of Science, do embriologista Lewis Wolpert, significou uma importante inflexão nos temas e nos protagonistas desses debates. O alvo de Wolpert era o conjunto das correntes de investigação na sociologia conhecidas por sociologia do conhecimento científico, incluindo, nomeadamente, a chamada Escola de Edimburgo e o seu "Programa Forte" da Sociologia do Conhecimento e a corrente associada a Harry Collins, o "Programa Empírico do Relativismo", também conhecida por Escola de Bath. O livro de Wolpert consagrava um modo de argumentação caracterizado pela referência selectiva e parcial aos trabalhos daqueles que tomava como alvo, e pela estigmatização de qualquer forma de investigação que tomasse o conhecimento científico e as controvérsias científicas como processos sociais, denunciando-a como um ataque à própria ciência e uma tentativa deliberada de minar a autoridade cultural desta enquanto forma de produção de enunciados verdadeiros. O ataque não deixou, como seria de esperar, de suscitar respostas por parte dos visados, que procuraram clarificar as suas posições e as orientações de pesquisa que propunham. O debate, na altura, tinha toda a aparência de um remake da discussão sobre as "duas culturas" - a humanística e a científica - suscitada em finais da década de 1950 pela conferência com o mesmo título de C. P. Snow.
Mas, se as primeiras escaramuças das "guerras da ciência" dos anos 1990 tiveram origem no Reino Unido, as batalhas maiores viriam a ser travadas nos Estados Unidos, logo seguidas de uma tentativa de as fazer regressar a território europeu. Em 1994, o biólogo Paul Gross e o matemático Norman Levitt publicavam uma violenta denúncia dos alegados ataques sistemáticos à ciência e à racionalidade perpetrados nas Universidades americanas por uma "esquerda académica" que, através de uma crescente influência - em boa parte apoiada na recepção das obras de intelectuais franceses -, teria transformado um conjunto heterogéneo de áreas académicas, tais como os estudos culturais, os estudos feministas, os estudos sobre raça e etnia ou os estudos sobre a ciência, em plataformas de denúncia e descredibilização da ciência e da Razão. Higher Superstition tornar-se-ia a principal inspiração para muitos dos violentos ataques que vieram a seguir, os quais, enfiando no mesmo saco as disciplinas e áreas de investigação referidas e todo um conjunto de práticas rotuladas de "anti-ciência" (astrologia, diferentes correntes New Age, terapias alternativas), as responsabilizava pela perda de influência cultural e social da ciência e pelo declínio do apoio político e público à investigação científica. Tal perda e tal declínio derivariam do impacto das práticas e disciplinas que negavam a capacidade de a ciência produzir um conhecimento verdadeiro e objectivo sobre o mundo.
Episódios subsequentes incluíram a retirada do apoio da American Chemical Society à exposição "Science in American Life", no Museu de História Natural de Washington, sob a alegação de que a influência de posições "pós-modernistas" entre alguns dos seus organizadores teria levado a conferir à exposição um tom hostil à ciência. De facto, a exposição propunha, de maneira equilibrada, uma interpretação da história da ciência que, ao lado dos benefícios da ciência e da tecnologia, focava também os perigos, as incertezas e os impactos negativos destas sobre a saúde, o ambiente e a segurança. Outro momento alto das "guerras da ciência" foi a organização pela Academia das Ciências de Nova Iorque, na Primavera de 1995, do congresso "The Flight from Science and Reason", o qual, reunindo especialistas das ciências naturais, das ciências sociais e das humanidades, procuraria apresentar uma frente comum dos auto-proclamados defensores da racionalidade e dos ideais das Luzes contra as alegadas correntes "anti-ciência" que estariam a corroer a Razão, a Verdade e a Objectividade.
A primeira resposta colectiva, da parte de investigadores dos campos das ciências sociais, das ciências naturais e das humanidades, apareceria em 1996, através de um número da revista Social Text, precisamente dedicado ao tema "Science Wars". O número incluía um conjunto de discussões e refutações das alegações e acusações provindas dos "guerreiros da ciência". Entre as contribuições contava-se o texto "Transgressing the boundaries: towards a transformative hermeneutics of quantum gravity", da autoria do físico Alan Sokal, que viria a dar origem a um dos mais ruidosos episódios das "guerras da ciência" (Sokal, 1996a). Apresentando-se como uma reinterpretação pós-moderna do domínio dos estudos sobre a gravidade quântica, o texto apoiava-se num extenso rol de citações de autores invariavelmente associados às correntes rotuladas de "anti-ciência". Nesse texto, Sokal faz duas referências a dois dos meus trabalhos epistemológicos - Um Discurso sobre as Ciências, na versão inglesa publicada em Review, 15(1) (1992: 9-48), e a Introdução a uma Ciência Pós-moderna (Porto: Afrontamento, 1989) - que indica como representativos da ciência pós-moderna (1997, 235 e 236). Logo a seguir, o próprio Sokal viria a revelar, num texto publicado na revista Lingua Franca, que o seu artigo era um embuste, e que a sua intenção havia sido apenas a de mostrar a facilidade com que um texto com todos os sinais exteriores próprios do que escreviam os "pós-modernistas" podia ser aceite para publicação, independentemente do seu conteúdo e da sua coerência, em revistas por eles dirigidas (Sokal, 1996b).
Não sendo de todo original, o "embuste" de Sokal não deixou de suscitar alguma confusão e embaraço, à mistura com muita indignação por aquilo que os responsáveis editoriais de Social Text consideraram ser uma violação da ética académica. O episódio alimentaria um debate que prosseguiu durante vários anos e que viria a conhecer, em 1997, novo desenvolvimento. Sokal, em colaboração com outro físico, Jean Bricmont, publicava nesse ano, em França, um livro que tomava por alvo os intelectuais "pós-modernos" franceses que, alegadamente, teriam tido uma influência decisiva na erosão da crença na Razão e na Objectividade (Sokal e Bricmont, 1997). De Bergson a Lacan, passando por Kristeva, Baudrillard, Latour, Irigaray, Deleuze, Guattari e Virilio - e com algumas misteriosas ausências, como a de Jacques Derrida que, contudo, havia sido um dos autores mais salientes das citações incluídas no "embuste" de Sokal -, Sokal e Bricmont procediam a uma denúncia do que descreviam como os abusos que esses autores faziam de referências à ciência para fins de legitimação da sua autoridade intelectual. A técnica seguia de perto a que já havia sido usada por Gross e Levitt: citações escolhidas, retiradas dos contextos de argumentação em que elas tinham lugar, de forma a transformar esse conjunto escolhido de citações em amostra do conjunto da obra e, dessa maneira, desacreditar intelectualmente esta e o seu autor ou autora. Como seria de esperar, o livro suscitou um vivo debate em França, e foi através da sua tradução em várias línguas que os "guerreiros da ciência" procuraram exportar um debate muito vinculado ao meio académico americano para o continente europeu. Em Portugal, e num ambiente consideravelmente diferente, a publicação de Imposturas Intelectuais apareceu num momento em que estava em processo de construção um sistema nacional de ciência e tecnologia, com a constituição e consolidação de centros e institutos de investigação apoiados por financiamentos públicos e sujeitos a avaliação internacional, e com um grande investimento na formação de jovens investigadores altamente qualificados. Esse processo abrangia todas as áreas científicas - incluindo as ciências naturais, as áreas tecnológicas, as ciências sociais e as humanidades - e caracterizou-se por experiências, extremamente produtivas, de diálogo e colaboração entre investigadores nas ciências naturais e cientistas sociais que se dedicavam aos estudos sociais das ciências. De facto, a importação das "guerras da ciência" aparecia, nestas circunstâncias, como uma polémica fora do lugar, estranha à dinâmica específica da construção do espaço das ciências em Portugal. Aliás, em Março de 1999, quando visitou Portugal para lançar a versão portuguesa de Impostures intellectueles, Sokal, convidado pelo jornalista a comentar o facto de no seu embuste da Social Text estar mencionado um nome português, o meu, respondeu assim:

Ah, sim! O seu caso é mais delicado. Na paródia liguei muitas coisas distintas - o parodista tem a liberdade de ligar coisas fracamente relacionadas, desde que sejam sociologicamente compatíveis. Ao mesmo tempo que parodiei os palavrosos autores franceses, critiquei ideias extremas da sociologia da ciência.
Mas, no livro, onde há um raciocínio cuidado, tratamos de separar essas coisas. Os escritos de Boaventura de Sousa Santos pertencem à corrente pós-moderna que encara certos avanços recentes da ciência - em especial, a teoria do caos - como uma mudança epistemológica importante para as ciências sociais. Mas isto não tem nada a ver com o abuso grosseiro de outros autores. Trata-se, no máximo, de erros subtis, feitos de boa fé (Público, 5 de Março, 1999, p. 22).

Em Janeiro de 2002, foi publicado o livro O Discurso Pós-Moderno contra a Ciência: Obscurantismo e Irresponsabilidade (Lisboa: Gradiva), de autoria de António Manuel Baptista (AMB), em que é feita uma crítica virulenta, bem no estilo das guerras da ciência, ao meu livro Um Discurso sobre as Ciências (Porto: Afrontamento). Neste livro, publicado quinze anos antes, prossegui os seguintes objectivos: em primeiro lugar, mostrar que, no início da década de 1980, o debate epistemológico sobre as condições de validade e de rigor do conhecimento científico deixara de ser um debate entre filósofos e cientistas, como fora antes, para passar a ser um debate entre cientistas, o que era, em si mesmo, o resultado do avanço extraordinário da ciência desde o início do século XX. Daí que nesse livro cite muito poucos filósofos da ciência e quase nenhum sociólogo da ciência. A minha argumentação é construída com base em reflexões de cientistas, na grande maioria físicos, dado que nessa época a física quase monopolizava o interesse pela epistemologia. Em segundo lugar, procurei mostrar que o realismo e o positivismo científicos entravam em crise no mesmo processo em que a contingência, a incerteza, a complexidade, a irreversibilidade e, com esta, a história faziam a sua entrada nas teorias científicas, não como corpos estranhos, mas como produtos do próprio desenvolvimento científico. Finalmente, tentei mostrar que o debate epistemológico abria novas perspectivas às relações entre as ciências físico-naturais e as ciências sociais e à criação de novas configurações do saber mais aptas a serem apropriadas pelos cidadãos.
O livro é uma versão ampliada da Oração de Sapiência, proferida na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, no ano lectivo de 1985/86. Publicado em 1987, teve uma recepção que me surpreendeu. Foi adoptado em cursos de filosofia e de ciências no ensino secundário e no ensino universitário e foi publicado em inglês e em espanhol, e a versão portuguesa foi reeditada várias vezes, encontrando-se actualmente em 14ª edição. Ao longo de todo este tempo, o livro foi objecto de várias recensões, todas elas positivas. Causou-me, pois, alguma estranheza que só ao final de tanto tempo e de um percurso tão longo e tão pacífico o meu livro se tornasse objecto de polémica.
Estranhei ainda mais que o meu antagonista se refira exclusivamente ao Um Discurso sobre as Ciências e omita os trabalhos posteriores que dediquei ao tema e em que reelaborei, aprofundei e expandi os argumentos apresentados em Um Discurso sobre as Ciências. Refiro-me, por exemplo, a Introdução a uma Ciência Pós-moderna, publicada em 1989 (Porto: Afrontamento, hoje em 6ª edição; Rio de Janeiro: Graal, hoje em 3ª edição) e A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência, publicada em 2000 (Porto: Afrontamento, hoje em 2ª edição; São Paulo: Cortez, hoje em 2ª edição), especialmente os capítulos 1 e 4. Curiosamente Alan Sokal refere não só Um Discurso sobre as Ciências como a Introdução a uma Ciência Pós-moderna (p. 235-236).
Mas a maior estranheza decorreu de o estilo incendiado do livro de António Manuel Baptista fazer supor que nos encontramos em plena guerra da ciência, quando, de facto, mesmo nos países onde ela foi mais intensa, no Reino Unido e nos EUA, é evidente uma certa acalmia nos últimos anos. Efectivamente, foram publicados recentemente vários livros cujo tema é ir "para além das guerras da ciência": trocar ideias em vez de insultos; descobrir áreas de consenso sobre a legitimidade e a autoridade da ciência enquanto modo de compreensão do mundo. Dois livros podem ser referidos a título de exemplo: Ullica Segerstraile (org.), Beyond the Science Wars: The Missing Discourse about Science and Society (Albany NY: State University of New York Press, 2000) e Jay A. Labinger e Harry Collins (orgs.), The One Culture? A Conversation about Science (Chicago: University of Chicago Press, 2001). A ideia geral é que o último episódio das guerras da ciência chegou ao fim, sem que tenha havido declaração formal de tréguas ou de rendição. A sensação que se tem é que o fim desta guerra é tão misterioso quanto o seu começo. Naturalmente que os grandes debates epistemológicos permanecem, mas parecem ter deixado de ser campos de batalha para se acolherem no âmbito e no estilo de discussões académicas, sem dúvida intensas, mas pacíficas e com respeito mútuo pelas diferenças. A explicação, pelo menos para o caso desta guerra da ciência nos EUA, reside, em meu entender, no facto de, apesar de ter sido travada entre cientistas, ela ter tido motivações mais políticas e culturais do que científicas. Refiro-me à política em geral, à política científica e cultural, em particular. No fundo, o que esteve em causa foram diferentes concepções quanto ao papel da ciência e das diferentes concepções de ciência na transformação política da sociedade; foram também diferenças sobre o impacto dessas concepções no financiamento público da ciência, sobretudo quando se trata de financiamentos muito avultados, como os que são exigidos pela Big Science; e foram ainda visões antagónicas sobre o significado da diversidade cultural e, portanto, do reconhecimento do multiculturalismo no ensino superior.
Porque se tratava de uma mobilização política e porque os cientistas não são políticos profissionais, a mobilização para a guerra não foi duradoura e, mais ou menos rapidamente, os cientistas regressaram aos seus gabinetes e laboratórios e continuaram a fazer o que sempre tinham feito. Talvez ninguém tenha convencido ninguém, o que não significa que este episódio das guerras da ciência não tenha tido impacto. Teve-o naturalmente no prestígio e até na carreira profissional dos seus principais protagonistas. Mas teve-o muito para além disso e não foi de todo negativo. Pelo contrário, penso que contribuiu para aprofundar a auto-reflexividade das ciências e dos cientistas, tornando mais explícitos os pressupostos e as crenças meta-científicas em que assenta o conhecimento científico. O decorrer da "guerra" tornou ainda mais claro que as diferenças epistemológicas não ocorriam apenas entre cientistas naturais e cientistas sociais, mas também entre cientistas naturais e entre cientistas sociais, e que tais diferenças se articulavam de modo complexo com diferenças culturais e políticas, com diferentes concepções sobre a relação entre conhecimento científico e outras formas de conhecimento. Em suma, tornaram-se mais claras as divergências e as suas causas, e, se não aumentou a tolerância, aumentou, pelo menos, o conhecimento da diversidade de perspectivas.
Foi, pois, num período de relativo apaziguamento que surgiu o livro de AMB. Este descompasso torna-o algo anacrónico, não só no conteúdo, como no estilo. A crítica de AMB segue a linha de Sokal, ainda que sem a erudição e actualização deste último. Socorre-se de alguns dos textos esgrimidos no último episódio das guerras da ciência, que usa frequentemente a partir de fontes secundárias e, por vezes, descuidadamente, o que o faz incorrer em erros de interpretação que uma leitura mais atenta facilmente preveniria. Para além do seu estilo truculento, o texto está investido de um carácter de urgência, bem evidente logo na nota de abertura, que parece deslocado, se se tiver em mente que o seu alvo privilegiado, o meu livro, fora publicado quinze anos antes. A assimetria entre os dois textos não é apenas a distância temporal que os separa. É também o facto de o meu livro não ter sido escrito com intuitos polémicos, antes apenas com o objectivo de dar conta dos debates epistemológicos mais recentes, ao tempo quase desconhecidos entre nós, e de tomar posição neles a partir da minha área científica, as ciências sociais e especificamente a sociologia. À publicação do livro de AMB seguiu-se um debate curto e azedo nos jornais mas, curiosamente, poucos mais cientistas intervieram nele, ainda que alguns lhe tenham feito referência indirecta ou acidental.
Apesar do seu tom precipitado e exagerado e da falta, por vezes clamorosa, de informação actualizada, e apesar de uma pulsão descontextualizante algo descontrolada, o livro de AMB levantava muitas das questões que tinham sido suscitadas no último episódio das guerras da ciência, e essas questões são importantes e devem ser debatidas. Como tal debate não poderia ser conduzido com a mínima profundidade nos jornais, dispus-me a preparar uma resposta. A resposta, tal como a imaginei, teria que ter em conta dois factos. Por um lado, o meu livro fora publicado numa altura em que os debates epistemológicos eram distintos dos que vieram a ter lugar mais tarde. Basta lembrar que, no início da década de 1980, a discussão sobre os limites da validade e do rigor do conhecimento científico era liderada pela física - uma liderança que só anos mais tarde começaria a perder a favor da biologia e das ciências da vida em geral - e que a sociologia do conhecimento científico e os estudos sociais e culturais da ciência tinham então um desenvolvimento muito incipiente. Por outro lado, o debate epistemológico tem estado quase totalmente ausente em Portugal e a nossa comunidade científica tem exígua participação nas discussões internacionais.
Em face destas duas considerações, decidi que só uma intervenção colectiva e internacional poderia, por um lado, dar conta da grande diversidade dos temas em debate e das posições assumidas e, por outro lado, mostrar o âmbito internacional e transdisciplinar dos debates. Admiti também que, com isso, poderia contribuir para dar a conhecer entre nós a riquíssima reflexão sobre o conhecimento científico hoje em curso, e fazê-lo a propósito de um debate em que poucos participaram activamente, mas em que muitos se interessaram, a avaliar pela venda dos livros em causa.
Com estes objectivos em mente, dirigi um convite a colegas de diferentes países e de diferentes formações disciplinares, com quem dialoguei nos últimos vinte anos sobre questões de epistemologia e de sociologia da ciência, para colaborarem comigo num livro em que partilhassem com a comunidade científica de língua portuguesa as suas mais recentes reflexões sobre os debates epistemológicos, filosóficos, sociológicos e culturais sobre a ciência e o conhecimento em geral em que têm participado. Expliquei-lhes o contexto em que tinha surgido em Portugal o debate sobre "as guerras da ciência" de todos bem conhecido. Sugeri-lhes que, sempre que possível, se referissem a alguns dos temas abordados no meu livro. Indiquei-lhes explicitamente que não se tratava de coligir contribuições com posições concordantes com as minhas, mas antes de estabelecer um diálogo crítico que tornasse possível identificar, de modo fundamentado e sereno, as nossas convergências e as nossas divergências. Aliás, dada a longevidade do meu livro e a sua reduzida extensão, pedi-lhes que se centrassem nos temas da sua preferência e nas questões por eles consideradas mais importantes, a esmagadora maioria das quais, por certo, não tinha sequer sido abordada por mim. Aos colegas estrangeiros capazes de ler português foi enviado o livro de AMB sempre que solicitado.
A resposta ao meu convite foi a melhor possível e está contida neste livro. Nele convergem contribuições de uma enorme variedade de disciplinas - filosofia (8), sociologia (9), história (1), física (7), biologia (4), antropologia (3), estudos culturais (1), economia (1), ciência política (1), psicanálise (1), matemática (2) - de um conjunto variado de países e comunidades científicas: Alemanha, Argentina, Bélgica, Brasil, Colômbia, Estados Unidos da América, Índia, Inglaterra, México, Moçambique e Portugal. No conjunto, são um mosaico muito rico, denso e variado, da reflexão contemporânea sobre a ciência. Não pretendem ser uma amostra representativa dessa reflexão e muito menos transmitir uma visão ecléctica ou exaustiva dos debates. Constituem uma visão possível dessa reflexão, não a visão global; são representativos de muitas das posições nos debates, não de todas. Como acontece em geral nas nossas interacções, científicas e outras, os diálogos intensificam-se quando as divergências ocorrem sobre um lastro de crescentes convergências. Não é de surpreender que me reveja em muitas das posições aqui apresentadas, mas tão-pouco pode surpreender que de outras divirja mais ou menos intensamente. Aliás, em várias das contribuições são explicitadas divergências em relação às minhas posições. É este o nosso modo de fazer avançar o debate.
O livro está dividido em quatro partes. Nas páginas seguintes farei um breve resumo descritivo de cada um dos capítulos do livro. Seria de todo impraticável entrar em diálogo com os diferentes autores nesta introdução ou mesmo identificar todos os pontos em que estou em acordo ou em desacordo com eles. Esse diálogo teve lugar por correspondência electrónica à medida que os autores foram preparando os seus textos, por vezes em várias versões. E certamente será reatado no futuro sob outras formas. Aqui apenas sumario as posições dos autores, utilizando inclusive a sua terminologia, com a qual por vezes não concordo.

A primeira parte, intitulada "Nem Tréguas, nem Rendições: Depois das Guerras da Ciência", reúne os textos que mais especificamente se articulam com os debates no âmbito do último episódio das "guerras da ciência". Como o título indica, a ideia central nesta secção é que o episódio mais recente das "guerras da ciência" parece ter-se exaurido à medida que foram sendo conhecidas as motivações específicas que o tinham alimentado, como mencionei atrás. Permaneceram os debates, mas num tom menos aguerrido e talvez mais esclarecedor.
No capítulo 1, João Arriscado Nunes faz uma análise do contexto sociológico e epistemológico em que surgiu Um Discurso sobre as Ciências e procede a uma avaliação dos argumentos nele defendidos à luz do desenvolvimento científico nas quase duas décadas seguintes e dos debates que ele suscitou, e também à luz da evolução da minha reflexão epistemológica que, em trabalhos posteriores, se orientou para os temas da diversidade dos modos de conhecimento e das condições sociais da sua produção, apropriação, circulação e articulação. Analisa especificamente cada uma das quatro teses prospectivas apresentadas no livro: todo o conhecimento científico-natural é científico-social; todo o conhecimento é auto-conhecimento; todo o conhecimento é local e total; todo o conhecimento científico visa transformar-se em senso comum. Carreia uma série de argumentos novos que confirmam as teses e mostra a inflexão dos debates epistemológicos ocorrida com o crescente protagonismo das ciências da vida. Salienta, em particular, o modo como as orientações reducionistas foram suplantadas pelas orientações para a complexidade e pelos processos de transversalização interdisciplinar associados a ela. Apresenta, finalmente, uma proposta de interpretação para uma polémica que considera "anacrónica e fora do lugar", contrapondo-a aos progressos recentes na criação em Portugal de uma cultura científica inclusiva, aberta, crítica e cosmopolita.
No capítulo 2, Richard Lee faz uma análise detalhada dos debates mais recentes sobre a ciência e, especificamente, da última guerra da ciência, centrando a sua análise nos EUA, mas estendendo-a às guerras da ciência em Portugal através de uma leitura crítica do meu livro e do de AMB. Lee mostra que a compreensão das guerras da ciência, sobretudo no modo como ocorreram nos EUA, exige que as contextualizemos no âmbito de guerras culturais e políticas bem mais amplas. O que esteve em jogo nas controvérsias foi, por um lado, o cânone cultural dominante na sociedade americana e a ameaça que para ele constituiu a emergência dos estudos culturais e a reivindicação do multiculturalismo e, por outro lado, a luta pelo controlo das políticas educativas e, nomeadamente, da reforma da universidade. A um nível mais profundo, o que esteve, está e estará em causa nos próximos tempos é a quebra do muro entre as duas culturas, ou seja, a separação entre cultura científica e cultura humanística, entre o estudo dos factos e o estudo dos valores, e o desafio que tal queda põe às estruturas de produção e de distribuição de conhecimento.
O capítulo 3 é de autoria de Peter Wagner. Wagner começa por perguntar-se por que é que o episódio da guerra da ciência ocorreu em Portugal, num contexto totalmente distinto do que sustentou a polémica nos EUA e a partir de um livro que tinha sido publicado quinze anos antes. E, tal como os autores anteriores, procede a uma leitura crítica, tanto do meu livro como de AMB. No que respeita ao meu livro, Wagner entra em linha de conta com outros textos posteriores a Um Discurso sobre as Ciências, nomeadamente com "A Epistemologia da Cegueira" (capítulo 4 de A Crítica da Razão Indolente) que ele já comentara aquando da sua publicação em inglês no European Journal of Social Theory ("Toward an Epistemology of Blindness: Why the New Forms of 'Ceremonial Adequacy' neither Regulate nor Emancipate", The European Journal of Social Theory, Vol. 4(3 ), Agosto de 2001).
A partir de um conhecimento muito sólido da história, da filosofia e da política do conhecimento científico, Wagner oferece uma leitura nova dos recorrentes debates sobre a ciência, vendo-os como o desdobrar de uma tensão inerente à relação entre o conhecimento e o mundo. No caso da ciência, a tensão decorre de uma contradição interna entre a pretensão de neutralidade e de distanciamento do mundo e a legitimação pela utilidade e eficácia na transformação do mundo. Wagner dá um relevo especial à filosofia da ciência de John Dewey, que argutamente identifica como uma das fontes de inspiração da minha reflexão.
No capítulo 4, Immanuel Wallerstein propõe-se analisar as guerras da ciência à luz da longue durée do sistema mundial moderno, de que é o principal teorizador. Mostra como a ciência se foi divorciando da filosofia para alcançar uma posição dominante na hierarquia do conhecimento, e problematiza, à luz dos acontecimentos contemporâneos, a separação que, no processo, ocorreu entre a busca do bem e a busca da verdade. Remetendo para os trabalhos da Comissão Gulbenkian sobre as ciências sociais, que dirigiu, e para o livro em que foram publicados os principais resultados (Para Abrir as Ciências Sociais: Relatório da Comissão Gulbenkian sobre a Reestruturação das Ciências Sociais. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1996), Wallerstein refere a emergência das três culturas - ciências naturais, ciências sociais e humanidades - que nos últimos cem anos estruturaram o nosso conhecimento, e detém-se no questionamento a que foi sujeita em tempos recentes esta divisão tripartida do conhecimento por parte dos estudos da complexidade, por um lado, e dos estudos culturais, por outro.
O capítulo 5 é da autoria de Isabelle Stengers. Começa por discutir a minha asserção de que não há razões científicas para que a explicação científica tenha prioridade em relação a outras explicações alternativas (Um Discurso sobre as Ciências, 52) e parte dela para questionar o que designa por "a grande separação" - entre ciência e filosofia, entre factos e valores - que tem caracterizado o conhecimento ocidental. Segundo ela, o "conhecimento que conta" numa dada comunidade é um híbrido de factos e valores, dando o exemplo da reivindicação da autonomia da ciência como condição da sua utilidade pública. Socorre-se de Bruno Latour e da distinção por ele proposta entre humanos e não humanos - em substituição da distinção entre sujeito e objecto - para justificar o papel das ciências sociais em mostrar como se produz o "conhecimento que conta", a importância dos empreendedores, das redes de cientistas e de não cientistas. Daí que a decisão sobre o conhecimento que conta e o que não conta seja uma questão iminentemente política e, portanto, refractária ao pensamento totalizante e a perspectivas privilegiadas a priori. No seguimento de Bruno Latour, Stengers propõe o conceito de ecologia política para significar a exigência radical de democratização neste domínio. Não a designando como "revolução cultural", mostra, no entanto, como esta exigência rompe com as concepções assentes na "grande separação".
O capítulo 6, de autoria de Joan Fujimura, visa contextualizar a recente guerra das ciências portuguesas num campo de disputa teórico-epistemológica temporal e tematicamente amplo, constituído por múltiplos episódios de confrontação em torno de propostas consideradas transgressivas. Tal como o capítulo anterior, procura trazer luz aos debates mais recentes, invocando a história da ciência. O "caso" analisado por Fujimura ocorreu em meados do século XIX, com a controvérsia sobre a emergência da geometria não-euclidiana. Com a análise deste caso, Fujimura pretende mostrar que as guerras da ciência não se travam em torno da oposição entre ciência e anti-ciência, nem da oposição entre objectividade e subjectividade. Travam-se, sim, em torno da autoridade científica para definir o tipo de ciência que deve ser feito. Depois de uma análise sintética mas esclarecedora do caso Sokal, Fujimura parte do que Sokal parodicamente afirma sobre a historicidade do pi , no seu embuste publicado em Social Text, para mostrar que, ao contrário do que ele pensa, o valor de pi tem de facto uma história, a qual está registada na história da matemática. Mostrar isso mesmo é o objectivo da sua análise sobre a controvérsia gerada em redor da geometria não euclidiana e as lutas renhidas pela autoridade do cânone matemático que ocorreram no seu seio. De tal análise sai evidenciada a importância da perspectiva histórica nos debates metodológicos e epistemológicos contemporâneos.
No capítulo 7, João Caraça procede a uma análise sucinta, mas muito esclarecedora, da evolução histórica dos contextos sociais e políticos da ciência. Considera que, no início do século XXI, estamos perante um novo regime de saberes, uma organização em arquipélago, reticular, que não postula uma génese comum a todos os saberes, nem aceita uma hierarquia natural ou funcional entre eles. Tal como John Dewey, João Caraça entende que a validade do conhecimento científico está tanto mais garantida quanto melhor forem conhecidos e aceites os limites do âmbito deste. Segundo ele, a ciência possui o monopólio da verdade apenas no que toca à descrição dos fenómenos que ocorrem na natureza. Em todos os outros domínios de actividade, do mercado à política, da cultura aos media, outros saberes verdadeiros permitem definir as mais adequadas estratégias de interacção com o real. Termina apelando à necessidade de um novo discurso sobre as ciências que acolha perspectivas internas, externas e comunicacionais da actividade científica e que privilegie o encontro inter- e intradisciplinar.
No capítulo 8, Germinal Cocho, José Gutierrez e Pedro Miramontes procedem a uma crítica veemente, tanto dos usos imperiais e destrutivos da ciência, como da demonização irracional da ciência. Fazem uma distinção entre a ciência em si e a sua aplicação, e submetem esta última a um juízo muito severo, dando como exemplo paradigmático a tecnologia da guerra. Consideram que o conflito entre cientistas e humanistas tem aqui a sua origem e que a sua superação deve assentar numa acção concertada, altamente política, no sentido de eliminar o potencial bélico da ciência e de, pelo contrário, pô-la ao serviço de um projecto social em que os homens e as mulheres comuns sejam donos do seu próprio destino. Quanto à ciência, centram-se, seguindo a sua própria formação, na física e na matemática. Partindo do colapso do reducionismo mecanicista, que dominou durante muito tempo a física clássica, mostram como as teorias da complexidade vieram enriquecer a física e como foi decisivo o papel da matemática nessa viragem. Os sistemas dinâmicos complexos enriqueceram a ciência com novos conceitos e ferramentas decorrentes das suas propriedades, como auto-organização, zona crítica, frustração, emergência.
O capítulo 9 é de autoria de Jorge Dias de Deus. O autor começa por esclarecer que concorda comigo no reconhecimento da validade de uma sociologia crítica da ciência, mas discorda da minha ideia de que a ciência está sujeita aos limites da condição humana e da sociedade em que é produzida. O facto de a ciência moderna ser parte de um processo social em que os valores da tradição foram substituídos pelos valores da eficácia, da competência e das regras técnicas ligadas à acção técnica, e o facto de a ciência ter sempre acompanhado o capitalismo apenas mostra que essas transformações sociais reclamaram, como mais adequada, a forma de conhecimento científico, um conhecimento concebido como universal e objectivo. Com base na ideia de que a ciência é feita por homens, Jorge Dias de Deus analisa criticamente as teorias de Popper, Merton e Kuhn, distinguindo entre normatividade metodológica e prática científica. Conclui, sugerindo a necessidade de uma terceira posição entre, por um lado, a ideia de uma lógica imutável, inerente à ciência e imune à sociedade, e, por outro, a ideia de que só nos resta o método histórico-sociológico para validar a ciência.
O capítulo 10 é de Roberto Follari. Follari faz uma análise sistemática dos principais argumentos de Um Discurso sobre as Ciências e da Introdução a uma Ciência Pós-moderna à luz da reflexão teórica e epistemológica que ele próprio tem vindo a elaborar ao longo dos anos. Ao fazê-lo, não só desenvolve muitos dos temas apenas referidos no meu trabalho, como acrescenta muitos outros que emergiram ou se tornaram importantes nas duas últimas décadas. Para ele, a imanência da ciência às condições sociais é um facto inquestionável e estrutural. O que caracteriza a ciência não é a observação dos factos, mas antes a construção metódica e controlada de um conhecimento que estabelece a previsibilidade como necessidade central. Manifesta as suas reservas em relação à erosão da causalidade nos modelos explicativos e teme o subjectivismo hermenêutico. Duvida que as ciências sociais possam liderar o paradigma emergente, mas considera que o seu papel será cada vez mais importante para a auto-reflexividade da ciência no seu conjunto. Suspeita, aliás, que algumas das tendências por mim apontadas como prometedoras possam ter conduzido a resultados perversos. Conclui o capítulo com a análise da minha concepção da dupla ruptura epistemológica desenvolvida com base nas teses de Um Discurso sobre as Ciências, mas apenas formulada na Introdução a uma Ciência Pós-moderna. Também aqui, Follari, ao mesmo tempo que partilha as minhas preocupações (aproximar a ciência dos cidadãos), acautela-nos contra o perigo da perversão.
No capítulo 11, Marcos Barbosa de Oliveira começa por afirmar que não se identifica com nenhum dos campos entre os quais recentemente se travaram as guerras da ciência, considerando, aliás, que as discussões geraram mais calor que luz. Propõe-se, assim, tentar aproximar os dois campos, procurando um terreno comum que possa tornar mais proveitosa a discussão. E esse terreno comum é o das práticas técnico-científicas. A tese que defende neste capítulo é que uma discussão séria sobre os rumos do desenvolvimento da tecnociência é incompatível com a forma mercantilizada de inserção das práticas tecno-científicas na sociedade que se vem fortalecendo na presente fase neoliberal da história do capitalismo. Marcos Barbosa parte do conceito de tecnociência - com que pretende significar a indissociação entre ciência e tecnologia - para questionar o processo acelerado de mercantilização da ciência e da tecnologia (o sistema de patentes) sob a égide do neoliberalismo, um processo tão avassalador que implica a própria reforma da universidade. Procede então a uma análise sistemática da reforma neoliberal da ciência e da tecnologia e mostra em que medida ela inviabiliza uma discussão séria sobre as práticas tecnocientíficas. Termina com um apelo à luta pela desmercantilização da tecnociência e a advertência de que esta luta é bem mais importante do que as que constituíram as guerras da ciência.
Na parte II, intitulada "Os Grandes Temas: Algumas Abordagens Possíveis", incluo textos em que é mais ténue o eco dos debates do episódio mais recente da guerra da ciência. São abordados aqui alguns dos temas que mais recorrentemente têm estado presentes na reflexão epistemológica e sociológica sobre a ciência moderna. Isto não significa que esses temas não sejam abordados nos restantes capítulos. Trata-se, antes, de uma questão de ênfase. Tão pouco significa que, à luz de outros critérios, outros "grandes temas" não pudessem ser seleccionados. Poderiam; trata-se de uma questão de escolha.
No capítulo 12, Stephen Toulmin, depois de se referir na Introdução ao diálogo que temos travado nos últimos vinte anos, analisa, com a erudição que lhe é característica, o processo histórico da redução do objecto da filosofia no bojo do qual emerge um conceito estreito de racionalidade. Enquanto, desde a antiguidade, a filosofia consistia no tratamento sistemático e metódico de qualquer assunto, a partir do século XVII opera-se uma clivagem e uma hierarquia entre formas de argumentação e pensamento, privilegiando-se a lógica e os argumentos formais e demonstrativos em detrimento da retórica e dos argumentos substantivos. A filosofia ficou confinada aos primeiros e a retórica, expulsa da filosofia, foi "despromovida" a tema de estudos literários. Isto leva a que seja adoptada uma concepção duplamente estreita de racionalidade, porque expulsa do seu âmbito a razoabilidade da argumentação substantiva e porque, para vingar, exige uma focalização estreita em matéria de conteúdo. Toulmin propõe um regresso ao holismo da filosofia grega, onde o logos incluía o conjunto da argumentação e do pensamento, tanto argumentos formais como argumentos substantivos, tanto a lógica como a retórica. Não sendo possível fazer uma separação total entre a lógica e a retórica, já que todos os discursos estão mais ou menos situados, propõe a adopção de um conceito de racionalidade onde caiba a razoabilidade, que é afinal o tipo de pensamento que mais diz respeito à condução da nossa vida quotidiana.
A este texto, que reproduz o capítulo 2 do seu livro Return to Reason (Cambridge MA: Harvard University Press, 2001), Toulmin acrescenta, em excursus, um texto original sobre "os usos humanos das ciências técnicas", em que estende o argumento anteriormente apresentado ao conhecimento técnico, apelando a um maior equilíbrio entre conhecimento teórico e conhecimento prático, entre a acção técnica e as suas consequências na sociedade e nos indivíduos.
O capítulo 13 é de autoria de Anna Carolina Regner. Entre este capítulo e o capítulo anterior, de Stephen Toulmin, há uma notável convergência, na medida em que ambos apelam a uma concepção de racionalidade mais ampla, assente numa nova visão das relações entre retórica e ciência, em que a distinção entre argumentação científica e argumentação retórica colapsa. Anna Regner começa por perguntar-se se a visão tradicional da racionalidade científica - baseada na distinção estrita entre demonstrações que conduzem a verdades necessárias e universais e argumentos persuasivos e contextuais que conduzem a conclusões verosímeis - está preparada para dar conta das questões levantadas pelas análises mais recentes da ciência. A resposta é negativa. E, para a fundamentar, socorre-se da análise de um "caso exemplar" de argumentação científica, a Origem das Espécies, de Charles Darwin. Procede a uma reconstrução sistemática das estratégias argumentativas de Darwin, à luz da Retórica de Aristóteles. Na narrativa darwiniana, observação e experimento, a subsunção dos factos à regra e o estudo de casos exemplares surgem de par com o uso da imaginação, o recurso à metáfora e à analogia, a invocação do peso das razões, o apelo à ignorância, aos hábitos mentais e, em geral, às condições e valores psicológicos e sociológicos da investigação científica. O cotejo sistemático do dispositivo argumentativo de Darwin com a Retórica de Aristóteles leva Regner a concluir que, numa visão aristotélica, as estratégias argumentativas de Darwin são "retóricas". Longe de enfraquecer o discurso científico, os recursos retóricos são-lhe constitutivos e o reconhecimento disso mesmo abre novas possibilidades ao discurso racional, assente numa concepção mais ampla da racionalidade.
O capítulo 14 é de autoria de Miguel Baptista Pereira. Parte da análise semântica do conceito de precisão, tal como é usado na filosofia e na ciência, mostrando que lhe está associada a ideia de corte, de violência, de redução radical da facticidade da existência como condição da pureza e do rigor do saber. Traça as origens clássicas e medievais deste conceito e descreve o modo como ele passou a ser central na filosofia moderna como expressão de autonomia da razão e como condição do método científico, especialmente sob a forma da precisão matemática. Permanece, no entanto, uma tensão entre o corte redutor e a unidade integradora. Segundo Miguel Baptista Pereira, esta tensão está presente na física moderna: comparada com a física clássica; a física quântica evita a divisão cartesiana do mundo, substituindo a precisão que corta pela distinção que une. Este tema é desenvolvido ao longo do texto por referência à obra de W. Heisenberg e de C.F. Weizsäcker e ao diálogo entre eles e às suas reflexões sobre as relações entre a linguagem matemática e a linguagem natural, os limites da axiomatização, a ideia heisenbergiana da teoria conclusa (abgeschlossene Theorie), a ideia de von Weizsäcker e de Heidegger de que a ciência deve o seu triunfo ao facto de ter renunciado às perguntas pelos fundamentos. Da física às ciências da vida, de von Weizsäcker a Heidegger, Miguel Baptista Pereira identifica os limites da razão analítica, redutora e fragmentora ante a complexidade do ser e do acontecer.
O capítulo 15 é de autoria de João Maria André. Deve-se ao autor a primeira recensão de Um Discurso sobre as Ciências, publicada no Jornal de Letras, ainda em 1987. Como ele próprio refere, este capítulo é a continuação de um diálogo que temos vindo a manter nos últimos dezasseis anos. E o diálogo não se limita a Um Discurso sobre as Ciências, englobando também os meus trabalhos posteriores, nomeadamente A Crítica da Razão Indolente. André começa por inserir Um Discurso sobre as Ciências num movimento epistemológico de resistência ao empirismo e positivismo que, saídos do Círculo de Viena, dominaram todo o século XX. São constitutivos desse movimento não só o reconhecimento do pluralismo metodológico e axiológico, mas também, e sobretudo, uma visão transdisciplinar e holística da prática científica no contexto de outras práticas humanas e, tal como essas práticas, vinculada a valores epistémicos e outros. Para João Maria André, há uma assimetria em Um Discurso sobre as Ciências, na medida em que a crítica do paradigma dominante não é seguida de uma formulação alternativa dos critérios epistémicos de verdade e de objectividade, abrindo assim o flanco à acusação de relativismo. Tal alternativa está apontada em a Introdução a uma Ciência Pós-moderna, mas, segundo ele, de uma forma demasiado abreviada. Acresce que a introdução do conceito de ciência pós-moderna em Introdução a uma Ciência Pós-moderna acabou por inserir as propostas epistemológicas de Um Discurso sobre as Ciências no debate mais amplo sobre a modernidade/pós-modernidade. A dissolução da distinção entre ciências naturais e ciências sociais prospectivamente apontada como caracterizando o paradigma emergente é também questionada por André.
O capítulo 16 é de autoria de Hermínio Martins. Utilizando como estratégia narrativa a fábula de um visitante de outro planeta às nossas instituições científicas e ao conhecimento nelas produzido, Hermínio Martins percorre as grandes linhas dos debates epistemológicos do último século e mostra a estranheza que a um observador externo - que ele não é mas em cuja pele se põe - pode causar a discrepância entre os avanços científicos e a problematização epistemológica que eles suscitam. Começando pelas ciências sociais e humanas e passando depois às ciências exactas e naturais, o visitante extraterrestre estranhará a prevalência, nas últimas décadas, do cepticismo, niilismo e relativismo epistemológicos (e as reacções fundamentalistas cientificistas militantes que eles provocam em aparente contraste com a pujança da civilização técnico-científica). Martins considera que o cepticismo é inseparável da filosofia moderna e analisa as suas diferentes formas, distinguindo várias fases do relativismo epistemológico. Percorre com grande detalhe a querela do realismo e a crise da concepção da verdade como correspondência à realidade, e mostra como a grande capacidade de intervenção (e de resolução de problemas) e de manipulação experimental, por parte da ciência, convive com teorias minimalistas de verdade (por exemplo, o realismo referencial em vez do realismo da verdade). Segundo Martins, tais teorias e o cepticismo que veiculam decorrem da necessidade de defender a autonomia da ciência. Enquanto para Popper, Polanyi e Merton, a defesa da autonomia foi accionada contra o poder político e a ideologia totalitários - o que os levou a ver a coerência essencial entre ciência, democracia e capitalismo -, nos nossos dias ela terá de ser accionada contra a mercantilização da ciência e a conversão desta na empresa-ciência e na tecnociência empresarializada.
No capítulo 17, Francisco Gutiérrez aborda dois temas que, apesar de constitutivos da ciência moderna, têm vindo a assumir uma renovada premência em face da crescente dissonância entre as brilhantes promessas da ciência e a consciência cada vez mais aguda dos limites do seu rigor. Os dois problemas são, precisamente, os limites da ciência e da razão, em geral, e a questão de uma racionalidade mais ampla, assente na bricolage de racionalidades e de disciplinas científicas. No tratamento do primeiro tema, Gutiérrez socorre-se de Pascal e da distinção por ele formulada entre limites cognitivos e limites morais. Os primeiros dizem respeito à impossibilidade de métodos irrefutáveis, enquanto os segundos têm a ver com o que Pascal designa por "vaidade das ciências", a ideia de um pensar refractário à experiência vital que não reconhece a validade dos saberes centrados na prática e nos costumes. Os limites morais estão relacionados com o tema, abordado em Um Discurso sobre as Ciências, das relações entre ciência e senso comum e também com o segundo tema tratado por Gutiérrez. Para Gutiérrez, se é verdade que toda a ordem é vulnerável, não se pode deduzir dessa constatação a renúncia à ordem. Toda a ordem sensata é bricolage, e é nesta que Gutiérrez vê a superação da distinção entre ciências naturais e ciências sociais, proposta prospectivamente em Um Discurso sobre as Ciências. Gutiérrez dá três exemplos recentes de bricolage: o estilo cognitivo da mecânica quântica, a linguística e os autómatos celulares e programas computacionais de Wolfram.
O capítulo 18, da autoria de Carlos Plastino, começa por salientar que a proposta de Um Discurso sobre as Ciências é menos uma crítica do essencialismo ou da teoria representacional da verdade do que uma crítica da ciência enquanto única modalidade válida de apreensão do real. A reivindicação da pluralidade de modalidades de apreensão do real vai de par com a crítica do dualismo sujeito/objecto impregnado na modernidade ocidental muito para além da ciência. Daqui parte Plastino para propor que, aos quatro rombos por mim identificados no paradigma clássico da ciência moderna - a teoria da relatividade, a mecânica quântica, o teorema de Gödel e as estruturas dissipativas de Prigogine -, deve acrescentar-se um quinto rombo: a psicanálise de Freud. Freud confronta-se com uma variante do dualismo sujeito/objecto especialmente insidiosa, o dualismo corpo/psiquismo, que reduz o corpo à condição de máquina determinada e o psiquismo à consciência. Para o superar, Freud propõe uma experiência de conhecimento que opera de sujeito a sujeito, uma experiência de apreensão do embate dos corpos e dos afectos. Plastino analisa os obstáculos à identificação da psicanálise como um saber crítico do paradigma moderno, de algum modo relacionados com a própria evolução do pensamento de Freud até à valorização plena do inconsciente - ou seja, de experiências não mediadas pela consciência e pela linguagem - e do psiquismo corporal (unidade corpo/Id).
O texto centra-se então na construção do saber psicanalítico - e da "descoberta" fundamental do inconsciente - enquanto meta-psicólogo assente na intersecção de instrumentos teóricos e prática clínica. A crescente relevância dada ao inconsciente vai de par com a contestação do monopólio da consciência e da razão postulada pelo paradigma da modernidade.
No capítulo 19, Hugo Zemelman questiona o dualismo sujeito/objecto a partir de um ângulo diferente: a relação da exterioridade do sujeito de conhecimento ao seu próprio conhecimento. A partir de onde conhecemos? Para que conhecemos? O conhecimento enriquece-nos enquanto sujeitos? Segundo Zemelman, estas questões são fundamentais e não podem ser respondidas - e, aliás, nem sequer formuladas - enquanto o sujeito for exterior ao seu conhecimento e utilizar os métodos e os dispositivos lógico-epistemológicos para garantir essa exterioridade. Para isso, Zemelman propõe uma outra atitude, não apenas epistemológica, mas também existencial, que vincula o sujeito ao seu próprio conhecimento, e não apenas por via das suas capacidades racionais, mas antes de todas as suas faculdades. Propõe que a "hospitalidade" de Levinas seja assumida como condição epistémica que permite ao sujeito colocar-se perante as circunstâncias, abrir-se ao inédito e saber pensar a partir do desconhecido. Só a incorporação do sujeito no conhecimento permite dar conta da complexidade do real existencial e resistir contra a dominação que se exerce através do conhecimento. O envolvimento torna possível uma capacidade de espanto e de argumentação que não se deixa enredar nos conhecimentos já codificados e permite situar o sujeito num momento aberto a múltiplas opções de apropriação e de intervenção.
A Parte III, intitulada "Interrogações Complexas, Criativas e Situadas: A Ciência em Acção", inclui os capítulos que incidem mais especificamente sobre as práticas científicas, sobre os problemas teóricos, metodológicos e epistemológicos que se levantam ou estão presentes no dia a dia da actividade científica.
O capítulo 20 é de autoria de Hugh Lacey. Embora o livro de AMB seja referido em vários capítulos, é neste capítulo que ele é mais detalhadamente discutido. Este texto que, por esta razão, poderia ser inserido na Parte I, é incluído aqui para salientar a sua reflexão sobre as práticas científicas concretas. Reportando-se à questão rousseauniana (há alguma relação entre a ciência e a virtude?), mencionada em Um Discurso sobre as Ciências, Lacey propõe-se responder a uma questão afim: como deve a ciência proceder de modo a promover o bem-estar humano? Começa por problematizar a relação entre ciência e valores e, para isso, distingue entre imparcialidade, autonomia e neutralidade da ciência, e identifica três momentos decisivos da actividade científica - o momento da determinação das prioridades e da orientação da pesquisa e metodologias apropriadas; o momento da avaliação das teorias ou hipóteses; e o momento da aplicação do conhecimento científico - e avalia à luz deles as teses de AMB sobre a relação entre ciência e valores. Apresenta um modelo de actividade científica assente no conceito de estratégia, através do qual se especificam as possibilidades que podem ser exploradas no decurso de uma dada investigação. Distingue entre estratégias materialistas e estratégias alternativas. As primeiras são esmagadoramente dominantes pela sua identificação com valores especificamente modernos, que privilegiam o controlo dos objectos naturais. Daí que, na sua terminologia, a imparcialidade não implique neutralidade. Termina com uma avaliação crítica de Um Discurso sobre as Ciências, apresentando um conjunto de teses sobre as relações entre ciências sociais e ciências naturais.
O capítulo 21 é de autoria de Miguel Ramalho Santos. O autor dá conta da sua investigação sobre as células estaminais (células indiferenciadas que têm capacidade de se auto-renovarem e de darem origem a células especializadas), geralmente considerada uma área de investigação de grande potencial pelos contributos revolucionários que pode trazer para a medicina e especificamente para as terapias de substituição e para os transplantes. Miguel Ramalho Santos apresenta neste texto o quadro teórico da sua investigação, em que são utilizados dois dos conceitos discutidos em Um Discurso sobre as Ciências, o conceito de autopoiese e o conceito de complementaridade. Partindo dos trabalhos de Humberto Maturana e Francisco Varela, o autor distingue entre sistemas autopoiéticos de primeira ordem e de segunda ordem, e mostra que as células estaminais desempenham um papel essencial entre a autopoiese de primeira ordem e a de segunda ordem. Mostra também as vantagens da concepção das células estaminais em termos de autopoiese em relação a outras concepções alternativas, como o conceito de homeostase. No entanto, é a mesma investigação sobre as células estaminais que leva o autor a criticar o fechamento organizacional e a estrutura determinista da teoria de autopoiese de Maturana e Varela, propondo, em alternativa, uma teoria de sistemas autopoieticos sem fronteiras absolutas e com alguma abertura organizacional que dê conta do facto de a maioria das unidades individuais na biologia, se não todas, terem fronteiras que não podem ser totalmente definidas. Miguel Ramalho-Santos considera igualmente frutífera a importação para a biologia do conceito de complementaridade da física quântica por permitir uma compreensão mais aprofundada do comportamento probabilístico das células estaminais.
O capítulo 22 é de autoria de Olival Freire Júnior. As ideias do físico Eugene Wigner sobre o processo de medição em física quântica, mencionadas em Um Discurso sobre as Ciências e criticadas por AMB, são o tema central deste capítulo. Olival Freire, profundo conhecedor das posições de Wigner e da controvérsia que elas geraram, pretende, com a sua análise, contribuir para uma imagem realista da ciência, uma imagem que, em seu entender, permita um melhor relacionamento entre a ciência e a sociedade e constitua um antídoto contra as tendências irracionalistas. O autor percorre em detalhe a controvérsia que opôs Wigner à interpretação da complementaridade defendida pela Escola de Copenhaga e o modo como ele e os que o acompanhavam quebraram um consenso que parecia indestrutível. A tese principal de Olival Freire é que, apesar de as conjecturas de Wigner sobre o papel da consciência nos fenómenos físicos não se terem revelado frutíferas e terem sido abandonadas - e serem hoje, por isso, parte da história da física e não da física -, o facto é que, ao formulá-las contra a "monocracia de Copenhaga" sobre a complementaridade, Wigner abriu uma importante problemática teórica, experimental e filosófica, com repercussões significativas nas últimas décadas. Não reconhecer isto e julgar Wigner pelo que sabemos hoje, mas não se sabia ao tempo em que ele formulou as suas ideias, significa incorrer no erro de anacronismo, um erro que Olival Freire atribui a AMB. Daí a importância da história da ciência para, contra o anacronismo, fundar uma compreensão ampla da ciência em que caiba a cientificidade da própria história.
O capítulo 23 é de autoria de Samuel MacDowell. Muitas das ideias e argumentos de Um Discurso sobre as Ciências foram pela primeira vez "testadas" em longas conversas com Samuel MacDowell, físico teórico da Universidade de Yale, entre 1970-1973, quando preparava o meu doutoramento naquela universidade. As nossas cumplicidades políticas e ideológicas cruzavam-se de modo complexo com as nossas diferentes formações científicas e, ao fim de debates vivos e inesquecíveis, resultavam em convergências e divergências teórico-epistemológicas intensas e vincadas. Essa intensidade e esse vinco transparecem de modo sintético e cristalino neste capítulo.
MacDowell concorda com a minha crítica ao determinismo mecanicista e com o meu propósito de ver superada a separação entre "as duas culturas". Discorda, no entanto, de que seja possível uma síntese entre as ciências naturais e as ciências sociais. Discorda também do meu questionamento da causalidade e da interpretação que faço do teorema de Gödel. Termina mencionando um tema não abordado por mim e que, em seu entender, é fundamental: a questão da determinação dos sistemas inerciais em relação aos quais as leis de movimento se aplicam.
O capítulo 24 é de autoria de João Ramalho Santos, e, tal como o capítulo anterior, adopta a perspectiva da ciência como se faz na prática e enquanto se faz, para captar os complexos processos de criação científica e as controvérsias que gera. As problemáticas discutidas neste capítulo mostram bem como e por quê a biologia (sobretudo a biologia da reprodução e do desenvolvimento) tem vindo a assumir, desde a década de 1990, o lugar de destaque nos debates epistemológicos e sociológicos sobre a ciência que, nas décadas anteriores, fora ocupado pela física. Começa com uma narrativa da reprodução, das suas peripécias, das suas dificuldades e das muitas técnicas de reprodução assistida desenvolvidas para as superar. A polémica causada por estas técnicas é depois analisada, conjuntamente com outras polémicas noutras áreas científicas, com base na tese central do autor de que a reconstrução das transformações científicas e das controvérsias que suscitam deve incidir sobre o momento em que tiveram lugar e à luz dos dados que, à altura, estavam disponíveis. Analisá-los à luz dos resultados a que conduziram ou do modo como, a longo prazo, os mecanismos de validação científica funcionaram elimina a complexidade dos processos de criação científica e é pouco útil para os cientistas, já que estes vivem e trabalham hoje, com os dados e técnicas hoje disponíveis e sempre na fronteira entre o que hoje é conhecido e desconhecido. Tal como Olival Freire, João Ramalho Santos adverte contra o erro do anacronismo e sugere que, se tal advertência for tomada em conta, será possível manter controvérsias para além das guerras da ciência que sejam verdadeiramente enriquecedoras para os cientistas e para os cidadãos em geral.
O capítulo 25 é de autoria de Peter Taylor. Taylor relata a sua trajectória intelectual desde os anos 1970, altura em que decidiu dedicar-se à ecologia enquanto ciência. Ao longo do texto mostra como foi desenvolvendo uma consciência crítica e uma atitude reflexiva sobre os conceitos e modelos utilizados na sua disciplina científica para definir os sistemas ecológicos e as suas transformações. Central nesse desenvolvimento foi a ideia da complexidade desses sistemas e a consequente dificuldade ou mesmo impossibilidade em estabelecer fronteiras bem definidas entre os factores considerados relevantes para a definição dos sistemas e os processos subjacentes. Simultaneamente, reflectindo sobre os desenvolvimentos da ecologia e sobre a sua própria prática científica, chegou à conclusão de que havia uma tensão (não necessariamente negativa) entre a pretensão da auto-referencialidade da ciência e o impacto das condições de investigação e das preocupações sociais dos cientistas no conteúdo do conhecimento científico (aquilo a que chama a socialidade da ciência). Paulatinamente, dá-se conta de que tal socialidade pode transformar-se num recurso para a conquista de novos conhecimentos, designando esse processo de construção heterogénea. Apercebeu-se, assim, dos processos intersectantes e complexos presentes nas dinâmicas ambientais, difíceis de investigar (e mais ainda de comunicar) e insusceptíveis de ser captados numa teoria geral. Conclui referindo como chegou à ideia do "planeamento participativo" e do "envolvimento flexível" do cientista a partir da identificação do tipo de reflexão que leva o cientista a modificar (reflexivamente) os sistemas ecológicos sobre os quais produz conhecimento.
O capítulo 26 é de autoria de Maria da Conceição Ruivo. O tema central deste capítulo é a questão da linguagem na produção e na comunicação da ciência e nos debates sobre a ciência. Segundo a autora, muitas das polémicas a respeito da ciência são causadas pelo desconhecimento mútuo das linguagens usadas. Trata-se de um problema complexo, porque a linguagem com que se faz a ciência é ela própria também um elemento da própria produção científica, e a linguagem com que se fala da ciência é uma nova linguagem. O reconhecimento desta complexidade leva a autora a defender uma atitude de tolerância e de respeito mútuo que permita a partilha de pontos de vista por parte de cientistas de diferentes áreas, sem pretensões de monopólio. Através de exemplos da mecânica clássica, da teoria da relatividade e da mecânica quântica, Conceição Ruivo ilustra as dificuldades na comunicação do saber científico. Acresce que os resultados científicos raramente são comunicados de maneira que se faça justiça aos complexos processos de criação científica. Para a autora, a criação não se faz segundo um manual de instruções, e os modelos, as metáforas, os saberes de outros campos e o próprio senso comum estão entre os meios de que a criação científica vorazmente se alimenta. A terminar, a autora questiona o modo como em Um Discurso sobre as Ciências e na Introdução a uma Ciência Pós-moderna é imaginado o paradigma emergente.
O capítulo 27, da autoria de José Mariano Gago, aborda um tema escassamente tratado: a teoria da apropriação social da ciência e da cultura científica em situações museológicas, de exposição ou, em geral, educativas. A tese central é que o museu ou a exposição científica, longe de serem a mera apresentação ao público de processos acabados ou da materialidade inerte dos instrumentos científicos, envolvem um trabalho científico próprio e uma reflexão complexa, orientados para o que está envolvido na passagem de situações experimentais técnico-profissionais a situações museológicas, expositivas e educativas. Tal passagem, para ter êxito e ser um factor de apropriação social da ciência, pressupõe um projecto de museu que tematize o potencial de interactividade, a relação entre cientistas, o público e até outros actores relevantes (como, por exemplo, astrónomos amadores) e a criação de espaços de diálogo e de comunicação incorporados na própria concepção e execução dos módulos expositivos. Ao contrário do que frequentemente se crê, Mariano Gago acha possível conceber com êxito a passagem de situações profissionais para ambientes expositivos orientados para o grande público, nomeadamente através de instalações materiais do pensamento científico em acção abertas à manipulação e à observação sensorial e activa dos utilizadores. As dificuldades em promover tal modelo de proximidade derivam de um modelo retórico de ensino das ciências de que está excluída a apropriação da cultura científica por aqueles que não são cientistas.
A Parte IV, intitulada "Injustiça Cognitiva Global: Para Reconstruir os Conhecimentos e o Mundo", reúne os capítulos em que as relações entre a ciência e a sociedade são o tema central da reflexão. Este tema desdobra-se convencionalmente em dois subtemas: a impregnação social e cultural da ciência, uma actividade específica mas não menos social por isso, e a transformação social e cultural produzida pela ciência (a questão do impacto), enquanto sistema de conhecimentos que veicula uma visão do mundo e da sociedade e enquanto aplicação tecnológica desses conhecimentos. Na última década, a estes dois subtemas juntou-se, com crescente premência, um terceiro subtema: o reconhecimento de outros conhecimentos geralmente designados de não científicos, alternativos à ciência, e as relações entre esses conhecimentos e a ciência. Este tema tem vindo a adquirir particular acuidade nos domínios da biodiversidade e do regime dos direitos de propriedade intelectual saído do Uruguay Round do GATT. As discussões no âmbito deste tema têm vindo a mostrar que as hierarquias entre conhecimentos são simultaneamente produtos e produtoras de hierarquias sociais e, portanto, das desigualdades que ocorrem de par com elas. A injustiça social traduz-se frequentemente em injustiça cognitiva. Esta injustiça ocorre no interior das sociedades e nas relações entre elas (as relações Norte/Sul, entre o centro e a periferia do sistema mundial).
O capítulo 28 é da autoria de Francisco Louçã. Este texto poderia ter sido incluído na parte anterior, sobre os temas da ciência em acção. Incluo-o, contudo, nesta parte para salientar a reconstrução da teoria crítica na economia, proposta pelo autor, com o objectivo de restituir à ciência económica a vinculação aos objectivos da transformação social progressista que teve anteriormente, mas que, entretanto, "misteriosamente" perdeu. Francisco Louçã faz uma eloquente análise da evolução da ciência económica nos últimos cem anos e mostra como o objectivo de melhoria da sociedade (combate ao desemprego, à recessão e à desigualdade), partilhado por muitos dos economistas que protagonizaram as transformações teóricas e metodológicas mais importantes, acabou por ser boicotado ou neutralizado pelos pressupostos de que partiam, pelo modo como cederam à ortodoxia dominante para maximizar a sua capacidade de influenciar as decisões políticas. Foram objectivos sociais que levaram à adopção na economia dos princípios da física e, com isso, à naturalização e à matematização da economia. Esta naturalização acabou, no entanto, por não acompanhar as transformações entretanto ocorridas nas ciências naturais.
O autor analisa as sucessivas gerações de economia matemática e as trajectórias que as levaram à abdicação crítica, mesmo quando os desígnios dos seus cultores iam em sentido contrário. Segundo o autor, dado que a crise deste paradigma é evidente, é necessário que a economia recupere a sua vocação da ciência social crítica e se proponha conhecer a realidade e não as abstracções em que se transformaram, para os neo-clássicos, os agentes e o mercado.
O capítulo 29 é da autoria de Arturo Escobar. O autor começa por avaliar as tendências analisadas e as teses propostas em Um Discurso sobre as Ciências à luz dos desenvolvimentos epistemológicos e políticos das duas últimas décadas, considerando que, em larga medida, foram confirmadas. Ressalva o caso das relações entre as ciências sociais e as ciências naturais, em que hoje identifica o recuo das primeiras ante a investida das segundas, ao contrário do que se previa em Um Discurso sobre as Ciências. Centra-se na primeira e na quarta tese caracterizadoras do paradigma emergente ("todo o conhecimento científico-natural é científico-social" e "todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum"), analisando, à luz delas, a produção de conhecimento levada a cabo pelos movimentos sociais que na última década têm vindo a confrontar a globalização neoliberal e a contrapor-lhe a ideia de uma globalização alternativa, solidária. Recorre às teorias da complexidade e da auto-organização, desenvolvidas na biologia, para caracterizar estes movimentos, que concebe como organizações horizontais estruturadas em redes cuja malha se constrói com elementos (lutas e locais) heterogéneos e se adensa em direcções imprevistas em função das interacções que abrange e dos catalisadores que nela interferem. Os movimentos são produtores de conhecimento e, de facto, de um novo senso comum, cujo impacto epistemológico na transição paradigmática deve ser reconhecido.
Escobar ilustra a sua tese com o movimento social das comunidades negras do Pacífico colombiano que, desde a década de 1990, têm vindo a produzir um conhecimento ecológico e cultural autónomo a partir da ideia da região-território concebida como construção política e cultural capaz de sustentar uma defesa eficaz dos recursos naturais, da biodiversidade. Tal conhecimento é, em última análise, um novo senso comum construído a partir das necessidades práticas do movimento.
O capítulo 30, de Walter Mignolo, trata da injustiça cognitiva global produzida desde o século XVII pela ciência moderna ocidental, concebida como uma constelação epistémica e política constituída pela modernidade e pela colonialidade do poder. Propõe uma nova concepção de modernidade enquanto lado visível de um processo histórico que não pode ser compreendido sem o seu outro lado, até há pouco invisível, a diferença colonial enquanto diferença de poder que é também uma diferença epistémica e ontológica. Esta concepção leva Mignolo a concluir que a revolução científica do século XVII é menos uma ruptura do que uma continuidade com a teologia do século anterior, na medida em que o desconhecimento ou a marginalização de outras formas do conhecimento à escala do planeta é comum a ambos os paradigmas. Segundo ele, é a partir da diferença colonial que se deve criticar e superar a modernidade, e não o inverso. Nela reside a base do duplo discurso da modernidade, proclamando simultaneamente o avanço da humanidade e a sua subjugação. Mignolo concorda com a minha caracterização do paradigma emergente enquanto "conhecimento prudente para uma vida decente", mas entende que o seu horizonte não é a pós-modernidade, mas sim a transmodernidade (Enrique Dussel), a passagem da uni-versalidade para a pluri-versidade do conhecimento e da compreensão. A concluir, analisa o contributo dado a esse novo paradigma pelas "epistemologias feministas" e pelas "epistemologias etno-raciais" a partir da década de 1970.
O capítulo 31 é de autoria de Orlando Fals Borda e Luis E. Mora-Osejo. No conjunto dos contributos que integram este livro, este tem a especificidade de ser de co-autoria entre um cientista social e um cientista natural e de assumir a forma de manifesto. Fals Borda é internacionalmente conhecido pela metodologia que desenvolveu, a investigação-acção participativa, para superar as dicotomias discriminatórias que, em seu entender, caracterizam a ciência eurocêntrica, entre o saber científico e o saber popular e entre o cientista e o político. Neste manifesto, os autores partem da ideia de que todo o conhecimento é contextual e de que, portanto, a ciência moderna - tão social como natural -, tendo sido desenvolvida nos países da Europa e do Atlântico Norte, reflecte as realidades destes regiões do mundo e o modo como elas se relacionam com as outras regiões. A ciência eurocêntrica produz assim um efeito duplamente negativo nestas últimas regiões: reforça a hierarquia entre países desenvolvidos e países menos desenvolvidos e as relações de colonialismo interno e impede a construção de um conhecimento científico ancorado nas realidades dessas regiões. Para caracterizar as diferenças geográficas, históricas e culturais entre as várias regiões do mundo, os autores recorrem à distinção geo-climática entre zonas tropicais e zonas temperadas. A ciência moderna, criada nestas últimas regiões, desconhece a complexidade e a fragilidade das regiões tropicais, os seus ecossistemas, a sua riquíssima biodiversidade, as suas comunidades pluriétnicas e multiculturais como formas muito próprias de relacionamento entre natureza e cultura. Sem negar a importância desta ciência, propõem o desenvolvimento de uma ciência contextualizada, um paradigma científico endógeno, uma soma de saberes que valorize os conhecimentos populares e permita fundar o desenvolvimento sustentável das regiões tropicais. Só assim será possível superar a injustiça cognitiva global e fundar novas e equitativas alianças entre cientistas do Norte e cientistas do Sul.
O capítulo 32 é de autoria de Maria Paula Meneses. O tema central deste capítulo, tal como nos anteriores, é a injustiça cognitiva global assente na hierarquia entre ciência moderna e conhecimentos locais e nas que se articulam com ela, a hierarquia entre o Norte e o Sul, entre desenvolvido e subdesenvolvido, entre doador e recipiente da filantropia internacional. Tal como em Mignolo, a origem destas hierarquias está na colonialidade de poder, mas esta é agora analisada no contexto africano e, especificamente, moçambicano. Usando como exemplos a medicina e a biologia, Paula Meneses mostra como a ciência moderna impõe padrões eurocêntricos (de saúde, por exemplo), de que decorre a equivalência entre a distinção tradicional/moderno e a distinção selvagem/civilizado. A colonialidade do saber científico consiste em conceber o Norte como tendo conhecimento e soluções e o Sul como tendo informações e problemas. Esta colonialidade do saber acaba por infiltrar-se nas elites moçambicanas, sendo exemplo disso a proposta de lei de ciência e tecnologia apresentada pelo Governo Moçambicano. Paula Meneses ilustra os seus argumentos com as consultorias, que considera serem um caso extremo de conhecimento descontextualizado que ignora ou exotiza as práticas e os saberes locais. O capítulo assume então um carácter auto-reflexivo, em que a autora identifica os dilemas que ela própria enfrentou enquanto consultora. Termina o capítulo defendendo a ideia da pluralidade de saberes assente na multi-situacionalidade da sua criação.
O capítulo 33, de Shiv Visvanathan, retoma o tema da injustiça cognitiva global e, tal como Paula Meneses, aborda-o através do impacto nos países do Sul, neste caso a Índia, da ciência hegemónica e do conhecimento descontextualizado em que ela se traduz. Para Visvanathan, as guerras da ciência nos países do Norte têm um carácter lúdico porque, apesar de tudo, ocorrem entre cientistas e filósofos. Há, no entanto, uma outra guerra das ciências bem mais destrutiva, a que respeita às relações entre ciência e desenvolvimento, porque nesta guerra as opções epistemológicas determinam as oportunidades de vida que são dadas ou recusadas a vastas populações do mundo. Dando como exemplo a Índia, Visvanathan mostra o grau de destruição social que pode resultar de concepções da ciência que não respeitam os saberes das populações, as suas memórias e aspirações, os seus espaços e os seus tempos, e, sobretudo, os seus direitos à voz e à participação democrática. Analisa a seguir alguns dos movimentos em prol da ciência que se constituíram para promover concepções alternativas de ciência, epistemologias contextualizadas assentes num entendimento profundo da ideia de democratização do conhecimento científico. Segundo Visvanathan, a experiência destes movimentos mostra que o reconhecimento epistémico dos conhecimentos não científicos (por exemplo, o conhecimento dos camponeses, tão útil hoje para a biotecnologia) não deve ser interpretado como uma atitude anticiência. É antes um contributo para pluralizar e diversificar as nossas concepções de saber e de ciência.
O capítulo 34 é da minha autoria. As minhas reflexões epistemológicas - tanto em Um Discurso sobre as Ciências como em trabalhos posteriores (1989; 1995; 2000) - tiveram sempre origem na necessidade de resolver problemas novos e muito concretos com que a investigação empírica frequentemente me surpreendeu e confrontou. Desde logo, no primeiro trabalho de campo de envergadura numa favela do Rio de Janeiro em 1970, cujos resultados constituíram a minha tese de doutoramento (Yale, 1973), confrontei-me com um direito não oficial e um conhecimento jurídico popular riquíssimos que, embora importantes para vastas camadas populares, eram totalmente ignorados pelo direito oficial e pela ciência jurídica ensinada nas Faculdades de Direito. Conceber como direito e conhecimento jurídico os discursos e as práticas de resolução de litígios que circulavam no interior da favela não era apenas um problema teórico e analítico. Era também um problema epistemológico: qual a verdade ou validade do conhecimento jus-científico oficial que concebe como não-direito ou ignorância do direito o que "vale" para vastos sectores das classes populares como outro direito ou conhecimento jurídico alternativo? Foi a partir deste questionamento que formulei a teoria do pluralismo jurídico nas sociedades contemporâneas e não apenas nas sociedades "primitivas", "simples" ou "tribais" como era então defendido pela antropologia jurídica dominante (Santos, 1974, 1977).
Vindo da ciência jurídica e da filosofia do direito - a primeira, sufocantemente analítico-positivista, a segunda, tentando ultrapassar com excessivo idealismo a ressaca do nazismo - entrei na sociologia num período (início da década de 1970) de grande convulsão teórica (a crítica do funcionalismo parsoniano), metodológica (crítica do naturalismo quantitativista próprio da administrative research) e política (a devolução do conhecimento sociológico aos "objectos" em nome da necessidade de responder à questão: "de que lado estamos?"). O pluralismo teórico, metodológico e político - celebrados como sinal de pujança em vez de estigmatizados como sinal de fraqueza própria das ciências pré-paradigmáticas, como pretendia Thomas Kuhn - criava as condições para questionamentos epistemológicos mais profundos sobre a política da neutralidade científica, sobre os limites da validade do conhecimento científico e, acima de tudo, sobre as relações entre este e outros conhecimentos, nomeadamente os dos nossos "objectos", homens e mulheres comuns que, em contextos de entrevista, inquérito, painel ou observação participante, nos transmitiam opiniões, saberes, sabedorias - por vezes tão impressionantes quanto consideradas irrelevantes para a nossa investigação - que as regras do jogo metodológico reduziam à rasa condição de matéria-prima para generalizações relativamente triviais.
A turbulência mas também a ductilidade teórico-epistemológica das ciências sociais neste período instigaram-me a curiosidade de conhecer o estado dos debates epistemológicos noutras ciências. Estaria nelas tão entrincheirado o positivismo, em suas múltiplas incarnações, quanto o observava, nos anos 1960, na ciência jurídica, sobretudo de origem alemã, apenas matizado pela reemergência da retórica jurídica? O resultado das minhas investigações de vários anos neste domínio foi inequívoco: o debate epistemológico estava instalado no âmago da ciência e mesmo na rainha das ciências dos anos 1970, a física. A sociologia que, ao contrário do que queria Augusto Comte, deixara de ter a pretensão de ser o cume da pirâmide da ciência, era apenas um campo mais convulso e aberto onde se manifestavam com mais estridência movimentos tectónicos profundos que abalavam a auto-consciência epistemológica da ciência no seu todo. Daí que os sinais tanto pudessem ser lidos como sintomas de um presente desafecto do seu passado quanto como pistas de um futuro que se concebia laboriosamente. Foi esta a minha tese central em Um Discurso sobre as Ciências.
Os anos que se seguiram mostraram-me que os sinais eram talvez mais ambíguos do que o que eu supunha em meados da década de 1980, e que os movimentos de que eles davam notícia tanto podiam conduzir a promissoras inovações como a perversões desarmantes, tal como é argutamente referido em alguns dos capítulos anteriores. Dois movimentos ou impulsos se salientaram no decorrer dos anos seguintes, e tudo contribuiu para que a tensão entre eles se fosse adensando. Por um lado, o extraordinário desenvolvimento científico-tecnológico - se em extensão ou profundidade, é ponto de debate - fez com que a ciência no seu conjunto se transformasse numa força produtiva de primeira ordem, tal como a força muscular e as máquinas o tinham sido em épocas anteriores. A sociedade de conhecimento que daí emergiu é uma sociedade de conhecimento científico-tecnológico (a tecnociência) cada vez mais vinculada à produção e, portanto, à lógica da produção, isto é, à lógica da competição e do mercado. Esta vinculação aprofundou-se com o modelo de capitalismo neoliberal que veio a dominar nas três últimas décadas.
Sob a forma do Consenso de Washington, tal modelo passou a constituir o núcleo duro de um projecto político global que consistiu (e consiste) em submeter às leis e à lógica do mercado um conjunto cada vez mais amplo de interacções de modo a que se passe aceleradamente e a nível global da economia de mercado para a sociedade de mercado. Subjacentes a tal projecto estão os seguintes princípios: os valores que contam são redutíveis a preços; todas as prestações de serviços são privatizáveis; a competição tem prioridade total sobre a cooperação em todas as interacções sociais; as condições de competitividade determinam o lugar que pode ser socialmente concedido às condições de outros critérios de sociabilidade; a previsibilidade dos nexos causais entre acções e as suas consequências é o factor principal de estabilidade independentemente da substância de umas e outras; a inovação e a criatividade - duas condições essenciais da competitividade - exigem a fragmentação das competências, a individualização dos contratos de trabalho (flexibilização para empresários, precarização para os trabalhadores), a prioridade total do curto-prazo nos planos de vida dos produtores; a inovação e a criatividade estão sujeitas à constante avaliação dos resultados e esta é dominada por critérios de rentabilidade; o mercado é a melhor (ou mesmo única) garantia de eficiência e de previsibilidade, inovação, criatividade, fragmentação e rentabilidade.
Acontece que estes princípios, por dominarem a sociedade de conhecimento, acabaram por ter impacto também na actividade de criação de conhecimento, a ciência. E o positivismo ganhou novo fôlego pelas "afinidades electivas" que revelou com a sociedade de mercado em construção: a predilecção pela abstracção lógico-numérica levada ao extremo pela informatização do saber; acento tónico nos nexos causais e na previsibilidade em detrimento da busca de sentido e da complexidade; concepção estreita de autonomia da ciência confinada aos protocolos de investigação; crença na neutralidade do saber científico e, portanto, na sua disponibilidade para ser apropriado segundo a lógica do mercado das aplicações tecnológicas. Tornou-se claro que a confiança epistemológica da ciência era uma condição essencial da sua competitividade no mercado e isso contribuiu, não só para desencorajar os debates epistemológicos como para ver uma ameaça em todo o questionamento das verdades "simples e claras" da ciência.
O outro movimento ou impulso nas três últimas décadas esteve relacionado com o anterior, mas desenvolveu-se em tensão com ele. Tratou-se do enorme desenvolvimento dos estudos sociais e culturais da ciência, motivado em grande medida pelas transformações operadas na produção prática da ciência em resultado da transformação desta na mais importante força produtiva da economia e da sociedade de conhecimento. Estes estudos, ainda que, em geral, não interessados em debates epistemológicos, vieram mostrar que as novas condições de produção científica impunham que tal debate ocorresse e se aprofundasse. Estavam em causa a multiplicidade e a falibilidade das condições (por exemplo, laboratoriais) que entretanto conduziam a verdades científicas sem condições; a mistura de conhecimentos científicos com outros conhecimentos a partir da qual se construíam novos conhecimentos "puramente" científicos; a inserção da prática e da institucionalidade científicas em contextos económicos e políticos suficientemente poderosos para ser pelo menos de questionar se a autonomia da ciência lhes sobreviveria com êxito; os fracassos da previsibilidade quase sempre disfarçados através de formulações vagas ou de promessas de trabalho futuro, muitas vezes esquecidas posteriormente; o aumento alarmante de práticas científicas fraudulentas ou quase-fraudulentas, susceptível de questionar a força da ética científica ante as pressões da competição e do mercado; as lógicas bem pouco científicas da definição das prioridades de investigação científica e, portanto, do financiamento público e privado da ciência.
À luz do que estava em causa, não admira que entre o primeiro movimento ou impulso e o segundo se viesse a acumular uma tensão crescente, a qual acabou por explodir no último episódio das guerras da ciência, simbolizado pelo caso Sokal. Entretanto, em conjunção com estes movimentos, outros ocorreram nas ciências sociais que mais me confirmaram a ambiguidade dos sinais que eu identificara em meados da década de 1980. De facto, foi crescendo em mim a convicção de que as ciências sociais tanto eram parte da solução como do problema que eu identificara. Efectivamente, a vertigem neoliberal teve um impacto avassalador nas ciências sociais, nomeadamente na economia e na sociologia. O objectivo de assegurar a transição acelerada e a nível global da economia de mercado para a sociedade de mercado criou uma enorme pressão - ampla no seu âmbito e intensa no seu ritmo - para a produção de conhecimentos-receita, capazes de reduzir a grande complexidade das interacções sociais a indicadores quantificáveis de factores susceptíveis de serem controlados e manipulados pela nova engenharia institucional global (os novos papéis do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, as integrações regionais como a União Europeia ou o NAFTA). Por sua vez, o aprofundamento da sociedade de consumo e a mediatização da política deram um impulso sem precedentes à administrative research ligada à gestão das instituições públicas, à prospecção de mercado, às sondagens e à opinião pública.
O fim da Guerra Fria abriu o caminho para a despolitização das relações Norte/Sul, ou seja, para a ideia de que as hierarquias do sistema mundial não estavam sujeitas a controlo político e eram, pelo contrário, produto dos imperativos da economia global. Tais imperativos, porque impostos a realidades social, política e culturalmente muito distintas, criaram a necessidade de um conhecimento-receita, totalmente descontextualizado e legitimado em sua descontextualização pelos objectivos de integração na globalização neoliberal. As ciências sociais foram chamadas a produzir maciçamente tal conhecimento, o que produziu nelas um duplo efeito. Por um lado, os cientistas sociais dos países do Sul, o chamado Terceiro Mundo, foram forçados a substituir as hipóteses de trabalho com que até então tinham orientado a sua investigação pelos termos de referência da investigação encomendada pelas agências financeiras multilaterais e pelas agências públicas ou privadas de ajuda ao desenvolvimento sedeadas nos países do Norte. Tal substituição aprofundou a hierarquia nas relações científicas Norte/Sul, produzindo a proletarização dos cientistas sociais dos países periféricos, ora redigindo relatórios de consultoria, formatados nos países centrais, ora realizando investigação em cuja concepção, planeamento e construção teórica e metodológica não tiveram qualquer participação (ver o capítulo de Maria Paula Meneses neste livro). O segundo efeito, igualmente devastador, da descontextualização operada pelo conhecimento-receita foi a ocultação, marginalização ou descredibilização, não só de toda a realidade social insusceptível de ser captada pelos estreitos parâmetros desse conhecimento e, por isso, considerada irrelevante, como de todos os outros conhecimentos produzidos localmente a respeito dela. A epistemologia da cegueira, própria da ciência moderna, manifestou-se assim sob uma forma particularmente virulenta de arrogância cognitiva.
Com alguma perplexidade, verifiquei, no entanto, que, apesar do impacto brutal do conhecimento-receita e da epistemologia que o sustenta (realismo ingénuo e positivismo) nos países periféricos e semiperiféricos do sistema mundial, era precisamente nestes países que, não obstante todas as condições desfavoráveis, se vinha produzindo conhecimento científico inovador, tanto a nível teórico como a nível metodológico, ainda que desconhecido ou pouco conhecido nos centros hegemónicos de produção de ciência. Nestes países, as ciências sociais tinham-se desenvolvido em contextos sociais, culturais, políticos e institucionais muito distintos dos que prevaleceram nos países centrais. A extensão e a tipologia das desigualdades sociais, fundando imperativos de intervenção e de investigação-acção, a presença de culturas não-ocidentais hostis aos pressupostos culturais da ciência moderna, os longos períodos de violência política e de ditadura, obrigando a produzir ciência em condições de quase clandestinidade, os níveis mais baixos de especialização disciplinar quando comparados com os da ciência central, o escasso ou nulo apoio do Estado à produção científica - tudo isto contribuíra para a emergência de formações e tradições científicas com alguma especificidade, sempre desvalorizada pela ciência central em tudo o que se desviasse das normas por esta impostas.
No entanto, à medida que se aprofundava o debate epistemológico nos países centrais, tornava-se possível questionar essa desvalorização e averiguar em que medida ela era menos o produto da aplicação de critérios imparciais ou um mero efeito da arrogância epistemológica. Os países periféricos e semiperiféricos - muitos deles marcados pelo passado colonial e pelas relações de dependência externa e de colonialismo interno que se seguiram ao fim do colonialismo - viveram intensamente as consequências negativas da globalização neoliberal para o bem-estar das populações e para a sustentabilidade das suas culturas e dos seus modos de vida. A intensidade do conflito Norte/Sul nestes países e a resistência às novas (e velhas) formas de exclusão social, apesar de invisíveis a partir do centro do sistema mundial, tornaram-se temas de investigação e de intervenção dos cientistas sociais dos países periféricos e semiperiféricos e abriram horizontes para insuspeitados questionamentos metodológicos, teóricos e mesmo epistemológicos.
Atento a estes desenvolvimentos e cada vez mais interessado em elaborar uma epistemologia crítica a partir das ciências sociais, decidi inverter a trajectória de abordagem às questões epistemológicas. Enquanto no início da minha carreira científica, como referi acima, a reflexão epistemológica resultara da surpresa causada pelas inovações metodológicas a que fora forçado e pelos resultados dos projectos de investigação em que me envolvera, propus-me em 1998 realizar um projecto internacional em que a temática, a metodologia e a organização da investigação foram escolhidas em função das minhas inquietações epistemológicas e de modo a, se não apaziguá-las, pelo menos esclarecê-las. O projecto, intitulado "A Reinvenção da Emancipação Social", foi realizado entre 1999 e 2001 e envolveu sessenta e nove cientistas sociais de seis países: África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal. A escolha dos países foi decidida em função de dois critérios. O primeiro foi o de não serem países centrais, ou seja, de serem países onde a ciência, em geral, e as ciências sociais, em particular, tinham tido trajectórias e tipos de desenvolvimento diferentes dos que tinham vigorado nos países centrais. A minha hipótese de trabalho foi que no "desvio" de tais trajectórias e tipos de desenvolvimento em relação ao padrão hegemónico poderia estar a chave para entender a falta de criatividade teórica e analítica das ciências sociais nos países centrais em finais do século XX. O segundo critério foi o de serem países em que o conflito Norte/Sul e a consequente resistência à globalização neoliberal fossem mais intensos. Daí a escolha de países semiperiféricos e periféricos. Os temas foram escolhidos em função da sua capacidade para revelar a complexidade do conflito Norte/Sul e as alternativas concretas aos imperativos da globalização hegemónica protagonizadas por grupos e movimentos sociais concretos. O projecto foi estruturado com a máxima abertura teórica e metodológica. O quadro teórico não foi além de algumas hipóteses de trabalho muito gerais e as metodologias escolhidas foram muito variadas. O objectivo foi exactamente criar condições para que florescesse o pluralismo teórico e metodológico, nos antípodas, pois, dos termos de referência da consultoria, da administrative research e do conhecimento-receita. Procurei, ainda, que a organização desta pequena comunidade internacional, mais habituada a relações com os países centrais do que a relações no seu seio, configurasse a estrutura de uma rede cujos nós principais eram os seus coordenadores de investigação, um por cada país.
Não é este o lugar para descrever o projecto ou avaliar os seus resultados. A reflexão epistemológica que ele até agora me suscitou está no capítulo 34.
A ideia central deste capítulo pode resumir-se no seguinte: quando a base da reflexão epistemológica vai para além do discurso e das práticas científicas nos países centrais, os problemas epistemológicos convencionais - isto é, hegemónicos na epistemologia e na filosofia da ciência ocidentais - tendem a perder centralidade. É por isso que as ciências sociais convencionais são mais parte dos problemas epistemológicos que enfrentamos do que das soluções que buscamos.
Neste capítulo desenvolvo uma perspectiva sobre o conhecimento alternativa à que tem dominado nos países centrais, a perspectiva hegemónica centrada na superioridade absoluta do conhecimento científico e numa concepção da ciência que justifica, para além de qualquer dúvida ou condição, essa superioridade. Tal como dera a entender em Um Discurso sobre as Ciências, mas agora com muito mais determinação, o potencial de renovação epistemológica atribuído às ciências sociais não será realizado enquanto dominar nelas a perspectiva hegemónica. Esta perspectiva está de tal maneira enraizada nos modos dominantes de interpretar e transformar o mundo que a sua crítica, para ser eficaz, tem de ir às suas próprias raízes. Defendo que tais raízes estão na concepção de racionalidade que subjaz tanto às ciências naturais como às ciências sociais. Trata-se de uma racionalidade indolente cuja indolência se traduz na ocultação ou marginalização de muita experiência e criatividade que ocorre no mundo e, portanto, no seu desperdício. Distingo quatro formas de indolência e analiso em detalhe duas: a razão metonímica e a razão proléptica. Na primeira, o desperdício da experiência ocorre sob a forma da contracção excessiva do presente, enquanto na segunda ocorre sob a forma de expansão excessiva do futuro. Para recuperar a experiência social e cultural desperdiçada pela razão metonímica, proponho um procedimento sociológico não convencional a que chamo sociologia das ausências, assente na substituição de cinco monoculturas por cinco ecologias. Com o mesmo objectivo, em relação à razão proléptica, proponho uma sociologia das emergências baseada na categoria do Ainda Não (Noch Nicht), tal como foi desenvolvida por Ernst Bloch.
A multiplicação e diversificação das experiências sociais disponíveis e possíveis obtida pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências levantam dois problemas: a extrema fragmentação do campo das experiências e a dificuldade em conferir sentido à transformação social. Neste capítulo trato apenas do primeiro problema, propondo para o resolver um procedimento não convencional: o trabalho de tradução que concebo como alternativa à tentação agregadora implícita na ideia de uma teoria geral.

Este livro é, genuinamente, o resultado de um esforço colectivo. Antes de tudo, o esforço dos autores dos capítulos que generosamente aceitaram partilhar comigo as preocupações que estiveram na origem deste projecto. Estou, pois, muito grato a todos eles. Reside neles a razão da ambição que, ouso pensar, este livro merecidamente tem.
O teor da crítica de AMB a Um Discurso sobre as Ciências e das que, na sua peugada, se seguiram tornou claro que o alvo não poderia ser somente o pequeno livro publicado quinze anos antes. A crítica visava uma certa forma de conceber e praticar a ciência, uma ciência socialmente empenhada na afirmação dos valores da democracia, da cidadania, da igualdade e do reconhecimento da diferença, uma ciência que se pretende objectiva e independente, mas não neutra e socialmente opaca ou irresponsável. Esta é a concepção de ciência que, em geral, tem presidido à investigação realizada no Centro de Estudos Sociais, que dirijo. Daí que a crítica a Um Discurso sobre as Ciências tenha sido entendida como visando atingir muito para além do autor do livro. As expressões de solidariedade que recebi dos meus colegas do CES, que não esquecerei, tiveram, assim, o sentido da afirmação e defesa partilhadas de um projecto colectivo. Uma dessas expressões deve ser explicitamente mencionada. Veio dos mais novos, dos jovens assistentes de investigação que assumiram a tarefa de traduzir para português os capítulos originariamente escritos em inglês, castelhano ou francês. Foi um trabalho generoso e exigente, já que nenhum deles é tradutor profissional, realizado na convicção de, com ele, contribuir para a afirmação de uma concepção de ciência em que se revêem. O meu muito obrigado a Ana Cristina Santos, António Calheiros, Carlos Nolasco, Dina Chaves, Dora Gomes, Jorge Almeida, Madalena Duarte, Marisa Matias, Mónica Rafael, Patrícia Grilo, Sara Araújo, Sílvia Ferreira, Sílvia Matias, Susana Costa, Taciana Lopes, Tânia Costa, Tatiana Moura, Teresa Maneca. Porque os assistentes de investigação trabalham em projectos de que são responsáveis os investigadores permanentes ou associados do CES, a sua generosa colaboração não teria sido possível se nela não consentissem os directores dos projectos. Daí o meu muito obrigado a Carlos Fortuna, Conceição Gomes, Elísio Estanque, João Arriscado Nunes, João Pedroso, José Manuel Mendes, José Manuel Pureza, Maria Manuel Leitão Marques e Pedro Hespanha.
Pese tudo o mais, este livro não teria sido possível sem a colaboração de quatro pessoas: João Arriscado Nunes, Maria Irene Ramalho, António Sousa Ribeiro e Ana Cristina Santos. O João Arriscado Nunes, sem dúvida um dos grandes sociólogos da ciência do nosso tempo, tem sido a testemunha e o parceiro de todas as minhas inquietações epistemológicas. Foi em conversa com ele que surgiu a ideia deste livro e foi com ele que discuti o seu perfil. Além disso, o João reviu todas as traduções com inexcedível cuidado. A Maria Irene, minha companheira de tudo o que cabe no trabalho científico e de tudo que extravasa dele, e António Sousa Ribeiro, amigo e confidente para além do que pode ser dito, leram e reviram todos os textos com a atenção minuciosa e a competência que todos lhes reconhecemos. A Ana Cristina Santos, que há anos prepara para publicação, com tanto profissionalismo quanto entusiasmo, todos os manuscritos dos meus livros, teve aqui uma tarefa particularmente espinhosa de copy-editing, para além de ter planeado e supervisionado todo o complexo trabalho de tradução. A todos a minha gratidão muito sentida e sincera. Este livro não estava nos meus planos e, naturalmente, interferiu com os que tinha no momento em que me "aconteceu". Exigiu um esforço adicional de todos os que acompanham mais de perto o meu trabalho e me ajudam nele. Exigiu-o sobretudo a quem, qual anjo da guarda, me acompanha solidariamente em todos os meus passos, a Lassalete Simões.

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