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Caos e Ordem
Do étimo grego khaos, χαος, o caos remete primeiro para o vazio primordial, informe, ilimitado, intemporal e indefinido, estado de não-ser que precede e propicia a emergência de cosmos (Κοσμος), ordem do mundo, real ou aparente (também étimo de cosmética). Só depois denota confusão indiferenciada de elementos que a intervenção de demiurgos faz estabelecer em ordens universais, imaginadas em míticas narrativas e personificadas em heróis e monstros. Pensar e dizer o caos assim não é pensar e dizer a crise no lamento de oportunidades perdidas, antes dizê-la na liberdade da imaginação das alternativas. Caos e ordem são dinâmicas vitais da (bio)diversidade. A desordem espontânea é tendência fundamental da vida; ela despoleta o movimento, o trabalho dos princípios de configuração dos organismos, em equilíbrio dinâmico. Ações e atores que criam organização e certeza – seja ela espontânea (auto-organizada) ou demiúrgica – sempre geram desordem e incerteza; ao esforço da ordem corresponde a energia não convertida em trabalho útil, a entropia. Da dominação-domesticação da desordem emergem modelos vitais de sobrevivência; do reconhecimento da entropia emergem as matérias de transformação, relocalizada em tempos e lugares.
Diz a teoria do caos que, dada uma lei cujos princípios são altamente sensíveis às suas condições iniciais, alterações mínimas de uma trajetória no início de um sistema podem causar uma cadeia de acontecimentos no tempo que levam a transformações a grande escala, o efeito borboleta – onde o bater de asas de uma borboleta causa um tufão em outro lugar do planeta. O complexo reconhece-se não linear pois assume mais do que um modo de articular elementos. Simultaneamente unos e plurais, porque configurando sistemas distintos, eles entretecem ações, determinações, retroações a múltiplos tempos e espaços, mesmo quando nos surgem com a aparência de um todo.
Crises são lugares privilegiados de conhecimento. Colocam-nos nos abismos e vazios do que (ainda) não está lá. Permitem pensar a ação humana situada em contextos permeados por ordens-constrangimentos e caos-criatividades que emergem da sobrevivência e da resistência à adversidade e à violência. Improvisos e surpresas são, por isso mesmo, dinâmicas radicais da alternativa.
Clara Keating
Capitalismo
É um modo de produção de mercadorias (bens e serviços) que assenta na separação entre o capital, que detém a propriedade dos meios de produção (máquinas, sistemas de gestão e de informação, tecnologias e matérias-primas), e a força de trabalho, que mobiliza esses meios para produzir riqueza. A remuneração da força de trabalho fica sempre aquém do valor que cria, e nessa diferença ou excedente consiste o lucro do empresário e a consequente exploração do trabalhador.
Ao longo dos últimos duzentos anos, boa parte das lutas sociais foi travada para decidir o montante dessa diferença ou excedente. Por maiores que sejam os compromissos capital-trabalho, resta sempre a contradição entre o capital, para quem o trabalho é uma mercadoria que só deve ser usada enquanto necessita dela, e os trabalhadores, para quem a sua força de trabalho não é uma mercadoria como as outras, quer porque é a única que produz riqueza, quer porque é o centro da vida pessoal e familiar do trabalhador, e que por isso não pode ser socialmente descartada só por deixar de ser útil para o capital.
Para além da contradição entre o capital e o trabalho, o capitalismo gera uma contradição entre o capital e a natureza. A natureza é concebida pelo capital como uma fonte potencialmente inesgotável de matérias-primas, um tipo, entre outros, de mercadorias. Acontece que as matérias-primas são uma falsa mercadoria, já que não foram produzidas por trabalho humano, os recursos naturais não são inesgotáveis e a sua exploração acarreta consequências sociais e ambientais extremamente gravosas para as populações e para a natureza.
Onde estão os limites da exploração da força de trabalho e da depredação da natureza? Como esta pergunta faz pouco sentido para o capital, é a sociedade que deve perguntar: quais são os limites do capitalismo? A questão não é tanto a de saber se o capitalismo sobreviverá. É mais a de saber se sobreviveremos ao capitalismo.
Boaventura de Sousa Santos
China
A China é um ator central no contexto da atual crise mundial. Além de ser a segunda principal economia em termos de Produto Interno Bruto (PIB), é o país que mais exporta e aquele que detém maiores reservas em moeda estrangeira e ouro.
Tendo em conta o seu peso económico, a China é parte fundamental no delineamento de estratégias para ultrapassar a crise. Pequim tem-se empenhado, por um lado, em adquirir títulos de dívida soberana de algumas economias europeias e, por outro, em incentivar as suas empresas estatais a investir no estrangeiro. Com efeito, a sua ação tem sido essencial para alimentar as soluções neoliberais de curto prazo definidas pelos Estados-membros da União Europeia. O processo de privatizações em Portugal previsto pelo programa de ajustamento financeiro, que permitiu a entrada da “Three Gorges” no capital da EDP e da “State Grid” na REN, constitui um exemplo disso mesmo.
No entanto, além das estratégias puramente financeiras e economicistas, é fundamental que a China participe do esforço político para encontrar soluções que permitam gerar alternativas e ultrapassar a crise. O seu papel é essencial para a definição de regras justas que regulem a nível global o comércio, a propriedade intelectual e o mercado cambial. A sua disponibilidade para lidar com questões como o dumping social ou a depreciação do yuan devem fazer parte deste esforço. Os diálogos que mantém com o Brasil e a Índia, tanto a nível multilateral como a nível bilateral, são exemplos da vontade de Pequim de, juntamente com outros países em processo de desenvolvimento, delinear alternativas a uma crise cuja origem e cujos efeitos se situam principalmente no mundo desenvolvido.
De facto, apesar da crise, a China tem conseguido manter taxas de crescimento económico elevadas. A opção de não seguir à risca a doutrina neo-liberal, mantendo uma forte participação do Estado na economia deu ao Partido Comunista Chinês (PCC) mais condições para gerir com mais agilidade os efeitos da crise. Contudo, esta também mostrou com mais clareza os riscos que o PCC corre por basear a sua legitimidade política sobretudo no desempenho económico do Estado. Num contexto de esfriamento do crescimento económico, já sentido em 2011, os problemas internos da China, como as assimetrias regionais, as desigualdades sociais e a ausência de estruturas políticas democráticas, tornam-se mais prementes.
Helena Rodrigues
Cidadania
Com origem na Grécia Antiga, a cidadania irá desenvolver-se como uma das grandes conquistas da democracia moderna. Mecanismo de integração igualitária e participada, a cidadania rege a relação indivíduo-Estado mediante um conjunto de direitos e deveres recíprocos. Esta ideia moderna de cidadania resulta da politização dos direitos humanos emergentes da Revolução Francesa, com a transformação do súbdito em cidadão no âmbito dos novos Estados-nação.
A cidadania acompanha o desenvolvimento do capitalismo e dos grandes impérios coloniais e os ideais de igualdade e universalidade permanecerão imperfeitos durante muito tempo – que o digam os estrangeiros, as mulheres, os escravos, os súbditos imperiais e as classes baixas. Só no pós-guerra do séc. XX a cidadania defronta o capitalismo com a criação dos direitos sociais e do Estado-Providência (T.H. Marshall). Mas o papel do Estado como garante da cidadania foi sempre marcado pela ambiguidade entre o dever de proteção e a segurança. O ataque às Torres Gémeas inaugurou uma era de estado de exceção que instaurou um clima de medo propício à consolidação das regras do jogo do capital. A ansiedade com a segurança passa a esconder falhas de proteção no cenário da chamada crise global: de violações de privacidade e ataques às liberdades individuais à promoção de reformas estruturais que lesam os cidadãos nos seus direitos mais básicos à saúde, à educação e ao trabalho.
O Estado protetor deu lugar ao Estado indiferente, se não ameaçador, ele próprio refém dos mercados. Hoje, como têm demonstrado os vários movimentos de rua, dos ocupas aos indignados, a cidadania é a indignação ativa, que continua a exigir a atualização dos direitos.
Maria José Canelo
Cidade Criativa
Perante o cenário de desindustrialização do Norte desenvolvido (Europa e América do Norte), surgiu, na década de 1980, a poderosa retórica da transição para uma economia nova, assente na criatividade e na inovação. A cidade criativa é um dos desenvolvimentos dessa tendência de regeneração económica global. Associada à ideia de uma “classe criativa”, fundada no talento (criatividade), na tecnologia (inovação) e na tolerância (diversidade social), a cidade criativa apresenta-se como a nova concretização territorial do capitalismo neoliberal. O seu fundamento é a existência de uma malha consolidada de recursos educativos, culturais, artísticos e tecno-informacionais, que, ao lado de infraestruturas de produção e de um mercado adequado, possa fixar capital humano e massa crítica. Os efeitos da crise sistémica interrogam de modo particular a capacidade de criação de cidades criativas.
Em Portugal, o discurso da cidade criativa tem vingado em ambientes académicos e algumas franjas profissionais, sobretudo, entre gestores autárquicos. É, na maioria dos casos, uma retórica com fraco substrato, que propagandeia uma vontade de renovação urbana e um desejo de projeção externa. A insistência na realização de espetáculos, festivais, exposições, ateliês, associada à adaptação/criação de espaços culturais (museus, bibliotecas) não basta para assegurar a alternativa que as cidades criativas prometem para promover a produção cultural e melhorar as condições de vida. Nas condições atuais, devemos reclamar uma outra cidade criativa: a que alimenta a articulação local entre cultura, comunicação, comunidade e cooperação e que só pode singrar em ambiente de competente governação democrática dos recursos locais e exógenos.
Para além da ostensiva autodesignação, as cidades criativas portuguesas devem pôr a criatividade ao serviço da sua própria condição urbana e social. A qualidade de vida (cultural), a coesão social e o emprego são as suas metas. Quanto mais bem-sucedidas internamente, mais competitivas se hão de revelar no exterior e mais merecida será a sua autoproclamada divisa.
Carlos Fortuna
Ciência
Vista como um método, uma instituição, ou simplesmente uma atividade distinta, a ciência é um elemento central para a compreensão da relação entre o ser humano e a natureza, gozando por isso mesmo de um estatuto privilegiado nas sociedades contemporâneas.
Etimologicamente derivada de “conhecimento” – os cientistas eram inicialmente identificados como filósofos da natureza –, a ciência distingue-se enquanto corpo teórico de conhecimento, baseado num método próprio – o método científico –, com regras próprias de publicação e validação do conhecimento, pelos pares, com centros de investigação dedicados, respetivas carreiras profissionais e regras deontológicas, abrangendo assim áreas disciplinares diversas: as ciências naturais, da engenharia, sociais e as humanidades. No entanto, várias mudanças se têm vindo a registar na prática e cultura que definem a ciência. A centralidade do conhecimento no modelo económico atual – que alguns autores apelidam de economia baseada no conhecimento – levou à expansão das atividades de produção de conhecimento, cada vez menos circunscritas às organizações académicas. A panóplia de instituições envolvidas e a crescente exploração do conhecimento fora do ambiente controlado do laboratório criaram novas necessidades de regulação entre o interesse público do conhecimento, o seu impacto social e os interesses económicos. Controvérsias em torno das alterações climáticas, do desenvolvimento das novas biotecnologias, ou mesmo da identificação e análise da crise económica, são evidência destas tensões.
As controvérsias sociotécnicas, com uma dimensão científica e pública, têm vindo a evidenciar a necessidade de outras formas de intermediação com a ciência. Neste contexto, conhecimentos locais, envolvendo atores externos à esfera da instituição científica e formas de conhecimento baseadas na experiência, têm vindo a ganhar novo reconhecimento e a demonstrar a sua importância na análise e processo de decisão, complementando o contributo dos “peritos”. Têm-se vindo assim a desenvolver formas alternativas de governação, fomentando a participação pública dos cidadãos e o debate com cientistas. Estas experiências tornam claro que uma nova forma de legitimidade e autoridade da ciência se deverá basear não na sua demarcação mas, sim, em novas formas de comunicação entre a ciência e a sociedade.
Tiago Santos Pereira
Ciências Sociais
O capital de conhecimento e os instrumentos de análise das ciências sociais são de grande relevância para a compreensão da crise atual, transformando esta num momento de interrogação crítica sobre as origens da crise, as diferenças entre os grupos sociais por ela atingidos e as consequências para estes. As ciências sociais permitem converter em interrogações e problemas o que, para os que professam o pensamento único que domina a ortodoxia económica e política, são evidências e certezas indiscutíveis; elas permitem mostrar como as políticas de austeridade e a erosão da democracia que as acompanha não resultam da necessidade, mas de escolhas políticas associadas a certos interesses e opostas a outros.
As ciências sociais ajudam também a entender, e podem contribuir para fortalecer, as formas, tanto as novas como as “velhas”, de mobilização e de protesto social enquanto exercício da democracia e intervenção legítima dos cidadãos no espaço público. A própria pluralidade interna das ciências sociais é uma importante reserva de conhecimentos e de experiências, que terão de ser confrontados com a diversidade de conhecimentos e de experiências que fazem o mundo, contribuindo para alimentar a experimentação que procura respostas novas e de sentido emancipatório para os problemas da sociedade.
O retomar da experimentação social e política está, certamente, nas mãos dos cidadãos e cidadãs, da sociedade civil, de movimentos sociais e políticos, e também de um Estado capaz de participar na invenção de novos espaços de exercício da democracia e da cidadania ativa. Nesse processo, o lugar que os cientistas sociais ocupam não é o de oráculos ou celebrantes de qualquer pensamento único, nem o de conselheiros de governos, de instituições supra-nacionais ou de instituições financeiras, mas o de parceiros que contribuem para a produção de um conhecimento público a ser apropriado pela sociedade, pelos seus movimentos e iniciativas como recurso para a mudança.
João Arriscado Nunes
Classe média
A “classe média” é uma noção algo imprecisa, mas que se impôs nas sociedades ocidentais, sobretudo à medida que um vasto conjunto de mudanças (do edifício legislativo à inovação técnica e a todo um conjunto de políticas sociais) desencadeadas na Europa do pós-guerra conduziram nos países mais avançados do Ocidente ao crescimento de novos estratos da força de trabalho assalariado, mais qualificados e com melhores condições do que os trabalhadores fabris, os “white collars” (colarinhos brancos), que afluíram aos serviços e preencheram as necessidades de uma burocracia crescente, quer no setor público, quer no privado. Em particular durante os “anos de ouro” do Estado-Providência, a classe média alimentou-se da ilusão de uma “sociedade da abundância”, apoiada na estabilidade e na coesão social, no diálogo e no compromisso entre as classes, no crescimento ilimitado e no consumo de massa.
Sendo um conceito cujo valor heurístico era questionável, foi, na sua diversidade interna, um protagonista central da recomposição social do século XX. Despida da roupagem ideológica de que se revestiu (especialmente por parte das teorias funcionalistas americanas), a classe média e estudos com ela relacionados não deixaram de evidenciar a sua relação com a conflitualidade e os movimentos sociais, por exemplo. Temas como o “radicalismo de classe média”, o sindicalismo do setor dos serviços ou a reprodução social e trajetórias de classe ilustraram facetas da classe média assalariada – e dos próprios processos de ação coletiva promovidos pelos novos movimentos sociais – reveladoras de todo um potencial transformador que as análises clássicas (correntes do marxismo em especial) não lhe reconheceram.
A classe média portuguesa cresceu à sombra do Estado social. E, tal como ele, encontra-se, hoje, à beira da ruína. O resultado pode ser a “implosão” ou a “explosão”, levando alguns dos seus novos segmentos (em particular os mais jovens, saídos das universidades) a engrossar a contestação e os novos movimentos de “indignados”.
Elísio Estanque
Classes sociais
O conceito de “classe social” nasce com a Revolução Industrial e vem, de certo modo, substituir as velhas “ordens” típicas da sociedade feudal. Karl Marx, de um lado, e Max Weber, de outro, estabeleceram os alicerces dos dois grandes paradigmas (rivais entre si) de análise das desigualdades e das classes. De acordo com o primeiro, no modo de produção capitalista, as classes baseiam-se nas relações de produção, isto é, no vínculo que cada grupo social mantém com os meios de produção, daí derivando as duas classes fundamentais: a burguesia (detentora da propriedade) e a classe operária ou proletariado (que apenas possui a sua força de trabalho); enquanto as camadas intermédias eram sobretudo “classes de transição”. Segundo os weberianos, pelo contrário, inspirados no liberalismo (e que deram origem às teorias da estratificação social), as “classes”, os “grupos de status” e os “partidos” exprimiam diferentes formas de poder na sociedade e correspondiam a distintas formas de desigualdade (na economia, na sociedade e na vida política) numa sociedade plural.
Ao contrário da noção de “estrato” (ou status), que encerra um princípio gradualista (e de mobilidade individual), o conceito de “classe social” tem subentendida a ideia de barreiras estruturais e de conflito de interesses entre as diferentes classes. Para uns (os grupos dominantes e o discurso neoliberal), faz-se crer que as oportunidades são idênticas e acabam por ser reguladas através do mercado concorrencial: a sociedade reconhece os melhores e recompensa-os de acordo com seu mérito e talento. Para outros, a razão do enriquecimento e privilégio de uma classe é o empobrecimento e a exploração de outras classes (a classe trabalhadora e mesmo os excluídos e desempregados enquanto parte do “exército de reserva”).
O “precariado” emergente transporta um potencial identitário que poderá confirmar-se (ou não) enquanto sujeito político (ou movimento social), dependendo do acentuar das desigualdades, do nível de empobrecimento da “classe média” e da intensificação da crise e austeridade que hoje vivemos.
Elísio Estanque
Clientelismo
O Estado, tal como o pensamos na atualidade, é uma figura relativamente recente. Foi-se formando num processo de centripetação dos poderes disseminados pela sociedade. Nas sociedades tradicionais e no sistema político que as presidia, o clientelismo, com todo o seu cortejo de dependências pessoais, formava microssistemas autónomos de trocas e proteção muito fortes e alternativos ao próprio sistema estatal. Coexistiam, assim, diversas formas de ordens na comunidade doméstica, as quais, pensava-se, seriam tendencialmente incorporadas numa só comunidade política estatal oficial.
O que aconteceu foi que a predominância do paradigma estadualista proporcionou um quadro teórico onde prevalecia uma visão de unificação total de tais ordens, com a consequente racionalização da sociedade sob o monopólio da ordem estatal, bem como a separação nítida entre Estado e sociedade civil. Esta visão concorreu para que não fosse contemplada a possibilidade real de um eventual pluralismo e sistemas contraditórios de ordens continuassem a subsistir.
Assim, no decurso da modernização das sociedades, deve constatar-se que muitas ruturas se operaram, mas muitas continuidades se podem manter. Entre elas, dependendo da cultura política vigente, formas de clientelismo. É que não foram totalmente abaladas as relações tradicionais, persistindo sub-repticiamente traços do sistema sociopolítico preexistente. Registou-se uma adaptação face ao novo sistema administrativo e à estrutura da política (vejam-se as listas eleitorais, a composição do parlamento e o funcionamento dos partidos). A diferença está em que os referidos microssistemas autónomos se encontram agora integrados e subordinados no interior do sistema político atual. E, com o acentuar da crise e a secundarização da ética e da autoridade do Estado português, o que podemos observar é uma maior proliferação do papel dos notáveis (incluindo políticos profissionais), da personalização do poder, das fidelidades pessoais e do uso pessoal dos recursos. Em suma, do clientelismo.
Fernando Ruivo
Coerência
Do ponto de vista etimológico, coerência é a qualidade daquilo que se mantém conexo ou inteiro. Inteireza não significa rigidez, imobilismo ou teimosia, antes aponta para a capacidade de manter a fidelidade a um conjunto de princípios no seio de processos necessariamente dinâmicos de reinterpretação e adaptação a novos quadros de referência e ao devir das circunstâncias históricas. Assim, o essencial da definição do conceito joga-se no plano da ética e manifesta-se na defesa de valores fundamentais como, desde logo, o da dignidade do ser humano. A inflexibilidade de uma história única ou a recusa de pensar em alternativas não manifestam coerência mas, sim, as potencialidades repressoras e destrutivas de um pensamento hegemónico.
António Sousa Ribeiro
Colonialismo (e pós-colonialismo)
O colonialismo é um sistema de exploração de populações e recursos. O traço característico da moderna colonização europeia deriva do modo das relações de dominação, fundadas na ideia da inferioridade racial ou étnico-cultural do colonizado. A colonização gerou situações de profunda violência, incluindo o genocídio e epistemicídio. Um conceito relacionado – imperialismo – refere-se aos mecanismos pelos quais uma potência exerce poder sobre outra, seja pela imposição da soberania, pelo povoamento ou ainda através de mecanismos indiretos de controlo.
A moderna colonização é incompreensível sem referência ao capitalismo que dinamizou o sistema colonial; esta relação marca o âmbito da colonização (global), e a profundidade do seu impacto. Uma análise das estratégias políticas de dominação leva à identificação de colónias de administração direta, onde a governação (forças de defesa e segurança e da administração) estava nas mãos de agentes estrangeiros, e de administração indireta, efetuada através do recurso a agentes indígenas. O neocolonialismo pode ser visto como uma expressão de administração indireta, quando a economia e as políticas sociais estão sob controlo de forças estrangeiras.
O colonialismo, como projeto político, perseguiu um objetivo: a negação do direito à história pelos povos dominados, através da violenta usurpação do seu direito à autodeterminação. Quer em situações de colonização direta, quer de neocolonialismo, assiste-se à negação da humanidade do Sul global. A fratura instituída pela diferença colonial é reflexo da construção epistémica hegemónica, que desqualifica e exclui outros saberes, porque constituídos fora do cânone da moderna racionalidade científica.
O fim do colonialismo enquanto relação política não correspondeu ao seu termo enquanto relação económica, mentalidade e forma de sociabilidade autoritária e discriminatória. As correntes teóricas e críticas que têm vindo a desafiar a hegemonia das formas de conhecimento e de representação próprias do projeto colonial inscrevem-se no quadro do pós-colonialismo, uma gramática política que procura refletir sobre os processos de descolonização e as suas consequências. Este questionar deve ser visto como uma possibilidade contingente de mudança em direções que não reproduzem modos de subordinação cultural, política e económica.
Maria Paula Meneses
Comércio Justo
Falar de comércio justo significa reconhecer que pode haver um comércio injusto. O mais importante deste conceito é o pressuposto categórico de que comerciar pode ser uma relação equitativa, ao alcance de todas as pessoas e sem provocar dano.
O comércio justo tem sido ao longo das últimas cinco décadas um projeto de transformação ética das relações comerciais entre produtoras/es e consumidoras/es de todo o mundo. O “comércio justo” é tanto um conceito como uma rede internacional de organizações cidadãs que procura aproximar produtoras/es e consumidoras/es, de modo a reduzir drasticamente o fosso entre o valor pago na produção e o preço final ao consumidor. O comércio justo é uma abordagem mais global das relações de troca, introduzindo nelas uma ideia vital: desmercadorizar. Isto quer dizer que o comércio só pode ser justo se não se puder comprar e vender tudo e qualquer coisa; se não houver preço para os valores que garantem qualidade, felicidade e bem viver para todas e todos.
O comércio justo implica, assim, que as relações comerciais, quaisquer que elas sejam, devam cumprir os seguintes requisitos de justiça cosmopolita: 1) pagamento de salário igual para trabalho igual; 2) não financiamento de tráficos – armas, pessoas ou drogas; 3) recusa do trabalho infantil; 4) uso de energias limpas e renováveis; 5) utilização ecológica de todos os recursos naturais; 6) manutenção de uma relação comercial leal e estável entre as/os produtoras/es e vendedoras/es; 7) prática da democracia participativa no seio das organizações da rede; 8) elaboração de investigação de apoio à inovação, melhoria da qualidade e certificação internacional de produtos, bens e serviços; 9) promoção da produção local e dos circuitos comerciais de proximidade como constituintes críticos da sustentabilidade social e económica global; 10) investimento constante em alternativas concretas e realizáveis como modo de superação do capitalismo e de todas as injustiças por ele causadas.
Teresa Cunha
Comércio livre
É uma peça da ideologia da globalização económica, segundo a qual a remoção das barreiras à circulação de bens e de serviços entre os países promove a afetação eficiente de recursos. Segundo os apologistas do comércio livre, os Estados devem abster-se de políticas ditas protecionistas e celebrar acordos internacionais tendentes à abertura dos seus mercados. Apesar destes tratados de comércio, na realidade, os governos das principais potências continuam a fazer o que sempre fizeram e o que sempre proibiram aos países menos poderosos: criam, através de apoios públicos e de barreiras mais ou menos assumidas, as condições para que os setores que consideram estratégicos sobrevivam à crise e para que novas indústrias emirjam e dominem os mercados.
Esta é aliás a história secreta da construção dos capitalismos. Basta lembrar que o argumento da proteção das indústrias emergentes surgiu no final do século XVIII nos EUA antes de ser teorizado pelo alemão Friedrich List no século XIX e de ser aplicado a partir daí, em maior ou menor medida, em todos os processos de desenvolvimento. O sempre seletivo comércio livre é na maior parte dos casos o protecionismo dos mais fortes, ou seja, o protecionismo dos países que dispõem de empresas capazes de competir nos mercados internacionais e dos que dispõem de meios intelectuais para que, por exemplo, monopólios associados a direitos de propriedade intelectual desapareçam de vista, bem como práticas deliberadas de desvalorização cambial ou social.
As regras do comércio e do investimento internacionais são infi nitamente maleáveis e a autarcia ou comércio livre são duas alternativas redutoras: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas de proteção industrial seletiva e temporária dos países bem-sucedidos; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão das regras laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. Trata-se de reconhecer a gravidade da atual crise da globalização que a ideologia do comércio livre ajudou a gerar.
João Rodrigues
Comissões de trabalhadores
As comissões de trabalhadores (CT) são estruturas de representação coletiva de trabalhadores e reforço de participação democrática na vida da empresa. São seus direitos legais: a obtenção de informações necessárias ao exercício da sua atividade; o controlo de gestão ao nível da empresa; a aquisição de informação sobre aspetos económicos/financeiros ou sociais relativos à atividade da empresa; serem consultadas pela entidade empregadora sempre que esta pretenda tomar medidas que impliquem alterações de critérios relacionados com classificação profissional, promoções, deslocalizações, redução do número de trabalhadores, processos de insolvência, entre outros; a participação nos processos de reestruturação empresarial, organização do trabalho, formação profissional, elaboração da legislação laboral, etc.
Em Portugal o papel de relevo das CT – cuja génese, em alguns casos, assentava em experiências organizativas anteriores – deu-se após o 25 de Abril, momento de intensa reivindicação de condições de trabalho, de higiene e segurança, de salários, etc., na vida de milhares de empresas. Mas pelo menos desde a década de 1990 assiste-se ao enfraquecimento das CT (dados oficiais identificam menos de 200 CT), ditado por fatores como: processos de privatização; dissolução de pequenas e médias empresas; deslocalizações de multinacionais; reforço da precariedade laboral; aumento dos contratos a termo, do trabalho temporário ou de subcontratações; excesso de partidarização das próprias CT, etc.
A crise económica atual devia ser pretexto para reavivar o que de melhor as CT produziram: uma cultura de proximidade com os trabalhadores e incremento da sua participação, um questionamento e diálogo dinâmicos com as próprias administrações das empresas (o exemplo da Autoeuropa, inspirado no “modelo” alemão de parceria social, é uma das experiências de relevo). Em detrimento de rivalidades com outras estruturas (como as sindicais, também em crise), as CT devem pugnar pelo incremento de uma “frente comum” contra a perda de democracia laboral nas empresas, reunindo sindicatos, representantes de trabalhadores para a segurança e conselhos de empresa europeus.
Hermes Augusto Costa
Competitividade
Aplicado frequentemente com significados diversos e a contextos organizacionais tão distintos como empresas ou setores de produção e regiões ou países, o conceito de competitividade expressa, no essencial, a capacidade sustentada de evolução num ambiente seletivo. Perante o dinamismo, a diversidade e a complexidade crescentes das competências utilizadas nas atuais dinâmicas produtivas e inovadoras, a integração de recursos humanos qualificados é um fator fundamental da competitividade de uma organização. Esta integração apoia-se em múltiplas relações favoráveis ao desenvolvimento de conhecimentos interdependentes.
As relações entre os elementos internos de uma organização são a base nuclear da identidade e das competências específicas que suportam a capacidade inovadora e a competitividade dessa organização. A perda de competitividade de um elemento da organização deteriora progressivamente a competitividade global dessa organização e a cooperação entre os seus elementos internos; na ausência de mecanismos solidários que as contrariem, essas deteriorações tornam-se estruturais, acentuando-se o isolamento do elemento menos competitivo e a desagregação da identidade e da competitividade da organização. Para além de dependerem do funcionamento interno, a capacidade inovadora e a competitividade de uma organização são também influenciadas pelas relações externas: através de práticas cooperativas com elementos externos favoráveis ao desenvolvimento dos seus conhecimentos, uma organização consolida a sua capacidade inovadora e a sua competitividade; a ausência dessas práticas conduz ao enfraquecimento cumulativo de competências e ao encaminhamento da organização para um isolamento e uma rivalidade crescentes.
A promoção da competitividade de contextos menos desenvolvidos e em crise, como a economia portuguesa, depende da adoção de políticas que promovam relações internas e externas favoráveis à difusão integrada de inovações organizacionais, com base na criação de novas atividades produtivas, na dinamização das complementaridades dessas atividades com as existentes e no desenvolvimento de novas competências.
João Tolda
Concertação Social
A concertação social encontra-se teoricamente vinculada ao conceito de neocorporativismo correspondendo a uma prática de procura de acordos, envolvendo o governo e as organizações sindicais e patronais. O alcance das negociações tem objetos variados, indo desde o diálogo em torno de políticas públicas (fiscais, segurança social, rendimentos, legislação laboral, emprego, produtividade e competitividade, etc.), até temas setorializados (segurança, saúde e higiene no trabalho, formação profissional, etc.). Embora grande parte da discussão sobre a concertação se tenha debruçado sobre a concertação social propriamente dita, esta não se tem limitado à política social. Pode estabelecer-se como características da concertação o modo como os interesses se organizam, o qual se caracteriza pelo monopólio de representação, pela coordenação hierárquica através de associações e pelo reconhecimento oficial do estatuto semipúblico dessas associações. A política de concertação pode ser entendida pelo modo como as decisões se tomam e executam: contextos funcionalmente especializados; consulta prévia ou debate legislativo; paridade de representação; consentimento unânime como regra usual de decisão e não regra da maioria de votos; responsabilidade partilhada como modelo usual de política executiva.
A concertação social desenvolve-se aos níveis macro, meso e micro. De par com a variedade e singularidade das experiências nacionais de concertação social pode estabelecer-se uma periodização marcada por três momentos: a expansão e esgotamento da macroconcertação entre os anos 1970 e 1980; o retorno do diálogo social nos anos 1990, relacionado com os processos de integração europeia e de globalização; e o atual momento que se pode designar pela concertação social da crise.
A recente experiência portuguesa da concertação social evidencia o modo como este novo cenário se constitui num forte desafio às práticas e políticas de concertação, uma vez que o processo negocial se encontra associado ao processo de legitimação e implementação das medidas de austeridade, tornando difícil a obtenção de resultados consequentes com o espírito concertativo. O novo quadro recessivo permite que as matérias laborais sejam diluídas no processo amplo das “reformas estruturais”, que chocam com as especificidades político-jurídicas e a efetividade dos direitos sociais e laborais.
António Casimiro Ferreira
Condições de trabalho
Falar de condições de trabalho é abordar o modo como os trabalhadores percebem, vivenciam e realizam o seu trabalho. Não estão apenas em causa condições associadas à relação contratual, mas também ao ambiente de trabalho: tarefas realizadas; constrangimentos; condições físicas e ambientais de execução; relação do trabalhador com o posto de trabalho; condições cognitivas e impactos na saúde e segurança dos trabalhadores.
Se nos anos 80 do século XX a melhoria das condições de trabalho se instrumentalizou ao serviço da competitividade das empresas, sendo claro que constituía uma dimensão-chave para um trabalho decente e produtivo e prioritária para a saúde e bem-estar dos trabalhadores e suas famílias, hoje, num momento de crise económica, a melhoria das condições de trabalho é vista pelas empresas como mais um custo a suportar e os benefícios alcançados, a longo prazo, parecem esquecidos. Por sua vez, o aumento do número de trabalhadores em situação de desemprego força trabalhadores empregados a aceitar condições de trabalho precárias e inseguras. Esta situação parece, por um lado, legitimar as práticas empresariais e, por outro, aumentar a vulnerabilidade dos trabalhadores, na medida em que estes experimentam cada vez mais a insegurança no emprego, a diminuição de rendimentos e uma menor proteção no trabalho. Além disso, são forçados a assumir riscos no mercado e nos locais de trabalho e consequentemente estão expostos a fatores nocivos para a sua saúde e segurança.
Torna-se, portanto, necessário voltar a reconhecer a centralidade das condições de trabalho decentes na melhoria da produtividade e das condições de vida dos trabalhadores, uma vez que estas são determinantes para a efi ciência da produção e têm impactos humanos e económicos, conforme revelado pelo número de dias de trabalho perdidos em consequência de acidente e/ou doença profissional. Consequentemente, o desenvolvimento económico de um país não pode ser independente do modo como trata os seus trabalhadores.
Teresa Maneca Lima
Confiança
A confiança é entendida como valor moral que alicerça a vida em sociedade. Pode dizer respeito a outras pessoas, ao governo, a empresas ou à economia. A confiança baseia-se na crença de que os outros partilham valores fundamentais como justiça, honestidade e respeito pelo próximo. Para se estabelecerem relações de confiança entre os membros de uma comunidade, estes têm de concordar sobre estes valores. Ainda que nem sempre o comportamento dos outros corresponda às expectativas, a confiança nos outros em geral não é afetada por experiências negativas, pois as pessoas não fazem necessariamente generalizações a partir de comportamentos particulares. A confiança nos outros é relativamente resistente à mudança.
A confiança nos outros facilita as relações sociais e transações económicas. Da organização das pessoas em grupos pode resultar a ação cívica. Por isso, considera-se que a confiança é a base da democracia. As pessoas que confiam mais nos outros têm uma visão mais positiva do mundo e acreditam que é possível agir sobre a sociedade; estão também mais dispostas a dispor do seu tempo, a fazer trabalho comunitário e são mais tolerantes perante grupos minoritários. Os países em que as pessoas confiam mais nos outros tendem a ter governos mais democráticos, menos corrupção e maior justiça distributiva.
A confiança pode estender-se a governos, líderes políticos e à economia. As perceções sobre a eficácia dos governos baseiam-se no grau em que os cidadãos confiam nos seus líderes e nas políticas governamentais. As pessoas tendem a confiar em governos que demonstrem capacidade de gerar crescimento económico, criar emprego, fornecer acesso a serviços sociais e a operar de uma forma transparente. A confiança no governo é mais baixa quando as expectativas dos cidadãos sobre a forma desejável de atuação são defraudadas. Nesta situação, a autoridade do governo e dos governantes é posta em causa. Durante uma crise económica, a incerteza sobre a capacidade do governo para superar os desafios impostos afeta negativamente a confiança no governo, o que pode resultar numa maior abstenção e desinteresse pela política, trazendo graves implicações para o funcionamento das instituições democráticas.
Cláudia Lopes
Constituição
A constituição enquanto documento fundamental da comunidade política relaciona-se estreitamente com os pressupostos de afirmação do Estado moderno: a nação soberana, o indivíduo cidadão e a separação de poderes. Verificam-se três desdobramentos. Primeiro, o de constituição da liberdade política moderna. Se a promessa de fundação constitucional moderna foi revolucionária, situando a soberania popular como poder constituinte originário, a credibilidade que convocou para a forma de governo democrática, na prática, afunilou o sentido e o alcance da própria democracia no âmbito de uma organização burguesa, liberal, oligárquica e censitária. O segundo aspeto é racional-legal, de estabilização da ordem política e racionalização da ordem jurídica em que a constituição valida as normas e os valores políticos, regulando os conflitos fundamentais de distribuição dos direitos e dos recursos de poder. Projeta-se assim um terceiro aspeto, a constituição como pacto social, que tem resistido ao enfraquecimento da soberania e à ineficácia da cidada-nia. Perante uma turbulência de escalas e de valores, as comunidades políticas nacionais têm sofrido o impacto cruzado quer da influência transnacional de poderosos atores políticos e económicos, quer da sobrecarga simbólica dos valores constitucionais. Testemunha-se o questionamento da legitimidade e da capacidade de integração das sociabilidades pela constituição, evidenciando-se que muitos dos denominadores comuns que orientaram o processo constituinte dos Estados modernos pronunciaram, sob a afirmação da igualdade, a exclusão e a invisibilidade da diferença dos povos constituídos.
Atualmente, assiste-se esperançosamente a um constitucionalismo vindo de baixo, influenciado pelos movimentos identitários de democratização e de libertação colonial e pós-colonial no Sul global (Brasil, África do Sul, Bolívia, Equador). A luta pela liberdade dos povos tem caminhado a par da luta pela libertação das armadilhas das constituições modernas.
Élida Lauris dos Santos
Consumo
O consumo compreende a atividade de uso e fruição de bens e serviços, surgindo como a última etapa de um processo que envolve também a produção e a distribuição. No caso dos indivíduos, o consumo destina-se não apenas a satisfazer necessidades fisiológicas, mas também necessidades sociais e culturais. É, por isso, também uma forma de os indivíduos se relacionarem entre si. O indivíduo não consome apenas um carro ou um iogurte, mas um determinado carro ou iogurte. O consumo contribui para a integração social dos indivíduos, colocando ao seu alcance os mesmos elementos de conforto dos indivíduos do mesmo estrato socioeconómico.
Esta dupla função do consumo – satisfação de necessidades básicas e construção de identidade e pertença sociais – está presentemente sob forte pressão. Com as dificuldades financeiras, os padrões de consumo das famílias portuguesas têm vindo a degradar-se. Primeiro foi a redução ou supressão de bens culturais e de lazer. Depois, dos transportes, equipamentos do lar, vestuário e calçado. Por fim, da própria alimentação. Estatísticas oficiais mostram um crescimento acentuado do consumo de produtos de “marca branca”, enquanto outros indicadores dão conta de um aumento dos pedidos de apoio a autarquias e a instituições de solidariedade social por parte de famílias que já não conseguem satisfazer as necessidades diárias de alimentação. Idosos, desempregados, famílias monoparentais ou com baixos rendimentos são grupos especialmente vulneráveis.
Esta redução dos níveis e da qualidade do consumo reflete-se igualmente no desempenho social e nas expetativas dos indivíduos. Comprar certas marcas ou produtos, jantar fora ou fazer férias, frequentar atividades extracurriculares ou ir ao cabeleireiro tornam-se consumos de luxo, inacessíveis para quem perde o emprego ou parte do salário. E isso agrava a imagem negativa que estas pessoas têm de si, enquanto as afasta do convívio social, lhes cria quadros depressivos, lhes hipoteca a produtividade e compromete oportunidades futuras.
Catarina Frade
Consumo Solidário
Consumo solidário é um conceito abrangente que designa experiências solidárias de consumo que, por princípio, são coletivas e autogestionárias. Embora os contextos de crise sejam propícios à sua disseminação, o consumo solidário sugere um modelo alternativo e contra-hegemónico de organização da vida económica, combatendo a exclusão, incentivando o trabalho associado e promovendo cadeias produtivas mais justas.
O conjunto de iniciativas compreendidas no termo é bastante diverso, embora possamos delinear quatro grupos principais: 1) coletivos de consu-midores organizados (como as cooperativas de consumo e os clubes de compras coletivas); 2) articulações entre consumo e produção (caso das redes colaborativas solidárias e das Community Supported Agriculture, que recebem, em Portugal, o nome de Re.ci.pro.co – RElação de CIdadania entre PROdutores e COnsumidores); 3) comércio justo e 4) redes solidárias de troca. O tema do consumo solidário costuma também incorporar o debate sobre vias alternativas de comercialização, fora dos mercados convencionais e das grandes superfícies (feiras e mercados solidários, compras públicas, centros comunitários de comercialização, lojas de comércio justo e clubes de troca com uso de moeda social).
A diferença entre o consumo capitalista e o consumo solidário assenta nos valores que estão subjacentes a este último, ao propor um modelo de sociabilidade desvinculado da acumulação e ostentação de bens. Experiências como os mercados solidários, as cooperativas de consumidores e os arranjos comunitários de produção e consumo evidenciam que as identidades podem ser constituídas – e mesmo fortalecidas – sem o sistema de classificação social que move a cultura de consumo. Em tempos de crise, a mobilização dos cidadãos pode redimensionar o fenómeno económico, recuperando os princípios de colaboração mútua, os saberes populares e a capacidade de articulação coletiva. A reprodutibilidade ampliada destas experiências revigora o próprio sentido de solidariedade: a caridade cede lugar à distribuição equitativa de bens, saberes e oportunidades.
Luciane Lucas dos Santos
Contágio
A história da crise tem sido contada como se os países da Europa do Sul (ou da sua periferia, como a Irlanda) fossem focos de uma doença que, a não ser travada através de meios radicais, rapidamente se propagaria ao conjunto dos países da União Europeia através de um efeito de contágio. Só um tratamento de choque, como o que está a ser imposto a esses países, permitiria conter a ameaça, circunscrevê-la e extirpar as suas causas. A imagem do contágio é usada também para caracterizar a transmissão da crise para a chamada economia real, com os seus efeitos negativos sobre o investimento produtivo, o emprego, a produção e o consumo. Invoca-se a necessidade de manter ou restaurar a saúde (financeira, orçamental e económica) dos países através de curas de “emagrecimento” do Estado e dos serviços públicos – e, literalmente, da maioria dos cidadãos, que assistem assim à erosão tanto dos seus rendimentos como do seu bem-estar.
O medo do contágio leva a tomar medidas de exceção, inicialmente contra um país, que depois se tornam regra e passam a ser aplicadas a outros países, sempre evocando as fragilidades e falta de rigor no controlo das suas contas públicas e do seu endividamento, alegadamente demonstrada pela experiência histórica. Esta história desloca, assim, para os países económica e politicamente mais vulneráveis uma responsabilidade que deixa de pertencer ao capital financeiro, às agências de notação e aos especuladores, e à proteção que lhes é concedida, de facto, por organizações fi nanceiras internacionais, pela União Europeia e pelo Banco Central Europeu, pelos Bancos Centrais e pelos governos nacionais.
Uma outra história da crise poderia ser contada. A linguagem da medicina pode continuar a servir de inspiração a essa outra história. Aí, a crise surgiria como uma das manifestações recorrentes de uma doença endémica a um sistema económico global dominado pelo capital financeiro, agravada por agressões a um espaço económico e monetário caracterizado por acentuadas desigualdades entre países.
João Arriscado Nunes
Contratação coletiva
A contratação coletiva constituiu-se historicamente como núcleo fundamental na determinação das condições de trabalho. Limitou o arbítrio patronal e foi, talvez, o mais eficaz instrumento de políticas para uma mais justa distribuição da riqueza em toda a segunda metade do século XX. Trata-se de um direito que, por um lado, emergiu do reconhecimento de que só são possíveis relações de trabalho equilibradas se o trabalhador for representado coletivamente (por sindicatos) e que, por outro, assenta na necessidade de normalização das relações de trabalho nas empresas e nos serviços públicos, estruturada em compromissos coletivos que garantam estabilidade. Esta necessidade é reconhecida por todas as partes envolvidas na regulamentação das relações de trabalho e nos diversos processos de negociação coletiva e, por isso, está plasmada em normas e recomendações da OIT.
A contratação coletiva assegura aos trabalhadores: condições de subsistência e busca de salários dignos; direitos individuais e coletivos; enquadramento profissional e trajetórias profissionais; direitos laborais e sindicais; relacionamento entre as partes; informação e participação dos trabalhadores; direitos sociais fundamentais.
A Constituição da República Portuguesa inscreve o direito à contratação coletiva como direito exclusivo dos sindicatos. No quadro das relações de forças existentes, esse direito foi exercido com regularidade e com obtenção de importantes resultados até ao início dos anos 2000. Entretanto, a aprovação do Código de Trabalho, em 2003, e as subsequentes revisões, em 2006 e 2009, introduziram alterações que desequilibraram o quadro base da contratação coletiva e iniciou-se uma perda significativa do seu alcance e da sua efetivação.
O Memorando da Troika e o Acordo da Comissão Permanente de Concertação Social, em janeiro último, que lhe foi associado vieram retirar a exclusividade da negociação aos sindicatos, congelar a publicação de portarias de extensão, aprofundar a individualização das relações de trabalho, submeter fortemente a contratação a objetivos económicos e financeiros das empresas e do Estado e reforçar o poder unilateral do patrão. Neste cenário observa-se uma menor disponibilidade patronal para a negociação coletiva. Em nome da crise e da inevitabilidade das políticas de austeridade é posto em causa o direito à contratação coletiva.
Manuel Carvalho da Silva
Cooperação para o Desenvolvimento
Cooperação para o desenvolvimento pode definir-se como um conjunto de políticas e práticas implementadas em conjunto por países considerados desenvolvidos e em desenvolvimento com a finalidade de promover o bem-estar económico e social destes últimos de forma sustentável e duradoura. O conceito é muito amplo e tem sido objeto de debate durante os últimos 60 anos, acompanhando a evolução das teorias do desenvolvimento e as transformações geopolíticas internacionais. A sua utilização na esfera das políticas públicas assumiu-se como instrumento de resposta a sentimentos de reparação pós-colonial e de solidariedade moral e humanitária, a proximidades linguísticas e culturais e a interesses económicos e geopolíticos.
A arquitetura mundial da cooperação é hoje substancialmente diferente do assistencialismo que a caracterizava inicialmente, centrando-se no desenvolvimento de capacidades e na definição conjunta de prioridades, e pautando-se pela fragmentação e pluralização de atores públicos e privados, pela diversidade de fluxos financeiros e por uma nova geografia/ideologia de doadores (China, Índia, Brasil, Turquia ou Coreia do Sul).
A atual crise veio exacerbar dinâmicas complexas que perpetuam desigualdades e que priorizam a cooperação com os países estrategicamente mais importantes. Os cortes orçamentais na cooperação pelos doadores “tradicionais” têm tido como efeito imediato uma enorme fragilização dos orçamentos nacionais dos parceiros, realidade agravada com a diminuição de outros fluxos originários destes países, como o investimento direto estrangeiro ou as remessas dos emigrantes.
A agenda global do desenvolvimento reconhece hoje que a cooperação é incapaz, por si só, de responder às causas multidimensionais da pobreza e que tem mesmo contribuído para a perpetuação de dependências. Continua, contudo, marcada por uma proliferação de intervenientes, interesses e perspetivas em frequente contradição e a carecer de visões e agendas definidas e lideradas pelos países em desenvolvimento.
Mónica Rafael Simões
Cooperativismo
O cooperativismo reflete as experiências cooperativas, a respetiva teorização e uma doutrina que faz a sua apologia, abrangendo também o correspondente movimento social. As cooperativas afirmaram-se como organizações diferenciadas, no começo do século XIX, em alguns países europeus. Baseiam-se na cooperação, tecido conjuntivo das sociedades humanas.
O vínculo ao movimento operário está no seu código genético, o que não exclui a posterior diversificação social dos cooperadores.
Estendem-se por todo o mundo, contando com mais de 800 milhões de membros. Fundada em 1895, a Aliança Cooperativa Internacional é mundialmente representativa, sendo a instância de legitimação de uma identidade cooperativa universal, constituída por um conjunto de princípios, um leque de valores e uma noção de cooperativa. Recordem-se os princípios: liberdade e voluntariedade da adesão; administração democrática; intercooperação; autonomia; interesse pela comunidade; promoção da educação; distribuição adequada dos resultados. Entre os valores, destacam-se a igualdade, a solidariedade, a honestidade e o altruísmo. Quanto à noção de cooperativa, ela tem como vetor a síntese de uma associação com uma empresa. Esta identidade exprime diferença, em face da lógica capitalista dominante. Uma diferença que, embora reflita uma subalternidade estrutural do cooperativismo num contexto capitalista, implica uma atitude de resistência, radicada numa lógica específica.
Na ordem jurídico-constitucional portuguesa, as cooperativas fazem parte do setor cooperativo e social, que coexiste com o público e o privado, correspondendo, em larga medida, à economia social. Para a União Europeia, é também pacífica a sua inserção na economia social. Em sinergia com as outras organizações e práticas por ela abrangidas, as cooperativas dão resposta a vários tipos de problemas imediatos suscitados pela crise das sociedades atuais, sem prejuízo da vocação para se projetarem num horizonte alternativo ao sistema capitalista.
Rui Namorado
Corrupção
O fenómeno da corrupção assume diversas configurações, sendo utilizado para definir realidades muito diversas. Denominador comum a todas elas é a existência de uma relação de poder e de uma expectativa de obtenção de uma vantagem, lícita ou ilícita, através da prestação de uma contrapartida, seja de ordem económica, seja meramente de amizade.
Numa aceção ampla, a corrupção, enquanto violação das normas sociais, abarca um conjunto de comportamentos cuja censura social tem sofrido mutações significativas ao longo dos anos. Os favores de amizade, o privilégio da relação pessoal de confiança e a utilização de redes informais de contactos para alcançar pequenos favores ou vantagens foram, durante anos, alvo de uma generalizada aceitação e mesmo motivo de regozijo e reconhecimento social. Por sua vez, numa aceção estrita – que vincula a corrupção unicamente a comportamentos legalmente tipificados como crime, associados à criminalidade económica, ao tráfico de influências, ao abuso de poder e ao peculato –, fica de fora um conjunto vasto de atos socialmente reprováveis de influência ou troca de favores e vantagens.
Em tempos de crise, o aprofundamento das desigualdades e, essencialmente, a consciência da injustiça social agravada pelas diversas formas de corrupção (as criminais e as não criminais) arrastam para a ordem do dia a reivindicação de um combate alargado aos fenómenos de corrupção. A corrupção passa a ser reconhecida como uma das mais relevantes causas da destruição dos pilares de um Estado de direito democrático e o seu combate como uma forma de restaurar a confiança social e institucional. Nesta sequência, os tribunais são chamados a assumir o seu papel repressivo e de reposição da legitimidade do sistema político. Assim, se o combate à corrupção pelo judiciário pode contribuir para a maior legitimidade social dos tribunais, também o tornará mais débil se não ajustar a resposta às expectativas geradas com a sua atuação.
Paula Fernando
Crescimento (decrescimento)
O crescimento económico é entendido usualmente como um objetivo de política prioritário, se não o mais importante de todos. Assistimos frequentemente a debates sobre políticas ambientais, de saúde, laborais ou de redistribuição de rendimentos, entre outros, centrados mais no impacto que estas políticas terão no crescimento e menos no seu valor intrínseco. Por detrás destes debates está o pressuposto de que existe uma relação direta entre o crescimento contínuo na quantidade de coisas produzidas e consumidas e certos fins valorizados socialmente, como o emprego, o bem-estar e até a felicidade humana.
A importância dada ao crescimento, contudo, é contestável do ponto de vista moral e da ecologia. De um lado, temos a ideia de que a acumulação material sem fim não torna as pessoas mais felizes, não cria bem-estar social e induz sentimentos de ganância, competição e individualismo que são contrários à vida boa em sociedade. Do outro, temos a constatação de que não é possível um sistema produtivo expandir-se ilimitadamente com base em recursos que, por definição, são limitados.
Destas críticas ao crescimento surgem várias propostas de reforma ou transformação do sistema produtivo, desde a introdução de indicadores alternativos ao PIB na contabilidade nacional até ao pós-crescimentismo (onde se inclui o decrescimentismo). Em particular, as propostas pós-crescimentistas, de inspiração tão diversa como o budismo, o “bem viver” indígena, o eco-socialismo, o autonomismo ou o localismo, visam a reorientação do sistema produtivo para a satisfação das necessidades humanas essenciais, desligando o emprego e a proteção social em relação ao crescimento. O que estas propostas têm em comum é a ideia de que a sustentabilidade, social e ambiental, é incompatível com o crescimento. Por outras palavras, para os pós-crescimentistas a expressão “crescimento sustentável”, muito em voga em contexto de crise, é uma contradição nos termos.
Ricardo Coelho
Criatividade
A criatividade é vista normalmente como pertencendo à esfera individual ou como característica de grupos restritos de artistas. Mas, na realidade, ela manifesta-se sempre em interação com o todo social. Nessa medida, a crise atual, ao ser capaz de se infiltrar nas subjetividades dos artistas, ao poder atingi-los na esfera mais íntima, pode ter efeitos destrutivos, provocar angústias, dúvidas, sofrimentos e conduzir ao desânimo. Mesmo sabendo-se que muitos artistas foram capazes de criar, desde obras de arte, até obras de vida, nas mais adversas circunstâncias históricas.
A crise atual do capitalismo coloca vários desafios aos artistas que vivem e fazem o seu trabalho nos países das periferias europeias. Uma das suas vertentes é o avanço da ofensiva contra a participação do Estado no apoio às artes minoritárias, visando diminuir essa participação e considerar o mercado e os seus critérios como os únicos relevantes. Esta posição, que se vem manifestando há décadas, segue em paralelo com os ataques ao Estado Social europeu e pode traduzir-se no aumento do peso da indústria cultural de massas, dominada amplamente pelos Estados Unidos. Nem todas as práticas artísticas têm o mesmo grau de mobilidade e de independência. Quanto menor for o número de pessoas envolvidas, maiores serão as possibilidades de inventar soluções. Mas o desafio em questão passará inevitavelmente pela criação de novos contextos de trabalho, de novas redes, de novas formas de enquadramento institucional e, forçosamente, por uma elevada capacidade de autorreflexão: Qual é o meu lugar neste mundo? De que forma o meu trabalho se pode relacionar com as pessoas, o que é que eu posso fazer, organizar, criar, incentivar ou inventar nessa direção?
Certamente que haverá lugar para o protesto, a reivindicação justa, a reclamação do direito à presença no espaço público, para além daquilo que é fornecido em pacotes pela indústria cultural hegemónica. Mas este tipo de ação, o protesto, ganhará se for acompanhado pela autorreflexão crítica e produtiva e pelo contributo ativo para a formulação de alternativas.
António Pinho Vargas
Criminalidade
O agendamento mediático da criminalidade privilegia duas abordagens: crescimento exponencial dos crimes de furto e de roubo e combate ineficaz das instâncias policiais e judiciais. A incidência desta agenda, ainda que os indicadores a não confirmem totalmente, tem um forte impacto, tanto nas representações dos cidadãos sobre o sistema de justiça penal, como nas políticas públicas de combate à criminalidade. A ampliação do sentimento de insegurança facilita o caminho de políticas securitárias mais restritivas de direitos e liberdades, mais carcerárias e mais seletivas.
Os estudos e os indicadores conhecidos sobre a criminalidade permitem um outro ângulo de abordagem. Mostram como as respostas à criminalidade, por parte dos poderes político e judicial, são estruturalmente muito desiguais: mais assertivas para determinados tipos de crime e mais brandas para outros. O combate à corrupção e à criminalidade económica em geral, crimes altamente predadores do Estado social e da democracia, responsáveis em parte pela crise económica que o país atravessa e pela desestruturação social, também ela indutora do aumento da criminalidade que ameaça diretamente os bens e a integridade física dos cidadãos, tem-se traduzido em políticas e práticas judiciárias muito pouco eficazes. Perdidos no emaranhado de leis e na teia burocrática dos tribunais, os poucos processos que vão sendo investigados e acusados (o peso relativo destes crimes no conjunto da criminalidade é muito baixo, suspeitando-se de taxas elevadas de criminalidade oculta) acabam, com muita frequência, com um saldo favorável ao agente do crime: absolvido de uma acusação que o Ministério Público, contra uma defesa muito profissionalizada e bem preparada, não conseguiu provar; condenado a uma pena “leve”; ou com o processo prescrito.
As sociedades mais seguras não têm cadeias sobrelotadas de cidadãos pobres. Têm baixos índices de corrupção e uma distribuição da riqueza mais igualitária.
Conceição Gomes
Crise
Na nossa linguagem comum, “crise” significa algo em perigo, sob ataque, em transformação. Apesar de usarmos, de facto, esta palavra quotidianamente nas nossas vidas para falar de todo o tipo de situações, não pode ser negado que o conceito tem também complexas conotações políticas.
Numa abordagem descritiva, “crise” indica situações em que agentes ou estruturas políticas passam por mudanças radicais. Neste sentido, discutimos nas ciências sociais a “crise da democracia parlamentar” ou a “crise do Estado-Providência”. É característico destes usos descritivos do termo que as perspetivas de futuro – saídas da crise – fiquem frequentemente por considerar: podemos não saber exatamente para onde a estrada nos leva, mas estamos com certeza perdidos. Este uso descritivo pode ser contrastado com um mais “performativo”. Por vezes, a palavra “crise” não é tanto usada para descrever uma situação difícil, e até perigosa, mas antes para agravar e até criar essa mesma situação. A História antiga e contemporânea diz-nos que os políticos (e poderes dominantes) procuram produzir, frequente e ativamente, um clima de crise – seja social, económico ou “afetivo” – de forma a alterar o equilíbrio da balança constitucional de poderes a seu favor. Neste sentido, “crise” contém alguma similitude com outra poderosa expressão do discurso político: exceção. Momentos de crise, tal como estados de exceção, albergam enormes riscos para as instituições democráticas, dado que concedem aos que governam uma autoridade especial, muitas vezes sem qualquer controlo. “Crise”, longe de ser neutro, é claramente um conceito concebido para o combate.
É neste ponto que ressalta a importância de outra prática, uma prática que provém da mesma raiz grega de crise: crítica. Confrontados que estamos com a perturbadora cacofonia dos discursos sobre a crise, torna-se prioritário investigar criticamente as origens e a natureza da situação em que vivemos. Ainda que um dicionário sobre a atual crise seja uma ferramenta útil e, de facto, indispensável no atual contexto, tal atitude crítica não pode nunca tornar-se um privilégio apenas de peritos académicos. E, se a pressão em tempos de crise (percecionada ou real) é esmagadora para asfixiar o debate público, de maneira a “reforçar” a unidade coletiva, o desenvolvimento oposto – um diálogo societal exaustivo e plural sobre os caminhos de saída da crise – será altamente desejável.
Mathias Thaler
Custos sociais
Nas economias capitalistas, como a nossa, uma parte significativa dos custos da atividade económica tende a ser transferida para a sociedade, não entrando na contabilidade de custos das empresas. São custos sociais. Custos não pagos pelos agentes que os produzem.
Estes custos cobrem um amplo espectro de deseconomias ambientais e sociais, incluindo aspetos tão diversos e heterogéneos como a poluição ambiental; o esgotamento dos recursos não renováveis e a exaustão dos recursos renováveis; o congestionamento urbano; a deterioração das condições de trabalho, os acidentes de trabalho e as doenças profissionais; os efeitos nocivos das mudanças tecnológicas ditadas por interesses estritamente privados, a instabilidade económica e o desemprego; ou, como está a acontecer com particular pungência no decurso da presente crise, o sacrifício do bem-estar das pessoas aos ritmos, interesses e exigências da “máquina” económica. Incluem, na verdade, uma variedade de deseconomias, riscos e incertezas com um caráter cumulativo, cujo impacto se pode estender até muito longe no futuro.
A existência de custos sociais deve-se fundamentalmente à circunstância de a busca do lucro resultar num prémio à minimização dos custos privados de produção. Ao minimizarem os seus custos internos, as empresas tendem a transferi-los para terceiros e para a comunidade em geral, maximizando efetivamente os custos sociais. Pode dizer-se que estes custos são inevitáveis no quadro da economia capitalista. Por isso K. William Kapp lhe chamou «uma economia de custos não pagos». Na medida em que os custos sociais traduzem violações de direitos sociais – podendo, aliás, ser vistos como o seu reverso –, transcendê-los implica assumir a vida humana como central e aqueles direitos como o referencial último da atividade económica.
Vítor Neves