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Défice (orçamental)
O discurso dominante sobre a crise tende a enfatizar o problema do desequilíbrio persistente das contas públicas. A atual crise portuguesa seria, nessa perspetiva, indissociável da acumulação continuada de elevados défices orçamentais. O défice orçamental é o valor anual (negativo) do saldo global das administrações públicas (Administração Central, Administração Regional e Local e Fundos da Segurança Social), isto é, resulta da diferença entre as receitas e as despesas efetivas do conjunto das administrações públicas e corresponde às necessidades anuais de financiamento do setor público. É habitualmente expresso em percentagem do PIB. A dívida pública é o resultado dos défices acumulados.
Recentemente a proposta de fixação constitucional de um limite para o défice trouxe para o espaço público a discussão em torno da noção de défice estrutural. Este é o valor que se obtém supondo que a economia se encontrava numa situação de produto potencial (ou tendencial). É considerado o valor que resultaria da eliminação da componente cíclica do défice (um valor que permitiria separar o efeito dos estabilizadores automáticos associa-dos à expansão ou contração da atividade económica do efeito das medidas “discricionárias” dos poderes públicos). Na verdade, a ideia da fixação de um teto para o défice dito estrutural é muito discutível. E a recente proposta franco-alemã de fixação desse teto em 0,5% do PIB para os países da zona euro é, acima de tudo, perigosa, podendo constituir um entrave à implementação de políticas orçamentais ativas. A sustentabilidade das contas públicas é essencial. Mas o problema da dívida externa portuguesa é muito mais do que uma questão orçamental. É um problema económico global da economia portuguesa e do seu modo de inserção internacional. Os défices externos acumulados ao longo de décadas pelo conjunto da economia portuguesa – incluindo famílias, banca e empresas – não deixam dúvidas quanto à parcialidade de uma visão quase exclusivamente centrada nos défices públicos.
O discurso dominante tem servido sobretudo como arma ideológica no combate às funções sociais do Estado. Um pensamento alternativo sobre a crise deve afirmar que os défices com que a economia e a sociedade portuguesa se confrontam são diversos – orçamentais, externos e sociais. Nesse sentido, bem pode dizer-se que, na verdade, «há mais vida para além do défice».
Vítor Neves
Deficiência
Nos Estudos da Deficiência existem diversas definições e modelos, com potenciais de emancipação distintos para as pessoas com deficiência. No caso do modelo médico ou individual de deficiência, esta é entendida como uma consequência direta da incapacidade. A única “esperança” para um corpo “diferente” reside no tratamento médico e nos serviços de reabilitação geridos por profissionais. A deficiência é, assim, o resultado de um corpo “imperfeito” e as pessoas com deficiência apresentam-se como dependentes e passivas face às suas biografias.
A crescente politização das pessoas com deficiência no Reino Unido e nos EUA e a formação de organizações de pessoas com deficiência politicamente comprometidas permitiram a emergência de uma visão alternativa da deficiência – o modelo social. De acordo com esta nova perspetiva, a deficiência não é criada pela incapacidade, mas pela sociedade através das barreiras sociais, culturais e físicas que ergue. Este entendimento da deficiência representa uma viragem, ao recentrar a intervenção na sociedade e não no indivíduo. A necessidade de conciliar estes dois modelos deu origem ao que se designa por modelo biopsicossocial, mediante o qual a deficiência resulta das condições de saúde e do contexto de vida de cada indivíduo. Esta perspetiva tem servido de alicerce a muitas das políticas sociais mais recentes, sem todavia se traduzir num impacto real na vida das pessoas com deficiência.
A influência do modelo médico e a ênfase em fatores médicos e individuais, dominante nas políticas sociais na área da deficiência, têm constituído entraves à emancipação das pessoas com deficiência. Num contexto de crise económica, tal ênfase torna-se ainda mais problemática. A ausência de políticas de cariz estrutural capazes de eliminar as barreiras físicas e culturais à cidadania das pessoas com deficiência, bem como a redução dos direitos sociais utilizados como forma de assegurar uma igualdade de oportunidades, relegam as pessoas com deficiência para situações de extrema pobreza e exclusão social.
Fernando Fontes
Democracia
A palavra mais humilhada, empobrecida e abusada de todas as palavras políticas. Poucas palavras evocam tanta emoção e, ao mesmo tempo, tanta deceção. Tem sido cruelmente invocada para cometer e justificar guerras, invasões, colonização, despotismos e diferentes formas de violência e opressão.
Para os conformistas, a democracia reduz-se à sua dimensão política, que a considera apenas o procedimento menos mau para a eleição de representantes políticos. No atual contexto da crise financeira e económica, a democracia é um instrumento ao serviço da ideologia e dos interesses dos poderes económicos e políticos dominantes.
No entanto, no seu sentido alternativo e emancipatório, a democracia não é simples e unicamente um método político, um sistema de governo ou apenas uma realidade estática. É um processo inacabado, aberto, dinâmico, contraditório, multidimensional e de longa duração que consiste em transformar relações desiguais de poder em relações de autoridade partilhada em todos os âmbitos da vida (laborais, familiares, económicos, educativos, religiosos, culturais, etc.). Assim concebida, longe de ser um aliado das ideologias dominantes, a democracia é toda a luta social e política que cria as condições para o exercício da igualdade na diversidade ou, noutras palavras, fornece as bases para o desenvolvimento de capacidades, conhecimentos e valores que criam e reproduzem práticas de solidariedade, participação e busca efetiva da igualdade.
Antoni Aguiló
Demografia
Os indicadores demográficos são, talvez, os dados que melhor espelham as intensas transformações do nosso país nas últimas quatro décadas. A sua evolução revela, por um lado, mudanças significativas e, por outro, nalguns casos, ritmos rápidos de transformação. A mudança mais notável é certamente a queda da fecundidade para os níveis mais baixos do mundo, extraordinária pelos níveis de partida e de chegada dos valores em causa (o valor médio era, em 1960, 3,2 filhos por mulher e, em 2011, 1,3), pelo ritmo vertiginoso da descida e pela uniformização à escala nacional. No entanto, se esta é a mudança que mais se destaca, outras, mais ou menos relacionadas com ela, se têm feito sentir: a descida da dimensão média das famílias; o aumento dos casais sem filhos e das pessoas sós; o crescimento dos nascimentos fora do casamento; a generalização da contraceção; o aumento da idade média ao primeiro casamento; o decréscimo da nupcialidade; o aumento da divorcialidade; o crescimento continuado das taxas de atividade feminina; o aumento das taxas de escolarização; o prolongamento das carreiras escolares. Os indicadores multiplicam-se, revelando as mudanças das últimas décadas. Estas transformações resultam hoje em profundas tensões ao nível das práticas e das representações.
A quebra da fecundidade e o aumento da esperança média de vida deram origem a uma estrutura demográfica envelhecida, duplicaram a população dependente de cuidados e transformaram a geração adulta ativa numa geração sanduíche, entalada entre os cuidados das crianças e dos idosos, sem dispor de estruturas de apoio. Numa sociedade onde a família continua a ser a grande responsável pela proteção social, são cada vez maiores os limites impostos à ação das solidariedades familiares. Por um lado, a instabilidade das uniões e a complexificação dos laços de parentesco podem diluir a força das obrigações familiares. Por outro, as mulheres são as principais prestadoras de cuidados, num contexto de forte participação no mercado de trabalho.
A retração do Estado social representa uma pressão adicional sobre este modelo e, seguramente, sustentará o declínio continuado da fecundidade e a ausência de alternativas para a população envelhecida. O envelhecimento demográfico não tem sido encarado como um desafio social e económico, pelo que temos hoje uma sociedade cujos valores culturais estão em profunda contradição com a realidade demográfica.
Sílvia Portugal
Depressão
O conceito de Saúde Mental não se restringe à ausência de doença mental. É um estado de bem-estar em que o indivíduo entende as suas próprias capacidades, lida com as pressões normais da vida, tem a flexibilidade cognitiva e emocional necessária à interação social e manifesta resiliência perante as adversidades. Percebe-se, pois, que a Saúde Mental é resultante e dependente de um equilíbrio dinâmico de fatores biológicos, psicológicos e sociais. De entre estes, destacam-se os determinantes sociais da saúde, ou seja, o conjunto das circunstâncias em que decorre o dia-a-dia. Pobreza, desemprego, más condições ambientais, baixo acesso à educação, ambiente familiar disfuncional, exclusão social, discriminação sexual, acontecimentos traumáticos, são determinantes sociais que atuam como fatores de risco, influenciando o desencadear da doença.
Compreende-se assim que uma crise económica seja precipitante de alto risco para a saúde mental dos indivíduos, das famílias, das sociedades. A ameaça da precariedade, os problemas financeiros, o desemprego, o empobrecimento, a falência das redes de suporte o isolamento social e provocam modificações significativas no modo como o individuo se olha a si, ao mundo que o cerca e ao futuro. E adoece-se pela perda da esperança, pelo aumento dos comportamentos de risco, pelo agravamento da vulnerabilidade às doenças ditas orgânicas. E agrava-se o estado de doença pela incapacidade financeira de obter resposta terapêutica. Sabe-se que em Portugal a subida de 1% no desemprego está associada a um aumento de 4,4% de suicídios. Para cada suicídio existem pelo menos 100 casos adicionais de depressão, patologia cuja taxa de incidência aumenta quando sobem os índices de desigualdade social.
Para preservar a saúde mental das populações em períodos de crise económica, a OMS sublinha a relevância dos determinantes sociais e aponta para a criação de programas de trabalho ativo, apoio social às famílias, valorização dos cuidados primários a pessoas de maior risco, promoção de resiliência e reestruturação de dívidas. Nestes períodos, os países são empurrados para cortes financeiros que afetam os programas de proteção social. Mas, da análise de recessões anteriores, constata-se que a criação de empregos e de redes de segurança social específicas são apostas válidas que previnem o resvalar dos indicadores de saúde mental e que resultam em benefícios económicos posteriores.
Luísa Sales
Desemprego
É geralmente aceite que a noção moderna de desemprego emerge, nos finais do século XIX e início do século XX, com a consolidação da sociedade industrial e do trabalho assalariado e que se estabiliza com as políticas e instituições especializadas na sua gestão. A noção de desemprego encontra-se internacionalmente harmonizada pelas recomendações da OIT. É com base nestas que o INE, a partir do Inquérito ao Emprego, classifica os indivíduos, com 15 ou mais anos, em relação ao mercado de trabalho num de três estados: emprego, desemprego ou inatividade. É considerada desempregada uma pessoa com 15 ou mais anos, sem trabalho remunerado ou outro, disponível para trabalhar num trabalho remunerado ou não, e que efetuou diligências para encontrar emprego.
No atual contexto de crescente diversificação, heterogeneidade e invisibilidade do trabalho e do emprego, multiplicam-se as relações com o trabalho e o emprego e, logo, com o desemprego, dificultando a sua quantificação, introduzindo alterações no seu significado social, diversificando as suas vivências e, mais grave, limitando o acesso às proteções na eventualidade de desemprego. O desemprego pode, pois, ser definido como um problema social complexo e constituir o ponto de partida para interrogar, por um lado, a atual tendência para a naturalização do risco laboral e para a banalização do escamoteamento do valor-trabalho e, por outro, as medidas políticas destinadas a colmatar os seus efeitos sociais e individuais. Os números do desemprego não são, todavia, suficientes para abarcar o fenómeno em toda a sua espessura.
Independentemente da partilha de uma condição objetiva, os/as desempregados/as continuam a viver diferentes condições sociais e a pertencer a diferentes grupos sociais, pelo que as desigualdades encontram eco nas experiências do desemprego. Perante a ampliação dos números do desemprego, os/as desempregados/as precisam de existir e, logo, de um olhar sociológico que abra espaço às experiências plurais que compõem o polo desqualificado da dicotomia trabalho/não-trabalho e que existem, quando sustentadas somente por uma lógica produtivista, sob uma forma desqualificada de existir.
Pedro Araújo
Desigualdade
O conceito de desigualdade pressupõe o de igualdade. Para Hannah Arendt, a igualdade é o resultado da organização e da ação humanas orientadas pelo princípio de justiça. Não nascemos iguais, tornamo-nos iguais em comunidades que buscam direitos iguais. A proposta mais consistente e fundadora sobre a origem das desigualdades advém de Jean-Jacques Rousseau quando afirmou que as mesmas emergiram no dia em que «o primeiro [ser humano], tendo cercado um terreno, afirmou: Isto é meu, e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele. Foi o verdadeiro fundador da sociedade civil».
Assim, a desigualdade é sempre social e relacionada com os contextos (do local ao global) de exploração de um ser humano por outro com base em recursos distribuídos de forma desigual e injusta.
O acesso e a posse de propriedade como fatores primordiais da desigualdade foram reafirmados pelas correntes marxistas, a que se acrescentaram posteriormente reflexões sobre o papel de outros determinantes na desigualdade, tais como a diferença entre sexos e fatores étnicos e raciais. Nas sociedades contemporâneas, um dos principais fatores de reprodução das desigualdades é a escola e o acesso diferenciado à aquisição de conhecimentos e de competências que permitam a realização de processos de mobilidade e de ascensão social.
Numa situação de crise e de predominância de um discurso liberal que acentua a escassez de recursos económicos, as desigualdades de cariz económico e social tendem a acentuar-se por dificuldade dos Estados em aplicar medidas de redistribuição da riqueza e pela diminuição dos apoios sociais aos mais desprotegidos. A crise legitima a hegemonia do discurso associado ao darwinismo social de seleção dos mais capazes e aptos e da exigência de cada um ser o empreendedor de si próprio. Ora, sem projeto coletivo e sem o princípio de justiça e de direitos iguais, não há igualdade. Refira-se, por último, que Portugal é um dos países da OCDE, segundo relatório de 2012, com maiores desigualdades de rendimento e onde as desigualdades sociais são mais acentuadas.
José Manuel Mendes
Deslocalização
O conceito de deslocalização é utilizado em situações diversas. A deslocalização de uma empresa significa, em princípio, a sua transferência de um país para outro. Mas, por exemplo, processos de externalização ou subcontratação podem surgir carregados de conteúdos de deslocalização e não serem referenciados como tal. Em regra, identificam-se como objetivos principais das deslocalizações de empresas a redução dos custos de trabalho e a exploração de normas ambientais menos exigentes, fator este a que está associada, muitas vezes, a deslocalização do carbono.
Nos objetivos das deslocalizações entra um grande conjunto de fatores e uma utilização diversificada conforme o tipo de atividade e o grau de qualificação da mão-de-obra; a dimensão e proximidade dos mercados; os custos de contexto e os incentivos oferecidos pelos países acolhedores; a mão-de-obra disponível, os salários, os direitos laborais e sociais praticados; a qualidade e o funcionamento das instituições; a estabilidade política; as exigências fiscais.
A deslocalização das sedes de empresas para países ou localidades com regimes fiscais particularmente favoráveis, começa a entrar no léxico comum como deslocalização fiscal. Fala-se também em deslocalização eletrónica quando há utilização de mão-de-obra à distância. Por vezes são trabalhadores bastante qualificados em países com baixos custos salariais e baixo nível de vida. A conjugação do poder e da capacidade de ação estratégica das multinacionais com os processos de deslocalização e com as possibilidades de utilização de um “mercado de trabalho global”, fatores que têm entre si forte conexão, gera uma espiral de harmonização no retrocesso dos direitos laborais e sociais de grande parte dos trabalhadores.
Há que construir alternativas socialmente aceitáveis que garantam: os direitos humanos fundamentais no trabalho; o objetivo universal da harmo-nização social no progresso; um diálogo social nacional e internacional que defenda e efetive a contratação coletiva; a eliminação dos paraísos fiscais; normas sociais no comércio internacional; o desenvolvimento dos países.
Manuel Carvalho da Silva
Direito
Em sentido amplo, o direito reúne toda a normatividade a que os cidadãos e empresas fazem apelo na regulação da sua atividade ou na resolução dos seus conflitos. Nesse sentido, as normas do direito podem ter origem no Estado ou serem por ele reconhecidas, em poderes vários, públicos ou privados, nacionais ou internacionais. Os cidadãos e as empresas podem, consoante os contextos, fazer apelo a diferente normatividade. Por exemplo, uma empresa pode resolver um conflito laboral de acordo com as leis do Estado, um litígio internacional de acordo com as regras internacionais dos negócios e um determinado problema de acordo com regras da comunidade onde está sedeada.
Mas ainda que se considere como direito as normas emanadas de fontes oficialmente reconhecidas, o direito é muito mais amplo que as leis em vigor. Integram-no os princípios e as regras de direito internacional de aplicação universal, como a Declaração dos Direitos Humanos, as convenções, tratados e acordos subscritos pelos Estados ou aos quais aderiram, a Constituição, as leis, algumas decisões dos tribunais superiores (nalguns países), regras e costumes oficialmente reconhecidos (por exemplo, convenções coletivas de trabalho, acordos de empresas).
Significa, assim, que são múltiplas as fontes de direito às quais os cidadãos podem lançar mão na defesa dos seus interesses e direitos. Sempre que as leis os não satisfaçam ou limitem, poderão, por exemplo, fazer apelo à Constituição ou a determinadas convenções internacionais. Mas o sucesso dessa mobilização ampla do direito oficial está condicionado a uma decisão favorável dos tribunais. Nesse sentido, o maior ou menor potencial emancipatório do direito depende muito do compromisso dos tribunais com a cidadania e com a democracia. A construção de um sistema de justiça eficiente, de qualidade e democrático depende não só do direito oficial, mas também da capacidade que os poderes – político e judicial – tiverem em definir e executar uma agenda estratégica capaz de mudar a face da justiça que corresponda a uma exigência cidadã. O que fizermos do direito e da justiça irá marcar o futuro da nossa sociedade democrática.
Conceição Gomes
Direitos
Os direitos são um importante testemunho e património de lutas e aquisições civis, políticas e sociais empreendidas em nome das liberdades individuais e coletivas e do acesso igualitário a bens considerados fundamentais. São uma das mais consistentes inovações políticas desde finais do século XVIII e um indicador importante da coesão e equidade nas sociedades contemporâneas. Ao longo de diferentes gerações, a afirmação dos direitos ancorou-se num amplo consenso, que institucionalizou interesses contraditórios e assimétricos e confiou ao Estado um papel regulador e redistribuidor dos recursos existentes, definindo as oportunidades de inclusão de acordo com a pressão das expectativas e dos movimentos sociais.
Mesmo com amplas zonas de exclusão, a democratização da sociedade portuguesa, a partir de 1974, significou um aumento extraordinário do reconhecimento da igualdade (de género ou de orientação sexual) e da proteção dos cidadãos nas diferentes esferas da sua vida (saúde, trabalho, educação). Representou também uma importante transição moral dos modelos assistencialistas ou de mercado para o princípio dos direitos enquanto fonte igualitária e inclusiva de bem-estar social. As respostas tecnocráticas para a crise económica e financeira advogam não haver alternativa que não redunde em pobreza, precariedade e desemprego, pelo que os direitos estão hoje a ser radicalmente questionados e ressimbolizados. O discurso dominante considera os direitos adquiridos um sinal de privilégio e acomodação, portanto a causa primeira da crise: hoje vive-se mal porque ontem se viveu demasiado bem.
Ao invés de estimular um falso conflito entre gerações, segundo o qual a solução para as dificuldades dos mais jovens passa pela destruição dos direitos de todos, o resgate de uma política crítica e solidária deverá fazer o caminho oposto, construindo alternativas individuais e coletivas a partir do reconhecimento e do aprofundamento dos direitos sociais, económicos e culturais.
Tiago Ribeiro
Direitos Humanos
Os Direitos Humanos são valores fundamentais de liberdade, igualdade e dignidade que pertencem a todos os seres humanos. São comummente categorizados em três grupos: os direitos civis e políticos, que dizem respeito à liberdade, à proteção contra os abusos do Estado e à participação na vida política. Incluem o direito a procurar, receber e difundir informação, a liberdade de reunião, associação e manifestação, o direito a constituir e aderir a sindicatos para a proteção dos seus interesses, e o direito de votar e de ser eleito; os direitos económicos, sociais e culturais, que procuram proteger e promover a satisfação das necessidades humanas básicas, os fatores determinantes da qualidade de vida e os valores culturais. Incluem o direito a condições de trabalho justas e favoráveis e a proteção contra o desemprego, o direito a um nível de vida adequado para o indivíduo e a sua família, incluindo alimentação, vestuário, habitação e assistência médica, e o direito à segurança social em situação de perda dos meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade; e os direitos coletivos, que incluem o direito dos povos a determinarem livremente o seu estatuto político, o direito à prossecução do desenvolvimento económico, social e cultural de acordo com políticas livremente escolhidas e o direito a um ambiente saudável. Os três grupos de Direitos Humanos são considerados indivisíveis e interdependentes.
A Constituição portuguesa garante os três grupos de Direitos Humanos e Portugal é também signatário de tratados internacionais que protegem este tipo de direitos. Tem, por isso, a obrigação de: respeitar os Direitos Humanos, abstendo-se de interferir no seu pleno gozo; proteger os detentores de direitos contra a intrusão de terceiros; e cumprir os direitos, adotando medidas progressivas positivas para os assegurar. Alguns Direitos Humanos podem, contudo, ser limitados em estados de emergência e quando é necessário proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou a moral públicas, ou os direitos e liberdades de outrem.
Sisay Yeshanew
Discriminação
É um processo de diferenciação entre pessoas ou grupos sociais assente em critérios estabelecidos por quem detém o poder de produzir hierarquias de valor. Associados à discriminação estão processos adicionais de exclusão, invisibilização, marginalização, opressão, segregação e violência, cujas consequências são frequentemente dramáticas nas vidas daqueles/as que os experienciam de forma direta e/ou simbólica. Na base da discriminação estão preconceitos de natureza cultural, ideológica e/ou social, responsáveis pela (re)produção de estereótipos, configurando representações imaginadas acerca de quem é construído como marginal ao grupo social dominante. A fórmula “nós versus Outros” caracteriza os discursos discriminatórios, consolidando formas de alterização que cristalizam fronteiras entre categorias posicionadas hierarquicamente no acesso a bens, direitos e recursos. Entre as formas de discriminação mais resilientes em Portugal incluem-se a deficientização, a discriminação por idade e classe social, a homofobia, o racismo, o sexismo, a transfobia e a xenofobia.
Contrariamente à ideia de que a crise económica afeta todas as pessoas, são cada vez mais evidentes os modos diferenciados como a austeridade se manifesta de acordo com assimetrias de poder. Com efeito, o desemprego e a redução de respostas e apoios estatais conduzem a um aumento de fenómenos de discriminação que têm como alvo as populações mais vulneráveis. Por exemplo, a introdução ou aumento de taxas moderadoras na área da saúde tem consequências imediatas para grupos socioeconómicos mais desfavorecidos, que são assim impedidos ou desencorajados de aceder a um bem essencial, revelando uma forma de discriminação.
O estabelecimento de medidas conducentes a um agravamento da discriminação entre pessoas e grupos sociais nas mais variadas áreas constitui uma violação grave da Constituição da República Portuguesa, cujo Princípio da Igualdade (artigo 13.º) declara iguais todos os cidadãos e cidadãs.
Acresce que, com o aumento da discriminação, o projeto de «construção de uma sociedade livre, justa e solidária» (artigo 1.º da Constituição) fi ca irremediavelmente comprometido.
Ana Cristina Santos
Dívida
Quando alguém nos faz um favor, nos cede um bem, ou simplesmente nos ajuda, dizemos “obrigado”. O gesto feito em nosso benefício obriga-nos a reciprocar no futuro. O “obrigado” proferido assinala que reconhecemos uma dívida. Este é o entendimento amplo de “dívida”. No entanto, a par deste, existe um entendimento mais estreito – comercial ou financeiro – que é evocado no caso de transações que não são saldadas no momento. O adiamento da contraprestação pode, ou não, ser acompanhado de um prémio atribuído ao credor pela espera. Contraem-se dívidas quando a contrapartida da prestação de serviços ou cedência de bens fica adiada ou quando se toma dinheiro de empréstimo.
As crises atuais têm a dívida no seu cerne. A dívida que em 2007 deu origem ao afloramento bancário da crise foi a de locatários de habitações adquiridas a crédito nos EUA, pressionados por amortizações e juros crescentes e pela desvalorização dos imóveis decorrente do rebentamento da bolha especulativa do imobiliário. Como estas dívidas haviam sido disseminadas por todo o sistema financeiro mundial, sob a forma de produtos financeiros derivados, o rebentamento da bolha do imobiliário transformou-se numa crise financeira sistémica. A contração do crédito que daí resultou fez com que a crise financeira se tornasse uma recessão económica à escala global.
Em consequência da recessão e dos resgates dos bancos pelos Estados, os défices e as dívidas públicas cresceram muito rapidamente. Nos EUA, a dívida cresceu de 62% do Produto Interno Bruto (PIB), em 2007, para 101%, em 2011, no Japão, de 167% para 206%, no conjunto da União Europeia, de 66% para 88%. Embora a zona euro estivesse em melhor situação do que os EUA e o Japão, foi precisamente na União Europeia que eclodiu a chamada crise da dívida soberana. A partir de Março de 2010 as taxas de juro da dívida da Grécia, Irlanda e Portugal iniciaram uma escalada. Com taxas de juros proibitivas, os governos destes países escolheram procurar financiamento junto do FMI e da União Europeia, ficando sujeitos a programas de austeridade.
José Maria Castro Caldas