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Ecologia de saberes
A resposta à crise passa por apropriar ou inventar espaços públicos onde ganham forma outros modos de pensar a sociedade e de habitar o mundo, resgatando uma imensa riqueza de experiências que não podem ser desperdiçadas. Através de múltiplos encontros, diálogos e traduções, emerge o que Boaventura de Sousa Santos chamou uma ecologia de saberes. Esse processo encontra expressão nas assembleias dos movimentos de indignados ou de ocupas, nos assentamentos, escolas e iniciativas do Movimentos dos Sem Terra, no Brasil, nos movimentos indígenas, nos movimentos de mulheres e LGBT, nos espaços criados no âmbito do Fórum Social Mundial e dos seus fóruns temáticos, nos diferentes espaços de participação cidadã na definição e avaliação de políticas públicas ou no governo local, ou em iniciativas de Educação Popular.
Perante a imposição de uma explicação oficial da crise, sustentada pela autoridade da monocultura da ciência económica oficial e pela ideia de que não existe alternativa a esta nem às políticas que dela decorrem, a construção de um outro conhecimento e de outras formas de ação política ocorre através de processos de resgate e partilha de experiências diversas, do diálogo entre tradições intelectuais e culturais, entre correntes heterodoxas dentro dos saberes académicos e científicos, da capacidade de reflexão e de constituição de saberes orientados para a ação, sobre as forças e fraquezas das formas de resistência, de reinvenção dos espaços públicos, de intervenção política, da constituição de alianças, da criação de espaços de tradução entre experiências e saberes de sentido emancipatório, independentemente da sua origem. A dinâmica da ecologia de saberes é, assim, um processo continuado de aprendizagem.
Como todas as ecologias, nestas coexistem saberes diferentes que dialogam, que se confrontam, que se articulam, que discutem, criando novas formas de conhecer, de partilhar e de desenvolver as experiências que permitem vislumbrar um outro mundo para além da crise.
João Arriscado Nunes
Economia popular
O conceito de economia popular acentua a condição do sujeito coletivo “povo”, a parte mais desprovida da sociedade em contraste com as categorias sociais privilegiadas pelo nascimento, pela cultura ou pela fortuna. Numa aceção mais geral, a economia popular é constituída por atividades económicas e práticas sociais desenvolvidas pelas classes populares para garantirem, através do trabalho e dos recursos escassos de que dispõem, a satisfação de necessidades básicas, tanto materiais como imateriais, e, se possível, melhorarem as suas condições de vida. Complementarmente, as redes de entreajuda e as diversas formas de ação coletiva permitem aproveitar os recursos da comunidade e consolidar uma cultura de solidariedade capaz de manter a coesão do grupo.
Não sendo meros resíduos pré-capitalistas, estas formas económicas persistem tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas e renovam-se em períodos de crise. Abundantes estudos sobre o campesinato e a pequena produção artesanal mostram que um sistema económico que nunca foi dominante em parte nenhuma pode sobreviver durante séculos e manter o essencial da sua racionalidade. Uma espécie de economia moral, baseada no costume e na experiência, funciona como concha protetora e reduz os impactos desagregadores do sistema económico dominante, seja ele o feudalismo, o capitalismo ou o socialismo de Estado. O mesmo se aplica, sem grandes alterações às restantes formas de economia popular que partilham a mesma sociabilidade de raiz local, baseada no interconhecimento, na transparência de papéis e na confiança, e se expressam em ações coletivas de caráter popular movidas pela necessidade de autopreservação.
Mesmo quando a expansão dos mercados penetra os espaços mais fechados das comunidades, a desagregação das relações sociais baseadas na reciprocidade e na entreajuda solidária e a corrosão destes valores é lenta e incompleta e, por isso, os sistemas económicos populares sofrem um processo de metamorfose mas resistem.
Pedro Hespanha
Economia Solidária
Economia Solidária é uma designação recente e ainda pouco usada em Portugal e o seu maior contributo em conjunturas de crise parece ser o de comprovar a possibilidade de modos concretos e alternativos de produzir, trocar e consumir. Numa aceção muito genérica, engloba uma diversidade de atividades económicas, baseadas em relações de cooperação e em princípios de gestão democrática, distinguindo-se assim da economia de mercado que predomina largamente nas sociedades contemporâneas, baseada em relações de competição e em princípios de valorização do capital.
Muitas dessas formas têm raízes fortes no passado, como é, a título de exemplo, o caso do trabalho comunitário ou da entreajuda camponesa, das iniciativas populares solidárias, do mutualismo rural ou operário, das cooperativas nas suas diferentes modalidades ou da produção autogestionária. Outras são mais recentes e surgem, mais ou menos espontaneamente, de situações críticas para a existência das camadas mais vulneráveis da população em que é necessário encontrar as respostas que o mercado não dá, juntando esforços e trabalhando em conjunto, como no caso dos clubes de troca, das moedas sociais ou do comércio justo, entre uma infinidade de empreendimentos possíveis. Outras, enfim, são soluções alternativas à economia capitalista , pensadas e inventadas no seio de organizações e movimentos sociais contra-hegemónicos, inspiradas num pensamento crítico do modelo económico dominante e na avaliação positiva das inúmeras iniciativas que visam democratizar a economia e desenvolver alternativas socioeconómicas mais justas, mais democráticas e mais sustentáveis através do trabalho cooperativo e solidário.
A solidariedade que dá corpo a estas iniciativas é uma solidariedade entre iguais, entre pessoas e grupos que partilham os mesmos problemas e aspirações e não se confunde, portanto, com a solidariedade, de base religiosa ou laica, fundada nos valores da caridade, do altruísmo ou da filantropia.
Pedro Hespanha e Luciane Lucas dos Santos
Economia verde
O Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP 2010) define a “economia verde” como aquela capaz de produzir melhores condições humanas e equidade social, reduzindo significativamente os riscos ambientais e as “escassezes ecológicas”. A economia verde permitiria supostamente alcançar ao mesmo tempo uma baixa emissão de carbono, a eficiência energética e a inclusão social. Trata-se de uma formulação muito vasta de objetivos que, no atual regime técnico e económico-político, são de facto incompatíveis.
Embora a reconversão do sistema económico para tecnologias “verdes” seja uma necessidade, essa reconversão não garante por si só nem uma maior equidade social nem a preservação de recursos naturais. Em muitos casos, a implantação de estruturas que incorporam tecnologias “verdes”, como a coincineração de resíduos, a energia eólica ou fotovoltaica, ou o transporte ferroviário, é objeto de disputas e contestação social por causa do impacto ambiental que elas geram nos contextos onde vão ser localizadas. Um caso emblemático é a energia atómica, considerada por alguns a forma mais “limpa” de geração de energia, por outros a mais perigosa e poluente. Além disso, tais estruturas pressupõem o emprego de trabalho humano em condições pouco sustentáveis ou saudáveis, como no caso da reciclagem de resíduos sólidos urbanos. Por último, grandes investimentos na economia “verde” podem comportar a expropriação de espaços e gasto de recursos de uso comum, como no caso da plantação de eucaliptos feita no âmbito do “mercado do carbono” global para compensar emissões de CO2.
Visões alternativas da “economia verde”, baseadas na crítica dos mecanismos económico-políticos vigentes (como as teorias do “decrescimento”, do “bem viver” ou da “transição”), enfatizam três condições imprescindíveis para uma verdadeira reconversão da economia: a pequena dimensão e relocalização das atividades económicas, a recusa dos modelos de consumo dominantes, e a valorização não monetária da natureza e dos ecossistemas.
Stefania Barca
Emigração
Nos últimos vinte anos, a dimensão e o significado social que os movimentos migratórios de saída registaram contrastaram com a produção social e política da ausência da emigração portuguesa e, em especial, dos fluxos emigratórios. Considerada uma característica do passado e associada a uma realidade marcada por baixos níveis de desenvolvimento, a emigração difi cilmente se enquadrava na narrativa do desenvolvimento económico e social corrente durante este período. Imaginando-se um país do centro, Portugal excluiu-se do grupo de países de emigração. Os dados estatísticos disponibilizados pelos países de acolhimento mostram, contudo, que, desde meados da década de 1980 e, sobretudo, nos primeiros anos do novo milénio, se intensificaram os fluxos de saída dos portugueses (que atualmente rondarão entre 70 000 e 100 000 por ano), surgiram novos destinos (Angola, Brasil, Reino Unido), desenvolveram-se destinos tradicionais da emigração (França e Suíça) e diversificaram-se os perfis migratórios.
Esta diversificação constitui uma marca diferenciadora dos movimentos emigratórios atuais, percetível através do desenvolvimento e combinação de formas de mobilidade e da modificação das características sociodemográficas dos emigrantes, em especial da crescente participação de mulheres e da maior qualificação. Embora continue a ter forte significado a emigração de cidadãos com poucas qualificações e a inserção profissional nos países de destino não se proceda, frequentemente, em conformidade com as qualificações de origem, a maior qualificação dos emigrantes atuais surge como o aspeto mais mediatizado.
A existência de emigrantes com maior nível de qualificação constitui um reflexo quer das alterações registadas nos níveis gerais de escolarização da população portuguesa, quer da insuficiência do mercado de trabalho nacional em integrar pessoas com níveis de qualificação elevados, quer, ainda, da opção deliberada por uma carreira profissional no exterior. Uma característica que tem a virtualidade de poder contribuir para a aquisição de experiência internacional e para a inserção deste grupo em redes de investigação e/ou profissionais internacionais, mas que, a manter-se, poderá contribuir para subtrair ao país uma geração de jovens altamente qualificados e, deste modo, limitar as suas possibilidades de desenvolvimento futuro.
José Carlos Marques
Empreendedorismo
O campo semântico da noção de empreendedorismo é bastante diversificado, e tem sido muito instável ao longo do último século. Tanto pode remeter-nos para uma situação na “profissão” ou para uma atitude. No primeiro caso, remete-nos para a categoria das pessoas que criam o seu próprio emprego ou das que possuem empresas; no segundo, para a atitude marcada pelas capacidades e conhecimentos postos ao serviço dos negócios. Mais recentemente, tem vindo a afirmar-se a noção de que o empreendedorismo designa a capacidade de detetar e aproveitar oportunidades de negócio. Segundo o fundador dos estudos sobre o empreendedorismo, Schumpeter, a inovação é uma componente fundamental daquela capacidade. É também de inspiração schumpeteriana a noção, amplamente promovida pelas organizações internacionais ligadas ao desenvolvimento e transposta para as políticas ativas de emprego em muitos países, de que o empreendedorismo está na base das mudanças económicas mais importantes, alterando o sistema económico a partir do seu interior. A atual crise reforçou a retórica acerca dos seus importantes benefícios, económicos e sociais, salientando que este não se limita a ser uma força que leva à criação de emprego, à competitividade e ao crescimento, mas que também contribui para a realização pessoal dos indivíduos e para alcançar objetivos de maior inclusão e coesão social.
O empreendedorismo tem vindo, assim, a ser transformado na panaceia que solucionará os graves problemas do desemprego desencadeados pela crise, através das políticas de apoio ao empreendedorismo de base tecnológica e de inovação, e que atenuará os impactos da crise através das iniciativas solidárias do microempreendedorismo, do empreendedorismo social e do empreendedorismo económico solidário. É certo, no entanto, que a reestruturação económica em curso favorece o aparecimento de iniciativas individuais, formais ou informais, e que essas atividades desempenham um papel de algum relevo, quer na adaptação às crises, quer na sustentação da coesão social.
Tudo pesado, tudo leva a crer que a retórica do empreendedorismo e a tónica nas oportunidades de negócio produzidas pelas crises reforcem de forma clara o mito da autorrealização e do individualismo.
Mónica Lopes
Emprego
No emprego incluímos todo o trabalho realizado a troco de uma remuneração, seja por conta própria ou por conta de outrem. A desregulação dos mercados de trabalho, acelerada a partir da década de 1980 com as políticas de reestruturação e liberalização económica, tem produzido precarização da relação de emprego, aumentando exponencialmente as chamadas modalidades atípicas de emprego (informal, temporário, a tempo parcial, sazonal, sub-remunerado, etc.), flexibilização dos tempos de trabalho, que se alongam e se tornam imprevisíveis e associais, e intensificação dos ritmos de trabalho, designadamente, por via de aplicação de novas tecnologias.
As atuais políticas de austeridade eliminam emprego no setor público, um setor que no passado tendia a ser mais protegido, bem como no setor privado, em especial na indústria, na finança e nos transportes. Estes subsetores foram os primeiros a sentir os efeitos da crise, provocando muito desemprego masculino; seguiu-se-lhe o impacto no comércio e nos serviços de proximidade, atingindo crescentemente o emprego feminino. Em consequência, têm-se acentuado a segregação e a polarização das estruturas de emprego em função do sexo e/ou da etnia e/ou da idade, com a concentração do emprego feminino, jovem e das minorias étnicas em postos de trabalho desregulados, mal remunerados e mal classificados. Estes grupos engrossam a categoria de trabalhadores/as pobres. É neste sentido que se pode falar de uma «feminização» do emprego, para significar o efeito de disseminação das características do emprego (e do desemprego) feminino a todos os setores do emprego, e que se pode falar da perda da mais bem preparada geração, que se depara com falta de alternativas ao entrar no mercado de trabalho.
O desinvestimento público e a fraca efetividade de políticas de apoio à criação e manutenção de emprego refletem-se nos crescentes níveis de desemprego. Ao mesmo tempo, são múltiplos os sinais de quebra de qualidade do emprego, de declínio dos salários nominais e reais e de mudanças importantes na composição do emprego, donde resulta aumento da sua informalização e a intensificação da agricultura de subsistência e da produção doméstica. Em suma, uma remercantilização da força de trabalho.
Virgínia Ferreira
Energia
A partir de 2004, a produção global de petróleo entrou em declínio: ou seja, o chamado “peak oil” – o pico máximo de capacidade produtiva global – foi alcançado de maneira estável, pois não é previsível um retorno aos níveis anteriores. “Peak oil” significa atingir a taxa de extração máxima do recurso mineral e entrar a partir daí numa fase descendente irreversível, devido à real escassez de petróleo face ao aumento da procura global.
Embora existam outras fontes energéticas, como o carvão ou o gás natural, estas não podem substituir inteiramente o petróleo por terem características diferentes. Aliás, trata-se de recursos igualmente não renováveis. A não contingência da condição de escassez é o que diferencia a presente crise energética de outras crises energéticas da idade do petróleo, e especialmente as de 1973 e 1979, que foram causadas por acontecimentos de caráter político-económico e não por real falta de petróleo.
De facto, a humanidade já conheceu várias crises energéticas na sua história, como por exemplo a crise da madeira na Europa do século XVIII, que se resolveu com a mudança para o carvão mineral e outros combustíveis fósseis, dando início à idade do carbono. Essas crises energéticas do passado, todavia, nunca tiveram o caráter global da presente crise, pois o nível de integração económica do planeta era bastante inferior ao de hoje.
A total dependência da economia global de recursos fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral, todos não renováveis) torna a transição para recursos energéticos renováveis (sol, água, vento, plantas) cada vez mais urgente. Os recursos renováveis, porém, comportam mudanças de uso do solo e afetam a disponibilidade de outros recursos, como é o caso dos parques eólicos e fotovoltaicos e, em medida ainda maior, das barragens e dos agrocombustíveis. Uma visão crítica das questões energéticas deve portanto assentar na consciência de que a solução mais eficiente é a redução da necessidade de energia através de uma transição da economia para formas de produção e consumo sustentáveis.
Stefania Barca
Enobrecimento urbano
Usamos enobrecimento como tradução do vocábulo gentrication para traduzir a tendência de transformação social de áreas populares e degradadas das cidades da era industrial e pós-industrial em zonas nobres. É manifesta a carga política que está por detrás da enunciação deste processo de tornar “nobre” (gentry) um quarteirão ou um bairro específico das cidades. Na verdade, em rigor, enquanto processo de reconversão urbana, o enobrecimento implica a substituição de residentes (famílias de classes trabalhadoras, funcionários, reformados, imigrantes e franjas da classe média tradicional) e atividades populares (pequeno comércio, indústrias decadentes, armazéns devolutos) por outros residentes e outras atividades que sinalizam a feição moderna (abastada, educada, culta e consumista) das cidades contemporâneas. Em linguagem direta, o enobrecimento trata de afastar os pobres para dar aos ricos o privilégio de viver no centro da cidade. O enobrecimento enuncia, portanto, um processo de contestação e luta social.
O enobrecimento urbano, embora traduza uma tendência recente de requalificação da cidade, recua até à reforma urbanística de Paris de meados do século XIX. O afastamento das classes pobres do centro da cidade para aí instalar grandes avenidas, atividades de comércio e zonas residenciais de prestígio fez parte da modernização da capital francesa. Tal reforma facilitou também o policiamento das classes populares, reduzindo, assim, o ambiente revolucionário que Paris ainda respirava. Outras grandes cidades europeias (Berlim, Madrid, Manchester) e da América Latina (Buenos Aires) seguiram o exemplo de Paris.
Entre nós, o Parque das Nações, na zona sul de Lisboa onde se realizou a Expo’98, tem sido apontado como exemplo de enobrecimento. Porém, ao contrário da experiência das cidades do Norte da Europa e da América, no caso português não há desalojamento forçado de residentes, mas tão-só substituição de velhas instalações industriais por novas áreas residenciais, de consumo e de lazer. Parece mais acertado, portanto, falar-se de reabilitação urbana, isto é, de enobrecimento sem desalojamento de residentes. O Bairro Alto, em Lisboa, é um outro caso de falso enobrecimento na década de 1980, pois tratou-se da criação de um “bairro cultural” que convive com a presença dos moradores tradicionais.
Carlos Fortuna
Escola pública
Do ensino básico ao ensino superior, a escola pública e o acesso à educação são dois fatores indissociáveis. Sem a escola pública, a participação crescente no sistema educativo não teria sido possível. Como teriam estado mais limitados e sido mais lentos os fatores de promoção de integração social, de igualdade, de liberdade, de emancipação, de participação cultural, de disseminação da democracia, entre muitos outros. Todavia, entre as suas virtudes, a escola pública sempre transportou consigo as suas próprias contradições. Tal como outras instituições, ainda que tenha servido os intentos dos assalariados e das suas famílias, a escola pública serviu mais ainda os interesses dos empregadores. Por outro lado, perante os atuais elevados níveis de precarização e de desemprego, tornou-se incapaz de cumprir as suas promessas de inclusão. Acrescendo ainda o facto de a igualdade de oportunidades, que lhe é tão cara, nunca ter passado de uma miragem em virtude dos vários mecanismos de seleção social e económica que a própria escola pública desenvolveu.
Sitiadas pela crise e pelas retóricas neoliberais que proclamam e concretizam a redução das despesas públicas, a educação e as instituições que dela se ocupam entram no século XXI sob os auspícios do seu definhamento. É verdade que as contradições da escola pública estão igualmente presentes na escola não pública, que tem, também ela, as suas contradições intrínsecas. Desde logo, o facto de depender de recursos públicos e de, com frequência, não se alinhar pelos princípios da laicidade estatal. Porém, a crise da escola pública não deriva da sua oposição à escola privada. Deriva, sim, do facto de a educação ter passado a ser considerada, pelas correntes hegemónicas, como um negócio e um mercado como outro qualquer. Neste contexto, as escolas, incluindo muitas das públicas, filtram e triam internamente os seus alunos de modo a poder ter alunos que querem aprender e pais que, angustiados para garantirem o sucesso dos filhos, querem que estes aprendam. A escola que corresponde ao modelo de sucesso não é pública nem privada. É aquela onde os pais são os primeiros professores e onde a seletividade impera. A questão é que, cada vez mais, a imagem da escola pública vem sendo acantonada em contextos sociais e geográficos em que a segregação impede a replicação dos fatores que definem o modelo hegemónico de sucesso.
Paulo Peixoto
Espaço público
A noção de espaço público remete para o modo como nas sociedades modernas se constituiu e institucionalizou uma esfera de intermediação entre o Estado e a sociedade civil, onde se expressa publicamente a opinião sobre assuntos do interesse coletivo ou que, relevando de interesses privados, são passíveis de disputa coletiva. Buscando inspiração em Habermas, é o espaço da formação da opinião pública, do debate e do uso da razão argumentativa, onde se podem digladiar opiniões e posições distintas, gerar consensos e dissensos, legitimar vontades políticas ou contestar outras. São diversas as instâncias em que o espaço público se materializa, destacando-se os meios de comunicação social de massas, a rua e, mais recentemente, os novos espaços de debate e formação de opinião proporcionados pela internet.
Referenciada privilegiadamente a um ideal de democracia, esta conceção de espaço público estipula em teoria a possibilidade de participação livre e universal na disputa de opinião, na formação das agendas políticas e no julgamento público das decisões que afetam os coletivos. No entanto, a história tem demonstrado os limites desse espaço de possibilidades. Baseado em instâncias de mediação reguladas e codificadas, o acesso às possibilidades de expressão e visibilização é muito condicionado, não só socialmente (quem tem acesso), mas também política e normativamente (a que temas e posições se reconhece pertinência). O reconhecimento destas limitações e a alegada tendência para o recolhimento dos cidadãos na esfera da privacidade têm alimentado visões decadentistas sobre o espaço público, que denunciam o seu declínio, erosão e perversão.
No entanto, os anos mais recentes têm revelado uma inusitada dinamização do espaço público, que lhe atribui novos sentidos. De movimentos sociais, fóruns de cidadãos ou organizações da sociedade civil mais estruturados a manifestações mais espontâneas ou improvisadas, são muitas e muito heterogéneas as iniciativas que têm vindo a desafiar as lógicas de funcionamento convencional do espaço público, bem como da representação política e do exercício da cidadania. A rua vem recuperando um papel fundamental como lugar privilegiado do exercício de cidadania ativa e da visibilização de ideias e vontades políticas desafiadoras do statu quo e dos poderes dominantes. Recupera assim o seu potencial como espaço de representação (Lefèbvre), ainda que tal potencial se reconstrua no seio de uma relação complexa e ambivalente com outras instâncias do espaço público (como os meios de comunicação de massas ou a blogosfera). Nessa ambivalência e heterogeneidade, o desafio que traz consigo a renovada presença na rua do protesto, da reivindicação e da expressão de visões alternativas parece residir não apenas nas novas causas e agendas sociais e políticas que se inscrevem no espaço público, mas sobretudo no potencial de questionamento sobre as suas lógicas de funcionamento. Ou seja, no seu potencial de reinventar o espaço público como um espaço aberto a uma participação mais abrangente, mais capaz de albergar visões alternativas às mundivisões dominantes e menos refém de codificações e condicionalismos excludentes.
Claudino Ferreira
Espanha
O país onde, a 15 de maio de 2011, nas vésperas das eleições regionais e municipais, milhares de pessoas se concentraram na Puerta del Sol, em Madrid, para expressar os seus sentimentos de indignação e mal-estar diante de um modelo social, económico, político e ecológico globalizado que lhes rouba a sua dignidade e destrói a sua esperança. É o país onde a crise global despertou as energias utópicas e emancipatórias do fenómeno 15-M, o movimento dos indignados que levou a sociedade espanhola a participar num processo de mudança, a chamada Spanish revolution. Desempregados, trabalhadores precários, estudantes, reformados, jovens de toda condição, hipotecados e, em geral, gente comum e diversa com vontade de converter o seu compromisso em ação, exigiram uma mudança de rumo e um futuro digno.
Sob o lema “Não somos mercadoria nas mãos de políticos e banqueiros”, a indignação materializou-se num conjunto de protestos cidadãos pacíficos, manifestações, acampamentos, ocupação de ruas e praças, assembleias e ativismo em prol da ampliação, revitalização e experiência da democracia num sentido mais real e autêntico. Mas é também o país que conheceu uma das maiores bolhas imobiliárias, que tem a maior taxa de desemprego da zona euro (com mais de cinco milhões de desempregados, sendo os jovens os mais prejudicados pela crise) e onde a direita ganhou as eleições com maioria absoluta depois do surgimento do movimento dos indignados.
Antoni Aguiló
Especulação
Consideram-se especulativas as atividades em que, em vez do benefício resultante do uso de um bem ou do retorno “normal” (de longo prazo) do capital investido, se procura a obtenção de mais-valias com base na expectativa de uma variação no preço de um bem ou ativo (terrenos, casas, bens alimentares ou energéticos, ações, títulos de dívida pública, divisas, etc.). Trata-se, no fundamental, de «comprar barato para vender caro».
Com frequência a especulação está associada a comportamentos “de manada” (herd behaviour), geradores de ondas de otimismo e pessimismo quantas vezes infundadas, subestimação da possibilidade de acontecimentos raros mas potencialmente devastadores (disaster myopia) e formação quer de bolhas especulativas, quer de movimentos de pânico. Para alguns são atividades normais numa economia de mercado capitalista; para outros são atividades moralmente condenáveis. Seja como for, o que importa destacar é que os comportamentos especulativos (1) tendem a assumir uma lógica própria, muitas vezes sem qualquer referência aos fundamentos da economia real; (2) são um fator de volatilidade com um enorme potencial de desestabilização das economias; e (3) têm uma natureza frequentemente predadora. Estes aspetos da atividade especulativa têm vindo a tornar-se tanto mais significativos quanto maior a desregulamentação dos mercados, a transformação crescente das economias no que alguns designam por “economias de casino” globalizadas e a captura do Estado pelos interesses dos especuladores.
No caso português, os efeitos nefastos das atividades de especulação são particularmente evidentes na área do imobiliário (com uma manifesta captura do Estado e autarquias locais pelos interesses dos especuladores) e, mais recentemente, nos ataques à dívida soberana. São conhecidos os resultados. No primeiro caso, eles são patentes nas enormes distorções em matéria de desenvolvimento urbano e acesso à habitação; no segundo caso, são responsáveis, ou pelo menos potenciaram, a incapacidade da economia portuguesa se continuar a financiar no mercado a taxas de juros razoáveis. Em ambos os casos, mais do que discursos moralistas contra a atividade dos especuladores, importa identificar os fatores institucionais facilitadores/potenciadores da atividade especulativa tendo em vista a definição dos instrumentos de política mais adequados para a controlar/regular, nomeadamente a tributação das mais-valias imobiliárias, das transações financeiras e outras mudanças institucionais.
Vítor Neves
Estado de exceção
Com a expressão estado de exceção indica-se, de forma geral, uma fase temporal na qual a vigência normal de um ordenamento jurídico é suspensa. A instauração de um estado de exceção está normalmente associada a fenómenos que possam constituir um perigo para a comunidade, podendo inclusive ameaçar a sua própria existência. Por esta razão, a ideia de exceção está ligada a situações de emergência, urgência e necessidade, nas quais, perante a insuficiência ou impossibilidade de adotar medidas segundo os critérios jurídicos e políticos ordinários, o estado de exceção é declarado.
Do ponto de vista histórico, encontram-se vestígios deste instituto jurídico na cultura jurídica europeia desde o período revolucionário francês. A doutrina jus-publicista do século XX, que lhe tem dedicado uma particular atenção, tem vindo a sublinhar a ligação profunda entre a soberania e o regime de exceção, chegando mesmo este a ser considerado como o autêntico marco do poder soberano (Carl Schmitt).
Nas democracias, a instauração do estado de exceção deve ser cuidadosamente controlada, a fim de evitar eventuais abusos de poder perante a indeterminação das causas. As constituições nacionais e vários documentos jurídicos de direito internacional impõem limites muito severos no recurso a este instrumento, que altera o equilíbrio entre os poderes legislativo e executivo em favor deste último. Em contextos em que se pressupõe a existência de uma ameaça (p. ex., terrorismo), de uma crise (p. ex., económica), ou em presença de eventos extremos (p. ex., desastres naturais), a suspensão das regras normalmente em vigor é invocada como forma inevitável de enfrentar necessidades imprevistas, atuais e de imediata realização. No horizonte político contemporâneo, o estado de exceção tem vindo a ser, muitas vezes, uma das formas com as quais se procura governar de forma pouco democrática e participada, aumentando os riscos de uma deriva tecnocrática ou autoritária dos processos decisórios (Giorgio Agamben).
Valerio Nitrato Izzo
Estado-Providência
O termo tem vindo a cair em desuso e a ser substituído por outros menos comprometedores, mas a ideia de Estado como responsável – direta ou indiretamente – pelo bem-estar da população persiste. O termo traduz o conceito anglo-saxónico de Estado de bem-estar (welfare state) sob influência do termo francês État Providence. Indica a intervenção do Estado no domínio da segurança social, do emprego, da educação e da saúde que se veio a desenhar desde inícios do séc. XIX e tem o seu ponto alto nos 30 Anos Gloriosos que se seguiram à II Guerra Mundial. O chamado Estado-Providência keynesiano, que articula políticas sociais e económicas, é o resultado da Grande Depressão da década de 1930. Keynes propunha um papel mais interventor do Estado e os EUA de Roosevelt saíam da Depressão com políticas económicas de investimento público e expansão dos programas sociais. Respondia-se, por um lado, às necessidades de crescimento económico estimulando a procura e, por outro, às exigências de segurança, saúde e bem-estar dos indivíduos e dos movimentos sociais.
Este pacto social rompeu-se com a crise de finais da década de 1970 e o Consenso de Washington, tendo esta forma de Estado sido objeto de reformas de retração, mais radicais em alguns países (anglo-saxónicos) e menos em outros (da Europa Continental e do Norte). Com a viragem para a inovação como base do crescimento surgiu o Estado de investimento social, centrado na educação, saúde e promoção da empregabilidade como instrumentos do crescimento económico.
Em muitos países, a erosão dos salários, das prestações sociais e dos direitos laborais criou fortes entraves ao consumo, do qual dependia o crescimento e o emprego. O consumo, o investimento e até algumas intervenções sociais passaram a ser mantidos com recurso ao crédito bancário. Perante o fracasso do sistema financeiro, uma reforma do Estado-Providência deve agora repensar a sua dependência em relação ao atual modelo de crescimento económico e consumo.
Sílvia Ferreira
Ética (nos negócios)
A tradição filosófica sugere que a ética seja entendida como uma reflexão fundamentada sobre a validade das práticas que têm impacto no bem-estar humano. Essa validade deve ter como horizontes de referência a preservação da dignidade humana e a realização do seu potencial. Por isso, dada a universalidade destes referenciais, os princípios éticos que regulam e orientam a conduta do bom cidadão são os mesmos a que deve obedecer o bom gestor. O respeito pela liberdade individual, o empenho solidário na vida coletiva e a transparência nas relações humanas são princípios que não dependem de circunstâncias particulares nem devem ser atenuados pelo “fim lucrativo” como fim em si mesmo, que não é.
A ética, no contexto empresarial, tem a função de “polícia-sinaleiro”, alertando em cada caso para a eventual imoralidade das escolhas possíveis. Espera-se que, quando esse sinal surge, os decisores organizacionais travem a fundo, corrijam a rota ou evitem a escolha imoral. Se os gestores assumissem este compromisso como um elemento central da sua prática diária, talvez os perigosos desequilíbrios sociais que hoje existem fossem menos profundos e as dificuldades da própria atividade empresarial fossem menos graves.
Os gestores e empresários são, com frequência, vítimas dos seus próprios preconceitos em relação aos interesses alheios, do seu próprio medo de desalinharem o passo e, em última instância, da sua própria ação, naturalmente limitada por todas essas vulnerabilidades. O maior imperativo ético da ação empresarial é a exigência de respeito, em cada decisão, pelas liberdades positivas (promovendo o desenvolvimento) e negativas (preservando contra o dano) de cada ser humano. O maior desafio é manter a integridade desta escolha, mesmo durante uma crise económica e social.
Filipe Almeida
EUA
Os Estados Unidos da América surgiram como grande potência depois das duas guerras mundiais. No século XIX, com a Guerra Civil, consolidou-se a União e o capitalismo industrial e aboliu-se a escravatura. Afirmado o seu papel hegemónico no hemisfério ocidental com a Doutrina de Monroe, os EUA deram amplo curso à sua tendência expansionista, ocupando até final desse século todo o território para Oeste até ao Pacífico. A doutrina nacionalista do “destino manifesto”, o “darwinismo social” e a crença numa “missão” civilizadora nortearam os ideólogos desta primeira fase do imperialismo americano, que avançou para as Filipinas, Cuba e Porto Rico. Entretanto, perpetuava-se a dependência de 4 milhões de ex-escravos, a que se juntaram os milhares de mexicanos convertidos, com o fim da guerra com o México, em cidadãos americanos de segunda categoria e ainda os índios do sudoeste, que aumentaram o número de nativos despojados e exilados na sua própria terra.
A afluência surgida da 1.ª Guerra Mundial esfumou-se com a queda da Bolsa em 1929 e a Grande Depressão. Com esta crise económica, de graves repercussões internacionais, culparam-se os especuladores de Wall Street, os bancos e a administração, mas o capitalismo americano reergueu-se com o New Deal e o próprio impulso da 2.ª Guerra Mundial, preparando assim o caminho para a hegemonia.
Conhecemos então o mundo dividido entre os «bons» do lado do American Way of Life e os “maus” do lado de lá da Cortina de Ferro. Do boom económico que se seguiu, perturbado pela crise do petróleo na década de 1970, surgiu a nova fase pós-industrial ou pós-capitalista de um imperialismo vincadamente económico. A queda da URSS, na década de 1990, pareceu benéfica para a imagem dos EUA. A sua intervenção em ações políticas de cunho imperialista, revestidas pelo sempiterno slogan da “defesa da democracia”, o alastrar do seu modelo económico ao nível global e a difusão da sua influência cultural fizeram crer na perenidade do império. Contudo, sinais de queda explodiram com as Torres Gémeas em 2001 e ressurgiram em 2007, com nova crise económica internacional. De novo se culparam os especuladores de Wall Street, os bancos e a falta de regulação. O que sobreviverá deste “paradoxo americano”, obcecado pela segurança e enredado nos seus próprios mitos?
Isabel Caldeira
Euro
O euro é a moeda comum de 17 países da UE: Áustria, Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Portugal e Espanha (1999, ano em que foi introduzido como meio de pagamento ele-trónico), Grécia (2001), Eslovénia (2007), Chipre e Malta (2008), Eslová¬quia (2009) e Estónia (2011). As notas e moedas entraram em circulação em 1 de janeiro de 2002.
A criação do euro culmina uma longa história de cooperação monetá¬ria europeia, de que faz parte a criação do Sistema Monetário Europeu, em 1979, assente no ecu, e um plano em três etapas para a União Económica e Monetária (1989), integrado no Tratado de Maastricht, em 1991. A criação do euro correspondeu à terceira fase da UEM. Nas duas anteriores estabe¬leceu-se a liberdade de circulação de capitais, com supressão dos controlos cambiais, e a convergência económica, através da supervisão multilateral das políticas económicas dos Estados (1990), e criou-se (1994) o Instituto Monetário Europeu, posteriormente substituído pelo BCE.
Em 1997, adotou-se o Pacto de Estabilidade e Crescimento, revisto em 2005. Trata-se de um compromisso de manutenção da disciplina orçamen¬tal que torna possível a aplicação de sanções a qualquer país cujo défi ce exceda 3%. O acesso ao euro depende da verificação de cinco critérios de convergência nominal relacionados com a estabilidade dos preços, os défi ¬ces, a dívida pública, as taxas de juro e as taxas de câmbio.
A discussão à volta do euro hoje, no quadro da crise, é a do signifi cado de uma integração monetária sujeita a fortes restrições de natureza orçamental entre economias com características estruturais, capacidades competitivas e modelos sociais muito diferentes. Os efeitos assimétricos dessa integra¬ção tornaram-se evidentes e geraram desequilíbrios graves para a economia portuguesa, que entrou no euro com uma taxa de câmbio sobreapreciada, o que levou a sérias dificuldades de valorização do seu aparelho produtivo e à geração de défices externos elevados.
José Reis
Euro-obrigações
A ideia da emissão de títulos de dívida à escala da União – as chamadas euro-obrigações ou eurobonds – ganhou adeptos à medida que a divergência entre as taxas de juro das dívidas soberanas dos países do euro se tornou evidente.
Genericamente, têm sido propostos dois tipos de eurobonds: a) a emissão conjunta de títulos de dívida por um grupo de países da Zona Euro (ZE), ou com partilha de risco ou numa versão em que os participantes respondem apenas pela sua parte; e b) a emissão de obrigações por uma instituição europeia, seja ela o Banco Europeu de Investimento ou o Banco Central Europeu. O primeiro tipo pode ser posto em prática com rapidez. As obrigações emitidas em comum cobririam a parte das dívidas públicas nacionais até 60% dos respetivos PIB (designadas por blue bonds), continuando os Estados a ser responsáveis pela dívida acima do teto permitido pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (designadas por red bonds). O segundo admite a repartição de responsabilidades, mas é o único que pode garantir empréstimos a taxas de juro que refletiriam apenas os custos do financiamento. A maioria de opiniões sustenta, no entanto, que o segundo tipo é impossível sem uma revisão dos Tratados.
Os críticos das euro-obrigações denunciam o “risco moral” nelas implícito. Ao aliviarem a “dor” que os ajustamentos em curso implicam, estas estimulariam o aumento da despesa pública, distribuindo o preço da “irresponsabilidade” pelos que “cumprem”. Para estes, a contrapartida do euro é a disciplina orçamental em cada Estado da ZE. Já os seus defensores sustentam que a sobrevivência do euro exige um orçamento europeu reforçado e a capacidade de emitir dívida europeia, a baixas de taxas de juro, para fi nanciar o relançamento económico.
Bruxelas avançou recentemente com a ideia de “obrigações de estabilidade”. A direita estará na disposição de as aceitar se a estabilidade orçamental na ZE for condição prévia à emissão conjunta de dívida. Para o europeísmo de esquerda, as eurobonds permitem aos Estados mais frágeis ter acesso ao financiamento em tempos de crise, servem de escudo a estratégias especulativas e podem ser importantes na reestruturação das dívidas soberanas. Melhor do que governos de países sob resgate, a União pode impor aos credores acordos de troca de títulos nacionais por obrigações europeias de baixo juro e com garantia máxima de reembolso.
Marisa Matias
Excecionalismo norte-americano
O excecionalismo norte-americano refere-se à crença dos Estados Unidos da América na sua singularidade e missão universal. Presente na visão da «cidade no cimo do monte» do sermão puritano, na caracterização otimista de Alexis de Tocqueville em Democracia na América (1831), na celebração poética de Walt Whitman, persiste até hoje como instrumento eficaz da hegemonia.
À noção de excecionalismo associam-se outras expressões de cunho nacionalista e contorno religioso como o “Destino Manifesto”. Com elas se justificaram guerras, anexação de territórios e outras intervenções imperialistas. Esta «nação entre as nações» invoca Deus para justificar ações militares agressivas ou o uso de armas nucleares, «em defesa da democracia», mesmo que o seu verdadeiro fito sejam os mercados para a exportação, a exploração de mão-de-obra barata, o domínio de pontos geopolíticos estratégicos ou o controlo do petróleo. Entrou tardiamente na 1.ª Guerra Mundial, donde saiu enriquecida; após a 2.ª, partiu à conquista de mercados para o seu enorme excedente de produção, transformando o imperialismo territorial num imperialismo económico. Todavia, a razão da escalada de riqueza e poderio dos EUA não reside numa superioridade intrínseca e natural, de fundamento religioso, nem na superioridade moral da sua democracia, como querem os adeptos do excecionalismo, mas nas condições históricas favoráveis que o seu modelo capitalista encontrou.
Apesar da aparente falta de popularidade desta conceção para o americano culto, o certo é que o excecionalismo americano serviu os propósitos da divisão maniqueísta entre democracia e comunismo durante a Guerra Fria e ainda hoje se reflete na facilidade com que os EUA empurram a responsabilidade da atual crise económica para a Europa, enjeitando o seu próprio papel. É também o excecionalismo que justifica que os EUA se assumam como polícia do mundo e principal garante da segurança do Ocidente na batalha contra o terrorismo, afirmando-se acima das normas legais e éticas aceites por outras nações.
Isabel Caldeira