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Fascismo social
O conceito de fascismo social foi criado por Boaventura de Sousa Santos para dar conta das novas formas de dominação e exploração nas sociedades contemporâneas. Partindo da analogia com a noção de fascismo político, o fascismo social manifesta-se como um regime social e de civilização. O fascismo social pode existir tanto em sociedades do Norte como do Sul e caracteriza-se pela crise do contrato social, ou seja, pela ideia de que noções como as de igualdade, justiça, solidariedade e de universalidade deixam de ter valor e que a sociedade como tal não existe mas, sim, simples indivíduos e grupos sociais em prossecução dos seus interesses.
A ideia de fascismo social implica sempre a dominação explícita de um grupo por outro e, contrariamente aos fascismos políticos, assenta nas dinâmicas sociais e nos tipos de sociedade existentes. O paradoxo é que podem existir Estados democráticos perpassados por lógicas acentuadas de fascismo social. O fascismo social é um fenómeno plurifacetado, que se manifesta em várias dimensões e esferas. Está presente nos espaços segregados dos condomínios fechados, na precariedade das relações e dos contratos de trabalho, na apropriação dos bens públicos por grupos privados, no sentimento fabricado e induzido mediaticamente de insegurança pessoal e coletiva e na dominação baseada nas transações financeiras e na taxação do fator trabalho em detrimento do capital e dos rendimentos mais altos.
As situações de crise ao fragilizarem as instituições do Estado e o direito a ter direitos, ao hegemonizarem discursos marcados pela análise custos-benefícios, pela rentabilidade, pela mercadorização de todas as coisas e relações sociais favorecem e reforçam as lógicas subjacentes aos processos de fascismo social. Além do imperativo da produção de narrativas alternativas e da sua necessária presença no espaço público, o fascismo social só é posto em causa pela radicalização da reivindicação de direitos e da reposição do conceito de contrato social universal possibilitador de uma cidadania de participação.
José Manuel Mendes
Feminismo
Feminismo, palavra que devemos pronunciar no plural dada a diversidade de correntes, é liberdade e humanismo, é a luta pela liberdade e realização da pessoa humana sem restrições por se ser de um ou outro sexo. É a luta contra um sistema opressivo, muito subtil, que condiciona as cognições, opções e práticas de mulheres e homens, induzindo modelos hegemónicos de ser – não ser pessoa completa, mas “homem” ou “mulher”. O sistema patriarcal que instituiu a distinção e a hierarquia dos sexos alavancou o “masculino” como modelo de “sujeito universal”, “cidadão” e “trabalhador”.
Um dos mais revolucionários gritos feministas é o de que “o pessoal é político”, máxima com a qual o pensamento e ação feministas procuram derrubar uma das mais discriminatórias ideologias do modelo único liberal – a dicotomia público/privado. Esta colocou os homens no público/produtivo/ político e fechou as mulheres no privado apolítico, excluindo as suas vozes e participação, não reconhecendo a sua contribuição social, económica, cultural e política. Fez também das questões do privado (sexualidade, família, intimidade, corpo) assuntos não desejáveis do debate político, enraizado num modelo conveniente de família como extensão do poder masculino. Trazer o pessoal ao político como grito emancipatório é mais do que trazer a intimidade, é politicizar e visibilizar um mundo de relações (de cuidados, de sexualidades, mas também de violências) e contribuições; é, por exemplo, valorizar o trabalho que nele acontece e que não entra nas contas da economia dominante, distribuí-lo de forma mais justa entre os sexos de maneira a que as mulheres tenham oportunidades no público e os homens no privado. É dizer que ambos se intersetam.
Os feminismos contestam o mundo existente e propõem uma modificação real da distribuição do poder na sociedade a partir de uma consciência crítica sobre as injustiças e sobre as ausências, e por isso se constituem como pensamento alternativo. Para eles, o desenvolvimento e a felicidade implicam mudanças profundas e duradouras na estrutura social, no funcionamento das instituições, nos valores culturais.
Rosa Monteiro
Festa
Encontro de prazer com a vida. Ou seja, encontro complexo com o mesmo, que significa, de forma inevitável, o encontro com o absolutamente outro. Nestes ecos marcuseanos, os ecos platónicos: no movimento do desejo pelo encontro, a expansão de si acontece, na assunção de um risco para o sujeito que de si se esquece nesse ato de descentramento e de reconhecimento da sua própria incompletude. A festa – esse encontro vital – resulta, assim, já da experiência individual de crise. Quando essa experiência – que é uma ordem fora da ordem dominante (a primeira lei do humano é a desobediência, proclamava Milton no início da nossa modernidade, de forma só aparentemente paradoxal) – acontece no espaço do coletivo e na praça pública, temos a poesia na rua (às vezes, a revolução), isto é, o encontro de prazer com a infinita abertura à possibilidade, que se traduz na reinvenção criativa da comunidade. Essa crise só pode, assim, entender-se como a prática de uma cidadania ativa que levará, forçosamente, à festa e/ou à expansão do humano.
A festa é pois o resultado de uma crise criativa e/ou vital, e torna-se absolutamente necessário que a exercitemos – contra aqueles/as que des-conhecem, ou que esqueceram, a dimensão libertária, porque humana, de crise: que é, sempre, uma dimensão complexa, múltipla e plurivocal. Hoje, são eles/as os/as detentores/as de uma só verdade sobre a crise mundial e têm nas mãos toda a parafernália das luzes da (má) política e dos (maus) média para nos convencerem de que não temos alternativas à visão limitada da “sua” crise – crise financeira e económica de um sistema que cada vez mais evidencia sinais da morte que os/as domina.
Quais feiticeiros de Oz, esses homenzinhos, atrás da grande máquina do espetáculo de luzes, parecem desconhecer qualquer encontro de prazer com a vida, insistindo em criar limites à nossa (sua) própria humanidade. Porém, essa humana ausência de limites, celebrada ao longo de toda a Idade Média – da dança macabra ao Carnaval –, ecoa ainda na permanência deste último (surgem medidas para o eliminar) e nos bakthinianos processos de carnavalização que alguma arte contemporânea trabalha. E que dizer desses ecos na festa como forma recente de participação em processos de combate social? Movemo-nos e o encontro (com o outro e/ou a alternativa) é lei.
Graça Capinha
Financeirização
Conceito cunhado pela economia política para designar a mais importante transformação estrutural do capitalismo desde a crise da década de 1970: a crescente influência dos mercados financeiros (dos seus atores, processos, e produtos) na atividade das famílias, empresas e economias. Estes mercados expandiram-se de um modo extraordinário com a emergência de instituições dedicadas à criação e transação de complexos produtos financeiros a que se atribuíam obtusos acrónimos. Em 2007, o valor total dos ativos financeiros superava o PIB mundial em três vezes e meia.
Este processo está intimamente ligado às políticas neoliberais de privatização dos bancos, de abolição dos controlos de capitais e de desregulamentação e descompartimentação dos mercados financeiros. Para além do aumento das crises financeiras, face ao período dito de “repressão fi nanceira” do pós-guerra, podemos assinalar outros padrões perversos.
Uma aliança entre gestores e acionistas impacientes forçou as empresas a levar a cabo estratégias de curto prazo de valorização das suas ações, fortemente parasitárias do investimento produtivo de longo prazo. Esta pressão contribuiu para uma quebra dos rendimentos do trabalho no rendimento nacional em muitos países desenvolvidos e para um aumento das desigualdades. Num contexto que é também de retração da provisão pública, os trabalhadores ficaram mais dependentes do sistema financeiro. O acesso a muitos bens passou a exigir a intermediação do setor financeiro como credor, ou mesmo como fornecedor (caso dos fundos de pensões). O resultado foi o galopante crescimento do endividamento das famílias. Embora este processo tenha sido mais intenso nos EUA e no Reino Unido, os seus efeitos depressa se alastraram à economia global, quer pela integração dos mercados financeiros, quer pelo impacto recessivo das economias financeirizadas sobre as restantes face à quebra da procura internacional e à contração de meios de financiamento.
Ana Cordeiro Santos
Flexibilidade
O conceito de flexibilidade do mercado de trabalho, da legislação laboral, das relações de trabalho em geral, parte do pressuposto de que a rigidez, associada à proteção legal, dificulta o crescimento económico e o aumento da competitividade. A fixação do cânone da flexibilidade tem decorrido de um processo reformador institucionalizado desde a década de 1980, e acentuado no quadro da atual crise, através das propostas e estratégias de emprego sustentadas pela OCDE, Banco Mundial e FMI, BCE e União Europeia.
É possível identificar três registos nesta discussão. O primeiro, o dos defensores da dimensão social do trabalho e das relações laborais, para os quais o “ trabalho não é uma mercadoria” e, por essa razão, os trabalhadores carecem de uma proteção especial, a qual deve estar consignada na legislação laboral nacional e internacional. O segundo, o neoliberal – que tem estado a ser vencedor –, assente no princípio de que a flexibilidade e a adaptabilidade são inevitáveis e desejáveis, por convergirem com a defesa do princípio do mercado. O terceiro, o dos defensores de uma síntese entre a flexibilidade e a segurança que encontraram no conceito de “flexigurança” um modelo de reforma capaz de combinar a flexibilização do mercado de trabalho com mecanismos de proteção para os trabalhadores. Este último modelo despontou para o debate público em 2006, com a iniciativa da Comissão Europeia do Livro Verde: Modernizar o direito do trabalho para enfrentar os desafios do século XXI.
As controvérsias associadas a esta proposta oriunda da Terceira Via permanecem. No atual contexto de crise, uma versão musculada de flexibilidade vai afirmando-se, tendo por base uma retórica de proteção de direitos sociais mínimos, que tem como efeito uma harmonização regressiva, e conduzindo, em paralelo, ao processo de desmantelamento do edifício do direito do trabalho. Contrariamente ao que vem sendo defendido pela OIT, por sindicatos e ONG, o caminho seguido no designado combate à crise assenta na radical flexibilização das relações laborais e dos direitos dos trabalhadores.
António Casimiro Ferreira
Flexigurança
Tratando-se de uma medida política deliberada destinada a avaliar de que modo os mercados de trabalho europeus melhor se ajustariam aos objetivos da “Estratégia de Lisboa” (2000), a flexigurança – que junta flexibilidade e segurança – conheceu uma discussão mais intensa na sequência do Livro Verde: Modernizar o direito do trabalho para enfrentar os desafios do século XXI (Comissão Europeia, 2006). No plano teórico, a flexigurança oferece uma dupla proteção: aos empregadores, dando-lhes a possibilidade de melhor gerirem os seus recursos humanos; aos trabalhadores, conferindo-lhes mais oportunidades de integração social em situação de desemprego e uma melhor gestão das suas trajetórias profissionais.
O “modelo dinamarquês” de flexigurança – assente num mercado de trabalho flexível, generosos sistemas de bem-estar e políticas de mercado de trabalho ativas – constitui a principal referência. Porém, a transposição da flexigurança para diferentes contextos depende da capacidade económica de um país, da relevância dos seus sistemas de bem-estar social, do funcionamento das políticas ativas de emprego, dos interesses favoráveis dos atores em presença, etc. Por sinal, condições não reunidas no contexto português. Por exemplo, é pouco provável que organizações representativas de trabalhadores negoceiem com organizações patronais condições de desemprego em vez de condições de emprego.
Não obstante os objetivos de justiça e inclusão social serem colocados como inerentes à flexigurança – por certo cruciais para lidar com situações de crise económica e social –, a adoção de respostas políticas assentes em medidas de austeridade – consagradas no memorando de entendimento com a troika ou mesmo no acordo de concertação social de janeiro de 2012 – parece abrir caminho à flexibilidade mas não à segurança. Uma maior facilitação dos despedimentos, a perpetuação de empregos precários ou as mudanças frequentes entre empregos precários não fazem da flexigurança uma realidade atrativa. E os receios de uma flexigurança desequilibrada tenderão a aumentar, uma vez que, quando combinada com taxas de desemprego elevadas, a precariedade de longa duração converte-se igualmente num fator de pobreza.
Hermes Augusto Costa
Fórum Social Mundial
O Fórum Social Mundial (FSM) é um dos pilares de um movimento global que desde o final da década de 1990 questiona a globalização neoliberal, propondo a construção de uma globalização alternativa, solidária e contra-hegemónica. O FSM autodefine-se como um «espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, organizações não-governamentais e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo» (http://www.forumsocialmundial.org.br). Não se assume como uma entidade, uma organização ou uma instância representativa da sociedade civil mundial. É de natureza não-governamental e não partidária, e recusa definir uma ideologia única, ter caráter deliberativo ou produzir documentos unitários. Pretende antes acolher uma ampla diversidade de opiniões e lutas a diferentes escalas, conciliando, num difícil equilíbrio, a celebração da diversidade com a construção de fortes consensos que levem à ação coletiva.
O FSM tomou forma e visibilidade internacional em 2001, em Porto Alegre, nas mesmas datas do World Economic Forum, na Suíça, como contraponto simbólico a esse espaço “elitista” e de “via única” neoliberal. Desde então, assumiu-se como um processo mundial permanente, dotado de geometria variável (eventos mundiais, encontros continentais, temáticos, etc.). A adesão das organizações ao FSM rege-se por uma Carta de Princípios. Porém, a composição do seu Conselho Internacional não respondeu a critérios claros, o que fragiliza a democracia interna do FSM e a sua legitimidade na defesa do valor da democracia participativa.
Os Fóruns Locais têm graus de vitalidade muito diferentes no espaço e no tempo. O Fórum Português enfraqueceu muito nos últimos anos, sendo que a sua revitalização seria fundamental para democratizar o debate político nacional e aumentar a visibilidade de alternativas ao modelo de desenvolvimento hegemónico.
Giovanni Allegretti
Fundo Monetário Internacional
O Fundo Monetário Internacional (FMI) é uma organização criada no âmbito dos acordos de Bretton Woods, em 1944, para contribuir para a estabilidade do sistema monetário internacional. A verdadeira história do FMI começa com a crise da dívida nas décadas de 1970 e 1980. É aí que o seu papel na concessão de financiamento a países com dificuldades na balança de pagamentos arranca em força e é aí que as impressões digitais dos interesses económicos dos EUA, os seus maiores acionistas, com uma minoria de bloqueio das decisões relevantes, se revelam. Em troca de empréstimos,o FMI impõe políticas económicas de austeridade por todas as periferias e semiperiferias em difi culdades.
A crise é vista como uma oportunidade para erodir os serviços públicos e impor a venda de ativos a preço de saldo e para desvalorizar o trabalho. Os credores financeiros agradecem, as multinacionais e uma minoria das elites dos países em causa também. Já para as populações, os efeitos são invariavelmente desastrosos, como se constata em numerosas avaliações feitas aos efeitos socioeconómicos das centenas de intervenções do FMI. As recentes crises asiática e argentina pareciam assinalar o estertor de uma instituição dotada de soluções contraproducentes e interesseiras e com cada vez menos “clientes” interessados nos seus empréstimos condicionados.
Com a crise atual, muitos dos dogmas neoliberais foram abalados e no próprio seio do FMI surgiram posições divergentes. A desigualdade esteve na origem da crise; os controlos de capitais podem ser justificados; a austeridade é recessiva. Estas são três conclusões da investigação económica recente do FMI. No entanto, a investigação não é o que molda a política desta instituição. A crise iniciada em 2007 marca o regresso em força do FMI com a mesma lógica de sempre, dotado de surpreendente músculo financeiro desta vez exercido sobre alguns países da Zona Euro. A história desta crise está a ser escrita pelos credores e as políticas impostas também. A ação do FMI é sempre uma questão de poder político e nunca de validade das políticas.
João Rodrigues
Fundos de pensões
São patrimónios autónomos associados a planos de pensões que definem as condições de acesso a uma pensão de pré-reforma, reforma antecipada, reforma por velhice, por invalidez, ou de sobrevivência. Em Portugal, são geridos por seguradoras e empresas gestoras de fundos de pensões ou associações mutualistas. Podem ter um caráter coletivo, organizados por empresa, setor ou profissão, ou um caráter individual, como é o caso dos Planos Poupança-Reforma (PPR). Desde a década de 1980, instituições como o FMI e o Banco Mundial têm procurado a substituição dos sistemas públicos de pensões em repartição por fundos de pensões privados em capitalização. Isto permite a entrada dos montantes relativos às pensões no mercado de capitais, podendo ser usados para especulação bolsista, que, paradoxalmente, pode incidir sobre as empresas e países dos participantes desses mesmos fundos.
Os fundos de pensões podem ser de prestações/benefícios definidos ou de contribuições definidas. No primeiro caso, estabelece-se à partida o valor e o tipo de benefício que será recebido. No segundo caso, não existe qualquer compromisso quanto ao montante futuro das prestações. Estas dependem das contribuições, do rendimento dos capitais, sendo ainda condicionadas pela inflação e pela longevidade do subscritor. Isto tem levado alguns a questionar se este tipo de fundos é um dispositivo de reforma ou meramente uma poupança. No primeiro caso, são as empresas e o grupo de participantes que partilham os riscos relativos à gestão do fundo. No segundo caso, o beneficiário assume integral e individualmente os riscos. Os fundos mais antigos tendem a ser de benefícios definidos, substitutos ou complementares das pensões públicas. A pressão para a transformação das pensões públicas em fundos de pensões privados tem em mente os segundos. As empresas que possuem os primeiros têm procurado transformá-los em contribuições definidas ou mesmo integrá-los nos sistemas públicos de pensões.
Em contextos de crise, os sistemas públicos de pensões em repartição têm-se mostrado mais resilientes, podendo ser complementados com fundos de benefícios definidos adequados às especificidades de certos grupos e, de preferência, geridos de forma mutualista.
Sílvia Ferreira
Futuro
Apesar de só vivermos o presente, somos obcecados com o que não podemos viver, seja ele o passado ou o futuro. É uma obsessão que tanto oprime como liberta, porque nos prende à imaginação do que fomos ou do que podemos vir a ser, mas também nos liberta para imaginarmos de modo sempre diferente quer o passado, quer o futuro de acordo com as necessidades de cada presente.
A compreensão do mundo e a forma como ela cria e legitima o poder social tem muito que ver com conceções do tempo e da temporalidade. A conceção ocidental moderna do tempo é a do tempo linear, o tempo visto como uma seta, com um percurso inalterado, que vem de um passado longínquo, atravessa fugazmente o presente e segue em direção a um futuro infinito. É uma linearidade ascendente guiada pela ideia do progresso. Desta conceção resulta a contração do presente e a expansão do futuro. O presente é um instante fugidio, entrincheirado entre o passado e o futuro, enquanto o futuro, sendo infinito, permite imaginar as mais radiosas expectativas quando confrontadas com as experiências do presente.
Em face dos graves problemas sociais e ambientais com que nos defrontamos, esta conceção do tempo e, em particular, do futuro tem de ser superada. Em vez de expandir o futuro, há que contraí-lo. Contrair o futuro significa torná-lo escasso e, como tal, objeto de cuidado, um cuidado que, para ser concreto, só pode ocorrer no presente. O futuro não tem outro sentido nem outra direção senão os que resultam desse cuidado.
Contrair o futuro consiste em eliminar ou, pelo menos, atenuar a discrepância entre a conceção do futuro da sociedade e a conceção do futuro dos indivíduos. Ao contrário do futuro da sociedade, o futuro dos indivíduos é concebido como limitado pela duração da sua vida (ou das vidas em que pode reincarnar, nas culturas que aceitam a metempsicose). O caráter limitado do futuro individual obriga a cuidar dele, aqui e agora, seja o cuidar da saúde ou das relações sociais. Este cuidado com o futuro individual contrasta frontalmente com o descuido em relação ao futuro coletivo que imaginamos sempre garantido e garantido para sempre. Há que eliminar este contraste para que as gerações futuras tenham direito ao seu presente.
Boaventura de Sousa Santos