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Geração à rasca
A expressão geração à rasca surge pela primeira vez em 1994, num artigo escrito por Ivan Nunes em resposta à provocação de Vicente Jorge Silva, que, num editorial do jornal Público, apelida de geração rasca aquela do qual partia o movimento estudantil contra as provas globais.
Precedia-o uma irreverente iniciativa de protesto antipropinas, inserida nas lutas contra a deriva neoliberal da política educativa cavaquista. Algumas reações à contestação acusavam-na de ser o produto de uma geração hiperprotegida, malcomportada e mal-agradecida, cobrando-lhe a falta de dinamismo e o excesso de queixume.
Quase duas décadas depois, a crise financeira e o receituário de austeridade levam ao limite algumas tendências nada estranhas à sociedade portuguesa: a captura e o recuo do Estado social, o empobrecimento das classes médias, a frustração das expectativas de ascensão social e a desregulação do mercado de trabalho. É neste contexto que reencontramos uma geração traída, para a qual, ao invés de uma vida melhor, o esforço de qualificação e a obediência ao espírito do capitalismo apenas trouxe medo, incerteza e um futuro hipotecado.
A 12 de março de 2011, potenciado pelas redes sociais, um impulso cívico e pacífico extravasou a órbita dos partidos e dos sindicatos e fez sair às ruas de várias cidades uma manifestação com mais de 300 mil pessoas, muito plural e fragmentária, que se autointitulou geração à rasca. A luta contra o desemprego, a precariedade e a distribuição desigual dos sacrifícios são a agenda mais alargada desta mobilização coletiva, que se desdobrou em várias dinâmicas de contestação política e social. A projeção pública da geração à rasca contou com várias contribuições artísticas que se tornaram emblemáticas, como a música Parva que sou do grupo Deolinda ou o humor caricatural dos Homens da Luta. Marcou também uma nova estética de protesto, através da personalização das causas e da criatividade das mensagens, de que é exemplo o slogan “inevitável é a tua tia”, acerca das medidas de austeridade e do pagamento da dívida portuguesa.
Tiago Ribeiro
Gestão (empresarialização)
Em 1941, quando publicou The Managerial Revolution, James Burnham antecipava já o sucesso a que o domínio da “gestão” estava destinado. Pensando nas funções de comando do capitalismo, fala de uma nova elite, baseada no saber técnico especializado, que via à frente das empresas e dos Estados, minando o poder da classe trabalhadora e a democracia. O grau de banalização das instituições e da política pelo poder tecnocrático não era, todavia, ainda o dos nossos dias. De facto, em nome de uma cultura “pós-dirigista” e da eficiência, os modelos de gestão pública e mediação institucional dos problemas são hoje pulverizados, esvaziando-se de permeio as instâncias de representatividade democrática das decisões. A legitimidade do sistema político, com as suas noções de bem comum e justiça social, é abandonada, orientando-se cada vez mais o Estado por regras empresariais de atuação.
A “libertação” e “empresarialização” da sociedade civil exigem, diz-se, “performances” que o modelo “governamental” não atinge, valorizando-se antes a competência funcional das redes e práticas negociais que abram as políticas públicas ao mercado e a grupos que as giram por critérios de lucro e competitividade. Relações e arranjos flexíveis, como as parcerias público-privadas, exemplificam nesse plano o tipo de cedências aos grupos privados, que a “empresarialização” da vida social multiplicou.
Ao desregulamentar e privatizar, o Estado assume, então, a ideia de “Estado mínimo” e a excelência da gestão empresarial, incorporando o chamado new public management e noções de value for money, best practices, outsourcing, performance indicators. Enquanto isso, a figura do cliente ou do “colaborador” triunfa sobre a do cidadão e do trabalhador, com a sociedade a privilegiar os indivíduos “empresários de si próprios”, habilitados para contratos, projetos e responsabilidades sucessivos, em nome da universalidade das lógicas mercantis e de uma pedagogia da concorrência que tudo uniformiza a partir do individualismo narcísico e da racionalidade utilitária.
Daniel Francisco
Globalização
Nas últimas décadas, a intensificação extrema das interações transnacionais, desde a mundialização dos sistemas de produção e das transferências financeiras à disseminação, a uma escala global, de informação e imagens através dos meios de comunicação social, às deslocações em massa de pessoas, como turistas, como trabalhadores migrantes ou refugiados, introduziram o termo globalização no vocabulário quotidiano. A verdade é que não existe globalização sem localização. A globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival. A globalização do hambúrguer, da língua inglesa, ou dos filmes de Hollywood implica a localização (o particular ou vernáculo) do bolo de bacalhau, da língua francesa, ou dos filmes italianos, respetivamente.
A globalização não se entende sem se conhecerem as forças de poder que a movem. Existe, assim, uma globalização hegemónica, que é movida pelo capitalismo global e pelas indústrias culturais de que ele se apropriou.
Esta vertente da globalização é a versão mais recente da dominação que a Europa, desde há cinco séculos, a América do Norte, desde há dois séculos, e o Japão e a China, desde há décadas, exercem sobre o resto do mundo. As versões anteriores foram o colonialismo e o imperialismo.
Os grupos sociais penalizados ou excluídos por este tipo de globalização começam hoje a organizar-se também de forma global. São um vasto conjunto de redes transnacionais, articulando iniciativas, organizações e movimentos (de operários, camponeses, povos indígenas e afrodescendentes, mulheres, ecologistas, cooperativistas, defensores de direitos humanos, etc.), que, em diferentes países, lutam contra as exclusões económicas, sociais, políticas e culturais causadas pela globalização. Constituem uma globalização alternativa ou contra-hegemónica, de que a expressão mais conseguida ao longo da última década foi o Fórum Social Mundial. A dimensão profunda da crise portuguesa e europeia constitui um momento privilegiado para repensarmos as potencialidades da globalização contra-hegemónica, mediante um novo pacto socionatural ou socioecológico, imune ao feiticismo do crescimento sem limites, no horizonte de outro modelo civilizacional onde a humanidade se sinta toda ela em casa e a saiba partilhar com a natureza.
Boaventura de Sousa Santos
Grécia
Antigo “berço da democracia” e espaço matricial da identidade europeia como lugar ao mesmo tempo integrador e excludente de povos, crenças e culturas, a Grécia é parte de um passado amplamente partilhado. Nas atuais circunstâncias, é também um indicador de futuro para os países e as populações que mais carregam o peso da crise económica e política. O mundo da finança quis fazer dela um exemplo e, na tentativa de punir o Estado da zona euro que lhe parecia mais frágil, empurrou-a para uma situação dramática, mas transformou-a também no território onde começa a definir-se a alternativa. A Grécia encontra-se pois no centro da tormenta, mas também na vanguarda do combate contra a ditadura financista que está a destruir o Estado social, a ameaçar a sobrevivência de milhões de pessoas, a propagar o desespero, o medo e a guerra de todos contra todos. Nas ruas e praças, como nos espaços de informação, organização e debate, ao lado da cólera emocional desencadeada na tentativa de destruir os símbolos imediatos da opressão, desenvolve-se uma ira lúcida: a dos que resistem a deixar-se espoliar em benefício da lógica implacável dos especuladores.
Perante o descrédito dos partidos institucionais que têm dominado a democracia parlamentar instalada no país após a queda em 1975 do “regime dos coronéis”, associada a um clientelismo endémico e a uma corrupção num grau extremo, sucedem-se as assembleias de democracia direta, as formas de desobediência civil, as primeiras experiências de autogestão, preludiando um sistema possível que, em nome do humano, rejeita a tirania dos mercados.
Ao mesmo tempo, a situação promove um cenário mais vasto, capaz de enquadrar novas possibilidades: o verdadeiro desafio não é já a preservação da identidade de um Estado mas, sim, a da Europa. Se todos os olhares se voltam para Atenas, para escapar à crise é necessário escolher a Europa que se quer reerguer. Nas ruas helénicas, como nas dos Estados que serão o cenário imediato da perda de soberania, tem lugar um combate pela construção de uma alternativa justa e democrática. A mais recente tragédia grega não passa pela derrocada da democracia como conceito, mas pela épica da sua refundação.
Rui Bebiano
Greve
A história da humanidade é pródiga em revoltas, motins e sublevações populares que exprimiam a desafeição dos despojados face à desigualdade e injustiça. As mais remotas poderão ser rastreadas até à revolta de Spartacus, na Roma Antiga; ou de artífices, no reinado do Faraó Ramsés III, cerca de 1200 a.C. A greve é, no entanto, genuinamente moderna, produto da emergência do modo de produção capitalista, em que a criação das condições de acumulação de capital estabeleceu a relação antagónica – capital/trabalho.
A palavra remonta a uma fonte Celta, gravo, origem do vocábulo francês grève, com o significado inicial de «terreno de cascalho à margem do mar/rio». Daí o topónimo Place de Gréve, localizada numa das margens parisienses do Rio Sena, outrora lugar de (des)embarque de navios e, depois, praça de jorna e local de reunião de operários insatisfeitos. A Praça mudou de nome (1806), mas a palavra subsistiu no léxico com o significado de «estar de braços cruzados, parado, sem trabalhar». O termo inglês “strike” é contemporâneo deste e surge quando marinheiros, em apoio a manifestações ocorridas em Londres, removeram (“struck”) as velas dos navios aportados, impedindo-os de navegar (1768).
Greve é a cessação coletiva e voluntária do trabalho numa empresa, setor, categoria ou de toda a população trabalhadora com o propósito de obter benefícios e concessões. O único recurso, face à exploração e a condições desumanas de trabalho, era o de parar o trabalho, utilizando o seu poder de associação. É por isso que a relação greve-luta-negociação-sindicalismo é inseparável da constituição e ação do movimento operário, que procura limitar o mercado livre, desmercadorizar o trabalho e ampliar a cidadania social, parte integrante do repertório de ação coletiva enquanto o antagonismo capital/trabalho subsistir. Em Portugal, a primeira Lei da Greve surge com a 1.ª República (1910), revogada em 1927, prenunciando o Estado Novo, e apenas legal e constitucionalmente reconhecida após o 25 de Abril de 1974.
Hugo Dias
Guerra
O imaginário histórico, político e cultural do Ocidente está dominado por um legado de conflito. Só no século XX assistimos a duas Guerras Mundiais, ao Holocausto, à Guerra Civil de Espanha, à Guerra do Vietname, às pouco narradas Guerras Coloniais europeias no sul e às mais recentes guerras na ex-Jugoslávia e na ex-União Soviética. Nunca mais ou jamais poderemos esquecer são expressões que associamos a declarações públicas nos momentos comemorativos destes eventos. Sobre este compromisso, a geração que viu a Europa em escombros no pós-Segunda Guerra sonhou-a como “sonho futuro”, como «manhã por vir / fronteiras sem cães de guarda, / nações com seu riso franco, / abertas de par em par», como escreveu o poeta Casais Monteiro, em 1946, e procurou criar uma Europa protegida do conflito bélico inerente à sua tendência ciclicamente suicidária. O mundo bipolar que saiu desta conjuntura, edificado sob o nome da Guerra Fria, levou à exportação do conflito para outras paragens, de que a guerra do Vietname é um dos primeiros exemplos.
Esta ordem planetária pós-Segunda Guerra, de que emerge uma Europa abalada, vai assumindo os Estados Unidos como ator principal do Ocidente, deixando a Europa fora da história e ensimesmada com os sonhos de prosperidade prometidos pela União Europeia. As várias intervenções internacionais, desde a primeira Guerra do Golfo até à intervenção no Iraque e Afeganistão, tiveram nos Estados Unidos o ator principal do Ocidente, coadjuvado pelo Reino Unido, e, nas várias guerras que foram eclodindo em África, a Europa não interveio como entidade coletiva – foram os países que intervieram individualmente, por norma guiados por antigas relações coloniais.
Por isso, o estado de suspensão de sentido que hoje vivemos na Europa vai muito além da crise bancária, financeira e orçamental. É o falhanço da prosperidade e riqueza do continente, que os anos 1990 sugeriam, e o falhanço do retorno de centralidade que a queda do Muro de Berlim abriu como horizonte e que hoje se fecha nas divisões do tecido europeu a que assistimos, em que a concentração de riqueza na mão de poucos e a pobreza de muitos se torna evidente nas manifestações de rua na Europa e por todo o mundo, reavivando o fantasma íntimo europeu do conflito bélico, com o qual a Europa ciclicamente convive.
Margarida Calafate Ribeiro