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Habitação
No século XIX, Engels reagia à afluência desmedida de multidões à cidade, força de trabalho destinada a alimentar a produção industrial, argumentando que a crise do alojamento só se tornava um problema real quando, por um lado, afetava não só a classe operária mas também as outras classes, nomeadamente a pequena burguesia, e, por outro lado, ameaçava a própria burguesia pela promiscuidade de uma coabitação miserável e doentia.
Ao longo do século XX, a questão da habitação põe-se, num primeiro momento, como um direito que os Estados-Providência europeus concediam aos seus cidadãos. No período entre as duas guerras, os governos e os municípios dos países industrializados do norte da Europa forneceram dezenas de milhares de habitações e controlaram o mercado fundiário e imobiliário, adequando as cidades e os seus subúrbios às crescentes exigências populacionais. No segundo pós-guerra assistiu-se à produção de habitações em massa, para albergar um cada vez maior número de pessoas, mas a disponibilidade de terrenos muito afastados das cidades, a estandardização excessiva dos fogos, bem como a ideia moderna de redução da condição habitacional humana a uma função, levaram a um aprofundamento das reflexões que as ciências sociais dedicaram ao tema e a um ponto de viragem no modo de encarar o problema.
Hoje em dia, há duas premissas essenciais para enfrentar os graves problemas habitacionais do mundo: a da autonomia social na decisão, considerando que a disponibilização de habitações não deve ser uma imposição de quem acha que as populações estão mal alojadas, mas uma iniciativa das próprias populações; e a do direito à cidade, propondo reconstruir e redensificar os centros abandonados das cidades com as populações pobres, tendencialmente afastadas para periferias muito remotas. A velha asserção de Engels conhece hoje uma alteração de escala, superando a dimensão de vizinhança da cidade industrial europeia oitocentista, para se assumir como fenómeno mundial. A coabitação interclassista passou, com efeito, para a escala do planeta. A proximidade mediática das metrópoles superpovoadas do sul tornou-se tão “incómoda” quanto a proximidade real dos bairros de lata das cidades dos países ditos desenvolvidos e é por de mais evidente para que seja possível fugir-lhe.
José António Bandeirinha
Homofobia
Mais do que um medo irracional, a homofobia consiste num preconceito gerador de atitudes negativas face à homossexualidade. Utilizada de forma englobante, esta noção reporta-se simbolicamente a outros processos de exclusão social incluindo pessoas transgénero (transfobia) e bissexuais (bifobia), afetando qualquer indivíduo percecionado como marginal à norma heterossexual dominante. A homofobia manifesta-se através de comportamentos hostis e agressivos, tais como o insulto, o bullying e outras formas de violência com base na orientação sexual e/ou identidade de género (real ou percecionada), mas também através do silenciamento e da invisibilidade de pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero).
Atitudes e comportamentos homofóbicos são penalizados pelo enquadramento jurídico nacional a vários níveis. Em 2004, Portugal tornou-se o primeiro país europeu e o quarto a nível mundial a incluir na sua Constituição a proibição de discriminação com base na orientação sexual (artigo 13.º, Princípio da Igualdade). Em 2007, os crimes de ódio homofóbico sofreram um agravamento da sentença prevista no Código Penal Português e os crimes de violência doméstica passaram a incluir violência conjugal entre pessoas do mesmo sexo. Não obstante o progresso jurídico, persistem discriminações na esfera da parentalidade e do transgenderismo, bem como a nível sociocultural. Por isso, o Dia Internacional Contra a Homofobia, 17 de maio, é assinalado com diversas iniciativas por todo o país, incluindo uma Marcha em Coimbra desde 2010.
O agravamento das condições económicas antecipa maior exclusão decorrente da hierarquização das prioridades políticas e fundos públicos disponíveis para apoiar trabalho social nesta área. Acresce que uma maior dificuldade em iniciar uma vida autónoma – saindo da casa dos pais, por exemplo – representa, em regra, uma “saída do armário” tardia, com consequências significativas em termos de invisibilidade e autoestima.
Em suma, em situação de maior vulnerabilidade social e económica, os processos de discriminação por homofobia, bifobia e transfobia tendem a acelerar e a agravar-se em todas as esferas da vida pública e privada.
Ana Cristina Santos
Horário de trabalho
O tempo é uma característica estruturadora das sociedades, considerando-se de um ponto de vista sociológico a existência de múltiplas temporalidades sociais. Também na esfera laboral, a questão do tempo de trabalho se coloca com a força histórica do processo de exploração na sociedade capitalista. Afirma-se que a regulamentação das horas de trabalho por via legal ou através da negociação coletiva foi a mais notável restrição ao poder de comando decorrente da propriedade dos meios de produção. Enquadrada no conjunto de medidas previstas nas factory acts – que marcam simbolicamente o início de uma legislação de caráter social –, a regulação do tempo de trabalho foi objeto de discussão na primeira conferência da OIT, dando origem à primeira convenção sobre o horário de trabalho, publicada em 1919, estabelecendo o dia de trabalho de oito horas e a semana de trabalho de 48 horas.
Mais recentemente, no âmbito das teses do fim do trabalho, voltou a reequacionar-se o papel desempenhado pelo tempo de trabalho na criação de emprego e estilos de vida. Alvo de permanente negociação entre os parceiros sociais, o tempo de trabalho foi sendo categorizado como trabalho a tempo inteiro, a tempo parcial, trabalho por turnos, noturno, fins de semana, trabalho suplementar, relacionando-se quer com a penosidade, quer com a qualidade do trabalho.
O alargamento do tempo de trabalho é uma reivindicação recorrente por parte das entidades patronais, as quais pretendem obter uma diminuição dos custos do fator trabalho. Trata-se de uma lógica gestionária a que se recorre, uma vez mais, no contexto da atual crise. A possibilidade de negociação individual dos horários de trabalho, inscrita na ideia do banco de horas (por sinal consagrada no acordo de concertação social Compromisso para o crescimento e emprego, janeiro de 2012), acentua a individualização das relações laborais e desestrutura a lógica coletiva de negociação. Este é um ponto particularmente delicado porque a dimensão coletiva da regulação dos tempos de trabalho sempre esteve em estreita articulação com os instrumentos de regulamentação coletiva. Por esta razão, importa manter na esfera da negociação coletiva a capacidade de empregadores e organizações sindicais encontrarem soluções conjuntas.
António Casimiro Ferreira
Humanidades
Na “sociedade do conhecimento”, em que o papel da linguagem e da cultura como meios de produção surge como claramente decisivo, é iniludível a centralidade dos objetos tradicionais das Humanidades – o ser humano no tempo e no espaço, a cultura, a memória, as linguagens e os respetivos usos sociais. Ao mesmo tempo, contudo, no contexto da universidade, transformada num sistema burocrático organizado segundo critérios de eficiência e de racionalidade económica moldados pela lógica do capitalismo neoliberal em tempos de globalização, a vulnerabilidade das Humanidades tornou-se mais patente do que nunca.
Deste ponto de vista, a crise das Humanidades não exprime senão a crise mais geral, dominada pela hegemonia de conceções da economia, da política e da sociedade que conhecem apenas uma razão instrumental e para as quais, por conseguinte, a interrogação autorreflexiva e a busca de sentido próprias da perspetiva das Humanidades são inteiramente irrelevantes.
Neste contexto, o desiderato da antropologização do saber, que orienta a visão renovada de um campo do conhecimento menos interessado num conceito coisificado de cultura do que na forma cultural do mundo, constitui-se como princípio crítico fundamental. Assim, a exploração do potencial ética e politicamente transformador de umas Humanidades inconformadas com a atomização das esferas do conhecimento e da experiência próprias da história única da modernidade ocidental e, consequentemente, apostadas em tomar como objeto uma reflexão transversal sobre o conjunto da sociedade contemporânea em todos os seus aspetos, pode constituir-se como uma parte essencial da crítica ao pensamento hegemónico. Deste ponto de vista, as Humanidades são parte insubstituível do processo de construção de uma alternativa ao pensamento hegemónico, cuja receita para sair da crise é, simultaneamente, a receita para a perpetuação desta e para a consequente negação de dimensões fundamentais do ser humano.
António Sousa Ribeiro
Humanitarismo
O conceito de humanitarismo tem as suas raízes associadas à criação do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em 1863, que gerou as condições para que uma organização não política pudesse prestar auxílio humanitário a populações em risco. É normalmente aplicado em dois contextos: guerra e catástrofes naturais. Em qualquer um destes contextos está subjacente a ideia de que, em casos extremos de sofrimento humano, é possível e desejável que atores internos ou externos prestem auxílio a quem mais precisa.
Na sua conceção clássica, o humanitarismo é pautado pelos princípios de humanidade, imparcialidade, neutralidade e independência. O final da Guerra Fria ditou mudanças na visão clássica do humanitarismo resultantes de uma ordem mundial caracterizada por alterações geopolíticas e pela erosão progressiva da distinção entre combatentes e civis, confrontando a comunidade internacional com novos cenários de crise e novos desafios. O número crescente de missões humanitárias, a par de um certo abuso do “rótulo” humanitário, criou alguma confusão relativamente ao verdadeiro caráter e propósito do humanitarismo, tornando-o um conceito mais complexo e fragmentado.
A era pós-1990 ficou igualmente marcada pela afirmação de uma conceção de humanitarismo (“novo humanitarismo”) assumidamente mais política, adotada por governos, agências internacionais e muitas organizações não-governamentais, desafiando o paradigma clássico e considerando que, em contextos de crise humana estrutural, os objetivos tradicionais de salvar vidas e aliviar o sofrimento humano eram meramente paliativos. No contexto atual, e em particular após o 11 de setembro de 2011, o conceito e prática do humanitarismo confrontam-se com importantes questionamentos éticos resultantes de lógicas de politização e instrumentalização dos princípios humanitários por parte de atores políticos, que têm vindo a distorcer a essência do humanitarismo.
Daniela Nascimento