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Identidade
Etimologicamente, identidade é a qualidade do que permanece igual a si próprio. O conceito tem, assim, no seu cerne, uma dimensão essencialista, assente no pressuposto do fechamento em fronteiras estanques, no interior das quais um indivíduo ou um grupo social afirma um conjunto de traços distintivos só seus, indicativos de uma pertença de classe, raça, sexo, religião, etc. indiferente às transformações do devir histórico ou às incidências das inter-relações sociais e culturais. “Identidade” é inseparável da noção enfática de sujeito surgida na modernidade e da extensão romântica dessa noção na figura de um “sujeito coletivo”, exemplarmente representada pela ideia de nação. A reflexão contemporânea tem vindo a pluralizar o conceito, sublinhando o seu caráter construído e contingente: as identidades são socialmente produzidas e dependem de modos de afirmação da diferença que não são estáticos, mas dinâmicos – em rigor, as identidades são sempre interidentidades.
Em conformidade, conceitos como ambivalência, hibridismo ou interculturalidade apontam para uma lógica de múltiplas pertenças e para modelos abertos. Estes, por sua vez, são postos inteiramente em causa por uma insânia da identidade, como a subjacente ao modelo fundamentalista do conflito das civilizações, que apenas concebe a relação entre culturas e identidades na forma de uma simples coexistência hostil e, no extremo, na forma da guerra.
Os contextos de crise são propícios ao retorno a visões fechadas e a noções excludentes de fronteira. Se é verdade que a reivindicação de identidade enquanto “essencialismo estratégico” serviu, em momentos determinados, a grupos oprimidos para se tornarem visíveis na sua especificidade e conquistarem reconhecimento (veja-se, por exemplo, o movimento da negritude), não é menos certo que um conceito tradicional de identidade como mesmidade se nutre de uma retórica das raízes fundamentalmente conservadora. Um conceito mais aberto substitui essa retórica por uma lógica das opções e das alternativas, como fundamento de uma visão cosmopolita que não nega as dinâmicas de pertença, mas as concebe num quadro balizado por práticas de tradução no seio das quais os quadros de referência estão sempre sujeitos a um reequacionamento e os modos de relação se estabelecem a partir de uma noção abrangente de reconhecimento.
António Sousa Ribeiro
Ideologia
Com o “fim das ideologias”, projetado nos anos 1960 por Daniel Bell, resultante do facto de a “sociedade de bem-estar” haver exaurido o dinamismo e as capacidades de instigação de uma teleologia da História propostas pelo liberalismo, pelo nacionalismo e pelo socialismo, ter-se-ia desembocado numa era pós-ideológica. Desta emergiu um pensamento consensualista, expurgado das contradições, alimentando-se do realismo do possível e de um pragmatismo alheio a qualquer lógica transformadora e emancipatória.
A derrocada das ideologias significa, no entanto, não o seu suposto fim mas a imposição, na condição de hegemónica, de uma ideologia incorpórea, insidiosa porque auto-ocultada, apresentada como única forma de pensamento possível, feita de unanimidades e de valores universais tomados como absolutos, associados a um imutável senso comum. Esta não-ideologia imporia uma mistificação das assimetrias e dos conflitos, apresentados como dirimíveis apenas dentro de uma lógica de estabilidade que seria a do capitalismo e a de uma democracia de baixa densidade.
É neste quadro que o “fim das ideologias” produziria esse “fim da história”, sugerido no imediato pós-Queda do Muro por Fukuyama, no âmbito do qual presente e futuro passariam a ser inteligíveis apenas na medida do «realismo conformista do possível». Todavia, a crise atual e as suas circunstâncias têm vindo a revelar a inadequação desta atitude às necessidades sociais e à ação política, determinando uma gradual revalorização do «realismo revolucionário do impossível» (S. Dias). Este surge então como possibilidade e projeto político que faz sentido. Porém, o impossível não é aqui sinónimo do irrealizável, projetando antes uma oportunidade teórica capaz de dialogar com a construção prática de iniciativas transformadoras, implicando um retorno à essência da ideologia tal como concebida por Marx – o filósofo da revolução, não o monstro criado pela dogmática –, enquanto complexo de ideias instigador de uma “ciência falsa” meramente instrumental (Althusser), mas também capaz de projetar uma sociedade outra. No presente, em condições de inverter a lógica destrutiva do capitalismo, soltando a imaginação do futuro e expulsando o perigoso logro da não-ideologia. Pois, como sustenta Zizek, a ideologia está em toda a parte.
Rui Bebiano
Imigração
A imigração ganhou visibilidade e importância no panorama português nos anos 1990/2000 com o aumento do número de entradas e a diversificação da origem dos imigrantes, não mais exclusivamente provindos das ex-colónias portuguesas. O novo mapa geopolítico europeu e mundial desenhado após a queda do muro de Berlim e do colapso soviético, bem como a simultânea dinamização da economia portuguesa, sobretudo no setor da construção civil, trouxeram a Portugal um número nunca visto de imigrantes. Em 2010, a população imigrante representava 4,3% da população residente em Portugal e em 2011 o saldo migratório ainda apontava para uma maior entrada do que saída de pessoas no país.
No presente momento histórico, esta tendência está a ser alterada pelo contexto de crise nacional e pelo crescimento económico de países como
o Brasil e Angola ou dos países do Leste europeu, que atraem de volta muitos imigrantes, como aliás também emigrantes portugueses, como é o caso dos dois países citados. O aumento do desemprego, a precariedade do trabalho e o decréscimo da economia, em contraste com o crescimento de alguns dos países de origem dos imigrantes, está a conduzir a uma verdadeira hemorragia de mão-de-obra em Portugal. Tal como esta mão-de-obra foi importante para garantir um crescimento económico nas últimas décadas, também a sua ausência terá um grande impacto neste contexto de crise financeira, não contribuindo para o atenuar dos seus efeitos. Este é um dos indicadores mais fortes da economia real portuguesa: o saldo migratório negativo que se pode atingir em 2012 revela a fragilidade da nossa economia. Acresce às consequências económicas o embate das políticas de austeridade nas políticas de integração dos imigrantes, com o possível apontar de culpas, em tempos onde o emprego e o trabalho rareiam, aos que «vêm de fora ocupar os postos dos portugueses», potenciando o recrudescimento de atitudes discriminatórias.
Não haverá diálogo intercultural que resista à crise económica, com os consequentes problemas sociais, nem uma convivência harmoniosa entre as diferentes comunidades se não houver uma intervenção política forte.
Elsa Lechner
Impostos
Montantes financeiros cobrados pelo Estado às pessoas e empresas, com o objetivo de suprir as despesas de administração e as políticas públicas. Em tese, os valores arrecadados por cobrança de impostos servem a prossecução do bem comum, ao serem aplicados na provisão de bens e serviços públicos, tais como justiça, segurança, defesa, saúde, educação ou solidariedade social. Classificam-se habitualmente em diretos e indiretos, com os primeiros a incidirem sobre o rendimento do/a contribuinte (IRS ou IRC) enquanto os segundos, como o IVA, são um adicional ao custo de produção que se reflete no preço final de todos os bens e serviços.
A cobrança de impostos tem um comportamento consonante com o ciclo económico. Nas fases de expansão do rendimento verificam-se aumentos automáticos nas receitas de impostos pois a matéria coletável aumenta. O inverso acontece quando abranda o crescimento económico. No contexto da presente crise, o Estado tem procurado aumentar as suas receitas para diminuir o défice público, através do aumento das taxas de imposto. Contudo, o aumento de receita fiscal daí resultante é contrariado pelo efeito decorrente da redução do rendimento nacional, sendo provável que o resultado líquido destes efeitos de sentido contrário seja uma redução da receita do Estado. Acresce ainda que, a partir de um certo nível de taxação, considerado razoável pela generalidade da população, se verificam comportamentos mais ou menos generalizados de evasão fiscal, mais prováveis em períodos de dificuldades económicas para as famílias e empresas. Ou seja, a redução do défice orçamental do Estado dificilmente se consegue num contexto de empobrecimento generalizado, porque deste decorre automaticamente a redução da receita fiscal.
Nas últimas décadas tem-se verificado uma tendência para tributar mais intensamente os rendimentos do trabalho do que os do capital, com base na justificação da maior mobilidade (leia-se “capacidade para fugir”) deste último. Esta desigualdade fiscal entre capitalistas e trabalhadores foi agravada pelas medidas de austeridade adotadas no contexto da atual crise.
Lina Coelho
Indignados
É o cultivar do sentimento de revolta com o sistema político e económico dominante, e que desde 2011 se tem materializado num movimento de contestação social contracultural que procura resgatar o debate e a decisão política para a vida quotidiana através da ocupação dos espaços públicos. Céticos com a inevitabilidade da austeridade imoral imposta pela crise, e não se sentindo representados pelos decisores políticos, da indignação fez-se resistência e os indignados rapidamente se transformaram num movimento mundial antiapatia reunido em mais de 706 praças públicas. Originário nos protestos da Puerta del Sol em Madrid, o lema Por Uma Democracia Verdadeira fez milhares viverem durante semanas nas ruas por uma revolução ética onde o ser humano está acima do dinheiro. Organizados em assembleias populares locais, debateram-se as alternativas de um movimento mundial que se quer pacifista, laico e apartidário. Estas formas igualitárias de organização promovem a reconcepção da democracia e contrariam o modelo parlamentarista que agrega em torno de si formas de decisão vertical.
Em Portugal, ocuparam-se as principais praças de Lisboa, Porto, Coimbra e Barcelos, um ato inspirado e solidário com a indignação organizada. Graças às redes sociais, o movimento ganhou uma adesão popular que amplificou a dimensão local dos protestos e enriqueceu a construção coletiva de uma declaração pública de princípios e intenções que confluía para uma declaração mundial. Assumida na diversidade de pessoas que compõem a indignação (ideológica, religiosa, geracional, de classes, de identidades e sexualidades), nas ruas abre-se espaço para as vozes que os processos tradicionais de decisão não contemplam, como contraposição ao seu domínio pela corrupção política e dos interesses financeiros. Exige-se uma democracia que priorize princípios de igualdade, solidariedade, liberdade, cultura e felicidade, apelando à união de todas as pessoas e rejeitando a visão do individualismo económico. Atualmente os indignados, apesar de não estarem a ocupar as praças, mantêm o seu sentido de Acampada e continuam a organizar reflexões e protestos localmente.
Bela Irina Castro
Individualismo
Enquanto elemento fundador da liberdade pessoal na sua relação com todas as formas de organização coletiva, o individualismo é frequentemente defendido como um valor positivo. Partindo do pressuposto segundo o qual do esforço do indivíduo resulta a criação de bens – materiais e imateriais – que beneficiam toda a comunidade, é também valorizado na organização económica e social. Pensar o individualismo obriga a articulá-lo com o contrato social, com origem em Hobbes, Locke e Rosseau, que pressupõe a renúncia a um certo grau de liberdade individual em troca de direitos jurídicos, de proteção do indivíduo e da propriedade privada. Sendo, na origem, politicamente um conceito emancipatório, no entanto, o individualismo não deixa de ter implicações éticas na relação interpessoal.
A década de 1980 viu o triunfo de um hiperindividualismo egocêntrico e mesmo narcísico que se traduz em fenómenos tão diversos como o culto do corpo e o neoliberalismo económico. Nessa mesma década, Pateman denuncia o contrato social como um falso consenso que esconde relações de dominação e subordinação – que atingem particularmente as mulheres e os mais pobres –, hipótese mais tarde alargada como o perigo do “contrato da indiferença mútua” (Geras), que coloca a questão no campo da ética.
Uma crise económica é acompanhada por uma crise de caráter moral, visível nos discursos sobre “perda de valores”. Perdida a matriz de referência ética, práticas que já eram comuns mas se ocultavam sob uma retórica socialmente aceitável passam a ser assumidas e mesmo incentivadas: instala-se o darwinismo social, uma guerra de todos contra todos, que responsabiliza os excluídos pela sua exclusão e premeia os mais implacáveis pelo triunfo a qualquer preço. Etimologicamente, “crise” significa “momento de decisão”, “mudança súbita”; assim, a anunciada iminência do fim dos valores é uma oportunidade para pensar uma forma de estar do indivíduo na organização social que proteja a liberdade – de pensar e de agir individualmente –, mas não conduza à indiferença. Pelo contrário: que inclua a responsabilidade perante o (outro) humano e a obrigação da solidariedade.
Adriana Bebiano
Indústria
As transformações da indústria, relacionadas com a difusão das tecnologias da informação e comunicação, evidenciam que a dinâmica deste setor tem uma natureza sistémica que se expressa na afirmação de novos domínios de atividades, de novas lógicas produtivas, de novas competências, de novos modelos de inovação e de novas conceções de regulação.
A utilização de circuitos integrados, de fibras óticas e de tecnologias digitais aumenta a capacidade para transportar informação, favorece o desenvolvimento das indústrias da eletrónica, dos computadores e das telecomunicações e permite compatibilizar automatização e flexibilidade de processos de fabrico, mesmo em indústrias tradicionais. A difusão das novas tecnologias é também acompanhada pela convergência entre as lógicas de funcionamento dos serviços e da indústria: para além de serem mais frequentes os processos de “industrialização de serviços”, com o fabrico de bens industriais que substituem serviços, ganham expressão práticas de “terciarização de indústrias”, baseadas na compressão do tempo entre produção e consumo, como o sistema “just-in-time”. Envolvendo contactos mais frequentes entre produtor e utilizador, a terciarização que acompanha a difusão das novas tecnologias intensifica interatividades das diversas indústrias e da indústria com os outros setores, acentuando-se a natureza difusa das fronteiras, e dos próprios conceitos, desses setores.
Em estruturas produtivas muito dependentes de atividades tradicionais, em crise e com fenómenos de desindustrialização, como na economia portuguesa, o desenvolvimento industrial depende, de forma muito significativa, da aplicação de políticas que estimulem três vetores: a criação dos novos domínios industriais referidos, a consolidação de complementaridades produtivas de modo a que esses domínios contribuam para valorizar a indústria e os outros setores da economia, o desenvolvimento das competências adequadas às novas lógicas produtivas e a aprendizagens coletivas de conhecimentos complexos.
João Tolda
Indústrias culturais
As indústrias culturais utilizam o conhecimento, a criatividade e a propriedade intelectual para produzir produtos e serviços com significado social e cultural. As indústrias culturais têm taxas de autoemprego mais elevadas do que outros setores e empresas muito pequenas dominam normalmente as cadeias de produtos criativos. Estes criadores e produtores são flexíveis, inovadores e ligados em rede, mas também frágeis e vulneráveis.
Muito embora as indústrias culturais ou criativas sejam frequentemente tratadas como um setor coerente, cada subsetor caracteriza-se por atividades bastante distintas, com diferentes processos e sistemas de valores, em relação à arte e ao comércio. A designação “atividades culturais e criativas” é frequentemente usada para afastar as conotações associadas a “indústrias” e refletir de forma mais exata a natureza e a diversidade do trabalho artístico e cultural. O crescimento da economia criativa evidenciou o potencial económico de produtos culturais e posicionou as indústrias culturais e criativas como fontes de experimentação e inovação para a economia em geral. O Programa Europa Criativa, da União Europeia, é o enquadramento macro disponível atualmente. São diversas e altamente contextualizadas as estratégias localizadas para promover indústrias culturais, com numerosas iniciativas empenhadas em fomentar atividades culturais catalisadoras da transição e do desenvolvimento económicos .
No atual clima de austeridade, o Governo está a centrar a sua atenção na exportação de produtos de indústrias culturais/criativas portuguesas
– especialmente em áreas não linguísticas, como o design de mobiliário e de moda – como um setor de potencial crescimento económico e desenvolvimento. Esta estratégia faz-se eco de iniciativas de economia criativa visíveis em outros países europeus. No entanto, à medida que a política governamental se centra nas indústrias culturais/criativas “exportáveis”, corre-se o risco de atividades culturais menos comerciais perderem incentivos e serem ameaçadas. Esta questão é particularmente grave num momento em que as políticas e os programas culturais fundamentais são associados a algumas incertezas. Uma ambiguidade que pode comprometer os objetivos de desenvolvimento económico com o tempo. É seriamente inquietante que a maioria das artes e das atividades culturais possa ser vista apenas a partir da ótica do “desenvolvimento e progresso económico”.
Nancy Duxbury
Inovação
O conceito de inovação tem vindo a ganhar proeminência no discurso público em anos recentes, em resultado do reconhecimento da sua importância central para o processo de crescimento económico. Neste contexto, a inovação é particularmente associada à invenção de novas tecnologias, frequentemente com o contributo da investigação académica. No entanto, a inovação vai para além da dimensão tecnológica, abrangendo também a dimensão organizacional ou de design. Distingue-se do processo de invenção (passível de registo de patente), correspondendo antes à efetiva utilização económica de um novo produto ou processo, o que normalmente requer um período posterior de desenvolvimento e investimento consideráveis. Assim, este processo de inovação tanto pode corresponder à introdução de um novo produto ou processo a nível global como simplesmente a nível local, baseado na capacidade para a imitação avançada.
Com a maior capacidade de partilhar conhecimento em redes, tem-se vindo a desenvolver um novo modelo de “inovação aberta”, com amplos contributos dos respetivos utilizadores. O alargamento da participação nos processos de inovação é também evidente no conceito de “inovação social”, com a participação de organizações do terceiro setor, bem como do setor público. Este alargamento do conceito de inovação imprime também uma outra visão da inovação, indo para além do papel central da empresa e do contributo da Universidade, e centrando-se no seu impacto social. A inovação é atualmente identificada como a base do crescimento futuro das economias europeias, no período pós-crise. No entanto, não só a competitividade futura em inovação pode ser afetada pelas políticas de austeridade na Europa e pela falta de liquidez financeira e capacidade de investimento, como a competitividade externa, dos países do Sul global, é também cada vez mais baseada neste processo.
É importante refletir sobre uma visão da inovação como simples solução. Recordemo-nos de que várias inovações financeiras em anos recentes estiveram na origem da crise financeira iniciada em 2008. Este facto é apenas mais um alerta para nos lembrar da necessidade de uma governação responsável das inovações emergentes.
Tiago Santos Pereira
Insegurança
A insegurança é um dos temas centrais das atuais narrativas urbanas, com eco nos meios de comunicação social, nos debates políticos e académicos e nas conversas quotidianas. Em contextos de crise económica e social – marcados por incertezas e vulnerabilidades –, ganha dimensões e contornos especiais, acentuando-se a sua utilização enquanto instrumento de controlo e de estigmatização. Por insegurança entende-se a inexistência, em termos objetivos, de condições que garantam o bem-estar físico, económico, social e político dos indivíduos e das comunidades ou, em termos subjetivos, o receio de que este bem-estar possa ser posto em causa. O sentimento de insegurança resulta, assim, de uma combinação de vários fatores, entre os quais a experiência de vitimização direta ou próxima, o grau de solidariedade existente nas comunidades ou a proximidade geográfica a locais marcados pela exclusão social e disparidades socioeconómicas e culturais.
As mensagens e imagens veiculadas pelos meios de comunicação social desempenham neste contexto um papel importante, no sentido em que alimentam um imaginário coletivo que frequentemente responsabiliza determinados grupos sociais (imigrantes, jovens, desempregados, etc.) pela insegurança. Não sendo, na maioria das vezes, realidades sincrónicas, o sentimento de insegurança e a insegurança “real” têm consequências diretas no dia-a-dia das pessoas, visíveis, por exemplo, na implementação de estratégias e ações privadas de autoproteção em consequência, muitas vezes, do não cumprimento das expectativas de proteção dos cidadãos por parte do Estado.
O conceito de (in)segurança foi acoplando à sua dimensão militar/estatocêntrica inicial outras preocupações – saúde, alimentação, ambiente, cultura, direitos, etc. –, sintetizadas no conceito de (in)segurança humana. Nos últimos anos, verifica-se um retrocesso neste caminho. A prioridade dada à chamada indústria da segurança em detrimento das políticas sociais é claramente prova disso.
Katia Cardoso
Insolvência
Chama-se insolvência à situação em que uma empresa ou um indivíduo não consegue cumprir os seus compromissos financeiros atempadamente, por insuficiência de rendimento e de liquidez. Traduzida numa ação judicial, a insolvência (ou falência) corresponde a um processo de execução coletiva por dívidas, no qual são identificados os vários credores e o valor dos respetivos créditos, e é liquidado o património do devedor de modo a satisfazer o mais possível esses créditos.
A insolvência surgiu como uma resposta jurídica para um problema de mercado: a cessação de pagamentos de um comerciante, com prejuízo para os seus credores. A partir de finais do séc. XIX, o direito norte-americano abriu o processo de falência às pessoas singulares, no momento em que o consumo se massificava e o crédito se expandia entre as famílias. Em Portugal, a insolvência das empresas surgiu pela primeira vez na lei em 1603 e a das pessoas singulares em 1935.
Até 2007, a falência de pessoas singulares em Portugal era marginal. O agravamento das condições económicas do país alterou este estado de coisas e trouxe um aumento acentuado do número de pedidos de insolvência de empresas e de consumidores. Comparando o primeiro trimestre de 2007 com o primeiro trimestre de 2011 verifica-se que o número de processos aumentou mais de 200%. Em 2011, e pela primeira vez, os pedidos de falência de consumidores superaram os de empresas: 7316 pessoas, face a 4468 empresas. A maioria dos insolventes (empresas e consumidores) situa-se na região Norte. Se a insolvência de empresas pode ser vista como um meio de “expurgar” do mercado empresas que não são viáveis, a insolvência de 15 mil empresas nos últimos quatro anos não constitui uma simples operação de limpeza, antes um sintoma da crise profunda que o país atravessa. O mesmo sucede com o aumento vertiginoso do número de famílias insolventes. Sem emprego ou com rendimentos diminuídos, com despesas acrescidas, múltiplos créditos e poupanças fracas ou esgotadas, muitos consumidores portugueses acabam por recorrer à falência como solução de último recurso, mesmo sabendo que irão perder a casa, o carro e outro património, mesmo arriscando não receberem o perdão das dívidas que não conseguirem pagar durante cinco anos.
Catarina Frade
Investimento
Na definição de Keynes na Teoria Geral, o investimento é «a adição ao equipamento de capital». Trata-se do aumento das condições através das quais se pode produzir mais valor, pois é este o significado de capital neste contexto. Tão importante como a definição é a noção de que o investimento está ligado a um tempo futuro, isto é, a uma vida útil durante a qual vai propiciar mais produção, gerando por isso retornos (“retornos prospetivos”).
O investimento está, pois, associado ao desenvolvimento, no sentido em que dele depende a possibilidade de criar mais riqueza e mais emprego. E está igualmente associado à orientação dessa capacidade para determinados fins, em função dos setores ou atividades em que se investe (composição do investimento). Podem distinguir-se vários tipos de investimento: diretamente produtivo (máquinas, equipamentos), em capital fixo social (infraestruturas gerais e serviços coletivos), em qualificação das pessoas (escolarização, formação, ciência). Num contexto de crise, o investimento é um instrumento para contrariar um ciclo depressivo, tanto do produto como do emprego, e para reorganizar a economia. Mas é também uma das variáveis que, na ausência de posições voluntaristas coletivas, sofre um impacto negativo mais forte, por duas razões essenciais. Porque as expectativas são sombrias e falta a confiança. E porque o investimento depende da poupança e esta dos rendimentos gerados por investimentos bem-sucedidos. Se estes estão afetados, as interdependências básicas que permitem o investimento ficam em causa.
Foi por isso que as experiências históricas que procuraram fazer do investimento um instrumento que contrariasse depressões, como o New Deal de F. Roosevelt, nos EUA, ou o Plano Marshall, já na Europa do pós-II Guerra, constituíram decisões que, através da iniciativa política, superaram as condições negativas da economia. É nessa perspetiva que igualmente se colocam os que hoje defendem um Green New Deal para contrariar a crise atual, juntando no mesmo termo a ideia de investimento e de reorientação da economia, neste caso para atividades sustentáveis dos pontos de vista económico, social e ambiental. Inversamente, as opções recessivas são as que não contrariam a tendência depressiva.
José Reis
Irlanda
Vinda de décadas de pobreza endémica e de emigração em massa, a Irlanda transformou-se radicalmente nos anos do grande crescimento económico, particularmente acentuado entre 1995 e 2007: foi o tempo do “Tigre Celta”, então citado como exemplo do potencial transformador do capitalismo. Em 2008, a crise apanhou de surpresa duas gerações instaladas num nível de bem-estar que criam ser um inalienável direito seu. O país vive agora a experiência dolorosa da ameaça de um regresso à miséria – ainda na memória das pessoas mais velhas –, que se traduz em aspetos materiais concretos e que tem pesadas repercussões nas estruturas familiares e nas relações sociais.
Ao crescimento do desemprego e do trabalho precário acrescentam-se os cortes nos salários, afetando particularmente o funcionalismo público, que se vê obrigado a “poupar” em bens básicos, como a saúde. Se os mais pobres se tornaram visíveis nas ruas das cidades maiores – onde não era habitual haver pedintes –, é a perda do nível de bem-estar da classe média que é mais mediatizada, no que os jornais irlandeses chamam “the middle squeeze” (“o apertão do meio”). Um grande número de jovens não é capaz de pagar as prestações da casa própria e regressa à casa dos pais; as crianças pequenas são deixadas com os avós, que assim perdem o seu direito ao lazer; os eventos culturais estão a perder público; os irlandeses passaram a conviver em casa e, em média, a cada dois dias fecha um pub, uma mudança radical na sociabilidade do país.
Em outubro de 2011, foi eleito presidente Michael D. Higgins, professor universitário de Ciências Políticas e poeta, um trabalhista distante dos dois partidos que tradicionalmente ocupam o poder – Fianna Fail e Fine Gael –, homem com uma longa história de combate pelos direitos humanos, que mantém um discurso com preocupações sociais. A grande surpresa, frequentemente referida nos jornais, tem sido a resignação com que as medidas governamentais têm sido aceites, num país com justa fama de revoltas e uma longa tradição de combate. A decisão anunciada pelo governo, em fevereiro de 2012, de submeter o tratado europeu de estabilidade a um referendo é o primeiro sinal significativo de resistência.
Adriana Bebiano
Islândia
Durante 2008, a crise financeira atingiu gravemente a Islândia, um país de cerca de 300 mil habitantes, no noroeste da Europa. Após uma década de forte crescimento económico, assente em grande medida na especulação financeira, a economia islandesa tornou-se uma das primeiras vítimas da crise financeira internacional. O desemprego triplicou, a Króna (coroa islandesa) perdeu metade do seu valor relativamente ao Euro e a emigração de jovens quadros disparou.
Face à incapacidade de pagar os créditos contraídos pelos três maiores bancos privados islandeses, o governo decidiu não resgatar os bancos e permitir a sua falência, nacionalizando-os posteriormente. Em outubro de 2008, a Islândia tornava-se a primeira nação ocidental a solicitar apoio do FMI no contexto desta crise. A contestação social que emergiu, face às medidas de austeridade impostas pelo governo e à gestão danosa das contas públicas, acabou por conduzir à demissão do primeiro-ministro Geir Haarde, em janeiro de 2009, e ao seu julgamento por práticas danosas.
A resposta islandesa à crise reveste-se de um simbolismo importante para a questão da democracia participativa na Europa e a formação de respostas alternativas à crise. Após a queda do governo de Haarde, o novo governo de centro-esquerda, liderado pela social-democrata Jóhanna Sigurðardóttir, anunciou uma iniciativa popular para redigir uma nova constituição através de assembleias de cidadãos e, sob iniciativa presidencial, realizou dois referendos populares sobre o pagamento da dívida da banca ao Reino Unido e aos Países Baixos. Em ambos os referendos, o povo islandês recusou assumir a dívida dos bancos falidos. Estas decisões, que vão contra as diretivas neoliberais do FMI e a prática de outros governos europeus, que optaram por resgatar os bancos privados financiando-os com capitais públicos, representam por isso uma resposta alternativa importante. A economia islandesa está a recuperar e o impacto social da crise tem sido minimizado através da expansão dos programas de apoio social no curto prazo. A Islândia apresentou também a sua candidatura à UE em 2009.
Licínia Simão
Itália
A crise atingiu a Itália de formas idênticas às de outros países, cruzando-se ao mesmo tempo com traços nacionais distintos. Também em Itália se estabeleceu um novo Governo, liderado pelo tecnocrata Mario Monti e apoiado por uma vasta coligação de esquerda-centro-direita, que começou a pôr em prática o “rigor orçamental”. O sistema de pensões foi “reformado” e estão a caminho mais intervenções. Apesar da mão pesada do Governo, Monti continua a ser popular entre os italianos. Uma das razões é que Monti trouxe aos italianos sobriedade e reputação depois do (aparente) fim do desacreditado e decadente regime de Sílvio Berlusconi. Outra razão é que o Governo se apresentou como um paladino de um liberalismo justo e meritocrático, que a Itália nunca conheceu e que apela a diferentes setores da sociedade italiana. O Governo começou a combater a evasão fiscal com iniciativas fortemente mediatizadas e a atacar o corporativismo, promovendo a liberalização de determinadas profissões e setores da economia. Por fim, invocou um novo Estado social – o da fl exigurança, de tipo escandinavo –, constituindo-o como parte do seu plano para redefinir o mercado de trabalho.
O discurso mobilizado nesta intervenção tem-se centrado na importância dos jovens para o futuro do país, nos aspetos positivos de uma vida laboral ativa e diversificada, e no valor da autonomia e do empreendedorismo. No entanto, faltam os meios para se instituir um Estado social universal, e a dependência da família, que o Governo por vezes ridicularizou, poderá continuar a ser essencial para os desempregados de todas as idades.
À medida que a imagem positiva da Itália, projetada pelo Governo, se for esbatendo, ou que os seus custos económicos e sociais (para não falar das implicações culturais) se tornarem evidentes, a insatisfação e o protesto poderão emergir. Nessa altura, os partidos políticos vão querer entrar em cena e liderar. A crise pode estar a redefinir a economia, o Estado social e a política de Itália, mas o final deste processo continua a ser pouco claro.
Michele Grigolo