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Lazer
Nas décadas de 1950 e 1960, a conjuntura internacional de crescimento económico, o aumento da produtividade e a elevação dos níveis de vida alimentaram a utopia da sociedade do lazer e do tempo livre: uma sociedade futura em que as pessoas trabalhariam menos tempo e disporiam de rendimentos que lhes permitiriam usufruir de muito tempo livre para atividades de auto-formação e enriquecimento cultural e de diversão e lazer. Este imaginário impregnou os estilos de vida das novas classes médias e as expectativas da classe trabalhadora, sob o pano de fundo do advento da sociedade de consumo de massas e do desenvolvimento das indústrias culturais, do entretenimento e do turismo.
Na matriz cultural das sociedades capitalistas do Norte, o lazer tornou-se um elemento central das aspirações e do sentido de autorrealização das populações. Mas essas aspirações incorporaram também conquistas políticas: as longas lutas sociais que, no século XX, consagraram direitos de cidadania social para os trabalhadores consagraram também o acesso ao lazer e ao tempo livre como um direito de cidadania de que todos deveriam poder beneficiar.
Passado cerca de meio século, a utopia da sociedade do lazer e do tempo livre está longe de se cumprir. O lazer, o entretenimento e o turismo são áreas de negócio em crescimento, mas o acesso ao que têm para oferecer está muito desigualmente distribuído, na linha das desigualdades económicas e sociais que se vêm reproduzindo: entre as populações do Norte e do Sul, entre as classes mais abastadas e as materialmente mais desprovidas de cada sociedade. Para lá da desigualdade, importa assinalar as exclusões que o atual contexto de crise económica intensifica: importantes franjas da população mantêm-se estruturalmente condicionadas ou mesmo arredadas do acesso a um tempo livre e a um lazer de qualidade: velhos e novos pobres, idosos com rendimentos precários, desempregados. Estes últimos, em número crescente, configuram a mais perversa materialização da utopia de há algumas décadas: têm muito tempo livre, mas nenhumas condições para dele usufruir com qualidade.
Claudino Ferreira
Leis
A vida dos cidadãos é, em grande parte, condicionada por leis, que regulam igualmente toda a atividade de empresas, associações e do Estado e determinam os comportamentos considerados crime. As leis, dependendo da matéria que regulam, são elaboradas pela Assembleia da República ou pelos órgãos do Governo. Podem ainda ter origem, direta ou indiretamente, nos órgãos da União Europeia. As leis são formalmente legítimas, desde que cumpram os requisitos para a sua aprovação e desde que não estejam em contradição com a Constituição da República.
Uma vez publicadas, são de cumprimento obrigatório para todos e mantêm-se em vigor até serem alteradas ou revogadas por outras. O que significa que os vários espaços sociais por si regulados (familiar, fi nanceiro, económico, laboral, social, estatal) podem ser objeto de alteração sempre que mude o governo ou as forças políticas em maioria no Parlamento. Aprovadas pelo poder político, refletem a ideologia, os interesses, a visão estratégica para o país e para sociedade (de maior ou menor inclusão social e aprofundamento democrático) das forças políticas dominantes no momento da sua publicação. As leis podem, assim, ampliar ou restringir liberdades e direitos constitucionalmente consagrados ou atribuídos por leis anteriores (direito à saúde, à proteção social, etc.), proteger mais ou menos as partes estruturalmente mais fracas de determinadas relações (cidadãos ou companhias de seguros, trabalhadores ou empregadores, crianças vítimas ou maltratantes, etc.), apostar na via repressiva do controlo social ou na reinserção social dos cidadãos que cometem crimes, sobretudo quando jovens.
As leis são um instrumento essencial da democracia, mas nem sempre servem os seus interesses. Quando os não sirvam, aos cidadãos, afastados do processo de elaboração, resta contestá-las pelos meios democraticamente legítimos, designadamente, os tribunais, portugueses ou da União Europeia, sempre que afetem um seu direito.
Conceição Gomes
Liberdade
O povo diz, “quem a tem chama-lhe sua”. Os poetas falam de “liberdade livre”, que não quer saber de direitos nem deveres. A liberdade é relativa, múltipla e difícil. Liberdade de pensamento, liberdade de expressão, liberdade de imaginação, liberdade de criação, liberdade de culto, liberdade de movimentos, liberdade de associação, liberdade de produção, liberdade de consumo. O dia-a-dia nos ensina que a liberdade anda sempre de mãos dadas com a crise. A liberdade implica a responsabilidade de julgar e decidir, que é o que significa o verbo grego de que deriva a palavra “crise”.
Em termos individuais, a liberdade de alguém começa e acaba na liberdade de outros; em termos colectivos, a liberdade depende das estruturas políticas, económicas e sociais das nações, e depende, em última análise, do sistema mundial. A liberdade exige democracia. A liberdade política no Portugal moderno nasceu da crise fundadora do 25 de Abril de 1974, e está agora a ser corroída pela presente crise económica e financeira.
A política, que funda a liberdade dos povos, deixou de ser relevante, e são os mercados financeiros que controlam hoje a existência dos países e das suas populações. Na Europa, mercados financeiros e Alemanha tendem a estar em sintonia, e é disso que as economias das chamadas periferias, como Portugal, estão cativas. Sem liberdade, não pode haver democracia, nem sequer em economia. E vice-versa. Como sempre, em tempos de crise, quem mais sofre são os mais pobres – crianças, mulheres, velhos e jovens. Aumenta o número dos sem-abrigo, e são cada vez mais as famílias a entregar as chaves das casas que deixaram de ter a liberdade de pagar.
Maria Irene Ramalho
Nota: A pedido da autora, esta entrada mantém a grafia anterior ao novo acordo ortográfico.
Literatura
A literatura, como toda a arte, pergunta com rigor pela vida, pela sociedade e pela cultura. Mas não lhes serve de alternativa, muito menos em tempo de crise. O neo-realismo português, mais inspirador do que interventivo, é um excelente exemplo disso mesmo.
No início do século XX, os modernistas portugueses distinguiam a poesia da literatura, uma distinção que nada tinha a ver com a que distingue
o verso da prosa. Poesia era a arte suprema da escrita criativa, a vanguarda artística, a luz da desocultação do novo, o desassossego da existência. Literatura, pelo contrário, era a reescrita do existente a uma luz alheia, dela cativa como uma borboleta, por isso reconfortante, mesmo quando porventura problematizante. Distinguiam-se, assim, os poetas dos lepidópteros.
Nos últimos anos, em Portugal, particularmente depois da crise que levou à intervenção da troika, assiste-se ao recrudescimento de uma literatura humorística, que acaba por ser reconfortante. Os autores de cartoons e do Portugalex, por exemplo, partilham diversão à custa dos governantes, porém evitando sabiamente a sátira mais feroz. E o povo ri-se e desopila. Os políticos da Roma antiga inventaram o estratagema de alimentar o povo e mimá-lo com jogos circenses para lhe suster a revolta: “pão e circo”. Enquanto na crise os portugueses se vão também divertindo com o circo, a poesia (no sentido que lhe deram os modernistas) continuará a desassossegar as almas.
Maria Irene Ramalho
Nota: A pedido da autora, esta entrada mantém a grafia anterior ao novo acordo ortográfico.
Luxo
Numa primeira abordagem, o luxo pode ser identificado como a característica atribuída a determinados bens e serviços cujo acesso exige níveis de rendimento elevados por parte de indivíduos e grupos que, pela sua posse e usufruto, adquirem um estatuto elevado que é fonte de distinção social. Alargando a nossa definição, temos de inserir o luxo no contexto das sociedades contemporâneas perspetivadas enquanto sociedades de consumo. O luxo associa-se a determinados estilos de vida de um conjunto minoritário da população, mesmo que seja objeto de referência para aspirações e desejos de um conjunto mais vasto de indivíduos.
Como vários cientistas sociais têm explicado, a dinâmica do consumo contemporâneo manifesta-se ainda mais amplamente pelo tipo de lógica que promove no âmbito da vida quotidiana e que revela uma operação de conversão de questões coletivas e públicas em questões pessoais. O quotidiano seria, assim, equacionado como um conjunto numeroso de questões cuja solução se encontraria no mercado e remeteria para obrigações individuais – saber encontrar o produto, receita ou serviço mais adequados e fazer todo o esforço para os poder comprar.
Nos tempos da crise atual, constituir-se-ão muitos dos discursos existentes sobre austeridade como verdadeiramente alternativos à lógica social até aqui apontada (lembremos, por exemplo, como é vulgar contrapor o “luxuoso” ao “austero”)? A resposta é negativa se tivermos em conta dois fatores. Em primeiro lugar, se o luxo continua acessível para um grupo restrito, a proclamada austeridade torna-se um eufemismo para quem vê acrescidas as suas dificuldades para lidar com necessidades básicas. Por outro lado, muito do discurso da austeridade é formulado numa lógica que converte também o social em privado ou pessoal – daí a multiplicidade de afirmações que, em teor psicologizante, apelam a que cada um trabalhe o seu eu de determinada forma para ultrapassar os obstáculos com que se depara. Os discursos alternativos enfrentam fortes constrangimentos sempre que o debate se monopoliza entre empréstimos financeiros (incluindo aqueles codificados como “ajuda externa”) e as recomendações que parecem sair de livros de autoajuda.
André Brito Correia