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Paraísos fiscais
A Organização para o Desenvolvimento e Cooperação Económica (OCDE) estima em cerca de um bilião de dólares o capital privado acumulado em paraísos fiscais. Cinco vezes mais do que há duas décadas. A mesma fonte admite que mais de um milhão de empresas, sobretudo norte-americanas e europeias, usa estas praças. Sejam os “off shores fiscais” Estados ou regiões autónomas, todos têm quadros legais que atraem os capitais porque a imposição fiscal é reduzida ou nula e a identidade dos seus proprietários é ciosamente protegida. Também a atribuição de licenças para a abertura de empresas é facilitada. É por isto que os paraísos fiscais surgem associados a estratégias de lavagem de dinheiro.
Tolerados, quando não protegidos, por países democráticos das regiões mais ricas do mundo, os paraísos fiscais suscitam críticas em todo o mundo. A crise financeira de 2007 e 2008 trouxe para a ribalta a realidade da fuga de capitais e o G20 prometeu agir em nome da transparência. Embora com resistências e atrasos, há mudanças nas regras de funcionamento em vários deles, em particular na adaptação dos quadros legais que possam garantir a cedência de informações para efeitos de investigação criminal. Outras alterações têm passado pelo aumento da taxação nalguns destes territórios. Por exemplo, Gibraltar impôs uma taxa de 10% sobre as sociedades, o que não anda longe das taxas que se cobram na Holanda ou na Irlanda.
A existência de paraísos fiscais contraria os princípios de solidariedade, justiça e redistribuição, permitindo às grandes fortunas e a empresas multinacionais exercerem formas de pressão ilícita sobre os governos, particularmente nos países em desenvolvimento.
Na Europa, deram-se passos em matéria de cooperação administrativa, de assistência mútua e de isolamento das praças financeiras que se mantenham em posições de não cooperação. Mas está-se ainda longe da proibição destas jurisdições ou mesmo da taxação exemplar dos capitais que para elas se dirijam ou nelas tenham origem. Só assim é possível resolver uma das maiores contradições das políticas de austeridade: milhões e milhões de cidadãos suportam cargas fiscais adicionais enquanto se mantêm incólumes ou isentas de pagamento as fortunas que nunca pagam.
Marisa Matias
Parcerias público-privadas
As parcerias público-privadas (PPP), tributárias de uma ideia de cooperação e divisão de riscos entre o setor público e o setor privado no investimento e prestação de serviços públicos, surgem, na viragem neoliberal da década de 1970, de forma algo nebulosa, num contexto de crise económica e de contração de um Estado crescentemente conotado com ineficiência e despesismo. A introdução do parceiro privado “racional” na prestação de um serviço público suprimiria os vícios do parceiro público mau gestor e burocrata, diminuindo o nível de endividamento público e otimizando o sistema de gestão.
Foi em 1992, no Reino Unido, com o governo de John Major, que se lançou o primeiro programa sistemático de incentivo às parcerias público-privadas – a private finance iniciative. Portugal recebeu com entusiasmo esta nova forma de olhar para os serviços públicos, recorrendo sistematicamente ao setor privado para o seu financiamento. Primeiro, por via das concessões rodoviárias; depois, alargando a setores parcamente utilizados noutros países, como a saúde, a justiça e a água.
De solução para a ineficiência do Estado, as PPP passaram rapidamente a agentes provocadores da sua própria crise, restringindo o campo de decisão política e onerando o interesse público. O recurso às PPP foi acompanhado da redução dos quadros do Estado nas áreas de intervenção do setor privado, provocando um esvaziamento da competência técnica do setor público. A longo prazo, as PPP colocam o Estado na dependência crescente dos parceiros privados, vendo-se impedido de avaliar convenientemente parcerias futuras. Por outro lado, surgem notícias que colocam em causa a génese das PPP (a divisão de riscos entre o setor público e o setor privado), multiplicando-se exemplos em que a repartição de vantagens e riscos entre público e privado é profundamente desigual e em que o pretendido aumento de eficiência dá lugar a um aprofundamento do endividamento público e concomitante depreciação qualitativa do serviço público.
Paula Fernando
Património
Património é um termo transversal e polissémico, convertido, em finais do século XX, em lugar-comum dos discursos científicos, técnicos, políticos e jornalísticos. No plano ideológico, a trajetória do termo revela significados duais e ambivalentes. De uma conceção inicial ligada às ideologias conservadoras, apostadas em fabricar hegemonicamente os símbolos de uma nação, o termo património vai ganhando a simpatia gradual dos ideais progressistas, à medida que se liberta da esfera estatal centralizada e invade as agendas comunitárias e locais, servindo propósitos de afirmação de identidades e interesses particulares.
A principal caraterística do património assenta na ideia de intergeracionalidade, a que se associa o desiderato de transmissão. Este ideal estende-se hoje das políticas supraestatais – como as que são conduzidas por agências como a UNESCO, entre outras –, que pretendem configurar uma identidade humanitária global, às dinâmicas familiares e individuais, cuja ambição é legar bens económicos e simbólicos no contexto de interações sociais primárias.
Quer numa, quer noutra dimensão, o património tem sido encarado com perspetivas otimistas, social e economicamente valorizadas, o que lhe confere uma legitimidade que é atestada pelo consenso que a sua verbalização parece gerar. Todavia, num momento de agravamento de crises várias, o termo património suscita crescentemente a preocupação de que as heranças que estão a ser deixadas às gerações futuras possam ser fardos insuportáveis. O legado de uma sociedade em crise traduz-se, não apenas na transmissão de bens pelos pais e pelos antepassados, mas também, e cada vez mais, numa fatura ambiental pesada para a humanidade, numa dívida pública tornada intolerável pelo peso de juros que esmagam um número crescente de países e pelas precárias condições das famílias que se veem crescentemente incapacitadas de deixar às gerações futuras uma situação melhor do que aquela que encontraram. Metalinguagem da ligação entre o passado e o futuro, o património parece transmitir, numa sociedade em crise, ao contrário dos seus desígnios, uma inusitada descrença no futuro.
Paulo Peixoto
Patronato
Duas imagens, por vezes sobrepostas, estão associadas à noção de patronato. Por um lado, uma imagem de recorte ideológico conotada com a figura do patrão e mais ligada a comportamentos assentes em relações de poder pessoal e autoridade hierárquica exercidas sobre subordinados. Na linguagem comum (e em especial no seio de discursos sindicais mais arreigados), o termo patrão continua a ser muito utilizado. Além disso, o facto de mais de 90% do tecido produtivo português ser composto por pequenas e médias empresas faz supor, na prática, que comportamentos paternalistas continuam a condicionar o mapa das relações laborais. Por outro lado, uma imagem porventura mais arejada e inscrita num discurso normativo está associada à fi gura do empregador, que contribui para a criação de oportunidades de emprego em mercados competitivos. Por vezes fala-se também em empresário, como forma de destacar não apenas o papel de direção empresarial, em que se incluem as vertentes da propriedade da empresa e das suas modalidades de gestão.
Ambas as imagens (em especial a segunda) convocam a presença de um elemento associativo, capaz de salvaguardar interesses patronais, ainda que a iniciativa liberal subjacente à ação patronal possa privilegiar a concorrência individual em detrimento da dinâmica associativa.
Em contexto de crise de criação de empregos e de encerramento de empresas, não surpreende que o patronato reclame do poder político as melhores condições para a retoma económica. Porém, mesmo não se aguardando dos responsáveis patronais um discurso de socialização da riqueza ou de aceitação do “apelo de Warren Buffett” (de taxar as grandes fortunas e os lucros das grandes empresas), esperar-se-ia do associativismo patronal não tanto o abraçar de medidas de flexibilização do mercado laboral (onde pontificam reduções de indemnizações em caso de despedimento e uma maior facilidade em despedir), mas sobretudo a adoção de estratégias onde seja mais fácil contratar pessoas. Um patronato de “rosto humano”, ciente da necessidade de partilhar recursos e responsabilidades de gestão de modo distributivo e socialmente responsável, impõe-se como necessidade urgente.
Hermes Augusto Costa
Pensamento único
Termo cunhado em 1995 por Ignacio Ramonet, primeiro num editorial do jornal Le Monde Diplomatique, do qual foi diretor entre 1990 e 2008, e posteriormente no ensaio “O pensamento único e os novos senhores do mundo”. De acordo com Ramonet, a queda do Muro de Berlim tornara categórica uma doutrina do consenso que já vinha sendo forjada pelo menos desde os acordos de Bretton-Woods. Este “novo catecismo” neoliberal – que encontra formulação lapidar no “there is no alternative”, de Margaret Thatcher – glorifi ca o mercado, estimula a concorrência e a desregulamentação, promove a mundialização da produção e dos fluxos financeiros, fomenta as privatizações e desconsidera o papel do Estado, corrói os direitos sociais e arbitra a favor do capital em detrimento do trabalho.
Ao mesmo tempo que se impõe materialmente, o neoliberalismo origina uma narrativa sobre si próprio que o entende como desejável e inevitável. O pensamento único é esse estreitamento férreo das fronteiras do debate e essa capacidade de obstaculizar a enunciação de alternativas e soluções fora do quadro neoliberal. Enquanto tradução ideológica dos interesses do capital internacional, o pensamento único é produzido por instituições como o FMI, o Banco Mundial ou a Comissão Europeia, pelas bíblias da informação económica e por significativos setores da academia, sendo posteriormente reproduzido na generalidade dos média.
Para Ramonet, o poder político encontra-se no nosso tempo secundarizado diante do controlo da informação e da sua difusão por parte das grandes empresas. Desta forma, a noção de pensamento único alerta para o papel da informação e da opinião publicada como veículo de criação de consenso numa sociedade mediatizada, ao mesmo tempo que sugere a importância da crítica aos média e da busca de canais informativos alternativos como eixos fundamentais na construção de projetos contra-hegemónicos.
Miguel Cardina
PIB
Medida monetária dos bens e serviços finais produzidos numa economia durante um dado período de tempo, corresponde à totalidade dos rendimentos distribuídos nesse período sob a forma de salários, juros, lucros e rendas. O seu crescimento em valor real (i.e., descontado da inflação) é habitualmente considerado o critério fundamental de sucesso económico de um país. Trata-se, no entanto, de uma medida imperfeita, porque não atende ao modo como o rendimento é distribuído pela população e só abrange bens que têm um preço atribuído, deixando de fora outros que, não o tendo, contribuem também para o bem-estar efetivo das pessoas, como o cuidado a familiares dependentes, a agricultura para autoconsumo, os serviços resultantes de trabalho voluntário, etc. Também enferma da inclusão, como contributo positivo (e não como custo), de danos ao bem-estar que podem resultar do processo produtivo, como poluição e depredação de recursos naturais e humanos (p. ex., doenças).
O crescimento do PIB é condição fundamental para que um país reduza o desemprego e se liberte do seu endividamento passado. Mas o crescimento sustentado do PIB supõe o aumento das despesas, de consumo e investimento, pela população ou empresas residentes no país, pelo Estado ou por não residentes. Aqui reside o principal bloqueio à resolução da crise atual. Os cortes nas despesas públicas reduzem o papel do Estado enquanto cliente da produção nacional. O desemprego e os cortes, nos salários, nas transferências sociais e noutros rendimentos, obrigam as famílias a reduzir o consumo.
As exportações podem sustentar o crescimento, mas estas, no caso português, destinam-se em cerca de 80% à União Europeia, onde todos os países-membros, mesmo os mais ricos como a Alemanha, estão a praticar políticas de contração da procura interna. Assim, as exportações dificilmente desempenharão o seu almejado papel. Por outro lado, o clima económico geral não favorece especialmente o investimento estrangeiro. Ou seja, enquanto a política económica na União Europeia der prioridade à contenção orçamental, o crescimento do PIB está comprometido, ficando os países mais endividados submetidos a um ciclo vicioso de endividamento-empobrecimento.
Lina Coelho
PIGS
É um acrónimo de clara intenção pejorativa (pig, porco em inglês) criado nos anos noventa do século XX para designar Portugal, Itália, Grécia e Espanha. Esta categorização articula uma dimensão geográfica e cultural – Europa do sul ou mediterrânica – e outra económica – países cronicamente deficitários – para transmitir uma mensagem simples: «povos do Sul que sendo incapazes de se sustentarem a si próprios vivem à custa do Norte virtuoso, endividando-se». A partir de 2008, com a bancarrota da Irlanda, a Itália desapareceu do acrónimo para ser substituída pela Irlanda ou deu origem à sua modificação para PIIGS, de forma a incluir quer a Irlanda, quer a Itália, ou mesmo para PIIIGS, para acrescentar também a Islândia.
Esta categorização pejorativa de um conjunto de países foi instrumental para a especulação com os títulos de dívida soberana destes países verificada a partir de 2010. Uma prática especulativa muito difundida, conhecida como venda a descoberto, consiste em vender títulos que não se possuem, ou se pediram emprestados, para os recomprar mais baratos no futuro, quando é preciso fazer prova da sua posse, ou devolvê-los a quem os emprestou. O ganho – a diferença entre o preço de venda e o preço de compra – depende da perda de valor dos títulos entre o momento de venda e o de compra. Para um especulador individual, a crença de que existem muitos outros especuladores a fazer a mesma aposta induz confiança. Se existir uma crença generalizada de que muitos vão apostar na desvalorização dos títulos, essa desvalorização ocorrerá efetivamente. A categorização de um conjunto de países, ao definir um alvo preciso, constrói uma convenção e contribui para a coordenação dos especuladores, garantindo o sucesso das suas apostas.
José Maria Castro Caldas
Pobreza
Na sua aceção mais comum, a pobreza identifica-se com uma situação de privação das necessidades humanas básicas decorrente da falta de recursos para satisfazer as necessidades de alimentação, participar nas atividades da vida social e fruir das condições de vida e conforto comuns, ou pelo menos largamente partilhadas e valorizadas, na sociedade a que se pertence. Os recursos em falta não se identificam apenas com o rendimento monetário à disposição de cada um, antes envolvem as próprias capacidades para levar uma vida decente, segundo os padrões correntes na sociedade. Porém, essas capacidades, mais do que o resultado de um esforço de vontade ou do mérito pessoal, dependem das oportunidades de vida que uma sociedade desigual oferece a cada um dos seus membros.
Esta visão baseada nas dimensões sociais da pobreza está a conduzir a uma mudança paradigmática na própria conceptualização de pobreza. O velho paradigma da pobreza como um infortúnio de alguns, a quem a sociedade, por razões de solidariedade, deve prestar auxílio, está a dar lugar a um novo paradigma da pobreza assente na privação de direitos sociais e na violação de direitos humanos fundamentais, que responsabiliza os governos e as sociedades. Por um lado, ela traz para primeiro plano o valor da dignidade de toda a pessoa humana, fundamento dos direitos humanos universalmente reconhecidos, e afirma que a pobreza involuntária ofende esta dignidade e põe em causa o valor da vida humana. Por outro lado, a consensualização ampla de que a pobreza é uma consequência da violação dos direitos humanos tem um efeito responsabilizador dos governos e compromete-os na definição de estratégias de eliminação da pobreza.
As implicações destas políticas são importantes, sobretudo em períodos de crise, em que os indicadores de pobreza se agigantam. Não basta combater a pobreza com medidas emergenciais de caráter compensatório depois de eliminados direitos sociais e humanos. É preciso reforçar as capacidades de cada um para que possa viver autonomamente e alcançar uma vida digna e, ao mesmo tempo, assegurar os suportes institucionais para que se possam fazer valer os direitos humanos e sancionar a respetiva violação.
Pedro Hespanha
Poder local
Os processos de descentralização expandiram-se no decurso da 2.ª metade do século passado. Firmaram-se sob a égide de os seus eleitos poderem contribuir para o aprofundamento da democracia, bem como, pela sua proximidade, para fomentar a participação e uma mais efi caz resolução dos problemas dos territórios. Assim, boa parte do que se construiu em Portugal no decorrer da atual democracia teve a comparticipação do Poder Local. Até lá, a situação dos Concelhos ostentava componentes de quase inabitabilidade. A concorrência das autoridades locais ajudou a minar tal condição, modificando o retrato do país. Não foi tarefa politicamente reconhecida, continuando as periferias a serem olhadas com a desconfiança herdada dos períodos anteriores. A rutura democrática foi acompanhada por continuidades, sendo a suspeição face aos eleitos locais um exemplo.
Assim, a autonomia dos municípios encontrou-se sempre financeiramente ameaçada. Os cortes foram e são moeda corrente, ameaçando a execução das competências. É que a dependência dos municípios das transferências centrais ronda os 80%, sendo as restantes fontes derivadas da construção imobiliária (gerando novas suspeições). Acresce que uma das primeiras reivindicações da Associação Nacional de Municípios Portugueses consistia no conhecimento prévio e negociação da legislação que lhe era dedicada. Tal nunca se efetuou, com as distorções daí advindas. As reformas administrativas que se levaram a cabo (recorde-se a de 2003) não vingaram, outras se anunciam (executivos monocolores) e a necessária regionalização continua apenas na Constituição (apesar de constituir a trave-mestra da reforma do Estado).
Também a atual operação de fusão ou extinção de municípios e freguesias sofre objeções, baseando-se em critérios quantitativos e ao não derivar de estudos prévios que a fundamentem. E sem que se vislumbre a auscultação das populações visadas. O Poder Local encontra-se, deste modo, sujeito a sérias ameaças de recentralização resultantes da crise e da cultura política vigente.
Fernando Ruivo
Poesia
Fazer da/na palavra. Neste sentido etimológico, reconhecido por Aristóteles, percebe-se como o sentido de poesia se funde com o sentido de linguagem e como ela se inicia com o primeiro grito do/a recém-nascido/a. Esse grito, essa primeira extensão do corpo, que é a matéria do som e/ou da vida a fazer-se em respiração, é a primeira coisa “forjada”, diz o poeta Charles Bernstein, revelando a duplicidade da “coisa feita”: a Poesia/linguagem é, simultaneamente, natural/verdadeira e artificial/falsa. Ciente desse conflito, Aristóteles oferece como Poética uma Dramática. O sentido etimológico de poesia inclui assim, inevitavelmente, um sentido político radical: esse “forjar” é, antes de qualquer outra coisa, ato – ato de presença na vida e ato de construção daquilo a que chamamos “real” (uma construção, social e histórica, na linguagem). Em qualquer caso, trata-se sempre de um processo dinâmico e aberto à possibilidade, sempre raiz da transgressão dos modelos de representação dominantes, sempre lugar da alternativa – sempre um devir.
Sabendo que a poesia poria em perigo a ordem dominante na República, Platão dela expulsou os poetas. E, contudo, afirmou também esse discurso fora da ordem como um dos raros a conseguir aceder à verdade.
Se, sem palavras, somos cegos, como dizia Rimbaud, então o nosso olhar só poderá ver um mundo novo quando formos capazes de o dizer/ fazer outramente. Toda a linguagem que se pretende emancipatória assenta assim no poético: oferecendo outros modelos de representação, ela (re)faz o mundo e devolve-nos à origem de toda a poesia (que o mesmo será dizer, à sua natural função política e social). A poesia não serve para fazer o belo (conceção que nos chega de um recente séc. XVIII), mas para ativar o potencial criativo de cada um/a de nós. Perante a atual crise mundial, a ativação desse potencial é uma questão de sobrevivência. Por isso, hoje em dia, como Bernstein diz, é preciso que a poesia seja tão interessante quanto a televisão – e bastante mais surpreendente.
Graça Capinha
Políticas públicas
Programas e ações do governo (central, regional, local) com repercussão na vida das populações em domínios como educação, saúde, proteção social, emprego, habitação, transportes, ambiente, entre outras. Configuram escolhas, por vezes refletidas em nova legislação, e traduzem-se em certas opções para o uso dos recursos públicos, em detrimento de outras. Daí que envolvam (re)distribuição de poder e custos e benefícios diferenciados para diferentes atores sociais com interesses contraditórios. Constituem processos dinâmicos, com negociações, pressões, mobilizações, alianças ou coligações de interesses, acabando por expressar as opções e visões do mundo daqueles que controlam o poder numa dada sociedade.
Na sequência da crise financeira internacional de 2008 ocorreu uma clara reorientação dos recursos públicos para o saneamento e recapitalização do setor financeiro, em detrimento de aplicações alternativas, com fundamento na necessidade de impedir o colapso de todo o sistema económico. Contudo, o auxílio financeiro que os Estados prestaram àquelas entidades conduziu ao agravamento do endividamento público, dando assim origem à subsequente crise da dívida soberana, vivida com particular intensidade em países como a Grécia, a Irlanda ou Portugal. As opções de política pública que têm vindo a ser feitas neste contexto acabaram colocando estes países e as suas populações reféns do setor financeiro globalizado (resgatado do colapso com recurso a meios públicos), uma vez que é este que sanciona a dívida pública dos Estados nacionais.
O crescimento, a criação de emprego e a promoção de uma repartição de rendimento mais equitativa são, pois, objetivos de política submetidos ao imperativo de redução da dívida pública no curto prazo, numa clara opção pelos interesses dos credores em detrimento dos cidadãos contribuintes. Esta é uma situação tanto mais irrazoável quanto é crescentemente evidente que, na ausência de relançamento do crescimento económico, os Estados excessivamente endividados não conseguirão libertar-se da dívida, submetendo-se assim a um ciclo vicioso de empobrecimento/endividamento.
Lina Coelho
Portugal
O “jardim da Europa à beira-mar plantado” esteve sempre em crise (etimologicamente, ponto de viragem ou ponto a exigir viragem). Mesmo nos períodos em que disso se não deu conta. Como nos quase cinquenta anos de ditadura, em que lhe disseram ser um país pobre e de brandos costumes, pão e vinho sobre a mesa, fados tristes, folclore alegre e futebol de congregadoras rivalidades, e outras modestas aspirações.
Ao mesmo tempo que diziam a este pequeno rectângulo-rosto-ocidental da Europa que ele se estendia imperialmente do Minho a Timor, muitos portugueses emigravam em busca das condições de vida que tão amplo território nacional lhes negava por via do regime fascista que o governava. A independência de Goa, em 1961, e as chamadas guerras coloniais dessa mesma década foram sintomas de uma crise maior a anunciar-se. E foi a Revolução de Abril de 1974 a grande crise portuguesa do século XX, um ponto de viragem radical, que permitiu a democracia, e durante algum tempo pareceu prometer um mundo novo, capaz de lidar eficazmente com milhares de portugueses regressados das ex-colónias, e de superar os traumas terríveis de perseguições e saneamentos, da contra-revolução, e da emigração, esta agora de luxo, de elites humilhadas, à espera de melhores tempos. Tempos que não tardariam a vir. Portugal, virado agora para a Europa, cresceu a reimaginar o centro, criou uma das mais progressistas constituições políticas, entrou na União Europeia, adaptou-se rapidamente ao euro, e o nível de vida das classes médias subiu consideravelmente, com projectos inovadores para a Educação, a Ciência, a Saúde, o Trabalho, e oportunidades acrescidas para muitos mais. Mas não conseguiu, ou não quis, criar leis eficazes no combate à corrupção. Sinais de enriquecimentos ilícitos e fugas de capitais ameaçaram a estabilidade económica do país. É desta crise que falamos hoje.
Diz-se que a “ajuda externa” da troika (CE, BCE e FMI) com as suas medidas de austeridade está a salvar Portugal, como já acontecera em 1979 e 1983. Mas, em face das consequências para o nosso país da guerra em que as agências de notação norte-americanas esmagam o euro com o dólar, não podemos senão lembrar-nos da canção memorável de José Mário Branco, “FMI”, em cujos sons reverbera outra mais antiga, os “Vampiros” de Zeca Afonso: “eles comem tudo”.
Maria Irene Ramalho
Nota: A pedido da autora, esta entrada mantém a grafia anterior ao novo acordo ortográfico.
Poupança
A poupança corresponde ao rendimento que não é gasto de imediato em consumo e que será porventura utilizado no futuro. Assim sendo, a poupança depende diretamente dos níveis de rendimento e de despesa. A poupança das famílias e das empresas é um recurso fundamental para o desenvolvimento da economia nacional, ao ser canalizada para o investimento. Deste modo, a decisão de poupar significa abdicar de consumo no presente em nome do consumo no futuro.
Nas décadas de 1970 e 1980, a taxa de poupança das famílias portugue-sas ultrapassava 20% do rendimento disponível. Na sequência da adesão à Comunidade Europeia, o rendimento aumentou, mas o consumo aumentou a um ritmo superior e o endividamento também progrediu rapidamente. O valor da poupança diminuiu significativamente, atingindo, em 2007, 7% do rendimento disponível. Com os primeiros sintomas de crise, a poupança registou um crescimento até meados de 2011, altura em que voltou a diminuir em consequência da contração do rendimento disponível. A capacidade de crescimento da poupança parece estar agora comprometida: a diminuição dos rendimentos e dos benefícios sociais, combinada com o agravamento dos impostos e dos preços de diversos bens e serviços impedem que se possa poupar mais, o que aumenta a vulnerabilidade financeira das famílias aos graves constrangimentos financeiros que lhes são impostos. Sem uma “almofada” financeira, rapidamente resvalam para o incumpr¬mento das dívidas e a insolvência.
Por sua vez, as empresas também diminuíram a poupança e aumentaram a sua dependência do sistema bancário para se financiarem. Com o acesso ao crédito dificultado e com escassez de recursos próprios, a sua capacidade de investimento está bastante enfraquecida, o que prejudica a recuperação económica e a criação de emprego. Segundo o Banco de Portugal, existe uma enorme desigualdade na distribuição da poupança. Assim uma pequena percentagem das famílias, precisamente as que possuem rendimentos mais elevados, é responsável pela maioria da poupança gerada em Portugal. E são as maiores empresas as que geram mais poupança para autofinanciamento, isto é, para investir na melhoria da sua capacidade produtiva e na expansão da sua atividade económica.
Catarina Frade
Precariedade
A noção de precariedade trará certamente, a qualquer um/a, a ideia de fragilidade, e é precisamente disso que se trata. Acentuado pela “crise internacional” (que tem sido essencialmente das economias ocidentais), o discurso do poder político neoliberal e do patronato conservador vem afirmando a necessidade de flexibilização da economia, de forma a aumentar a sua competitividade, por via da flexibilização do trabalho e do emprego.
Tal discurso esconde o facto de a dita flexibilização da economia ter acarretado uma progressiva precarização do trabalho e do emprego, em prol do lucro fácil. Nestes termos, a precariedade do trabalho remete para as condições do exercício da atividade, sendo mais precária a atividade pobre em conteúdo, sem interesse, desqualificada, rotineira, com pouca autonomia, mal paga e pouco reconhecida. Já a precariedade do emprego refletirá o grau de formalização contratual e estabilidade do exercício da atividade, sendo precário o emprego instável e inseguro, sem perspetivas futuras, económica e socialmente vulnerável. A progressiva união destas duas formas de precariedade, aliadas à ideologia individualizante, desvinculação de pertenças coletivas e desmantelamento do Estado Social, gera a efetiva precariedade social.
Assim, em nome do combate ao défice, à dívida e pelo aumento da competitividade, mas na verdade pelo lucro, cada vez mais a sociedade passa a servir a economia e não o contrário. No entanto, ao contrário do discurso dominante, tal não é uma inevitabilidade: a estruturação das relações de trabalho resulta da relação de forças entre capital e trabalho, em torno do Estado. Se atualmente tal relação tem beneficiado o capital, cujo poder sobre o Estado tem apoiado a precarização, a única alternativa é a resistência do trabalho. E essa resistência passa, necessariamente, pelo reforço da sua coesão interna e solidariedade coletiva, ou seja, pelo reforço e articulação do seu poder coletivo: dos sindicatos, associações e movimentos de trabalhadores.
Alfredo Campos
Primavera Árabe
A Primavera Árabe foi uma onda revolucionária de protestos e manifestações populares que ocorreu, a partir de dezembro de 2010, por todo o Norte de África e Médio Oriente e que se tem prolongado, desde então, no tempo e no espaço, de forma complexa e inacabada. A vaga de protestos teve início na Tunísia, a 18 de dezembro de 2010, aquando das manifestações que se seguiram à autoimolação pelo fogo de Mohamed Bouazizi. O sucesso destes episódios tunisinos inspirou uma vaga de protestos que se alastrou à Argélia, Jordânia, Egito, Iémen, Líbia, Bahrein, Síria, Iraque, Jordânia, Kuwait, Marrocos, Omã, Líbano, Mauritânia, Arábia Saudita e Israel, mostrando a transversalidade do descontentamento na região, ainda que com contextos e trajetórias nacionais claramente distintos.
Na linha comum de protesto estava a revolta contra as constantes violações de Direitos Humanos, a defi ciente representação política, a fragmentação social, o desemprego, a infl ação, e as desigualdades económicas decorrentes das políticas públicas de capitalismo de periferia e de regimes políticos autoritários. As revoltas foram lideradas por uma geração jovem, urbana, instruída e claramente desapontada, que recebeu o apoio e mobilizou a generalidade da população. Uma das grandes novidades desta onda de contestação foi a participação das mulheres nos movimentos de protesto e o recurso aos “novos média”, sublinhando a democraticidade da agenda das revoltas. As formas de luta – greves e manifestações – foram pacífi cas, ainda que intensas e muitas vezes violentamente reprimidas pelos regimes em questão, apesar do apoio – inicialmente tímido e sempre seletivo – da sociedade internacional.
Mais do que um confronto ao autoritarismo dos regimes políticos em vigor, estas revoltas podem ser tidas como desafi o à atual estrutura do capitalismo global. O seu balanço fi nal, que confi rmou a importância e peso do protesto popular, está longe de estar fechado. Em fevereiro de 2012, três regimes tinham caído – Tunísia, Egipto, Líbia – e vários líderes haviam reformulado constituições ou anunciado a sua não recandidatura atendendo às reivindicações populares.
Sofia José Santos
Privatização
É apresentada como uma política pública inevitável. Na realidade, a justificação financeira para as privatizações é frágil, já que as empresas a privatizar em Portugal são em geral rentáveis, o mesmo não se podendo dizer sobre os termos da nacionalização recente do BPN. A justificação em termos de superioridade do setor privado na gestão empresarial – os gestores públicos não teriam os incentivos e o controlo adequados por parte de um poder político efémero – é igualmente problemática, até porque algumas das empresas públicas nacionais foram adquiridas por empresas públicas estrangeiras.
O ciclo de venda de empresas públicas, iniciado no final da década de 1980, começou nas cervejas e poderá acabar na água. Muitas destas empresas tinham sido nacionalizadas ou criadas pelo regime democrático, outras já eram públicas antes de 1974. O processo português de privatizações, que (re)construiu grupos económicos com poder político, foi um dos mais intensos na Europa e é indissociável de uma tendência global, embora desigual, que fez com que o peso da produção das empresas públicas no PIB global tivesse passado de mais de 10%, em 1979, para menos de 6%, em 2004.
A discussão dos resultados destes processos é, no mínimo, controversa, embora se tenha confirmado a tese de que estes processos de privatização penalizaram os trabalhadores dessas empresas e permitiram a apropriação pelos novos acionistas de significativas rendas, ali onde a concorrência não pode deixar de ser uma ficção regulatória. Entretanto, a esperada melhoria do desempenho económico não ocorreu necessariamente, sobretudo em setores produtores de bens homogéneos, casos da eletricidade, onde as empresas públicas se revelaram sempre mais eficientes. Para além disso, os elementos de serviço público, de criação de emprego e de satisfação redistributiva de necessidades sociais, subjacentes a muitas empresas públicas e que tornam os exercícios comparativos em termos de eficiência muito difíceis, foram postos em causa.
João Rodrigues
Produtividade
Diz-se da produtividade que é a qualidade do que é produtivo, rentável ou lucrativo. Não havendo produtividade sem fator trabalho, isso significa que a produtividade corresponde à quantidade de trabalho necessária para produzir unidades de um determinado bem. Assim sendo, mede-se a produtividade através do produto interno bruto de um país por pessoa ativa. Mas a produtividade é condicionada por outros fatores além do fator trabalho, nomeadamente: máquinas, tecnologias utilizadas, formas de organização do trabalho, processos de gestão, cadeias de valor, marca, condições de saúde e segurança dos trabalhadores.
Não obstante alguns estudos assinalarem o elevado número de horas por dia trabalhadas em Portugal (1.ª posição entre os países da OCDE), a baixa produtividade do trabalho face à média da UE tem sido apontada como um aspeto central a corrigir e que se explica, em parte, pela existência de segmentos produtivos com baixa incorporação de valor; por recursos humanos pouco qualificados; ou pelo peso da economia informal, entre outros fatores.
Não surpreende que o discurso político hoje dominante veja no aumento da produtividade à custa do fator trabalho a solução para vencer a crise, alcançar a competitividade e o crescimento económico. A questão está, porém, no facto de não ser possível vencer a crise sem disponibilizar ao “elemento humano” (i.e., as pessoas que de facto trabalham) os outros fatores atrás mencionados, bem como condições de motivação (retribuições justas, condições de vida dignas, boas relações com colegas e chefias, autoestima/ bem-estar no trabalho, etc.) que são, em si mesmas, fator de melhoria de produtividade, mas também devem constituir-se como sistema de recompensa. A produtividade não pode, pois, obedecer apenas aos imperativos da política e da economia, mas sobretudo às expectativas das pessoas que desenvolvem os mais variados tipos de atividades e profissões. Daí que, num cenário adverso e de imposição de austeridade, seja mais difícil ser produtivo.
Hermes Augusto Costa
Promessa
A Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ao proclamarem que «os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos», anunciaram ao Mundo uma promessa de transformação política, jurídica e social da modernidade, ainda não integralmente cumprida. Este desígnio aparentemente utópico vem fazendo o seu caminho desde o séc. XVIII, desenvolvendo e consolidando os regimes políticos democráticos, abolindo a escravatura e contribuindo para a construção, em curso, de um princípio político, jurídico e social de igualdade, com vista a uma democratização das relações sociais (de família, de género, de trabalho, etc.). Esta promessa visa realizar no séc. XXI a construção de uma igualdade efetiva entre os humanos, no combate às desigualdades, em que todos «temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e o direito de ser diferentes quando a igualdade coloca em perigo a nossa identidade».
A promessa está assim colocada agora, como sempre, no centro do pensamento político, jurídico e social da atualidade, e assume a forma de um compromisso social individual e coletivo tendente à efetivação e ao aprofundamento de um novo contrato social para uma democracia de alta intensidade em que se combine a representação e a participação política coletiva e individual, o Estado de direito e o exercício cidadão dos direitos.
A promessa é, assim, um instrumento e uma estratégia de emancipação, de liberdade e de democratização das relações sociais através de ações políticas, jurídicas e sociais de rutura e de continuidade, de confronto e de cooperação. A promessa (por exemplo, a de igualdade), no momento presente, e o compromisso social que dela emerge dão sentido e exprimem confiança no futuro.
João Pedroso
Propriedade Intelectual
O reconhecimento dos autores e o incentivo à criação e inovação, através da concessão de direito de monopólio relativo à utilização da respetiva obra/produto, por um período limitado, são os elementos centrais do modelo de Propriedade Intelectual (PI) e da formação de todo o sistema institucional associado. Englobando os Direitos de Autor e os Direitos Conexos, bem como os Direitos de Propriedade Industrial, onde se incluem, por exemplo, as patentes, as marcas, as denominações de origem ou os desenhos ou modelos, a PI é uma instituição com origens medievais que, após um período de base nacional, se desenvolveu através de acordos internacionais a partir do séc. XIX (Convenção de Paris de 1883; Convenção de Berna de 1886), atualmente sob a coordenação da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Industrial). Mantêm-se, no entanto, algumas distinções relevantes nos sistemas jurídicos nacionais/regionais.
A existência de Direitos de PI nem sempre foi pacífica, tendo em conta os direitos monopolistas associados. Contestados no passado pelos defensores do comércio livre, que consideraram estes privilégios monopolistas como instrumentos de políticas protecionistas (o debate atual em torno da instituição de uma Patente da União Europeia reflete também em parte estas tensões), o modelo existente de PI tem sido ou explicitamente contestado – por exemplo, relativamente à atribuição de patentes de software – ou subvertido – através da partilha digital de obras sujeitas a direito de autor. Os defensores da sua partilha alargada têm desenvolvido modelos institucionais alternativos – por exemplo, os creative commons.
Os movimentos recentes resultam não só da facilidade de cópia e disseminação associadas às novas tecnologias, mas também da oposição a uma tendência genérica de intensificação dos Direitos de PI que tem vindo genericamente a favorecer os seus detentores e a extensão da sua aplicação. A aplicação dos Direitos de Propriedade Intelectual nos países menos desenvolvidos (através do acordo TRIPS) e as suas implicações em matéria de saúde pública são disso exemplo. Recentes propostas legislativas nos EUA para aumentar a aplicação dos direitos de PI na Internet, entretanto retiradas, evidenciaram a enorme capacidade de contestação e a polaridade do debate.
Tiago Santos Pereira
Protesto
O protesto social e as formas modernas de mobilização coletiva estão diretamente relacionados com os processos democráticos. Quanto mais democrática é uma sociedade, maior será a probabilidade de existirem movimentos sociais e ações de protesto, muitos até de cariz violento. Tanto a democratização e a política institucional como os movimentos sociais e o protesto social assentam no mesmo princípio de que as pessoas comuns têm valor político para serem consultadas. Sempre que há um movimento social ou um movimento de protesto, o mesmo visa reivindicar algo, normalmente contra o Estado, podendo, em casos extremos, derivar para situações de violência. Não há movimento social ou de protesto sem relações de força e sem a ativação de estratégias de poder.
A projeção mediática dos movimentos e das ações de protesto cria uma dinâmica que obriga à redefinição de estratégias, a lógicas específicas de recrutamento e a aplicação de discursos e retóricas adequados não só aos participantes como ao público em geral. Desde uma pequena e localizada ação de protesto até grandes movimentos sociais, a lógica da ação é orientada para a mudança social, para a denúncia de situações existentes e para a afirmação de direitos de cidadania e de identidades, vozes, ou discursos que não conseguem aceder, ou querem-no fazer de uma outra maneira, ao espaço saturado da comunicação social e, mais importante, à esfera pública.
Por muito tempo o estudo da participação política restringia-se às formas instituídas de participação, relegando para segundo plano as ações de protesto ou de reivindicação. Nesta opção estava subjacente uma definição restrita de democracia e uma visão normativa. As formas não convencionais são muitas vezes tidas, de forma explícita ou implícita, como ilegítimas à luz do jogo democrático. Ora, a mudança social e a concretização dos direitos de cidadania só foram possíveis historicamente, e sobretudo em situações de crise e de instabilidade, quando os grupos de dominados e excluídos marcaram de forma indelével o espaço público com as suas reivindicações e obrigaram o Estado e as classes dominantes à outorga de direitos em nome da coesão e da integração social.
José Manuel Mendes