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Racismo
O racismo, resultando do projeto da modernidade, tem sido reconfigurado na interrelação de processos, estruturas e ideologias que ativam e reproduzem relações desiguais de poder, condicionando o acesso a recursos socioe-conómicos, culturais e políticos pelas populações etnicamente marcadas como inferiores em relação a ideias/práticas de ser europeu. Esta condição de inferioridade é interpretada como o modo de ser dessas populações, a ser “corrigido” por políticas públicas com vista à sua assimilação/integração.
Considerar uma abordagem política e histórica ao racismo é fundamental no contexto atual de crise, dado que é nestas conjunturas que são ativadas narrativas despolitizadoras das relações de poder, conduzindo a uma interpretação do racismo como uma questão de preconceito, de reação à diferença, validando os contextos históricos e políticos que produziram tais atitudes. A raiz desta conceção hegemónica de racismo situa-se no contexto pós-Holocausto e dos debates da UNESCO sobre o estatuto científico do conceito de “raça”, que evadiram a relação entre “raça”, processos de formação nacional, condições pós-coloniais e de cidadania na Europa.
O entendimento sobre o racismo não pode portanto ser separado das abordagens políticas e académicas dominantes que o têm constituído. Nesse sentido, os debates atuais sobre a integração/inclusão social das minorias étnicas e imigrantes são cruciais para compreender os padrões duradouros de racismo. Alimentando o pressuposto da homogeneidade nacional, estes debates têm conduzido mais à discussão sobre a presença de imigrantes/minorias e as suas características (i.e., contrastes e inadequações culturais) do que à problematização do próprio racismo. É neste contexto que as alter-nativas que a luta antirracista coloca passam pela contestação radical de ideias excludentes do “nós” nacional, baseadas na afirmação de uma história que converte em natural o que foi e é parte do projeto político específico moderno/colonial/racial.
Marta Araújo e Sílvia Rodríguez Maeso
Rap
Um estilo de música e de poesia originário da Jamaica e dos guetos das grandes cidades dos EUA, e hoje cultivado pela juventude excluída e inconformista dos bairros populares de todo o mundo. Consiste num texto e num ritmo de batida. O texto é mais importante do que a melodia e a harmonia, uma característica que o rap partilha com o canto gregoriano. O ritmo da batida permite variações. Há pausas para frases solitárias e de solidão, em que o rapper se interrompe a si próprio como se bebesse um copo de água mental. Tem uma duração variável e pode ser grande como se fosse uma jam session.
O rap é um grito de revolta contra a injustiça social, o racismo e a violência. Mas é também um grito de revolta contra os gritos de revolta que até agora não deram em nada. O rap cria o lugar onde estão as pessoas e os seus dramas íntimos; as lutas de resistência e as resistências na luta; a criatividade moderna entre a loucura, a violência e o fanatismo; a rutura com o ancien régime e todos os novos silêncios do universo a que chamamos deus e com quem julgamos falar na farmácia, no ponto de droga, na meditação, no jogging; a poesia, sempre à beira de não existir; a brutalidade sedutora da ordem e do progresso; e sobretudo tanta coisa que nem imaginamos que exista porque existe sob a forma de ausência e que, no pior (melhor) dos casos, nos cria mal-estar, provoca insónias e nos faz mudar de namorada ou namorado.
O rap é herdeiro da tradição de “cantautores” como Zeca Afonso, José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília e Manuel Freire, que usaram a força expressiva da arte para combater a repressão e a censura. O rap alarga o conceito de música de intervenção, exprimindo a revolta e a raiva da juventude urbana dos subúrbios das cidades.
É a juventude da geração à rasca, a geração que a retórica vazia dos discursos e a ausência de propostas atirou para as ruas e praças das cidades um pouco por todo o mundo em busca de formas de expressão alternativas.
Boaventura de Sousa Santos
Recessão
Uma recessão é uma contração da atividade económica generalizada, isto é, uma quebra de atividade simultânea em todos os setores de atividade. É habitual considerar que uma economia entrou em recessão quando se verifica uma redução do Produto Interno Bruto (PIB) medido em termos reais (descontado o efeito da inflação) em dois trimestres seguidos. No entanto, a definição técnica de recessão é mais abrangente. O National Bureau of Economic Research (NBER) dos EUA define uma recessão económica não só em termos de declínio do PIB real, como do rendimento, do emprego, da produção industrial e das vendas a grosso e a retalho. Uma recessão difere de uma depressão pela severidade do declínio da atividade económica. É habitual falar de depressão quando o declínio verificado é superior a 10% do produto. De acordo com este critério, a Grécia estará a experimentar uma depressão (contração do PIB de 11% entre 2007 e 2011), mas Portugal ainda não (contração do PIB de 3% entre 2007 e 2011). A contração do PIB verificada em 2011, em conjunto com a prevista para 2012, aproximará Portugal do nível próprio de uma depressão.
Embora exista unanimidade quanto à constatação da natureza cíclica da dinâmica das economias capitalistas, essa unanimidade não existe nem quanto às causas, nem quanto às respostas de política mais adequadas face às recessões. Karl Marx, num dos primeiros e mais importantes contributos para a análise das crises, defendeu que as crises cíclicas decorrem da tendência para a sobreacumulação inscrita no modo capitalista de produção. O investimento excessivo decorrente de lucros elevados na fase ascendente do ciclo daria origem a uma queda da taxa de lucro que se transformaria em contração da procura quando, em resposta a menores lucros, se acentuava a exploração do trabalho e caíam os rendimentos salariais que sustentavam o consumo.
No contexto da Grande Depressão dos anos 30 do século XX, os economistas (e os governos) dividiram-se quanto ao tipo de resposta apropriada. Enquanto uns, com destaque para John Maynard Keynes, defendiam políticas públicas, monetárias e orçamentais, de estímulo ao investimento e ao consumo, outros defendiam a contenção orçamental. Quase cem anos depois reencontramos este debate no quadro da atual crise.
José Maria Castro Caldas
Reconhecimento
Em sentido estrito, reconhecer é conhecer de novo, num processo conducente ao estabelecimento de relações de igualdade. Nessa linha, a premissa do reconhecimento consiste numa disponibilidade para a aprendizagem mútua, para substituir aquilo que nos distancia por aquilo que nos aproxima e enriquece reciprocamente. Ancorada nesse pressuposto ideológico, a política de identidade, fortemente ligada aos novos movimentos sociais, apoia-se na exigência de reconhecimento político, jurídico, social e cultural por parte de grupos previamente excluídos. Contudo, reconhecer implica também conceder legitimidade num contexto dominante de hierarquização e assimetria de poder. Quem reclama reconhecimento está necessariamente num lugar diferente de quem pode atribuir esse mesmo reconhecimento ambicionado. Esse é o paradoxo das minorias sociais que lutam por verem legitimados os seus direitos, ao mesmo tempo que contestam os mecanismos existentes para que as suas demandas sejam reconhecidas.
Teoricamente, o conceito de reconhecimento tem sido questionado por quem defende o primado da redistribuição, sublinhando a importância de tornar acessíveis de uma forma justa e democrática os recursos financeiros e culturais que, de uma forma mais holística, contribuem para a atribuição de reconhecimento num momento posterior.
Independentemente da validade dos argumentos utilizados, a falta de reconhecimento – cultural, jurídico, político ou social – assinala o estabelecimento e a consolidação de hierarquias de valor, mediante as quais determinados grupos ou categorias sociais são considerados mais ou menos relevantes por comparação a outros grupos ou categorias. Em situações de acentuado constrangimento socioeconómico, a tendência para a criação de prioridades traduz-se num agravamento das desigualdades geradoras de maior segregação. Desse processo circular, em que o reconhecimento é repetidamente substituído pela invisibilidade, resultam custos graves para os direitos de cidadania e para a qualidade da democracia e da justiça social.
Ana Cristina Santos
Redes sociais
O termo “rede” é hoje abundantemente usado na linguagem corrente, académica ou política. Longe de ser um neologismo, a palavra foi-se distanciando dos objetos que servia inicialmente para descrever e ganhando uma dimensão de abstração que a fez penetrar nos mais diversos domínios: no território, nas empresas, no Estado, no mercado, na sociedade civil, nas universidades, na investigação, na prestação de serviços.
O desenvolvimento extraordinário das comunicações está, seguramente, na origem da popularidade do conceito de rede e, talvez, ainda mais, do seu congénere “rede social”, dada a atual relação estreita deste último com a comunicação na internet. O conceito de rede social, no entanto, tem também uma história antiga, que nos permite uma reflexão sobre dois campos: as relações de sociabilidade e o acesso a recursos.
Uma reflexão sobre a organização das sociabilidades a partir do conceito de rede social permite questionar a ideia generalizada de que as sociedades urbanas contemporâneas são dominadas pelo individualismo e pela “perda da comunidade”. Os estudos realizados sobre redes sociais mostram a persistência dos laços primários na estruturação das sociabilidades e revelam que os habitantes das grandes cidades continuam a ativar um vasto conjunto de laços sociais no seu quotidiano, embora estes já não tenham uma base geográfica de proximidade. Também as pesquisas sobre redes sociais virtuais vêm mostrar que estas podem desenvolver o mesmo tipo de funções das redes territorializadas, usando um ambiente virtual.
As redes sociais (face a face ou online) são fundamentais para a mobilização de recursos. A estrutura das redes e o posicionamento dos indivíduos no seu interior configuram oportunidades e constrangimentos. As relações construídas no interior das redes são geradoras de capital social e têm uma influência decisiva no acesso a recursos materiais e imateriais, bens, serviços, informação, apoio efetivo e emocional. A perspetiva construída a partir das redes sociais permite integrar uma dimensão tradicional e uma dimensão progressista, conjugando particularismo e universalismo. Oferece, deste modo, um potencial emancipatório que importa discutir e valorizar.
Sílvia Portugal
Reestruturação da dívida
A reestruturação da dívida, privada ou pública, é um processo que permite aos credores em dificuldade reduzir o montante, as taxas de juro ou o período de tempo ao longo do qual a dívida deve ser amortizada (a maturidade).
A reestruturação da dívida é uma operação corrente entre credores e devedores privados e é muito mais frequente do que se pensa no caso das dívidas soberanas. Segundo um estudo de investigadores do Fundo Monetário Internacional, Eduardo Borensztein e Ugo Panizza (The Costs of Sovereign Default), entre 1824 e 2004 ocorreram em todo o mundo 257 casos de incumprimento de Estados soberanos que foram seguidos de reestruturação. A maior parte, 126, teve lugar na América Latina, mas a Europa contribuiu com 15%. Metade destes casos diz respeito aos últimos trinta anos.
Segundo este mesmo estudo, «o incumprimento surge associado a um decréscimo do crescimento», mas «o impacto do incumprimento parece ser de curta duração». Além disso, os autores afirmam que um incumprimento não conduz a uma exclusão permanente dos mercados de capitais internacionais: embora os países percam o acesso aos mercados de capitais durante a fase de incumprimento, uma vez concluído o processo de reestruturação, os mercados fi nanceiros não discriminam, em termos de acesso, entre incumpridores e não incumpridores. No entanto, as condições em que ocorre o incumprimento e o processo de negociação são importantes. Em alguns casos, quando a iniciativa da reestruturação da dívida pertence aos credores e é por eles conduzida, um país pode sair tão ou mais endividado de um processo de reestruturação da dívida do que estava à partida. É o que está atualmente a acontecer na Grécia. O incumprimento de facto e a reestruturação da dívida grega reduzem o peso da dívida no Produto Interno Bruto, mas a austeridade que acompanha essa reestruturação precipita o processo de declínio económico ao ponto de comprometer, definitivamente, a capacidade de a Grécia vir a servir a dívida remanescente no futuro.
José Maria Castro Caldas
Reforma administrativa local
No âmbito de uma agenda neoliberal, iniciada pelo governo de Durão Barroso e prolongada pelos do PS, o atual governo PSD-CDS/PP apresentou, em setembro de 2011, um Documento Verde sobre a reforma do poder local na sequência do acordo com a troika. Aqui, a retórica tecnocrática da racionalização económica alia-se a uma implementação autoritária pelo governo, à revelia das populações, das freguesias e das assembleias municipais.
O Documento assenta na extinção de freguesias para reduzir a despesa com o argumento populista da redução do número de eleitos. Ora, as 4259 freguesias representam apenas 0,1% da despesa do OE/2012 e os critérios para a criação de novas unidades administrativas reduzem-se ao número de habitantes e à distância à sede do município, sem atenção à especificidade das freguesias e às funções de relevância política e social de proximidade que exercem, em particular em zonas do interior, esvaziadas já de entidades e serviços públicos de diversa ordem. Torna-se, assim, evidente que é outra a intenção desta reforma: a do reforço do centralismo no poder local, reduzindo fortemente a democracia, em articulação com a nova lei eleitoral para as autarquias, centrada no presidencialismo municipal, nos executivos monocolores e no reforço do bipartidarismo.
É urgente uma reforma do poder local em Portugal, mas há alternativa à via neoliberal e antidemocrática: a da descentralização do poder através da criação de regiões, com órgãos diretamente eleitos, que racionalizaria a despesa e o investimento e aprofundaria a democracia; a do reforço dos poderes de eleição, deliberação e fiscalização dos executivos por parte das assembleias municipais segundo um modelo parlamentar; a discussão, caso a caso e com as populações, da agregação de freguesias particularmente em contextos rurais e o reforço das competências e da capacidade financeira destas. Devem ainda ser dados passos decisivos na implementação de mecanismos de democracia participativa, como orçamentos participativos e a discussão e controlo públicos efetivos de processos que afetam diretamente as populações.
Catarina Martins
Reformas estruturais
As reformas estruturais são alterações de política, habitualmente refletidas em modificações do quadro legal, que implicam mudanças profundas nas estruturas básicas do funcionamento das economias ou sociedades. Têm como objetivo a melhoria das condições de vida das populações, pelo que os resultados alcançados devem julgar-se em função dos valores essenciais que definem o bem-estar humano.
No contexto da atual crise, esta expressão tem vindo a designar alterações nas normas que regulam setores ou áreas da atividade económica e social, de acordo com orientações de inspiração liberalizante, visando reduzir os limites ao funcionamento do “livre mercado”, entendido como o conjunto das relações de troca entre agentes económicos privados. A ideologia subjacente a estas decisões sustenta que elas garantem níveis acrescidos de eficiência produtiva e, consequentemente, maior crescimento económico. É este o sentido das reformas que têm vindo a ser defendidas e/ou aplicadas, por exemplo, a setores como a saúde, os transportes, a energia ou as telecomunicações. Outro exemplo é a reforma do mercado de trabalho, cuja orientação essencial vai no sentido da flexibilização, entendida como facilitação dos despedimentos e redução dos direitos dos trabalhadores, implicando, portanto, uma alteração profunda na repartição de poder entre os empregadores e os trabalhadores e seus representantes organizados, os sindicatos.
No entanto, algumas reformas profundas, incontornáveis sobretudo após a crise internacional de 2008, têm-se revelado extremamente difíceis de implementar. O exemplo mais evidente é o do setor financeiro, cuja avidez e imprevidência, exercidas num quadro de desregulamentação neoliberal, conduziram o mundo à maior recessão dos últimos 80 anos. Mas os governos nacionais estão reféns do extraordinário poder globalizado que o setor conquistou nas últimas décadas, face à ameaça de reações adversas (fuga de capitais e de empregos) que podem resultar de políticas nacionais destinadas a limitar a voracidade da circulação de capitais. Esta situação, profundamente nefasta para o bem-estar humano, torna impreterível uma atuação política concertada à escala internacional.
Lina Coelho
Reformas judiciais
A justiça (poder judicial) é um dos três pilares de um Estado de Direito. Ao contrário de outros serviços públicos, a função de soberania da justiça dificilmente poderá ser consignada a uma entidade não estatal. A atual política de austeridade traduz-se, assim, no imperativo de que os tribunais contribuam positivamente para a superação dos constrangimentos económicos, pugnando-se por uma eficiência e eficácia no seu desempenho (ao mesmo tempo que se reduzem os seus custos de funcionamento). Os objetivos reformistas jogam-se, por isso, em três grandes dimensões: os recursos financeiros e humanos; a legislação; e a organização do sistema judicial.
A primeira está em decréscimo, dados os cortes impostos ao orçamento do Ministério da Justiça (menos magistrados e funcionários, menos dinheiro para despesas correntes), daí decorrendo a diminuição dos meios disponíveis para aplicar a justiça e o aumento da sobrecarga de trabalho dos magistrados e funcionários. A alteração legislativa efetua-se com especial impacto no domínio económico e na redução dos prazos processuais, procurando que os litígios sejam dirimidos com celeridade, em particular na ação executiva (cobrança de dívidas), garantindo-se que os mercados tenham a menor perturbação possível. A mudança na organização e gestão (mapa judiciário), com a redução da distribuição territorial de tribunais, procura concentrar os meios humanos e equipamentos e diminuir os custos associados (infraestruturas, serviços de apoio, entre outros). Simultaneamente, aumentam as taxas de justiça para incrementar as receitas.
Ao abraçar-se uma estratégia de curto prazo, coloca-se em causa a qualidade da justiça. Ou seja, caminha-se para que a balança da justiça se desequilibre, com o “peso” dos critérios economicistas a diminuir os direitos dos cidadãos. Segue-se por um caminho que contraria a Constituição, na função primordial da justiça, e limita as garantias de acesso ao direito e à justiça por parte dos cidadãos (justiça mais distante, mais cara e menos efetiva). O tempo da justiça passa a ser o tempo da economia. Logo, à imagem dos mercados que crescentemente manipulam a vida social, teremos uma justiça volátil.
João Paulo Dias
Refugiados
É difícil encontrar no dicionário uma palavra que esteja tão indissociavelmente ligada à “crise” como a palavra “refugiado”. O refugiado é hoje aquele que é obrigado a deslocar-se, a atravessar fronteiras, a mudar e, por fim, a arriscar a vida por causa das crises, sejam estas de tipo político, militar, social, económico ou ecológico. Com efeito, cada crise contemporânea produz os seus refugiados.
Como recordou António Guterres, o Alto-comissário da ONU para os Refugiados, por ocasião do aniversário da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR), os movimentos forçados de populações apresentam hoje aspetos novos e em rápida evolução em todo o mundo. Múltiplos novos fatores constringem hoje as pessoas à fuga, e muitos deles não existiam quando nasceram as mais importantes convenções internacionais sobre os refugiados.
Um número cada vez maior de pessoas atravessa fronteiras por causa da pobreza extrema, do impacto das mudanças climáticas e da sua correlação com os conflitos bélicos. Segundo o último relatório da UNHCR, as crises que conduziram a êxodos maiores, no ano de 2011, disseram respeito à África ocidental, setentrional e central. Além disso, houve um incremento de 17% nos pedidos de asilo apresentados aos países industrializados. Na Europa, foi a França que recebeu, no ano de 2010, o maior número de pedidos de asilo (UNHCR: 48 576), seguida da Alemanha, da Suíça e do Reino Unido. Pode dizer-se que a presença de refugiados em Portugal é decisivamente minoritária (UNHCR: 384) e o número de pedidos de asilo é residual (UNHCR: 72), tanto em comparação com os restantes países europeus como em relação ao total da população portuguesa, com uma proporção de refugiados que não chega sequer a 0,5%. Tal é devido tanto à posição geográfica do país, quanto ao seu contexto económico, que não é particularmente “atrativo”. Esta condição de “não emergência” determinou um desinteresse geral das autoridades portuguesas em relação ao tema dos refugiados, desinteresse que pode ser constatado também na falta de estatísticas acessíveis sobre a presença de refugiados no território português.
Iside Gjergji
Regulação pública
O Estado intervém na economia diretamente, produzindo bens ou prestando serviços em regime de monopólio público ou em concorrência; ou indiretamente, regulando a atividade de outros agentes económicos, do setor privado, social ou mesmo do setor público empresarial. A regulação pública da econmia consiste no conjunto de medidas legislativas, administrativas e convencionadas por meio das quais o Estado determina, controla, ou influencia o comportamento de agentes económicos, visando orientá-lo em direções socialmente desejáveis. Está, pois, em jogo uma alteração desses comportamentos em relação ao que seriam se obedecessem apenas às leis de mercado ou a formas de autorregulação.
Apesar das tendências liberalizadoras do final do século XX, traduzidas na privatização de grande parte dos setores públicos empresariais, manteve-se e em certa medida foi até reforçado o papel da regulação pública, quer na ordenação de atividades entretanto abertas à concorrência (energia, telecomunicações, transportes, etc.), quer na proteção de outros valores não económicos, como a segurança dos consumidores, o ambiente ou a informação, com clara demarcação entre as funções do Estado como operador e prestador e as suas funções de ordenador e regulador. Mesmo assim, a crise que despontou em 2008 mostrou que a regulação foi ineficaz no que toca aos mercados financeiros: ou porque deixou fora de controlo uma parte importante da sua atividade, como os produtos derivados, ou porque foi feita a uma escala inapropriada.
Daí que o debate sobre a regulação pública seja hoje ainda mais atual, incidindo não apenas sobre o seu conteúdo (quais os setores e atividades que devem ser mais ou menos regulados), mas também sobre a sua escala (nacional, regional ou global) e a distribuição de poderes regulatórios (por exemplo, entre os Estados-Membros e as instituições de governo da UE). Em suma, a crise tornou ainda mais evidente o papel essencial da regulação pública na estabilização dos mercados e na proteção do interesse coletivo que estes por si só não asseguram, ainda que para o desempenhar com eficácia a regulação precise de redefinir objetivos, formatos e atores.
Maria Manuel Leitão Marques
Religião
A religião é considerada por muitos como um instrumento de apaziguamento das consciências e de desativação da contestação social, dada a sua insistência na relevância do espiritual e da vida eterna. Tem havido vozes, ao longo da presente crise, que reforçam esta vertente da religião, referindo-se à necessidade de relativizar as dificuldades do presente, de interpretar os momentos de crise como momentos privilegiados de “conversão” e de se “entregar nas mãos do Pai eterno”.
Contudo, para muitos outros, a religião constitui um fator inspirador de uma profunda crítica social e de práticas alternativas. Esta crítica assenta na denúncia da existência de uma “teologia do mercado”, isto é, uma interpretação da ordem económica capitalista como se de algo inevitável e inelutável (um plano transcendente!) se tratasse, algo que só entendidos, “exegetas”, são capazes de compreender e sobre o qual só estes são capazes de atuar, não restando ao “comum dos mortais” senão deixar-se guiar por esses peritos e deixar-se sacrificar. A crítica desta “teologia do mercado” invoca valores como a justiça e a fraternidade/sororidade universais, baseadas na convicção de que Deus constitui o princípio radical para a igualdade entre todos os seres humanos. Invoca também o respeito pelos Direitos Humanos.
Esta perspetiva gera práticas alternativas de vários tipos: refl exões teóricas sobre os mecanismos geradores de injustiças estruturais e sobre possíveis caminhos de saída do “modelo único” do capitalismo de mercado; práticas libertadoras de capacitação de comunidades e de sujeitos em situações de exclusão, bem como ações de solidariedade humanitária em contextos de emergência. Apontem-se como exemplo de cada uma destas práticas: a participação das religiões no Fórum Social Mundial e o Fórum Mundial de Teologia de Libertação; a reflexão produzida pela Comissão Justiça e Paz, em Portugal; a presença de grupos religiosos nos diversos movimentos “Ocupas”; a presença de grupos religiosos em ONG.
Teresa Toldy
Resistência
Etimologicamente, resistência é: estar – isto é, tomar uma posição – de forma reiterada. Entrar no mundo – estar – parece então ser a inevitabilidade da resistência: um (re)existir. E, contudo, dando razão a Heraclito, parecemos ter esquecido o que nos é mais familiar e intrínseco: esse processo agonista (de luta, que é também agonia) de afirmação de vida, a fazer-se contra a estase da morte.
Declarado o fim das grandes narrativas na pós-modernidade, parece haver hoje uma espécie de vergonha em usar palavras como “resistência” ou “resistir”. Em Portugal, adicionando-se razões que se prendem com a sua história recente, estas palavras parecem ter-se tornado até ridículas e alvo de troça: como se o 25 de Abril tivesse esgotado toda a necessidade de resistência e só uma certa esquerda antiquada pudesse ainda usar termos tão obsoletos e fora de moda. Este discurso, tornado dominante através das instituições reguladoras (dos média à escola), parece assim levar-nos ao impedimento de (re)existir – é esse o fundamento da tão proclamada inexistência de alternativas para a crise em que nos encontramos. Mas a aceitação deste discurso, poderemos concluir, significa a aceitação da nossa própria in(re)existência. Contra esta linguagem e pela (re)existência do humano, há pois que procurar uma linguagem emancipatória: um esforço poético (do fazer na/da palavra) a incluir uma dimensão profundamente arcaica que, ainda que invisibilizada por um certo sentido de moderno, sobreviveu na resistência da nossa própria humanidade, na permanência reiterada de “estar” – de “tomar posição” na existência. A impossibilidade da alternativa revela-se então como alternativa impossível. Há pois que reatualizar esse arcaico, isto é, ressignificar: reativar o potencial criativo de cada cidadã/o e manter o processo e o movimento da vida. Mesmo sem grandes narrativas, esta consciência do humano permanece – ainda que apenas à pequena escala.
É nessa pequena grande escala que urge trabalhar, sobretudo nestes momentos de crise e de agressão a direitos estabelecidos: resistindo/existindo – em ato (agindo). Só nesse agonismo – que, dizia Olson, leva cada cidadã/o ao imediato, de uma perceção a outra – se faz vivo o processo de participação na expansão do humano. Aí resiste a possibilidade da escolha individual e/ou da (re)invenção de uma linguagem emancipatória: a abertura a novas representações do mundo.
Graça Capinha
Responsabilidade social das empresas
Pressupondo que o bem-estar social é uma tarefa de toda a sociedade e não apenas do Estado, as empresas são chamadas a assumir responsabilidades. É neste contexto que se pode situar o conceito de responsabilidade social das empresas (RSE). Além de implicar uma alteração na atitude dos agentes económicos, assume diversos significados e interpretações tanto no meio académico como empresarial. A RSE acolhe contributos distintos relacionados com as obrigações legais, com a contribuição de caráter caritativo e filantrópico e com o comportamento socialmente responsável, quer ao nível interno, quer externo. Este tipo de comportamento passa por preocupações com os trabalhadores (colaboradores) e os seus direitos, pela gestão das expectativas do público, mas também pela utilização de recursos para fins sociais mais amplos. Procura-se, assim, contribuir para uma sociedade mais justa e para um ambiente mais limpo, maximizando os impactos positivos sobre a comunidade.
Perante cenários de insolvência, encerramento de empresas, adoção de medidas de lay-off ou despedimentos, qual o lugar da RSE? Não obstante uma visão otimista reforçada por alguns indicadores que apontam para um aumento da responsabilidade social, receia-se que as práticas de preservação do meio ambiente e da qualidade de vida da população possam representar mais um custo para as empresas. Contudo, estas práticas não podem deixar de ser equacionadas como mais-valias, capazes de garantir ganhos futuros e o reforço da competitividade das empresas.
De entre as iniciativas de RSE, ganham relevo, por exemplo, as políticas de igualdade de género e o desenvolvimento de medidas de conciliação trabalho-família e os projetos de voluntariado empresarial. Apesar de serem uma prática recente em alguns contextos, incluindo Portugal, estas ações incentivam a criatividade e a motivação dos trabalhadores, possibilitam a sua participação na vida das empresas e o desenvolvimento de trabalho em equipa, conduzindo a uma maior satisfação com o trabalho. Em suma, medidas que podem traduzir-se num fator adicional de coesão social.
Teresa Maneca Lima
Revolta
As discussões em torno de revoluções marcaram o espectro político do séc. XX; na atualidade, relatos de revoltas vão assumindo cada vez mais importância. A experiência de vários processos revolucionários demonstra que a tomada de poder pelos revolucionários está associada à tomada de medidas que visam impedir o desenvolver da revolução. Esta marca castradora da vontade política dos sujeitos tem levado a que nos contextos atuais a revolta tenha retornado à ribalta, como expressão do desejo de manter vivo o seu significado de rutura ou o levantamento contra a autoridade constituída, enquanto recusa de subordinação ao poder político constituído.
A revolta é um conceito que procura dar corpo à luta contra as tentativas de pôr fim à história dos processos de libertação, individuais ou coletivos. A competência rebelde traduz-se em várias ações que procuram ampliar a presença e pertença política, ampliando o sentido de participação política, pelo povo, para além dos partidos políticos, desafiando o poder das instituições políticas. Estas manifestações incluem movimentos de protesto e resistência não violenta, desobediência civil, assim como ações violentas de confronto à autoridade instituída. A negritude é exemplo da revolta de intelectuais negros contra as injustiças históricas cometidas pelo colonialismo e o racismo, contra o eurocentrismo da “história universal”. As revoltas que têm marcado o mundo árabe apelam ao retorno do sujeito, à liberdade individual e coletiva, à dignidade e à solidariedade.
A revolta exprime assim o sentido profundo do inconformismo contra as injustiças, as opressões e discriminações que se sucedem, referência à luta permanente pela democratização do mundo, das relações sociais, culturais, económicas e políticas que nos unem e/ou separam.
Maria Paula Meneses
Revolução
Conceito de grande complexidade e ampla polissemia, não só pela sua natureza heterogénea como pela grande carga emocional (de fascínio ou rejeição) que suscita, sobejamente demonstrada pela avassaladora produção historiográfica em torno sobretudo das duas grandes experiências revolucionárias, espécie de código genético de todas as outras que se lhes seguiram: a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917. Vindo da astronomia e com um significado oposto ao que hoje se lhe atribui, passa, justamente no século XVIII, de um conceito fisiopolítico (o estudo das formas de governo dos homens que se sucediam com uma regularidade semelhante às próprias leis da natureza), a um outro meta-histórico, um princípio regulador do conhecimento e da praxis humana. Liberta da sua origem natural, a revolução altera a perceção do tempo, que pode agora ser acelerado e precipitar novas formas de organização política e social.
Toda a revolução pulveriza pois as categorias de uma temporalidade histórica rígida e instaura uma temporalidade mítica e simbólica, reversível e transtemporal, ou seja de um presente como momento ideal de sobreposição de um passado distante com um futuro próximo concebido como uma Idade de Ouro. Uma dinâmica que está longe de ser linear ou previsível, pois que, se por um lado «produz em poucos dias sucessos mais importantes que toda a história anterior da humanidade» (Robespierre) e cuja heroicidade e grandeza só pode ser comparável ao «assalto dos céus» (Marx), por outro faz surgir no seu interior ondas de refluxo que nenhum dos atores pode controlar e que os afasta dos seus propósitos iniciais.
As comprovadas máximas de que a revolução devora sempre os seus filhos e de que é sempre um processo inacabado são, afinal, a dolorosa proclamação do desajustamento entre o sonho e o peso da realidade. Contudo, nos intensos períodos que designamos como revolucionários, algo de radicalmente novo aconteceu, cuja natureza não pode ser avaliada apenas pelo resultado final. A revolução, mesmo derrotada ou desvirtuada, conserva uma misteriosa invencibilidade, porque permanece na memória dos povos como narrativa exaltante e inspiradora, fonte regeneradora das mais fundas expectativas de felicidade coletiva num mundo hostil e sem esperança.
Manuela Cruzeiro
Risco
A noção de risco está diretamente associada ao desenvolvimento do capitalismo, estando relacionada, numa primeira fase, com o cálculo dos possíveis prejuízos decorrentes da navegação de longo curso e, a partir do século XIX, com a avaliação dos custos dos acidentes de trabalho e a contabilização dos seguros de trabalho. Com o desenvolvimento da estatística e da sua utilização como instrumento de governação e de controlo das populações, a noção de risco alargou-se, com a generalização dos seguros, do risco profissional ao risco social. Assim, a noção de risco passa a incorporar o cálculo da probabilidade de ocorrência de um acontecimento que ponha em causa algo que o ser humano valoriza. Esse cálculo é feito a partir da acumulação de conhecimento de factos e acontecimentos passados e assenta no papel dos grandes sistemas de cálculo e no trabalho de peritos.
O conceito de risco incorpora um cálculo de previsibilidade e uma tentativa de controlo, a partir do conhecimento, do futuro e de domesticação do aleatório. Paradoxalmente, perspetivas neoliberais como as de Ulrich Beck e Anthony Giddens sobre a sociedade do risco e a democratização do risco acentuam o papel da incerteza na definição de futuros possíveis, criticando o conceito de risco e libertando os indivíduos da tecnocracia e dos especialistas. A celebração pelos autores neoliberais da incerteza, contra os direitos adquiridos pela generalização dos seguros e dos apoios sociais, potencia a consagração do discurso da construção pelos indivíduos de subjetividades proactivas, flexíveis, adequadas às exigências de sociedades em constante mudança tecnológica (sociedades em rede, por exemplo).
Integrando os riscos a narrativa da modernidade e constituindo dispositivos de governação das populações, os mesmos serão associados, sobretudo em períodos de crise e de contestação social, a processos de desestabilização e de afetação de uma coesão social imaginada, permitindo identificar e cartografar os grupos vulneráveis e, por acréscimo, os grupos e as classes perigosos, ou, se desprovidos de recursos e de capacidade de mobilização, os grupos e classes descartáveis porque não produtivos.
José Manuel Mendes