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Salário
Juridicamente, o salário ou retribuição define-se como a prestação patrimonial de natureza essencialmente pecuniária que o empregador está obrigado a realizar como contrapartida da prestação de trabalho de que é credor.
Elemento essencial da sociedade salarial, a sua função redistributiva é colocada em causa quando esta entra em crise por força do desemprego, precariedade, atipicidade, etc. Garantir um salário adequado é um dos fatores constitutivos do Trabalho Digno (OIT) e condição para o exercício da liberdade real dos trabalhadores. Alvo de um intenso processo negocial, a fixação dos salários encontra fonte privilegiada na negociação coletiva (em particular pela contratação coletiva), ainda que, e de acordo com as diferentes experiências nacionais, a existência de salário mínimo e a sua atualização apele a uma maior intervenção do Estado. A existência de salários próximos da linha de pobreza tem dado origem ao fenómeno dos trabalhadores pobres, o qual tem contribuído para o alargamento dos indivíduos e famílias em situação de exclusão social.
Numa época marcada pelo desemprego, pela erosão do direito do trabalho e de aprofundamento da flexibilização das relações laborais, o acesso a um salário coloca os indivíduos na fronteira de um estado de necessidade defendido pelos que sustentam que mais vale um mau emprego mal pago do que o desemprego. A questão da redução dos custos salariais ultrapassa em muito a negociação anual das remunerações e torna-se cada vez mais numa questão geoeconómica, na medida em que existe uma competição entre os países com baixos salários. A gestão política dos salários e dos rendimentos dos trabalhadores adquire, ainda, uma renovada centralidade no âmbito da aplicação das medidas de austeridade, pois um dos seus mais relevantes efeitos/objetivos é exatamente a redução da retribuição do trabalho.
António Casimiro Ferreira
Saúde
A crise degrada as condições de vida e o bem-estar, tornando as populações mais suscetíveis ao adoecimento físico ou mental. Mas nem todos são atingidos da mesma forma e com a mesma intensidade. Os idosos, os doentes crónicos, as famílias com baixos rendimentos, os desempregados de longa duração, os dependentes de apoios sociais, os imigrantes não legalizados e as suas famílias ou os sem-abrigo são apenas alguns dos que integram uma lista, que todos os dias se alarga, dos que são mais vulneráveis aos efeitos da crise. Inclusive não poupa uma parte crescente da chamada classe média, que, até há pouco tempo, se julgava protegida desses efeitos.
Esta situação é agravada por medidas tomadas pelos governos nacionais e impostas por entidades supranacionais como a União Europeia ou por organizações financeiras internacionais, que incluem a redução do investimento público nos sistemas de saúde e pela privatização destes (ou da sua gestão), o aumento de taxas moderadoras e a diminuição da comparticipação em medicamentos. Para além das limitações de acesso aos cuidados e do aumento da comparticipação dos cidadãos no seu pagamento, é imposta uma diminuição da quantidade e qualidade dos serviços prestados, em nome da saúde financeira do Estado.
Independentemente das justificações apresentadas, as atuais propostas de reforma dos serviços nacionais de saúde em diferentes países europeus, incluindo Portugal, configuram um processo de transformação da saúde num setor económico altamente lucrativo, com uma presença crescente e dominante do setor privado e da regulação pelo mercado, coexistindo com um sistema público reduzido, orientado principalmente para a assistência àqueles que não podem pagar. Em Portugal, o Serviço Nacional de Saúde é uma das mais importantes conquistas da democracia, e uma das expressões mais importantes da cidadania social e económica. A sua defesa aparece, por isso, no centro da ação cidadã de resposta à crise.
João Arriscado Nunes
Segurança alimentar
A abordagem dominante à segurança alimentar faz-se através da maximização da produção agrícola por processos industriais, a que o consumidor tem acesso via mercados liberalizados. As organizações globais da Agricultura e Alimentação (FAO), Saúde (OMS) e Comércio (OMC), juntamente com os Estados, desenvolveram sistemas de prevenção de riscos para proteger a saúde do consumidor e garantir que os alimentos produzidos em qualquer local do mundo são seguros, de acordo com padrões científicos. No entanto, várias crises colocam esta garantia em causa. Os processos industriais intensivos produzem alimentos de qualidade nutricional questionável, causam degradação ambiental, redução da biodiversidade, problemas de saúde e estão frequentemente associados ao sofrimento animal e humano. Por isso, cientistas, profissionais, organizações não-governamentais e movimentos sociais advogam abordagens precaucionais às novas tecnologias alimentares e defendem o uso de tecnologias alternativas já disponíveis, como a agroecologia, que tem por base conhecimentos que reconhecem as relações ecológicas da biosfera e promovem relações comerciais mais justas.
As organizações globais reconhecem que existem alimentos em abundância para alimentar a população mundial de forma saudável, e que, infelizmente, tal não se verifica. A FAO, a OMS e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) recomendam que os Estados devem promover, através de políticas de alimentação, a segurança alimentar, livrando as populações da fome e prevenindo doenças crónicas relacionadas com a má nutrição (incluindo a obesidade) que comprometem o direito humano à alimentação e saúde. Outros conceitos, como o de justiça alimentar e soberania alimentar, contemplam expressamente o direito à alimentação, pelo qual ninguém deve ser privado de uma alimentação adequada com base nas desigualdades sociais, e o direito de os povos decidirem sobre as suas políticas alimentares de forma independente dos mercados internacionais.
Rita Serra
Segurança social
É no contexto de insegurança saído da II Guerra Mundial que a segurança social emerge como um ideal de segurança económica através da extensão da proteção social na pobreza, velhice, deficiência, desemprego, doença e encargos familiares a toda a população, vindo a ser incluída como direito humano básico na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Concretizou-se na criação dos Sistemas de Segurança Social que se distinguiram das preexistentes previdência e assistência pela perspetiva universalista da cobertura e pela garantia de direitos sociais. Através da unificação de diferentes esquemas de proteção transformou-se numa forma complexa de solidariedade nacional, operando a redistribuição entre gerações, profissões, setores de atividade, territórios, famílias, sexos, classes sociais, etc. O mecanismo de seguro social que lhe subjaz é uma inovação do séc. XIX, com origem nas formas de ajuda mútua de trabalhadores, reagindo às condições de vulnerabilidade social resultantes da dependência do salário ou da caridade, sendo depois assumido pelo Estado-Nação e levado mais longe pelo Estado-Providência.
Em Portugal, o Sistema de Segurança Social inclui o sistema de proteção social de cidadania e o sistema previdencial. O primeiro abrange os casos de carência socioeconómica, sendo sobretudo financiado por impostos. O segundo visa substituir rendimentos de trabalho perdidos, sendo fi nanciado por contribuições dos trabalhadores e empregadores. Foi criado após 1974 mas nunca concretizou plenamente o ideal da segurança social, sendo deficitário na redução da pobreza e na correção das desigualdades sociais.
Desde finais da década de 1970 que estes dois sistemas estão sob pressão. Mal compreendidos pelas políticas neoliberais, sofrem também os efeitos das transformações na estrutura das economias, da precarização laboral e da globalização económica. Mas são um dos principais mecanismos de atenuação dos efeitos das crises, tornando-se fundamental repensar os seus âmbitos de solidariedade e as suas bases financeiras.
Sílvia Ferreira
Serviço Nacional de Saúde
Somente a partir de 1971, com a publicação do Decreto-lei 413/71, foi reconhecido o direito à saúde a todos os cidadãos, assumindo o Estado um papel ativo na formulação de políticas de saúde. Com a Revolução de Abril iniciou-se um processo de reorganização dos serviços de saúde que culminou, através da Lei 56/1979, com a instituição do Serviço Nacional de Saúde (SNS), consagrado no art.º 64 da Constituição. O SNS reconhecia a gratuidade, gestão descentralizada e participada e o caráter supletivo do setor privado, baseando-se nos princípios de filosofia social de William Beveridge e Thomas H. Marshall, inspiradores dos sistemas de saúde públicos da Europa do Norte.
Além de concretizar o preceito constitucional, o SNS respondeu, na visão de António Arnaut, um dos arquitetos do SNS, a um imperativo ético, visto que Portugal apresentava os piores indicadores de saúde da Europa. Porém, o SNS teve que enfrentar diversos problemas: subfinanciamento, concentração de recursos no setor hospitalar, escassa coordenação entre cuidados primários e secundários, desigualdade de acesso ao serviço público, além das resistências e reiterados ataques dos adversários do sistema de saúde público, reivindicadores da “empresarialização” como estratégia de privatização do SNS.
Após 33 anos, o SNS tornou-se um património coletivo da sociedade portuguesa, contribuindo para a melhoria dos indicadores de saúde (redução da mortalidade infantil, aumento da esperança de vida, etc.) e colocando Portugal nas primeiras posições do ranking internacional. Sobretudo a partir do final da década de 1990, o processo de reforma contribuiu para alcançar esses objetivos através dos progressos tecnológicos, do fortalecimento dos cuidados de saúde primários e da introdução dos cuidados continuados integrados. Entretanto, em contexto de crise, subsistem áreas críticas e prioridades a serem enfrentadas: a) desigualdades geográficas e sociais no acesso aos cuidados de saúde; b) copresença, ao lado do SNS, de outros subsistemas assistenciais públicos e privados que podem acentuar as desigualdades em saúde; c) escassos mecanismos de participação dos cidadãos.
Mauro Serapioni
Sexismo
O sexismo é uma ideologia e uma prática que se baseia em estereótipos e preconceitos em torno do sexo e dos papéis sociais atribuídos à mulher e ao homem. O sexo feminino é equacionado com a natureza, a paixão e a reprodução, reservando-se à mulher o papel da maternidade e do cuidado. O sexo masculino é identificado com a cultura, a razão e o poder, atribuindo-se ao homem o papel de provedor da família e de liderança no espaço público. O sexismo gera a discriminação contra a mulher, sendo produzido e reproduzido pelas normas culturais e pelas estruturas sociais.
Graças às mobilizações feministas, as normas jurídicas em diversas sociedades têm vindo a consagrar o princípio da igualdade entre homens e mulheres. No entanto, a ideologia sexista continua a influenciar as práticas institucionais e as relações interpessoais. A desigualdade com base no sexo ainda é um desafio da democracia e do exercício da cidadania das mulheres no século XXI. Por exemplo, os homens continuam a ocupar a maior parte dos cargos políticos e das posições de chefia no trabalho.
As respostas feministas ao sexismo são múltiplas. O feminismo liberal propõe mudanças na legislação e na educação, bem como a integração plena da mulher no mercado e na política. O feminismo socialista critica as políticas neoliberais e busca mudanças estruturais que possam eliminar as desigualdades com base no sexo e na classe social. O feminismo pós-colonial e antirracista põe em causa o significado da identidade “mulher”, no singular, e o discurso a-histórico da opressão das mulheres. Dependendo do contexto, o classismo e o racismo podem ser tão relevantes quanto o sexismo na vida das mulheres.
Em momentos de crise, as mulheres trabalhadoras e em situação de pobreza encontram-se especialmente vulneráveis. As empresas, por exemplo, tendem a despedir as mulheres com base no preconceito de que o homem é o provedor da família. As trabalhadoras domésticas podem perder o trabalho em função da crise que afeta as famílias empregadoras. Possíveis alternativas passam pela criação de redes de solidariedade entre mulheres e homens da mesma classe social e, quando possível, entre mulheres de diferentes classes sociais.
Cecília MacDowell Santos
Sindicalismo
O sindicalismo foi o principal movimento social da sociedade industrial, nascido das ações de resistência da classe trabalhadora (embora com raízes no corporativismo medieval). As contradições do capitalismo não podiam oferecer melhor terreno para o florescer das lutas sociais: de um lado, o rápido crescimento económico com o rápido enriquecimento da burguesia; do outro, as condições miseráveis das classes trabalhadoras, a fome, a doença e o desemprego (a “questão social”). Foi a conflitualidade social promovida por associações e sindicatos que veio a impor todo um leque de conquistas civilizacionais traduzidas mais tarde no “direito do trabalho” a partir de finais do século XIX e no Estado-Providência do século XX.
Em Portugal, os sindicatos foram fundamentais na organização da classe operária e nas lutas sociopolíticas de finais do século XIX até 1926, mas foram sempre objeto de forte repressão e controlo por parte do Estado. Porém, mesmo o sindicalismo corporativo do Estado Novo não impediu o trabalho clandestino de ativistas e militantes (em especial os comunistas) na defesa dos trabalhadores. Só após o 25 de Abril de 1974 o campo sindical atingiu o seu apogeu, tendo porém, caído de imediato numa nova cisão, resultante da rivalidade política entre o PCP e o PS, que permanece até hoje com a divisão entre as duas confederações sindicais: a CGTP e a UGT.
Nas últimas décadas, o sindicalismo português, além de permanecer dividido, institucionalizou-se e em boa medida burocratizou-se, sendo incapaz de se renovar e de inovar a sua prática e o seu discurso. As novas gerações de trabalhadores, em especial os setores mais precários, afastaram-se do campo sindical e desconfiam das suas propostas. Enquanto os novos movimentos e o novo “precariado” se manifestam e se indignam recorrendo aos novos meios e redes do ciberespaço, o sindicalismo revela-se impotente para lidar com esses novos segmentos da força de trabalho, para se aliar a eles ou para se renovar a partir das novas modalidades de ativismo que tais movimentos estão a afirmar no espaço público e mediático.
Elísio Estanque
Soberania
Soberania, no sentido clássico do conceito, significa o exercício pleno de autoridade dentro de fronteiras e a inexistência de uma autoridade superior no plano externo, afirmando uma distinção clara entre ordem interna e ordem internacional. O debate em torno do conceito tem revelado a tensão entre uma leitura moderna, que permanece focalizada no poder do Estado e num entendimento marcadamente territorial do conceito, e uma leitura pós-moderna, de cariz normativo, que, face a dinâmicas transnacionais e à existência de novos atores com autoridade reconhecida – incluindo organizações não-governamentais, organizações internacionais, ou empresas multinacionais –, desafiam as leituras tradicionais do conceito.
A globalização enquanto fenómeno que implica dinâmicas a diferentes níveis que ultrapassam a capacidade e os limites territoriais do Estado, e a evolução que se verificou ao nível de princípios internacionais, como a intervenção humanitária e a responsabilidade de proteger, ilustram o dinamismo inerente ao sistema internacional que inviabiliza um entendimento estático de soberania. A crise financeira e a sua dimensão transnacional, a par da interdependência económica e política que lhe estão associadas, vêm acrescer à necessidade de reconceptualizar a soberania para além do quadro estatal.
No atual contexto europeu, as incoerências associadas a um entendimento estatocêntrico de soberania têm sido reveladas num quadro onde valores de solidariedade e interdependência têm dado lugar ao que já foi apelidado de “hipocrisia organizada”, como está evidenciado no caso da Grécia. Uma soberania que poderá tornar-se cada vez menos democrática nas periferias dos sistemas de decisão. Assim, está na ordem do dia repensar a soberania para além da territorialidade, do poder exclusivo e da indivisibilidade da autoridade, em novos quadros referenciais que tenham presente e analisem a multidimensionalidade do sistema internacional. Uma soberania que enfrenta uma crescente dispersão de poder associada à ascensão de novos atores e de novas formas de intervenção internacional.
Maria Raquel Freire
Socialismo
A galáxia socialista acolhe intensos conflitos intelectuais e práticas políticas contrastantes. No âmago das disputas encontramos questões como a natureza dos sistemas de dominação e os meios de os combater, a relação entre indivíduo e coletivo, a visão dos partidos e dos movimentos sociais, o papel do Estado e a extensão da crítica à propriedade ou a posição diante da modernidade e do progresso.
Anarquismo, comunismo e social-democracia constituíram-se ao longo do século XX como os três grandes veios da larga família socialista e foram marcados por fortes discussões e ruturas pungentes. Ainda assim, e arriscando uma definição englobante, dir-se-ia que todos eles se encontram alinhados numa mesma aspiração de fundo, baseada na convicção de que é possível e necessário ativar modos de organização social fundados na igualdade, na solidariedade e na cooperação. Simultaneamente, partilham a noção de que os indivíduos devem ter a possibilidade de se autorrealizar sem serem impedidos por constrangimentos estruturais.
Nos dias de hoje, a crise económica e financeira veio pôr fim à crença no “fim da História” e demonstrou os limites e as perversidades do sistema capitalista. Após o descrédito do “socialismo real”, o socialismo parece agora recuperar espaço para a sua afirmação enquanto crítica e hipótese estratégica. Para isso, torna-se indispensável desbravar caminhos que respondam à crise ecológica, que estimulem a participação, o reconhecimento da diferença e a responsabilidade coletiva, e que recriem o socialismo como ideal democrático por excelência. No entanto, para além de um combate de natureza intelectual, que busque acerto na crítica à dominação e no desenho teórico de alternativas, a atualização contemporânea do desígnio socialista obriga à construção e difusão de modelos económicos, políticos e sociais que trabalhem para romper a hegemonia neoliberal.
Miguel Cardina
Sociedade-Providência
A Sociedade-Providência (SP) significa a produção de bem-estar no interior de redes de relações sociais. Em sociedades semiperiféricas como a portuguesa, grande parte da proteção social é assegurada por redes informais, sobretudo por famílias que estabelecem relações recíprocas de troca de bens e serviços, garantindo o acesso a recursos como a habitação, o emprego, a saúde e os cuidados dos dependentes. A SP define-se na relação com o Estado-Providência (EP). A sua ação depende, em grande medida, do perfil da intervenção estatal. A atual crise económica e a retração das políticas sociais têm efeitos preocupantes na capacidade de resposta da SP. Em primeiro lugar, o recuo do EP produz, necessariamente, uma sobrecarga para a SP. Os cortes na proteção social deslocam para as famílias as responsabilidades de resposta às necessidades de apoio e produzem um forte impacto na autonomia e dependência dos indivíduos. Tendem a regressar modelos de subsistência familiar de partilha de recursos económicos (rendimentos, habitação) que diminuem as possibilidades de emancipação e promovem formas de dependência.
A sobrecarga da SP penaliza sobretudo as mulheres, sobre as quais recaem as principais responsabilidades da produção informal de bem-estar. Em Portugal, este papel primordial das mulheres desenvolve-se num contexto de elevada participação feminina no mercado de trabalho e assenta numa forte solidariedade intergeracional, que assegura a reprodução quotidiana das famílias e alimenta as redes de entreajuda. Assim, num contexto de crise de emprego, é forte o risco de regresso das mulheres à esfera doméstica.
A crise económica alimenta, assim, a crise da SP. Por um lado, a diminuição de rendimentos produzida pelo desemprego e pelas reduções salariais, os cortes nas transferências sociais do Estado, que diminuem as possibilidades de transferências intergeracionais e têm um impacto claro na redução do nível de vida das gerações mais novas, e o adiamento da idade da reforma, que retira as possibilidades de apoio social oferecidas pelas gerações de adultos idosos com capacidade de prestar cuidado. Por outro lado, os cortes nos apoios sociais afetam sobretudo os mais pobres, tornando as suas redes ainda mais desprovidas de recursos.
Sílvia Portugal
Subprime
Subprime é o crédito hipotecário de alto risco dirigido às camadas da população de baixos rendimentos sem capacidade para oferecer colateral aos bancos, estando por isso arredadas do mercado de crédito norte-americano. Beneficiando de condições aparentemente vantajosas, como o adiamento do pagamento dos juros, passaram a aceder ao crédito para a compra de casa própria, pagando as taxas de juro mais elevadas deste segmento de mercado.
Embora se lhe tenha associado uma narrativa de democratização no acesso aos mercados financeiros, este crédito é indissociável da crise do setor imobiliário de 2007 e do crash bolsista que se lhe seguiu em 2008. O crédito hipotecário alimentou a bolha imobiliária e a especulação em torno dos títulos de crédito imobiliário que proporcionavam rendimentos muito elevados, sendo contudo considerados seguros porque recebiam nota máxima de AAA pelas agências de notação. A procura por estes ativos criou uma forte pressão sobre a banca, que passou a conceder crédito a quem não tinha capacidade de pagá-lo. A titularização facilitou esta expansão do crédito e sustentou a expectativa de que o risco estaria controlado por via da dispersão dos títulos pelos mercados internacionais. Quando os preços das casas começaram a cair e as taxas de juro a aumentar, deu-se o incumprimento em larga escala. O valor dos imóveis já não chegava para cobrir os encargos da dívida. Ao invés de diluir o risco do crédito pelos investidores internacionais, a disseminação dos títulos financeiros acabou por propagar os efeitos da crise imobiliária norte-americana aos mercados financeiros internacionais.
As causas da crise não se encontram apenas na ganância dos bancos, como muitas vezes tem sido apontado, mas também na desregulamentação do setor financeiro. Todas as ligações da cadeia do crédito hipotecário estavam debilitadas: desde as práticas de concessão de crédito, passando pelo processo de emissão de títulos financeiros, até às agências de notação, que não eram objeto de qualquer tipo de supervisão.
Ana Cordeiro Santos
Sul (global)
O Sul global é uma metáfora da exploração e exclusão social, agregando lutas por projetos alternativos de transformação social e política. A expressão Sul global tem vindo a ser crescentemente usada para fazer referência às regiões periféricas e semiperiféricas dos países do sistema-mundo moderno, anteriormente denominados Terceiro Mundo.
A constituição mútua do Norte e do Sul globais e a natureza hierárquica das relações Norte-Sul permanecem cativas da racionalidade moderna, geradora não apenas da ciência e da técnica, mas também da lógica capitalista, impessoal e devastadora e causadora de uma ordem política e económica desigual. A economia moderna, celebrada como uma “ciência” da acumulação material, sancionou e celebrou historicamente a exploração e a colonização de recursos e saberes do mundo. A economia, num sentido amplo, constitui-se como uma gramática colonial, cujo discurso produz a exclusão e o apagamento do que é não familiar, embora explorável – as “outras” práticas sociais e subjetividades. Este modelo hegemónico neoliberal, sustentado pelo monopólio sobre os recursos económicos, tem vindo a acentuar a reprodução de assimetrias no mundo, a expensas da redistribuição e da justiça social.
Contrapondo-se à globalização capitalista, muitos movimentos sociais através do mundo têm vindo a denunciar a dominação, exploração, marginalização e opressão das relações impostas pelo Norte global, avançando com novas propostas que desafiam a epistemologia hegemónica, visando romper com o modelo hegemónico capitalista. O Sul global constitui-se hoje como um espaço de soluções económicas, sociais e políticas alternativas às alternativas historicamente fracassadas, dando origem a uma geografi a imaginária que une áreas com realidades extremamente diversas. Estes novos desafi os por uma globalização contra-hegemónica têm encontrado maior eco e reflexo no Fórum Social Mundial, símbolo das aspirações alternativas do Sul global.
Maria Paula Meneses