O “jardim da Europa à beira-mar plantado” esteve sempre em crise (etimologicamente, ponto de viragem ou ponto a exigir viragem). Mesmo nos períodos em que disso se não deu conta. Como nos quase cinquenta anos de ditadura, em que lhe disseram ser um país pobre e de brandos costumes, pão e vinho sobre a mesa, fados tristes, folclore alegre e futebol de congregadoras rivalidades, e outras modestas aspirações.
Ao mesmo tempo que diziam a este pequeno rectângulo-rosto-ocidental da Europa que ele se estendia imperialmente do Minho a Timor, muitos portugueses emigravam em busca das condições de vida que tão amplo território nacional lhes negava por via do regime fascista que o governava. A independência de Goa, em 1961, e as chamadas guerras coloniais dessa mesma década foram sintomas de uma crise maior a anunciar-se. E foi a Revolução de Abril de 1974 a grande crise portuguesa do século XX, um ponto de viragem radical, que permitiu a democracia, e durante algum tempo pareceu prometer um mundo novo, capaz de lidar eficazmente com milhares de portugueses regressados das ex-colónias, e de superar os traumas terríveis de perseguições e saneamentos, da contra-revolução, e da emigração, esta agora de luxo, de elites humilhadas, à espera de melhores tempos. Tempos que não tardariam a vir. Portugal, virado agora para a Europa, cresceu a reimaginar o centro, criou uma das mais progressistas constituições políticas, entrou na União Europeia, adaptou-se rapidamente ao euro, e o nível de vida das classes médias subiu consideravelmente, com projectos inovadores para a Educação, a Ciência, a Saúde, o Trabalho, e oportunidades acrescidas para muitos mais. Mas não conseguiu, ou não quis, criar leis eficazes no combate à corrupção. Sinais de enriquecimentos ilícitos e fugas de capitais ameaçaram a estabilidade económica do país. É desta crise que falamos hoje.
Diz-se que a “ajuda externa” da troika (CE, BCE e FMI) com as suas medidas de austeridade está a salvar Portugal, como já acontecera em 1979 e 1983. Mas, em face das consequências para o nosso país da guerra em que as agências de notação norte-americanas esmagam o euro com o dólar, não podemos senão lembrar-nos da canção memorável de José Mário Branco, “FMI”, em cujos sons reverbera outra mais antiga, os “Vampiros” de Zeca Afonso: “eles comem tudo”.
Maria Irene Ramalho
Nota: A pedido da autora, esta entrada mantém a grafia anterior ao novo acordo ortográfico.