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Laymert Garcia dos Santos

Predação high tech, biodiversidade e erosão cultural: O caso do Brasil

Laymert/bio/29.06.01/final

(text not edited)

Para Ana Valéria Araújo e Sérgio Leitão

incansáveis defensores dos direitos indígenas

Primeira parte: Virada cultural e virada cibernética

Nas duas últimas décadas tem se firmado a tese segundo a qual o capitalismo estaria se transfigurando ao incorporar a dimensão da cultura ao processo de produção e até mesmo a fazer dela o motor da acumulação. De certo modo, toda a discussão que se trava nas Ciências Sociais sobre a questão da pós-modernidade gira em torno daquilo que Frederic Jameson, um dos autores-chave para se pensar a transformação ocorrida, denominou "a virada cultural". Na visão de Jameson, se quisermos compreender a sociedade contemporânea, precisamos entender como a cultura vem sendo colonizada pelo capital e como tal colonização tem efeitos devastadores sobre a política, as lutas de resistência e os anseios de emancipação.

Seguindo a trilha de Jameson e de outros autores, um arguto farejador das tendências econômicas contemporâneas, Jeremy Rifkin, termina seu livro The Age of Access, argumentando que o capitalismo global não só é "knowledge based", mas também, e principalmente, que ele, ao canibalizar as culturas, todas as culturas, ameaça as próprias bases das sociedades porque dissolve a diversidade cultural do planeta através de uma instrumentalização cada vez mais intensa e acelerada (Rifkin, 2000). A análise de Rifkin sobre as relações entre o capitalismo global e a diversidade cultural evoca irresistivelmente a crítica de Vandana Shiva a respeito do modo como o "agribusiness" e as corporações transnacionais farmacêuticas e de alimentos tratam a biodiversidade (Shiva, 1993). O paralelo não é fortuito: tudo se passa como se Rifkin descobrisse que a dinâmica econômica contemporânea resulta em erosão cultural, enquanto Shiva descobre que a mesma dinâmica resulta em erosão biológica. Ora, sob esse prisma, a produção econômica adquire um caráter destrutivo, para não dizer suicida, passa a ser produção de destruição.

Entretanto, o que Rifkin e Shiva vêem como um processo eminentemente negativo, assume, para aqueles que defendem o desenvolvimento em curso, uma positividade plena. Para eles, não haveria erosão mas transformação; não haveria perda, mas ganho; e em vez de destruição, construção. Surge, então, a pergunta: Como pode a erosão significar transformação positiva? A partir de que ponto de vista? Com base em que critérios? Seria possível argumentar que o mundo de Shiva e Rifkin não é o mesmo de que falam os promotores do capitalismo global: como se os primeiros falassem de um mundo que existe, enquanto os últimos, de um mundo que está por vir; mas tais mundos não se constituem como realidades estanques e opostas - como se a construção desse mundo novo pressupusesse a erosão do mundo existente ou, no mínimo, a sua redução.

Para perceber o mundo que está por vir, não basta porém compreender a "virada cultural" do capitalismo contemporâneo, isto é a plena incorporação da cultura ao sistema de mercado. Mais importante do que a transformação da cultura em mercadoria, parece ser a "virada cibernética" que selou a aliança entre o capital e a ciência e a tecnologia, e conferiu à tecnociência a função de motor de uma acumulação que vai tomar todo o mundo existente como matéria-prima à disposição do trabalho tecnocientífico.

"Virada cibernética" é o termo usado por Catherine Waldby para designar a mudança que se operou na lógica da técnica, apoiada na descrição que Donna Haraway faz das reciprocidades informacionais entre diferentes organismos, e entre organismos e técnica:

"(...) as ciências da comunicação e as biologias modernas são construídas por um movimento comum - a tradução do mundo para um problema de codificação, uma busca de uma linguagem comum na qual toda a resistência ao controle instrumental desapareça e toda a heterogeneidade possa ser submetida à desmontagem, à remontagem, ao investimento e à troca. (...) O mundo se encontra subdividido em fronteiras diferentemente permeáveis à informação. Esta nada mais é do que um tipo de elemento quantificável (unidade, base de unidade) que permite uma tradução universal, e, nesta medida, um poder instrumental desabrido." (Haraway, 1994, citada por Waldby, 2000:45).

Waldby percebe, portanto, a virada cibernética como esse "movimento comum" que se dá no campo da ciência e da técnica a partir do qual se instaura a possibilidade de abrir totalmente o mundo ao controle instrumental através da informação. Mas é evidente que essa possibilidade inaugurada dentro dos laboratórios a eles não se circunscreve. A virada cibernética não é apenas mudança na lógica da técnica: é mudança na lógica sócio-técnica.

O conceito de informação

Em texto recente Scott Lash observa que os sociólogos (principalmente Daniel Bell, Alain Touraine e Manuel Castells) têm entendido a sociedade informacional como aquela que se caracteriza pela produção intensiva de conhecimento e pela gama de bens e serviços pós-industriais produzidos. Mas tal caracterização lhe parece insuficiente:

"O que é chave na maneira como entendemos a sociedade informacional (...) é o foco nas qualidades primárias da própria informação. Aqui a informação deve ser entendida em forte contraste com outras categorias sócio-culturais anteriores como narrativa, discurso, monumento ou instituição. As qualidades primárias da informação são fluxo, disjunção, compressão espacial, relações em tempo real. Não é exclusivamente, mas principalmente nesse sentido que vivemos numa era da informação. Algumas pessoas têm denominado tais qualidades como modernismo tardio (Giddens, 1990), outras como pós-modernismo (Harvey, 1989), mas esses conceitos me parecem amorfos demais. A informação não é amorfa." (Lash, 2001)

O mérito de Lash, ao manifestar sua insatisfação, é apontar a centralidade do conceito de informação e, sobretudo, as qualidades primárias desta. Em seu entendimento, a questão-chave é entender o que é produzido na produção de informação não como bens e serviços ricos em informação, mas sim como mais ou menos bytes de informação fora de controle. Sua preocupação se volta, portanto, para os efeitos colaterais dos sistemas de transmissão de mensagens e o crescente impacto desses efeitos na economia, na política, nas relações de poder e, last but not least, no pensamento teórico sobre a sociedade. Mas embora sua caracterização das qualidades primárias da informação se funde na concepção cibernética da informação, não chega a discutir como esse conceito elaborado no campo da ciência e da técnica pode ser transplantado para o campo das Ciências Sociais.

Afinal, que informação é essa capaz de, por um lado, suscitar uma mudança radical na lógica da técnica e, por outro, impactar tão tremendamente a sociedade contemporânea, a ponto de justificar que se fale em era da informação e em sociedade informacional?

Na pequena fala introdutória à comunicação de Norbert Wiener no colóquio "Le concept d’information dans la science contemporaine", o filósofo Gilbert Simondon observa, a respeito da importância da publicação de Cybernetics, Theory of control and communications in the animal and the machine:

"Logo percebemos que se tratava de algo novo que trazia o ponto de partida de uma nova era de reflexões. Alguns pensaram que era a renovação do cartesianismo, outros perceberam que havia uma vontade de se constituir uma unidade das ciências, enquanto todo o início do século XX havia manifestado uma separação cada vez maior entre as especializações científicas; ocorreu que, após a Segunda Guerra Mundial, os no man’s lands entre as ciências, as boundary regions (...) eram consideradas como campos extremamente fecundos; e enquanto a especialização científica impedia as possibilidades de comunicação, nem que fosse por causa de linguagens diferentes entre especialistas de diferentes ciências, a cibernética, em contrapartida, resultava de vários homens trabalhando em equipe e tentando entender a linguagem uns dos outros. (...) a presença de médicos, de físicos e de matemáticos eminentíssimos nessa equipe mostrava que se produzia no campo das ciências algo que sem dúvida não havia existido desde Newton pois, como o senhor dizia, Newton pode ser considerado o último homem de ciência a haver coberto todo o campo da reflexão objetiva.(...) Com efeito, historicamente, a cibernética surgiu como algo novo, querendo instituir uma síntese." (Wiener, 1965:99-100)

As palavras de Simondon são importantes porque dão a medida da relevância da cibernética não só na evolução da atividade científica como também, e principalmente, no campo da reflexão como um todo. A elaboração de uma linguagem comum para além das especificidades dos diversos ramos do conhecimento científico e a instituição de uma nova síntese, só comparável à revolução newtoniana, indicavam que a teoria da informação parecia assumir um papel central no pensamento humano contemporâneo. E é isso que podemos depreender dos escritos do próprio Simondon quando, estudando a gênese do indivíduo físico e biológico, escreve:

"Seria preciso definir uma noção que fosse válida para pensar a individuação na natureza física tanto quanto na natureza viva, e em seguida para definir a diferenciação interna do ser vivo que prolonga sua individuação separando as funções vitais em fisiológicas e psíquicas. Ora, se retomamos o paradigma da tomada de forma tecnológica, encontramos uma noção que parece poder passar de uma ordem de realidade a outra, em razão de seu caráter puramente operatório, não vinculado a esta ou aquela matéria, e definindo-se unicamente em relação a um regime energético e estrutural: a noção de informação." (Simondon, 1964:250)

No entanto Simondon não podia limitar-se a adotar a noção de informação tal como havia sido desenvolvida por Norbert Wiener, pois esta concerne apenas a transmissão de um sinal através da modulação de energia. Ocorre que o sinal de informação não é exclusivamente o que deve ser transmitido, mas também o que deve ser recebido, isto é adquire um sentido, tem alguma eficácia para um todo que tem seu próprio jeito de funcionar. Mas tal significado não pode ser encontrado nem na saída nem na chegada: a informação só existe quando o emissor e o receptor do sinal formam um sistema, ela existe entre as duas metades de um sistema disparate até então. A informação é essa aptidão de relacionar que fornece uma resolução, uma integração; é a singularidade real através da qual uma energia potencial se atualiza, através da qual uma incompatibilidade é superada; a informação é a instituição de uma comunicação que contém uma quantidade energética e uma qualidade estrutural; "é aquilo através do qual a incompatibilidade do sistema não resolvido torna-se dimensão organizadora na resolução." (Simondon, 1964:15)

O paradigma tecnológico e a noção de informação permitiram que fosse pensada, a partir de um único referencial teórico, a ontogênese da individuação nos campos da física, da biologia e da tecnologia. Em cada um desses campos a invenção se dá quando a informação atua nessa realidade pré-individual, intermediária, que o filósofo denomina "o centro consistente do ser", essa realidade natural pré-vital tanto quanto pré-física, que testemunha uma certa continuidade entre o ser vivo e a matéria inerte e também atua na operação técnica. Como afirma Simondon:

"O objeto técnico, pensado e construído pelo homem, não se limita apenas a criar uma mediação entre o homem e a natureza; ele é um misto estável do humano e do natural, contém o humano e o natural (...) A atividade técnica (...) vincula o homem à natureza (...).(Simondon, 1969:245) "O ser técnico só pode ser definido em termos de informação e de transformação das diferentes espécies de energia ou de informação, isto é, de um lado como veículo de uma ação que vai do homem ao universo, e de outro como veículo de uma informação que vai do universo ao homem."(Simondon, 1989:283)

A análise de Simondon estabelece a informação como uma singularidade real que dá consistência à matéria inerte, ao ser vivo (planta, animal, homem), e ao objeto técnico. E não seria descabido aproximar a formulação do filósofo do luminoso enunciado de Gregory Bateson, que definiu a informação como "uma diferença que faz a diferença"(Bateson, 1987:40-41). Ora, a possibilidade de se conceber um substrato comum à matéria inerte, ao ser vivo e ao objeto técnico apaga progressivamente as fronteiras estabelecidas pela sociedade moderna entre natureza e cultura. Mais ainda: tudo se passa como se houvesse um plano de realidade em que matéria e espírito humano pudessem se encontrar e comunicar não como realidades exteriores postas em contacto, mas como sistemas que passam a se integrar num processo de resolução que é imanente ao próprio plano. Se a técnica é veículo de uma ação que vai do homem ao universo e de uma informação que vai do universo ao homem, é fator de resolução de um diálogo intenso no qual o que conta é a interação, o caráter produtivo do agenciamento, e não as partes pré-existentes. Na base da virada cibernética encontra-se, assim, a capacidade do homem de "falar" a linguagem do "centro consistente do ser", de aceder ao plano molecular do finito ilimitado no qual, lembrando Gilles Deleuze, um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações. (Deleuze, 1986:140)

Ocorre que o exercício desse diálogo intenso do homem com a natureza, essa implicação mútua num devir comum é percebida, ainda, inclusive e principalmente pelos próprios cientistas, em termos baconianos, isto é em termos de dominação irrestrita da natureza (inclusive da natureza humana) pelo homem. Vale dizer: em termos de extensão e intensificação extremas do controle instrumental. O que converte o diálogo num exercício de poder ainda movido por um pensamento que Simondon caracteriza como filosofia autocrática das técnicas, aquela que utiliza a máquina apenas como um meio para a conquista da natureza, aquela que visa a domesticação das forças naturais através de uma sujeição primeira: a máquina como um escravo que serve para fazer outros escravos. (Simondon, 1969:126-127)

Nesta perspectiva, a virada cibernética torna-se a quintessência do controle e da dominação ao converter o modo de acesso ao plano molecular do finito ilimitado, plano da informação digital e genética, em arma contra a natureza e as culturas, todas as culturas, à exceção da cultura tecnocientífica. O que provoca, evidentemente uma reação de alarme e de alerta contra o "estado de natureza cibernético" e o "estado de cultura cibernético", de que nos fala Hermínio Martins, no rastro de Serge Moscovici:

"No "estado de natureza cibernético", escreve o sociólogo da tecnologia, a "natureza"é natureza-como-informação. Ou seja, o pressuposto é que a natureza se encontra totalmente disponível aos processos de recuperação, processamento e armazenamento de informação, possibilitados pela máquina universal, ou machina machinarum, o computador eletrônico digital, programável, multi-usos e de alto rendimento." (Martins, 2000:22-23) "Se estamos já a viver dentro do horizonte do "estado de natureza cibernético", possível de sumariar adequadamente como "natureza-como-informação", podemos também dizer que estamos a moldar e a ser moldados, cada vez mais, por aquilo a que podemos chamar por analogia "estado de cultura cibernético", quando a cultura se torna cultura-como-informação. Isso é óbvio sobretudo no caso da cultura cognitiva paradigmática, a ciência natural ou tecnociência, embora se deva notar que, durante várias décadas esta cibernização da ciência esteve quase totalmente confinada à ciência militar (durante a Guerra Fria). (...) Diz-se hoje que, resultante de papéis cada vez mais numerosos (...), se fez muito mais do que juntar uma frente tecnológica adicional ao instrumentarium da investigação científica, pelo menos nas ciências físicas e da vida. Em vez disso, parece mais apropriado falar de nada menos do que a emergência de uma terceira forma de ciência, como tem sido sugerido por alguns investigadores." (idem, 25)

A virada cibernética, tal como está se dando, desqualifica portanto todas as culturas, inclusive a moderna, perante a cultura tecnocientífica porque prevalece o reducionismo do modelo baconiano. Mas precisaria haver oposição e conflito entre a cultura tecno-científica contemporânea e as outras? Toda a obra de Gilbert Simondon se desenvolve no sentido de demonstrar a necessidade de se repensar o paradigma tecnológico e o conceito de informação para além da filosofia autocrática das técnicas. Mas como parece não haver disposição para esse esforço, talvez convenha observar um pouco mais detidamente o que a prática tecnocientífica tem valorizado.

Conhecimento tecnocientífico e valor do controle

Estudando a relação entre ciência e tecnologia, o filósofo da ciência Hugh Lacey observa que o entendimento científico envolve a representação dos fenômenos como produtos de uma ordem subjacente e, portanto, a abstração dos fenômenos enquanto objetos de experiência, valor e prática. (Lacey, 1998:115) "O entendimento científico, diz ele, é obtido mediante práticas que envolvem tanto a observação dos fenômenos quanto a intervenção ativa sobre eles, práticas essas que são conduzidas sob aquilo que chamo de estratégias materialistas de restrição e seleção." (idem, 116) Por que - indaga Lacey - se engajar numa investigação conduzida segundo as estratégias materialistas de restrição e seleção? Entre as três respostas possíveis destaca-se a que corresponde aos interesses da utilidade baconiana: o entendimento obtido mediante as estratégias materialistas aumenta a capacidade humana de exercer controle sobre a natureza. O filósofo reconhece que é parte da natureza humana controlar a natureza; mas nota que na modernidade o controle assumiu em nossas vidas tamanha extensão, preeminência e centralidade que tornou-se um valor superior e virtualmente não subordinado.

"Conquistar o controle sobre a natureza tornou-se um valor social altamente estimado, não subordinado (...) a nenhum outro valor. (...) Não se trata de tomar, de uma forma inequívoca, o controle da natureza como se fosse um valor em seu próprio benefício. Ao contrário, via implementações e avanços tecnológicos, ele é tomado como capaz de servir a todos os valores sociais e ideais de florescimento humano viáveis e, a longo prazo, servir à ampliação do bem-estar humano em geral. O controle pode ser, portanto, considerado em abstração de seus vínculos com outros valores (...). (...) questões acerca do arranjo social viável e desejável e da ordem cósmica significativa tenderam a se tornar subordinadas ao valor de controle da natureza." (ibidem, 120-121)

No moderno esquema de valor do controle, continua Lacey, são valorizados acima de tudo a expansão da capacidade humana de controlar a natureza, o exercício do controle e a implementação de novas formas de controle; a eles devem submeter-se e adequar-se os projetos e instituições que expressam valores rivais. Por outro lado, valores sociais que tendem a manifestar-se nas mesmas instituições em que o controle se manifesta, como a propriedade privada, por exemplo, são reforçados por essa associação. De tal modo que o moderno esquema de valor do controle parece não encontrar limites, nem no mundo natural nem no mundo social.

Lacey vê uma afinidade eletiva entre as estratégias materialistas da pesquisa científica e a perspectiva moderna do controle. E escreve:

"O moderno esquema de valor do controle não pode se manifestar a não ser que o mundo seja passível de ser controlado pela ação humana. (...) se as coisas são ou podem vir a ser do modo como são representadas sob estratégias materialistas, elas podem tornar-se objetos de controle - contanto que possamos produzir e manipular diretamente os eventos relevantes e nos assegurarmos de que as condições de contorno relevantes permaneçam imutáveis (...). Eu não saberia dizer se todas as condições afirmadas pelo conhecimento tradicional podem ou não ser rearticuladas dentro do entendimento materialista. De qualquer forma, o entendimento materialista leva-nos ao conhecimento de conjuntos de condições que transcendem em muito as restrições tradicionais, tanto assim que na vida prática moderna é virtualmente incontestável que possíveis objetos de controle sejam considerados como objetos de entendimento materialista. O entendimento materialista apreende os objetos do modo como precisam ser apreendidos a fim de que se tornem objetos de controle." (ibidem, 125-126)

A análise de Lacey é relevante porque através dela percebe-se como se forja uma relação através da qual o mundo é para o controle, isto é como os fenômenos que se constituem enquanto objetos do entendimento materialista são virtualmente idênticos aos objetos de controle. Por outro lado, fica evidente como o conhecimento tradicional permanece à margem dessa relação e nem sequer é reconhecido. Finalmente, vale a pena salientar que essa identificação entre as estratégias materialistas da ciência e o mundo que elas pretendem controlar nutre a dialética entre os desenvolvimentos teórico e tecnológico dentro das instituições de pesquisa. Com efeito, para o filósofo, tal dialética só pode desdobrar-se em sociedades cujas instituições e políticas reconhecem e sancionam o moderno esquema de valor do controle - o que se torna particularmente acentuado com a ascendência do neoliberalismo.

Mas o quadro não seria completo se fosse deixada de lado a relevância da metafísica materialista. Escreve Lacey:

"Essa metafísica afirma que o mundo "realmente é" tal que todos os objetos nele presentes (inclusive os seres humanos) são inteiramente caracterizáveis por propriedades e relações materialistas (...), todos os fenômenos são inteiramente caracterizáveis sob o aspecto de sua produção pelas estruturas, processos e leis subjacentes, e as possibilidades das coisas são exauridas por suas possibilidades materiais. (...) Em princípio, todas as outras opções parecem estar excluídas, pois a metafísica materialista implica que nossas interações com o mundo não podem ser compreendidas de nenhum outro modo. Ela também sustenta que, onde as práticas de controle trazem consigo efeitos colaterais indesejáveis e inesperados, eles podem ser remediados por meio de intervenções de controle posteriores." (ibidem, 129-130)

O círculo se fecha. Ao que tudo indica não há alternativa ao conhecimento técnico e científico moderno, não há opção fora da metafísica e das estratégias materialistas, e muito menos do esquema de valor do controle. Como o próprio filósofo sublinha, sua explicação vincula internamente o entendimento materialista a este último. E no entanto, é voz corrente que a ciência não tem valores, é isenta. Como então conciliar tal aparente contradição?

O forte do trabalho de Lacey é confrontar a ciência moderna aos valores. O filósofo lembra que a concepção de que a ciência é livre de valores possui três componentes: imparcialidade, neutralidade e autonomia. Ora, sua demonstração rigorosa estabelece que a ciência, embora imparcial, não é neutra. Não cabe aqui acompanhar passo a passo sua argumentação. Mas é preciso reproduzir o momento exato em que esta flagra o modo como o próprio movimento da investigação científica rompe a neutralidade e faz valer o valor do controle contra os outros valores. Com a palavra Lacey:

"Poderíamos pôr a questão desse modo. Adotar as estratégias materialistas é efetivamente dispor numa ordem (...) os tipos de fenômenos e possibilidades que escolhemos investigar. Não há nada logicamente impróprio em valores sociais influenciarem fortemente essa escolha. Então, a aceitabilidade de teorias que almejem representar a estrutura causal desses fenômenos e sintetizar suas possibilidades é arbitrada por dados e valores cognitivos. O importante é manter separados (...) os papéis desempenhados pelos valores sociais e cognitivos. Os papéis de cada um deles são desempenhados em momentos (lógicos) diferentes. Se a resposta à questão "Por que essa teoria é aceita?" inclui apelo a valores sociais (...) ao lado, ou em lugar, de valores cognitivos e dados, então a teoria não é corretamente aceita. (...) Por outro lado, a resposta à pergunta "Por que a comunidade científica investiga teorias alinhadas a certas estratégias de seleção e restrição?" incluiria tipicamente referências a valores sociais (...). É importante, então, manter separados os papéis desempenhados pelos valores sociais e pelos valores cognitivos e o {papel} dos valores sociais confinado ao seu lugar próprio. Mas, desde que os valores sociais desempenhem algum papel, segue-se que teorias podem não ser neutras, pelo menos no sentido de serem acessíveis à adoção prática independentemente dos valores adotados. Pois as possibilidades sintetizadas numa teoria podem simplesmente não ser de nenhum interesse em práticas que expressam valores diferentes daqueles vinculados às estratégias geradoras da teoria; assim como as possibilidades do controle comportamental humano não são de nenhum interesse em práticas de genuíno diálogo, e as possibilidades de aumentar as áreas de cultivo, que envolvam também a transformação de semente em mercadoria (...) não são de nenhum interesse onde os valores sociais vigentes num grupo enfatizam a intensificação do bem-estar, da ação humana e da comunidade. Assim, as possibilidades sintetizadas em algumas teorias sujeitas às restrições de estratégias materialistas podem ser de pequeno interesse fora dos esquemas de valor que se manifestam em interação com o moderno esquema de valor do controle. Retomemos a questão do florescimento humano, que guarda - na minha opinião - a pedra de toque de toda prática e de toda investigação. Do ponto de vista moderno, o esquema de valor do controle propõe-se a intensificar o florescimento humano. Mas isso é contestado, por ex., pelos proponentes de perspectivas feministas, ambientalistas e, especialmente, dos movimentos populares e de base disseminados pelo mundo empobrecido. Meu enfoque incide sobre os últimos." (ibidem, 135-136)

Em resumo: o valor do controle, pilar da teoria e da prática científicas, não é universal, não há consenso sobre a sua supremacia. O que significa que a opção pelo desenvolvimento da ciência e da técnica modernas como opção pelo controle crescente da natureza, vista de outras perspectivas, torna-se objeto de controvérsia. A ciência escolhe o que vai estudar objetivamente, segundo valores cognitivos; mas tal escolha sempre já pressupôs que o valor do controle é indiscutível como forma de florescimento humano...

Biodiversidade, cultura tecnocientífica e culturas tradicionais

Uma vez quebrada a neutralidade da ciência e posto em questão o valor do controle, Hugh Lacey vai aprofundar a discussão examinando as relações entre ciência e desenvolvimento para indagar da possibilidade de uma alternativa, tomando como exemplo o caso da agricultura, tal como é concebida pela Revolução Verde e a revolução biotecnológica, por um lado, e pela agroecologia, por outro. (ibidem, 141-151); (Lacey, 2000, 2001) Ora, tal problemática encontra forte ressonância nas análises de Shiv Visvanathan.

Com efeito, num texto instigante, o sociólogo indiano concebe a ciência como um modo de violência exercido pelo Estado Laboratorial, cujo projeto foi pensado pela tríade Bacon-Descartes-Hobbes e se sustenta em quatro teses:

"1. O projeto hobbesiano, cuja concepção da sociedade baseia-se no método científico;

2. Os imperativos do progresso, que legitimam o uso da engenharia social em todos os objetos definidos como antiquados ou atrasados;

3. O mandato vivisecional, no qual o "Outro" torna-se objeto de experimentação que é essencialmente violência, e no qual a dor é inflingida em nome da ciência;

4.A idéia de triagem, que combina os conceitos de experimento racional, obsolescência e vivisecção - e por meio da qual uma sociedade, uma subcultura ou uma espécie é taxada de obsoleta e condenada à morte porque o julgamento racional a considera incurável." (Visvanathan, 1997:17)

No entender de Visvanathan, a conjunção das quatro teses faz do projeto do Estado Laboratorial um projeto genocida (idem, 17) e do desenvolvimento moderno "desenvolvimento-como-terrorismo". (ibidem, 46) Que se tome por exemplo a questão da agricultura, objeto de estudo do autor num outro ensaio do mesmo livro: Como a cultura tecnocientífica moderna trata a biodiversidade e as culturas tradicionais que há milênios vêm desenvolvendo métodos e práticas de cultivo? Visvanathan explora o caráter destrutivo da Revolução Verde, com seu empenho feroz em desrespeitar os ritmos da natureza e desqualificar os saberes, as práticas e as inovações das culturas tradicionais; mas o que chama mesmo a atenção em sua análise, é a maneira como lê os biólogos modernos, entre eles, o grande "defensor" da biodiversidade, Edward Wilson. Que se tome, por exemplo, a floresta em Biophilia, de Edward Wilson.

"A floresta não é uma "morada", no sentido heideggeriano ou até mesmo tribal - escreve o sociólogo. Wilson habita a floresta mas não mora nela, alimentando-a, preservando-a ou meramente observando o seu desdobrar-se: ele a habita como biólogo de campo. Como um todo a floresta não existe. Sente-se que até mesmo antes de ter entrado nela, já foi equacionada dentro de um conjunto de programas de pesquisa. Em Biophilia há uma percepção fragmentada da perda da floresta. Há, primeiro, o perigo do homem precisar biologicamente da floresta, e há também a ameaça ao constante avanço da ciência. Para cientistas como Wilson, a floresta é literalmente uma fonte mágica que a ciência pode explorar indefinidamente. A floresta é informação. (...) Sente-se intuitivamente (...) que Wilson sofre do que o filósofo Richard Bernstein denominou "ansiedade cartesiana", a necessidade imediata de abrir a floresta ou qualquer outro objeto ao olhar científico. O modo como o cientista lê a floresta a recorta imediatamente na certeza de uma série de campos visuais através do mapeamento, da sondagem, do censo, da lente de aumento e do microscópio. (...) Em segundo lugar, o que aparece como uma série de discretos bits de informação é então organizado em um enorme sistema de informação chamado ciência. A perda da floresta abre uma série de buracos gigantescos nesse sistema cibernético. (Apesar da eloquência da linguagem) o sentimento em relação à floresta se perde entre o enquadramento cibernético e o olhar cartesiano." (ibidem, 54)

Wilson considera que a extinção de espécies e a perda da variabilidade genética são o que de pior pode nos acontecer, uma vez que a evolução levaria milhões de anos para corrigi-las. E no entanto, observa Visvanathan, a ciência parece não lamentar essa morte cotidiana, parece não ter ritual algum para fazer esse luto: a concepção científica do tempo não lhe permitiria lidar com as diferentes temporalidades da ecologia e esta, por sua vez, exigiria um deslindamento das noções de tempo contidas em conceitos como extinção, morte, obsolescência, memória; em suma: um deslindamento do modo como a ciência relaciona-se com a natureza e as outras culturas. Concebida como um sistema de informação na ótica reducionista, a floresta só tem interesse enquanto ainda não foi abstraída, classificada, conhecida. O que não se percebe, é o quanto essa concepção mesma facilita o processo de extinção.

Segunda Parte

A luta pelo acesso à biodiversidade e ao conhecimento

A primeira parte deste texto buscou caracterizar o alcance que a virada cibernética assume na sociedade contemporânea e como o conceito de informação torna-se central nas relações que a tecnociência estabelece não só com a natureza, mas também com as outras culturas. Cabe agora, nesta segunda parte, mostrar como ao longo de toda a década de 90 se desenrolou o conflito entre concepções diferentes a respeito do acesso e do uso da biodiversidade e do conhecimento tradicional a ela associado.

Como todos sabem, em meados da década de 80 o desmatamento propulsou a floresta amazônica para o centro do debate ecológico mundial, e na verdade foi ele quem suscitou o próprio conceito de biodiversidade, engendrando uma nova questão. É que, de repente, o mundo todo descobria que as florestas tropicais concentram os habitats mais ricos em espécies do planeta, ao mesmo tempo em que descobria que elas correm o maior risco de extinção. Por outro lado os avanços da tecnociência, e particularmente da biotecnologia, começavam a explicitar a importância que os recursos genéticos estavam destinados a desempenhar na economia do futuro. Assim, antes mesmo da Rio-92 já estava colocada a questão do acesso.

Num texto de 1993, em que tentei demonstrar porque a política ambiental brasileira encontrava-se numa encruzilhada, deixei registrado que a chamada "guerra dos genes" manifestara-se já nas reuniões preparatórias da conferência do Rio. (Santos, 1994:152 e ss.) Naquela época, os países desenvolvidos sustentavam a tese do livre acesso aos recursos genéticos, argumentando que plantas e animais são res nullius e que a biodiversidade é res communis, isto é, que sendo de todos, não é propriedade de ninguém. O Brasil defendia, obviamente, a tese de que o acesso deveria ser regulamentado por acordo, a critério do país que possui a biodiversidade, baseando-se no princípio do direito soberano do Estado sobre os recursos naturais localizados em seu território. Para os diplomatas brasileiros, se os recursos genéticos fossem "patrimônio global", também deveriam sê-lo os frutos decorrentes da própria existência e transformação do patrimônio genético. Resumindo: o acesso aos recursos genéticos deveria corresponder à transferência de biotecnologia e de outros tipos de tecnologia que colaborassem na conservação.

Como todos também sabem a Convenção sobre Diversidade Biológica consagrou, na própria Rio-92, a soberania dos países sobre os recursos genéticos. Entretanto, no dia seguinte ao encerramento da conferência, o mesmo Presidente Collor que assinara o acordo multilateral, enviou ao Congresso um projeto de lei de patentes que procurava abrir o acesso à biodiversidade sem nenhuma compensação... O projeto de lei sofreu amplas críticas da oposição, das organizações não-governamentais, da comunidade científica, da indústria farmacêutica nacional, dos sindicatos, da Igreja Católica e até mesmo de algumas instituições de pesquisa estatais - desde fevereiro de 1992, a sociedade civil organizada constituíra o Forum pela Liberdade do Uso do Conhecimento, que concebia a questão como uma guerra comercial e tentava bloquear a adoção de uma lei que autorizasse o patenteamento de alimentos, de remédios e, sobretudo, de seres vivos. Por sua vez, os exportadores brasileiros, as corporações transnacionais, boa parte da mídia e da alta administração federal defenderam uma lei permissiva, enquanto os Estados Unidos exerciam forte pressão e ameaçavam com novas sanções a entrada de produtos brasileiros no mercado americano. Finalmente, a 6 de maio de 1993, num contexto de abertura do mercado brasileiro à globalização, foi aprovada pela Câmara dos Deputados uma nova lei de Propriedade Industrial que embora proibisse o patenteamento de plantas e animais, permitia o patenteamento de microorganismos, "desde que sua utilização se dê unicamente para um determinado processo que gera um produto específico", o que ficou conhecido como "patente virtual". Sancionada posteriormente pelo Senado Federal, a lei de patentes instituiu a proteção do acesso aos processos e produtos gerados pela tecnociência, e particularmente pela indústria da biotecnologia. (Santos, 1998:29) Faltava regulamentar o acesso aos recursos genéticos.

David Hathaway, da organização não-governamental AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa), que acompanhou todo o processo no Legislativo, observa que as autoridades brasileiras e os políticos governistas recusaram-se terminantemente a discutir as implicações do patenteamento de processos biotecnológicos usados para pesquisar, desenvolver e usar os recursos genéticos, preocupados que estavam em satisfazer os interesses das corporações transnacionais; e acrescenta que, em contrapartida, o governo não tinha plano algum de regular o acesso. (Hathaway, 1993:2-3) Tal descaso prevaleceu durante anos, o que não deixa de ser no mínimo curioso, se pensarmos que o Brasil é o país número 1 em megadiversidade! Entretanto, alguns setores do movimento ambientalista (como o Instituto SocioAmbiental e a AS-PTA) não pensavam assim e procuraram despertar a sociedade civil brasileira para a importância da questão da socio e da biodiversidade. Parece-me que, dentre as diversas iniciativas nessa época, acabou assumindo alguma relevância a participação de David Hathaway e do autor deste texto na "International Conference on Redefining the Life Sciences", promovida pela ong The Third World Network em Penang, na Malásia, de 5 a 12 de Julho de 1994.

A conferência convidava os participantes a deslocarem o eixo da discussão sobre a perda da biodiversidade, a mover o foco do Sul para o Norte, isto é da relação entre erosão genética e subdesenvolvimento para erosão e desenvolvimento; mais ainda: trocava a discussão das velhas causas da exploração insustentável dos recursos naturais (ação das madeireiras, garimpagem, agro-pecuária extensiva) pela consideração da nova força predatória. A mudança de enfoque permitia perceber que a nova predação era high tech, pois manifestava-se através da ciência, cujo desenvolvimento favorecia uma sistematização extremamente operativa do conhecimento sobre a vida; através da biotecnologia, cuja performance implica no projeto de transformar os seres vivos em matéria-prima; e através dos direitos de propriedade intelectual, cujos sistema legal procura conferir legitimidade à apropriação econômica dos princípios ativos dos seres vivos. Assim, a mudança de enfoque implicava em admitir que era mais importante preparar-se para combater a violência high tech do que limitar-se a lutar contra as velhas práticas extrativas, na medida em que a força predatória parecia agora nutrir-se diretamente da diversidade das formas de vida para poder continuar se expandindo e se revolucionando. (Santos, 1994)

No meio ambientalista era evidente a necessidade de resistir ao patenteamento da vida. Entretanto, isso não parecia suficiente. No Brasil o prestígio da ciência e da biotecnologia permaneciam intactos e era perturbador constatar que boa parte daqueles que combatiam o sistema de patentes reivindicavam para o país o direito de explorar a biodiversidade segundo os mesmos critérios. Isto é: no Brasil a nova lei de propriedade intelectual era combatida em nome do mesmo projeto moderno de exploração da natureza, que ignorava o valor do conhecimento tradicional dos povos indígenas e o seu direito de conservar, usar e desenvolver a biodiversidade. Ora, era exatamente esta questão que vários participantes da conferência, principalmente Vandana Shiva, da Índia, Tewolde Egziabher, da Etiópia, e Gurdial Singh Nijar, da Malásia, pretendiam debater.

Com efeito, em sua intervenção no encontro de Penang, o advogado Gurdial Nijar retomou as questões centrais do paper que preparara para a Segunda Sessão da Comissão Intergovernamental da Convenção sobre Diversidade Biológica, reunida em Nairobi no final de junho do mesmo ano. (Nijar, 1994) Sua apresentação articulava, de modo brilhante, 1) as relações entre os sistemas de conhecimento dos povos indígenas e comunidades e a proteção da biodiversidade; 2) a evolução das discussões nos foros internacionais que afetavam o reconhecimento dos direitos das nações, dos agricultores e dos povos indígenas no tocante à biodiversidade; 3) a busca de uma moldura legal que permitisse a regulação do acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado; 4) a luta contra o patenteamento das formas de vida; 5) a questão da biossegurança. Para muitos dos presentes era a primeira vez que a problemática se descortinava com suas principais implicações nos planos local, nacional e internacional. Mas o advogado da Third World Network não trazia apenas um profundo entendimento dela: a análise desembocava numa proposta que ele estava interessado em discutir principalmente com os participantes procedentes dos países ricos em biodiversidade.

Gurdial partia da constatação de que ao longo da história a biodiversidade tem sido compartilhada como um bem comum pelas comunidades locais, que trocam livremente tanto os recursos quanto o conhecimento sobre eles. Em seu entender, a biodiversidade e os diversos sistemas locais de conhecimento entretêm uma relação simbiótica: as pessoas vivem da natureza ao mesmo tempo em que ajudam-na a se desenvolver, o que se expressa tanto no manejo das florestas quanto na agricultura tradicional. Entretanto, tal relação é quebrada pela agricultura comercial moderna, que favorece a monocultura, a uniformidade e a produtividade - a simbiose dá lugar à erosão, tanto da diversidade biológica quanto do conhecimento. Torna-se, portanto, crucial entender o vínculo entre a preservação da biodiversidade e o conhecimento e as práticas das populações locais, em suma sua compreensão e sua ética de conservação. E como não seria possível proteger a primeira sem defender os últimos, Gurdial propõe que ambos sejam considerados em conjunto pela legislação.

Ao reconhecer os direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais o art. 15 da Convenção sobre Diversidade Biológica descartou o princípio do "patrimônio comum", ao mesmo tempo em que determinava que os Estados procurassem criar condições "para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável", respeitando os três objetivos da Convenção: conservação da biodiversidade, uso sustentável de seus componentes, e repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos. Finalmente, a Convenção reconhecia que tanto o acesso quanto a transferência de tecnologia são essenciais para que os objetivos sejam atingidos. Mas examinando detidamente o art. 16, Gurdial concluiu que sua redação "está longe de ser clara, estando portanto aberta à interpretação e definição". (idem, 9) Ora, tal artigo versa sobre a questão da propriedade intelectual. O artigo 16.2 estabelece uma distinção entre tecnologias patenteadas e não patenteadas. "No caso de tecnologia sujeita a patentes e outros direitos de propriedade intelectual, o acesso à tecnologia e sua transferência devem ser permitidos em condições que reconheçam e sejam compatíveis com a adequada e efetiva proteção dos direitos de propriedade intelectual." Mas as tecnologias não patenteadas não têm a mesma proteção. Em seu famoso artigo 8.j, a Convenção recomenda que cada Parte "deve, na medida do possível e conforme o caso", "em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas." Como ficaria, então, a proteção das tecnologias não patenteadas?

"O que emerge de uma revisão dos desdobramentos internacionais e dos debates, escreve Gurdial, é que há um reconhecimento de que os direitos dos agricultores e dos povos indígenas são essenciais para a conservação e a proteção da biodiversidade e isso emana do reconhecimento de seus diversos sistemas de conhecimento e inovação no melhoramento e utilização dos recursos biológicos; e que a eqüidade requer uma partilha dos benefícios. Entretanto, o que também emerge claramente é que os mecanismos internacionais não apoiam inteiramente tal entendimento. A busca por uma moldura legal coerente que faça esse entendimento avançar é, assim, de crucial importância para a preservação e proteção desses valores críticos." (Nijar, 1994:9)

Explorando as brechas dos mecanismos internacionais que de uma ou outra maneira afetam a questão do acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento associado, Gurdial propôs então a adoção de um regime de proteção sui generis que, contrapondo-se aos direitos de propriedade intelectual, contemplasse os direitos intelectuais dos povos indígenas e das comunidades locais. Vejamos como se fundamenta sua proposta:

"Os regimes de Direitos de Propriedade Intelectual existentes dão ao detentor do direito um direito de monopólio exclusivo para restringir o uso (através da cópia, da adaptação, da distribuição) da informação incorporada na matéria em questão. O direito de usar essa informação pode então ser vendido, ou seus usos específicos licenciados. Assim, os Direitos de Propriedade Intelectual protegem a informação intangível. A principal vantagem econômica resultante da propriedade intelectual é essa capacidade de licenciar, em troca de "royalties", o múltiplo e contínuo uso do mesmo pedaço de informação." (idem, 15)

Gurdial lembra que os acordos TRIPs obrigam os países membros da Organização Mundial de Comércio a assegurar a proteção de variedades de plantas através de um sistema de patentes ou de um efetivo sistema sui generis, ou uma combinação de ambos. A questão que se coloca é: Como interpretar o termo "efetivo"? Se o lermos tal como figura na Seção 301 do Trade and Competitiveness Act dos Estados Unidos, o termo reforça a proteção patentária; mas "efetivo" também pode significar coerente e consistente com o espírito e os termos da Convenção sobre Diversidade Biológica, que conclama as Partes a criarem "condições para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável" (art. 15.2), a respeitarem, preservarem e manterem o conhecimento, inovações e práticas dos povos indígenas e comunidades locais (art. 8.j), e a estimularem o desenvolvimento e a utilização de tecnologias indígenas e tradicionais (art. 18.4).

Trabalhando com os parâmetros da Organização Mundial de Comércio e da Convenção sobre Diversidade Biológica, Gurdial sugeriu que um regime sui generis de proteção de "direitos intelectuais comunitários":

. admitisse uma definição alternativa de sistemas de conhecimento, capaz de reconhecer o sistema de inovação informal, coletivo e cumulativo dos povos indígenas e comunidades locais;

. definisse inovação de tal modo que esta incluísse não só o produto final melhorado tecnologicamente mas também o conhecimento relativo ao uso de propriedades, valores e processos de qualquer recurso biológico, bem como qualquer variedade de planta ou qualquer planta (ou parte dela). Tal definição também deveria ser suficientemente ampla para incluir qualquer alteração, modificação, melhoramento ou obtenção de derivados que utilizam o conhecimento de grupos indígenas ou comunidades na comercialização de qualquer produto, bem como incluir qualquer processo mais sofisticado para extração, isolamento e sintetização de agentes químicos nos extratos biológicos e nos compostos usados pelos povos indígenas;

. transformasse os povos indígenas e comunidades locais em guardiães dessas inovações, definindo tais direitos como "não exclusivos" e "não monopolísticos" e encorajando o uso e intercâmbio livres e não comerciais;

. permitisse que tais direitos fossem assegurados em comum com outros povos indígenas e comunidades. (idem, 16)

Assim Gurdial justificava a adoção do regime sui generis:

"O processo evolutivo foi na verdade usado a serviço do capitalismo industrial. O sistema de propriedade intelectual do século 19 foi um produto da revolução industrial e da incapacidade da lei de propriedade usual de proteger as idéias dos inventores mecânicos. Os direitos dos melhoristas de plantas são um produto do desenvolvimento da genética mendeliana no século 20 e da incapacidade dos sistemas de propriedade intelectual de protegerem a idéia dos criadores. Do mesmo modo, os direitos comunitários (...) são um produto da era da biotecnologia e da incapacidade dos outros sistemas, no contexto das novas biotecnologias, de protegerem as idéias dos inventores informais."(ibidem, 16)

Gurdial salientava que o objetivo principal de sua proposta era evitar a privatização e a usurpação dos direitos comunitários e do conhecimento através das definições de inovação existentes. Em meu entender, sua concepção lúcida da relação predatória que a tecnociência estava estabelecendo com o conhecimento tradicional levava-o a perceber que tudo se articulava em torno dos termos "propriedade" e "inovação". Por isso mesmo, sua proposta de um regime sui generis excluía a possibilidade do conhecimento tradicional ser apropriado exclusivamente e redefinia o conceito de inovação, para que este pudesse refletir o caráter único da produção de conhecimento pelos povos indígenas e comunidades locais:

"A palavra "propriedade" foi deliberadamente excluída (...) na descrição dos sistemas de conhecimento das comunidades. Os direitos de propriedade na expressão "direitos de propriedade intelectual", tal como entendida hoje, conotam a transformação em mercadoria e a posse em mãos particulares, antes de tudo para a troca comercial. A totalidade dos elementos da relação que a comunidade mantém com seu conhecimento não é transformável em mercadoria por ser comunitariamente "possuída" e compartilhada. A soma total do conhecimento que é cumulativo e tem valor (mas não é privatizado) é melhor descrita pela expressão "direitos intelectuais da comunidade". O termo "inovação" é definido compreensivamente e reconhece o direito coletivo no conhecimento tradicional dos povos indígenas. Para o mundo exterior tal conhecimento é realmente novo e os povos indígenas são considerados como tendo inovado coletivamente. Embora os indivíduos que originalmente descobriram e usaram o conhecimento tenham vivido há muito tempo, o grupo indígena que manteve o conhecimento descoberto em seu meio deve ser considerado como inovador. (...) Em todo caso o conhecimento é contínuo na medida em que ele se modifica, se adapta e se constrói sobre o conhecimento existente."(ibidem, 17)

A oposição radical ao patenteamento da vida e a defesa dos recursos genéticos dos povos indígenas e das comunidades locais que tivessem incorporado o conhecimento, as inovações e as práticas tradicionais ressoou em todos aqueles que viam a predação high tech como uma espécie de derradeira espoliação. Não só pelo conteúdo crítico da proposta de Gurdial, mas principalmente porque ele propunha argumentos e uma agenda positiva que se contrapunham aos interesses e às armadilhas jurídicas formulados pelos funcionários dos Estados e pelos advogados das corporações para regulamentar nas legislações nacionais a questão do acesso aos recursos genéticos. Além disso, sua concepção de um regime sui generis, ao vincular proteção e acesso, conferia um conteúdo preciso ao exercício da soberania nacional sobre os recursos biológicos. A soberania deixava de ser uma aspiração meramente retórica, na medida em que o Estado nacional se colocaria como a instância que garante as condições de conservação e uso sustentável dos recursos, uma distribuição equitativa dos benefícios provenientes de sua utilização industrial e, acima de tudo, a impossibilidade de sua apropriação exclusiva e monopolística, que lesaria as comunidades e o país. Protegendo as comunidades contra a biopirataria e regulando o acesso aos recursos biológicos, o Estado imporia limites à tentativa de apropriação da vida que, como já foi dito, deve acelerar a erosão da biodiversidade. Por isso mesmo, a proposta da Third World Network como um todo foi acolhida com tanto interesse em várias regiões do Terceiro Mundo, passando a ser discutida em todos os países latino-americanos de grande biodiversidade: Colômbia, Equador, Venezuela, Perú, Bolívia, e last but not least, Brasil.

A preocupação com a dimensão socioambiental do acesso

Vandana Shiva, Tewolde Egziabher e Gurdial Nijar, elaboraram a proposta de direitos intelectuais coletivos porque sentiram que a tendência nos foros internacionais era favorecer o regime de propriedade intelectual, mas também porque perceberam que os países ricos em biodiversidade não deveriam esperar que uma moldura legal internacional fosse feita para depois se enquadrarem nela; muito ao contrário, pensavam eles que cabia aos países do Sul a iniciativa de formular soluções novas em suas legislações nacionais, para defenderem sua riqueza biológica e cultural.

A idéia de uma legislação que protegesse os direitos intelectuais coletivos através de um regime sui generis contagiou alguns grupos na América Latina. Depois de discuti-la num amplo processo de consulta a comunidades indígenas, negras e ongs, o Grupo Ad Hoc de Biodiversidad da Colômbia elaborou um projeto-de-lei de biodiversidade. (Holguín, 1996:118-176) Retomando a questão no contexto brasileiro, a senadora Marina Silva apresentou no Senado Federal o projeto-de-lei 306/95, que recolhia as contribuições das ongs brasileiras e a discussão colombiana.

Tanto na Colômbia quanto no Brasil, o ponto de partida para o debate sobre direitos intelectuais coletivos foi o reconhecimento da diferença entre as culturas. Com efeito, só é possível pensar tais direitos se o Estado e a sociedade nacionais reconhecem juridicamente o caráter único das populações tradicionais. Isso se deu na Constituição colombiana de 1991, que reconheceu o caráter pluri-étnico e pluri-cultural da nação, e se deu na Constituição brasileira de 1988, que reconheceu como "direitos coletivos", entre outros, o direito à sociodiversidade (art. 215.1), o direito ao patrimônio cultural (art. 216), o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), e o direito à biodiversidade (art. 225).

O jurista Carlos F. Marés de Souza Filho define direitos coletivos como aqueles que

"têm como principal característica o fato de sua titularidade não ser individualizada, de não se ter ou não poder ter clareza sobre ela. (...) esta característica os afasta do conceito de direito individual concebido em sua integridade na cultura contratualista ou constitucionalista do século XIX, porque é um direito sem sujeito! Ou dito, de maneira que parece ainda mais confusa para o pensamento individualista, é um direito onde todos são sujeitos. Se todos são sujeitos do mesmo direito, todos têm dele disponibilidade, mas, ao mesmo tempo, ninguém pode dele dispor, contrariando-o, porque a disposição de um seria violar o direito de todos." (Souza Filho, 1999:176)

Carlos Marés observa que a partir da Constituição de 88 ficou integrada ao ordenamento jurídico esta nova classe de direitos, embora a doutrina e a jurisprudência ainda relutem em tratá-los por este nome. Isso significa que apesar de já existir um quadro formal no qual os direitos coletivos se inscrevem, há ainda todo um caminho a ser percorrido para transformar a sua existência legal em existência efetiva. Por outro lado, essa mesma constituição consagrou algo da maior importância para a formulação de direitos intelectuais coletivos, a saber o art. 231 do Cap. VII que reconhece os "direitos originários" das sociedades indígenas às terras que tradicionalmente ocupam. Ora, os direitos originários apresentam duas características importantíssimas para o que estamos tratando: em primeiro lugar, são direitos coletivos que concernem comunidades e/ou sociedades; em segundo, neles a terra não é concebida como propriedade dos índios: a terra é da União, mas seu usufruto permanente, inalienável e imprescritível permanece com as comunidades e/ou sociedades. Seria conveniente explorar a articulação entre os direitos intelectuais coletivos e os direitos originários das sociedades indígenas à terra, como maneira de ancorar, num todo legal e coerente, terra, conhecimentos e inovação. Se fosse o caso de realmente proteger a biodiversidade e seus recursos, e de efetivamente respeitar o direito à sociodiversidade, esta talvez fosse a melhor alternativa. No entanto, ela não foi explorada.

Em meados dos anos 90, quando a senadora Marina Silva apresentou seu projeto-de-lei, quem desejava lutar por lei que protegesse a biodiversidade e o conhecimento a ela associado precisava discutir a opção pelos direitos de propriedade intelectual ou pelos direitos intelectuais coletivos; além disso, tinha de enfrentar de modo crítico e inventivo as relações dessa lei com uma lei de patentes permissiva, com um projeto de lei de cultivares que pretendia estender direitos similares aos das patentes (como de fato ocorreu posteriormente), e com o projeto-de-lei sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas que deveria substituir o Estatuto do Índio, obsoleto em relação aos avanços da Constituição de 88 e que previa o reconhecimento da propriedade intelectual coletiva, assegurando inclusive às comunidades o direito de requererem patente de invenção com base em seus conhecimentos tradicionais coletivos. Ficava portanto evidente a centralidade do conflito entre direitos de propriedade intelectual x direitos intelectuais coletivos. Ora, naquela época não havia, como até hoje ainda não há, muita clareza quanto a isso.

Vejamos sua proposta. Antes de tudo, convém assinalar que coube a uma mulher, do estado do Acre, senadora do Partido dos Trabalhadores e militante dos movimentos sociais e ambientais da Amazônia, companheira de Chico Mendes nos "empates" (essas ações temerárias em que homens e mulheres da floresta agarravam-se às seringueiras para impedir o desmatamento) introduzir no Parlamento brasileiro a importância da proteção da biodiversidade e do conhecimento tradicional. Protocolado no Senado a 26 de outubro de 1995, o projeto-de-lei no. 306/95 abriu oficialmente a discussão de um tema que, até então, era uma gritante não-questão. Na exposição de motivos que justificava sua iniciativa, Marina Silva ia direto ao ponto: "biodiversidade é poder. Lembrem-se, a esse respeito, polêmicas acirradas que hoje condicionam relações internacionais - de que é exemplo paradigmático a regulamentação jurídica do patenteamento genético - e que estão afetas ao campo da biodiversidade." (Silva, 1996:15)

O projeto da senadora Marina Silva era um convite à participação da sociedade civil e para tanto foram organizadas audiências públicas sobre ele em Brasília, São Paulo e Manaus. Retomando em seu artigo 1º a determinação constitucional de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país, o projeto afirmava que tal preservação deveria atender a oito princípios: soberania sobre os recursos; participação das comunidades locais e dos povos indígenas nas decisões; participação nacional e local nos benefícios decorrentes do acesso; prioridade para empreendimentos realizados em território nacional; promoção e apoio às distintas formas de geração de conhecimentos e tecnologias; proteção e incentivo à diversidade cultural, valorizando-se os conhecimentos, inovações e práticas das comunidades locais; biossegurança; garantia dos direitos individuais e coletivos sobre os conhecimentos associados à biodiversidade. O projeto evidenciava, portanto, uma preocupação socioambiental muito forte e uma subordinação do interesse econômico aos três pontos básicos enunciados no preâmbulo da Convenção sobre a Diversidade Biológica: conservação da biodiversidade, utilização sustentável de seus componentes e repartição justa e eqüitativa dos benefícios. Por outro lado, articulando bio e sociodiversidade, Marina Silva dedicava todo o Capítulo IV à proteção do conhecimento. Mas o fazia através da noção de direitos coletivos de propriedade intelectual, a serem regulamentados em legislação posterior. A necessidade de uma proteção específica que contemplasse o conhecimento de povos indígenas e comunidades locais era afirmada, mas deixava-se para a sociedade discutir a forma como isso deveria se dar. E no momento, parecia que a propriedade intelectual coletiva era o máximo que se podia conceber no contexto brasileiro: o próprio autor do presente texto, em carta à senadora a 8 de novembro de 1995, comentava os diferentes artigos e sugeria que a lei consagrasse "direitos de propriedade intelectual sui generis" (?!), o que refletia o ainda precário e confuso entendimento da proposta da Third World Network...

Tal equívoco perdurou. Em outubro de 1997 foi aprovado no estado do Acre um projeto-de-lei sobre acesso a recursos genéticos inspirado no da senadora Marina Silva, que em seu art. 41 reconhece e protege "os direitos das comunidades locais de se beneficiarem coletivamente por suas tradições e conhecimentos e de serem compensadas pela conservação dos recursos biológicos e genéticos, seja mediante direitos de propriedade intelectual ou de outros mecanismos". A lei não reconhece direitos individuais de propriedade intelectual relativos a recursos genéticos quando foi utilizado conhecimento coletivo de comunidades locais; mas a noção de direitos coletivos de propriedade intelectual convive com o direito intelectual coletivo. (Projeto-de-lei n. 15/97 do Estado do Acre) Já a lei do Amapá (o único estado brasileiro que tem um plano governamental de desenvolvimento sustentável), aprovada em 29 de outubro de 1997, assegura "remuneração por acesso aos direitos intelectuais coletivos" (sic) das comunidades tradicionais, indígenas entre outras. (Projeto-de-lei n. 0039/97 do Estado do Amapá). Também do final de 1997 é o Substitutivo do senador Osmar Dias, que reformulou substancialmente o projeto-de-lei no. 306/95 deslocando a ênfase do plano local para o nacional, esvaziando a dimensão socioambiental e conferindo primazia ao sentido econômico, para não dizer puramente comercial, do acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento associado. Com efeito, logo de saída, já no art. 2, o Substitutivo considera os recursos genéticos e produtos derivados bens públicos de uso especial, o que provocou grande controvérsia entre juristas, ambientalistas e indigenistas porque a titularidade dos bens, assim formulada, parecia conferir à União um direito que feria o usufruto exclusivo dos índios sobre seus recursos naturais, previsto na Constituição. Tal deslocamento de ênfase também se dava em vários outros artigos, a ponto de mudar o espírito da lei: o Substitutivo mais parecia estipular as condições de acesso (e de contrato) do que afirmar direitos. Por outro lado, a proteção do conhecimento tradicional parecia reduzir-se a uma questão de compensação "justa e eqüitativa" dos benefícios, o que equivale a dizer que o direito sobre o conhecimento pode ser negociado.

Ignorando o regime sui generis, o Substitutivo desconhecia que o nó górdio do acesso está, não no acesso propriamente dito, mas na limitação do que a indústria pode fazer com o que foi acessado. O artigo 5.V determina serem inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis os direitos relativos ao conhecimento tradicional detido pela comunidade local ou população indígena, possibilitando-se entretanto o seu uso, após o consentimento prévio e fundamentado e mediante a compensação justa e eqüitativa. Tudo indica, portanto, que o conhecimento tradicional não pode ser objeto de patenteamento. Entretanto, no parágrafo único do art. 41 surge a contradição: os requerentes de propriedade intelectual que tenham como base recurso genético ou conhecimento tradicional de comunidades locais ou de populações indígenas deverão obter o consentimento prévio e informado... Além disso, o Substitutivo determinava que os direitos de propriedade intelectual de produtos ou processos relativos a conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos ou produtos derivados só seriam reconhecidos se o acesso se desse dentro da lei! Ora, as mesmas ambiguidades são retomadas, uma vez mais, no projeto-de-lei 4579/98 que o deputado Jacques Wagner do Partido dos Trabalhadores apresentou à Câmara no ano seguinte. A nova versão continha algumas diferenças positivas importantes, já que definia a titularidade dos recursos genéticos como bens de interesse público, reafirmava o usufruto exclusivo das comunidades indígenas sobre as riquezas naturais existentes em suas terras e reconhecia o direito delas e das comunidades locais de negarem o acesso aos recursos e ao conhecimento quando entenderem que ele ameaça a integridade de seu patrimônio. Em suma: como observa Juliana Santilli ao fazer um balanço dos projetos-de-lei, "tais iniciativas são ainda tímidas e pouco precisas" - um regime sui generis de proteção a direitos intelectuais coletivos deveria partir de várias premissas, entre as quais:

"l) previsão expressa de que são nulas de pleno direito, e não produzem efeitos jurídicos, as patentes ou quaisquer outros direitos de propriedade intelectual (...) concedidos sobre processos ou produtos direta ou indiretamente resultantes da utilização de conhecimento de comunidades indígenas ou tradicionais, como forma de impedir o monopólio exclusivo sobre os mesmos. (...) 3) a expressa previsão da não-patenteabilidade dos conhecimentos tradicionais permitiria o livre intercâmbio de informações entre as várias comunidades, essencial à própria geração dos mesmos." (Santilli, 2001:58)

A preocupação com a comercialização dos recursos e do conhecimento

Ao mesmo tempo em que setores da oposição e da sociedade civil discutiam a questão, o governo federal, através do Grupo Interministerial de Acesso aos Recursos Genéticos (GIARG) formulava o seu projeto-de-lei, enviado à Câmara dos Deputados a 20 de agosto de 1998. Coordenado por um representante do Ministério do Meio Ambiente e supervisionado pela Casa Civil da Presidência da República, o GIARG era composto por membros dos Ministérios da Indústria e Comércio, das Relações Exteriores, da Justiça, da Saúde, da Agricultura, da Ciência e Tecnologia, da Marinha, da Administração e das instituições Fundação Oswaldo Cruz, Fundação Nacional do Índio, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, Instituto Nacional de Propriedade Industrial e Empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola. Sua missão: analisar e propor o aperfeiçoamento do projeto-de-lei do Senado no. 306/95.

O GIARG afirma que decidiu encaminhar o novo projeto-de-lei "principalmente pela necessidade de trazer para o Executivo a responsabilidade de definir competências para seus orgãos, passo que não pode ser dado pelo Legislativo." (Mensagem no. 98, 1998:2) O enunciado espanta pela agressividade com que descarta as prerrogativas e atribuições do Parlamento, ao reivindicar um direito de legislar que mais tarde vai ser exercido através de Medida Provisória. Mas a arrogância do Executivo não parava aí: seu projeto contrapunha-se às iniciativas já apresentadas não só porque era discutido a portas fechadas como porque ignorava a dimensão socioambiental, objeto de preocupação dos setores da sociedade civil envolvidos no processo. Com efeito, agora o que se privilegiava eram as dimensões econômica e tecno-científica, incorporando a lógica dominante nos países desenvolvidos e na indústria da biotecnologia.

O projeto de acesso do Executivo vinha acompanhado de uma proposta de emenda constitucional que pretende incluir entre os bens da União o patrimônio genético para permitir que o Estado preserve a sua diversidade e integridade e fiscalize as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético". (Mensagem n. 977, 1998:1) De saída, portanto, e em consonância com o texto da Convenção sobre Diversidade Biológica que estabelece a soberania nacional sobre os recursos biológicos, pretende-se equiparar o patrimônio genético com as riquezas do subsolo, isto é transformá-lo em bem da União. Ora, como observou com muita propriedade Carlos Marés numa reunião do Instituto SocioAmbiental que discutia a primeira versão do PL governamental, em setembro de 1999, a proposta de emenda tem como objetivo abrir a possibilidade de acesso e exploração econômica do patrimônio genético, hipótese antes dificultada por esse mesmo art. 225 que determina a obrigação de preservar a sua integridade! Com a emenda resolve-se portanto o problema de uma lei que correria o risco de colidir com a Constituição; mas a questão não cessa aí: a inclusão do patrimônio genético no art. 20 justifica-se pelo intuito de preservá-lo; contudo, quando se lê a proposta de lei que a acompanha, vê-se que ela não trata do patrimônio mas sim de seus componentes. É que, como comentou ainda o jurista naquela ocasião, o problema a se resolver é o de acessar legalmente os componentes, isto é assegurar o uso de algo que está fora da proteção do Direito. A intenção, concluiu Carlos Marés, é criar um novo direito.

Através da proposta de emenda constitucional pretendia-se transformar a biodiversidade em patrimônio genético da União. Mas é preciso entender que os seres biológicos não tornar-se-iam um bem nas mãos do Estado: a própria justificação dos motivos da emenda salienta que é preciso tomar o cuidado "de não confundir com os direitos já estabelecidos pela legislação brasileira sobre a propriedade material e imaterial dos recursos biológicos, que são comumente utilizados nas atividades que envolvem sua exploração econômica como a agropecuária, a agroindústria ou o agronegócio em geral." Com efeito, a União torna-se-ia titular de direitos "apenas" sobre o patrimônio genético. Ora, o que é patrimônio genético?

No capítulo Das Definições lê-se:

"I - Patrimônio Genético: informação de origem genética, contida no todo ou em parte de espécime vegetal, inclusive domesticada ou semi-domesticada, microbiano ou animal, em substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ, no território nacional, na plataforma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva."

Tal definição merece considerações. Em primeiro lugar, destaca-se a redução de toda a biodiversidade à sua dimensão molecular - o patrimônio genético é considerado como um estoque de informações (ou componentes, como está escrito no resto do texto). Além disso, a redução implica numa ausência total da noção de ser vivo, e por outro lado a matéria é exclusivamente entendida como matéria-prima, como meio para uma transformação biotecnológica. Finalmente, se o patrimônio genético é um estoque de informações, de unidades discretas, isto significa que a União é titular de um bem virtual! Mas por que o Estado brasileiro reivindicaria para si a titularidade desse bem? Se lembrarmos que as informações genéticas são equiparadas aos minérios que se encontram no subsolo, encontraremos rapidamente a resposta. O patrimônio só é nacional até a sua apropriação; como já argumentou Carlos Marés, "o patrimônio nacional é a idéia dele na natureza". Uma vez transferida a sua titularidade para outrem, este poderá atualizar as informações virtuais, modificá-las, patenteá-las e explorá-las no mercado global.

O projeto de acesso se configurava portanto como uma formulação jurídica que deixa de lado o valor de uso dos recursos genéticos para abrir para a tecnociência e as empresas a possibilidade de explorarem o seu valor informacional. Regulando o que ainda não tem atualidade, criando um direito novo, a lei trataria de um bem que não se confunde com nenhum outro bem regulamentado, seja ele tangível ou intangível. Por tratar do acesso a componentes virtuais passíveis de valorização, o projeto-de-lei pode se dar ao luxo de afirmar que serão respeitados os direitos de propriedade material ou imaterial que incidam sobre o componente acessado ou sobre o local de sua ocorrência. Regulando a titularidade da informação, a lei seria perversa: aparentemente todos os bens e todos os direitos adquiridos permanecem intocados; na prática, porém, os bens serão desvalorizados e os direitos diminuídos, mas isso só tornar-se-á perceptível quando a valorização dos processos e produtos biotecnológicos evidenciar que valor de troca e valor informacional agora são sinônimos e quando o direito de propriedade intelectual tiver tornado explícito de que modo interfere na efetivação dos outros direitos.

A proposta afirmava ainda que os benefícios resultantes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético seriam repartidos de forma justa e eqüitativa com a União. Mas na verdade, não se sabe o que esta entende por "justa e eqüitativa", posto que limita-se a dizer que ela consiste "em percentual a ser definido em regulamento" quando o componente genético for coletado em terras indígenas. Assim, cabe ao Estado definir o valor da matéria-prima informacional que será "transferida" com a titularidade do direito.

Uma leitura atenta do projeto de lei do Executivo mostra, portanto, que o Estado entendia o exercício da soberania sobre os recursos genéticos como a prerrogativa de decidir sozinho como e em que condições vender as informações virtuais de que seria titular. Equiparando os recursos genéticos aos minerais, o projeto de lei do Executivo tenta subtrair aos ditames da Constituição de 88 os animais, plantas e microorganismos que se encontram em terras indígenas. Como vimos, o projeto-de-lei garante que o usufruto exclusivo das comunidades indígenas sobre as riquezas naturais nelas existentes será respeitado porque está garantido na Constituição. Mas como não se tratam de riquezas naturais, mas sim daquilo que se encontra virtualmente dentro delas, a aprovação do projeto proposto implica na exclusão dos componentes genéticos do usufruto exclusivo.

Virtualização dos recursos e fragmentação do conhecimento

Em outubro de 1999, dois meses após a aprovação do Substitutivo do projeto-de-lei 306/95 no Senado, o governo propôs uma fusão dos três projetos-de-lei num único substitutivo. O Capítulo V dessa versão é dedicado à proteção do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. Seus três artigos e vários parágrafos ecoam todos os quesitos importantes suscitados pelo famoso art. 8(j) do texto da Convenção sobre Diversidade Biológica: direitos exclusivos das comunidades indígenas e locais sobre seus conhecimentos tradicionais, acesso precedido de consentimento prévio informado, repartição de benefícios, direito de negar acesso. Coroando esse conjunto, o parágrafo único do art. 24, cap. VII Das disposições finais, reza: "É vedado o patenteamento de processo ou produto obtidos a partir de acesso a conhecimento tradicional associado ao Patrimônio Genético."

Aparentemente, portanto, o projeto seria um grande avanço, apesar de descartar a possibilidade de um regime sui generis.. Mas um exame um pouco menos afoito da questão mostra que a mentalidade que rege o pensamento dos funcionários governamentais não mudou tanto assim. É claro que a proibição de patenteamento prevista no art. 24 é louvável, ao impedir a apropriação exclusiva de componentes genéticos obtidos através de conhecimento tradicional. No entanto, seria o caso de se perguntar se a inclusão desse parágrafo único era mesmo para valer. Com efeito, de que adianta deter direitos exclusivos sobre os conhecimentos tradicionais se o art. 9o, par. 8o, afirma que o ingresso em terras indígenas ou de comunidades locais para acesso a recursos genéticos em caso de relevante interesse público da União não dependerá de prévia anuência das mesmas? Através do art. 9o está aberta a brecha de um acesso independente da vontade dos índios e das comunidades tradicionais; com ela, como bem sabemos, vem o esvaziamento do direito proclamado, e o arbítrio.

Entretanto, o mais grave não é nenhum dos pontos arrolados. Em meu entender, a maior violência é a própria definição de conhecimento tradicional associado: "informação ou prática individual ou coletiva de Comunidade Indígena ou Comunidade Local, com valor real ou potencial, associada ao Patrimônio Genético." Como se o saber desses povos pudesse ser traduzido em unidades discretas, em bits de informação, sem deixar de ser conhecimento tradicional! Como se tal definição não fosse, por si mesma, o atestado da apropriação predatória de uma cultura por outra.

Atropelando o Legislativo e a sociedade civil: A "Medida Provisória da Novartis"

Os projetos-de-lei se arrastavam há anos no Congresso. Até que, no final de maio de 2000 estourou o escândalo do acordo de bioprospecção firmado entre a multinacional suíça Novartis e a organização social BioAmazônia, criada pelo Estado brasileiro para implementar o Programa de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (Probem), isto é para fomentar o desenvolvimento da bioindústria.

O escândalo explodiu e foi crescendo à medida em que ficavam sendo conhecidos os termos da parceria, considerados lesivos pela oposição, por parcela considerável da comunidade científica brasileira, pela imprensa. Criticado até mesmo par parte do Ministério do Meio Ambiente e de membros do Conselho da BioAmazônia, que desconheciam o teor das negociações, o acordo chegou a ter sua validade questionada pelo próprio Ministro do Meio Ambiente: para ele, a BioAmazônia não estava autorizada a realizar acordos ou contratos de bioprospecção.

O "acordo de cooperação" versava sobre a coleta e fornecimento de linhagens e extratos por um período de três anos e previa um projeto suplementar referente ao isolamento de compostos naturais purificados de plantas, fungos ou microorganismos. Num artigo de grande repercussão, o Presidente da Fundação Butantan resume as razões da reação negativa. Depois de salientar que o maior valor da biodiversidade são os microorganismos, Isaías Raw espanta-se que a BioAmazônia ache razoável isolar, caracterizar e vender cepas de bactérias brasileiras a 100 FS até o limite máximo de R$ 1 milhão, cifra que em seu entender é inferior ao custo de manutenção do escritório da associação, em São Paulo. E acrescenta:

"A BioAmazônia assina acordo onde a Novartis tem direito exclusivo de requerer e manter a proteção de patente para fazer, produzir, usar e vender compostos diretos e compostos derivados no Território (que o contrato define como Mundo!). Para isto oferece, e a BioAmazônia aceita, 500 mil francos suíços, quando a Novartis declarar que está fazendo um estudo clínico com um produto derivado da biodiversidade brasileira e mais 2.250.000 FS até o lançamento do produto. No meio do tempo, a Novartis nos ensinará a ser seus técnicos, colhendo microorganismo, fermentando e analisando a presença de produtos interessantes. Depois teríamos a importante função de mandar os extratos e os compostos isolados e finalmente mandar as cepas. Por apenas 100 FS por cepa, a BioAmazônia terá que montar uma máquina para mandar 10 mil culturas para a Novartis!" (Raw, 2000)

Haveria muitos outros pontos polêmicos a assinalar nesse acordo de cooperação que na verdade se resume à venda barata do acesso à matéria-prima genética para a indústria biotecnológica. Por isso mesmo, muitas vozes ecoaram as palavras duras de Isaías Raw, que terminava seu artigo qualificando a parceria de "acordo espúrio que transforma a Amazônia no quintal das empresas multinacionais".

A oposição ao acordo cresceu. Em meados de junho a senadora Marina Silva pediu à Procuradoria da República que investigasse a sua legalidade. Por outro lado, vieram à tona notícias de outros contratos de bioprospecção, como o firmado entre a Glaxo Wellcome e a Extracta, em julho de 1999, enquanto a Câmara instituía uma comissão para apressar a votação da lei de acesso e o governo cogitava a criação de um código de conduta para reger os contratos. Mas ao mesmo tempo, apesar de todo o barulho em torno da reação do Ministério do Meio Ambiente, começaram a surgir sinais de que o Executivo pretendia convalidar o acordo feito com a Novartis, editando uma Medida Provisória preparada pela Casa Civil da Presidência da República e inspirada no projeto-de-lei governamental.

As notícias da edição da "medida provisória da Novartis", como acabou conhecida a regulamentação do acesso, provocaram protestos das ongs, que apontaram o caráter anti-democrático da iniciativa, a desconsideração pelo Legislativo e pela sociedade civil que estavam sendo atropelados no processo, e a insegurança jurídica que o texto regulador criaria, visto que as medidas provisórias podem ser alteradas a cada reedição, sofrendo a influência de interesses específicos. E na iminência de uma decisão governamental, 32 entidades e fóruns de entidades ambientalistas enviaram um apelo ao Presidente da República, com argumentos jurídicos contrários à edição da medida provisória e pedidos para tratar a matéria através de projeto-de-lei.

De nada adiantou toda essa movimentação: a 30 de junho de 2.000 o governo editou a MP no. 2.052, gestada na Casa Civil. Uma leitura atenta desta permite constatar que se trata de uma versão corrigida do projeto do Executivo. Logo no art. 1º pode-se ler:

"Esta Medida Provisória dispõe sobre os bens, os direitos e as obrigações relativos ao acesso a componente do patrimônio genético (...), ao conhecimento tradicional a ele associado (...), à integridade do patrimônio genético do País, à utilização de seus componentes e à repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de sua exploração, e sobre o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para a conservação e utilização da diversidade biológica."

O texto não explicita que a União detém a titularidade do patrimônio genético, apenas a reconhece tacitamente, evitando abordar a controversa questão da natureza jurídica desse patrimônio; entretanto, o exercício da soberania sobre os recursos se expressa no art.2, onde é reivindicada a competência exclusiva da União sobre o assunto. Por outro lado, mantêm-se as definições que permitem a virtualização da biodiversidade para sua posterior atualização como bem privado, e confirma-se a possibilidade de patentamento da vida, graças à distinção entre recurso genético e recurso biológico. Mas o pior de tudo é a violação dos direitos dos povos indígenas, assegurados pela Constituição.

Tentando aparentar que respeita e implementa as determinações da Convenção sobre Diversidade Biológica com relação à proteção do conhecimento tradicional, a Medida Provisória dedica-lhe todo o capítulo III. Ali, o Estado reconhece o direito que as comunidades indígenas e locais têm para decidir sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do país; entretanto, no mesmo artigo 8 esse direito começa a ser corroído: o parágrafo 4º afirma que a proteção não poderá ser interpretada de modo a obstar a sua utilização, e o parágrafo 5º, que a proteção não poderá afetar, prejudicar ou limitar qualquer outra forma de direitos relativos à propriedade intelectual. Por sua vez, o art. 10 concede o perdão aos biopiratas, ao estabelecer que "à pessoa de boa fé que, até 30 de junho de 2.000, utilizava ou explorava economicamente qualquer conhecimento tradicional no país, será assegurado o direito de continuar a utilização ou exploração (...)." Finalmente, o art. 9 afeta a possibilidade das comunidades indígenas e locais impedirem a utilização não autorizada de seus conhecimentos tradicionais; mas como o art. 9 não especifica de que modo elas podem impedir a ação de terceiros e como o parágrafo 5º protege a propriedade intelectual, o capítulo inteiro dedicado à proteção do conhecimento tradicional é esvaziado.

Como se isso não bastasse, outros artigos da Medida Provisória vão mais longe. O art. 14 reitera que em casos de relevante interesse público, assim caracterizado pela autoridade competente, o ingresso em terra indígena para acesso a recursos genéticos dispensará prévia anuência das comunidades indígenas e locais. Carlos Marés e o procurador da República Aurélio Rios assinalam que tal artigo ignora o consentimento prévio e informado. Além disso, o mesmo comporta uma dupla inconstitucionalidade. Em primeiro lugar, afrontaria o art. 231 da Constituição que estabelece o usufruto exclusivo dos índios sobre os recursos naturais existentes em suas terras (já vimos, entretanto, que tal interpretação pode ser contestada, se considerarmos que não se trata de recursos naturais, mas de virtualidades que neles se encontram). Em segundo lugar, a Constituição determina que o interesse público deve ser regido por lei complementar; ora, o art. 14 da MP caracteriza um abuso: a alegação de dispensa em casos de relevante interesse público é absurda porque em princípio não existe interesse público irrelevante; e como não são especificados nem os casos relevantes nem a autoridade competente que o define, pode ser qualquer uma! Ou melhor: ao que parece, um Conselho Interministerial formado a partir da Casa Civil, longe portanto dos setores da sociedade civil e das entidades envolvidas diretamente com a questão. Finalmente, o art. 14 da MP esvazia totalmente as condições de negociação dos povos indígenas quanto à repartição de benefícios, tratada no art. 21: se os índios não forem "razoáveis" no momento da negociação, o representante do Estado sempre pode invocar o "relevante interesse público" para enquadrá-los... ou excluí-los dela.

Na verdade as autoridades, que se mostram tão liberais quando negociam com a Novartis, endurecem quando se trata dos provedores dos recursos. A pá de cal nos direitos indígenas sobre seus recursos e seus conhecimentos é colocada no art. 28 que libera totalmente o seu patenteamento, uma vez que a concessão de direito de propriedade industrial sobre processo ou produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético só exige a obrigação de informar a origem do material e do conhecimento tradicional coletados.

Inconclusão

Desde junho de 2000, a Medida Provisória vem sendo reeditada pelo governo e combatida onde e quando possível. Em agosto, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) entrou na Justiça com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN n. 2289/00) elaborada pelos advogados do Instituto Socioambiental, questionando a constitucionalidade dos artigos 10 e 14. Percebendo a fragilidade jurídica desses artigos, a Casa Civil modificou-os na reedição da MP de 27 de abril de 2001, suspendendo a anistia geral prevista a quem já explorava o conhecimento tradicional e revogando o livre ingresso em terras indígenas em caso de relevante interesse público. Agora a última questão deverá ser regulamentada por lei complementar, e não delegada pela MP ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.

O recuo mostra que o governo só acolhe o ponto de vista das comunidades em último caso. Por isso mesmo, a luta continua no âmbito do Congresso em torno da aprovação de um dos projetos de lei. De todo modo, mesmo com a Medida Provisória, a questão do acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento associado continua não resolvida: desde a sua promulgação a bioprospecção encontra-se legalmente paralisada no Brasil porque o Conselho de Gestão não foi criado; por outro lado, a base governista está dividida quanto à conveniência de se incluir o patrimônio genético como bem da União, através da proposta de emenda constitucional: há setores que interpretam tal inclusão como uma limitação ao direito de propriedade. Por isso, ainda não foi possível votar a emenda e transformar a Medida Provisória em lei, como quer o Executivo.

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