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Maria Célia Paoli

Empresas e responsabilidade social: os enredamentos da cidadania

(texto não editado)

 

Introdução

Suponho que a compreensão das ações contra-hegemônicas ao modelo social e econômico neoliberal, centro deste projeto coletivo, deva esclarecer sobretudo as possibilidades sociais e políticas de refazer, refundando-os, os vínculos sociais rompidos pela crescente exclusão social e política que povoa a paisagem criada pelas políticas neoliberais (Santos, 1998). É nestes termos que, neste capítulo, tento a avaliação dessas possibilidades para o caso da criação de um espaço filantrópico organizado por empresários nacionais e de empresas multinacionais no Brasil, que se propõe como ação civil e voluntária referenciada a uma também nova percepção de sua responsabilidade social diante das múltiplas carências da imensa e ampliada população pobre do país.

A proposta de avaliar os potenciais contra-hegemônicos da ação empresarial filantrópica é aqui menos remetida à idéia de uma virtuosidade a ela inerente ou ausente, do que à recuperação do sentido político e público que Hannah Arendt (1998) sumarizou na idéia do agir político para um «mundo comum». Esta ação, como todas as outras, é carregada de uma identidade particular, mas a transcende no horizonte da instauração de um espaço público de ações propositivas, críticas, conflitivas e criadoras que se alinham na formação renovada de valores pluralistas, partilhados e discutidos. Em uma adaptação dessa idéia, penso que se pode reconhecer o potencial contra-hegemônico nos tipos de ações que são instituintes de um referencial crítico concreto e no qual se inscreve um sentido político. Mesmo quando começadas pragmaticamente para solucionar carências extremas, a condição para que tais ações apareçam como contra-hegemônicas ao modelo neoliberal vigente é a de trazer a dimensão política contra a privatização, o estreitamento e a destruição dos recursos políticos e sociais que permite, a uma sociedade, o viver em conjunto (Arendt, 1987a).

Um segundo tipo de pressupostos agrega-se à análise que se segue sobre o ativismo social do empresariado brasileiro em sua auto-constituição de responsabilidade social. Eles tem a ver com as noções de «cidadania» e «direitos» e, novamente recorrendo a Arendt (1989), é através destas noções que se esclarece uma dimensão importante em nosso assunto: a indissociabilidade entre bem público e bem comum, que implica existência de um lugar de todos fora de qualquer tipo de decisões particularistas. Assim considerada, a noção de cidadania faz a distinção entre o espaço de origem da ação (em nosso caso, o mundo empresarial) e o espaço da política e sociabilidade que ela cria, ou seja, a ampliação (ou anulação) da consciência e práticas de direitos de cidadania para uma sociedade.

Finalmente, é ainda importante descrever sumariamente a dinâmica destas noções no pensamento social e político e na interpretação prática da opinião pública brasileira, para esclarecer o contexto de reflexão e reconhecimento de valores no qual surgiu a proposta da ação social responsável das empresas. Desde a década de 1980, o conceito de cidadania ocupa um dos centros do pensamento social e político brasileiro. Sua relevância certamente vem do modo como intervem no debate público sobre os agudos níveis de exclusão social e política do país, vinculando-se, desde sua (re)descoberta naquela década, como parâmetro crítico de uma dupla transformação por que o país passa desde então. De um lado, a noção retrabalhada de cidadania passou a pautar um primeiro desafio histórico, a passagem das formas recorrentemente autoritárias de governo para uma democracia alargada. De outro, define a tragédia do processo neoliberal em curso que visa a desregulação público-estatal da economia de mercado, cujo funcionamento, agora cada vez mais livre de limitações públicas, aprofunda e sedimenta os mecanismos de exclusão social e política tradicionalmente presentes na história da modernização do país. Como categoria crítica aplicada aos impasses destas duas e contraditórias passagens, a construção intelectual brasileira do que se entende por cidadania tem ido alem de seu aspecto teórico normativo voltado para a avaliação dos procedimentos da democracia e da justiça social. De fato, uma das características essenciais na literatura sobre esta questão é manter a dimensão crítica do conceito muito próxima da complexidade empírica dos conflitos concretos por direitos, operando assim com os acontecimentos singulares que desvendam uma sociedade fragmentada pela multiplicação de suas históricas desigualdades.

Esta proximidade com os acontecimentos, ações e debates que disputam o sentido social e político destas transformações levou, por seu lado, à elaboração de uma noção de cidadania intimamente relacionada com a importância das distinções analíticas claras entre o espaço público e os interesses privados, como base para a compreensão crítica do aprofundamento da exclusão social e política e para a avaliação da sua dinâmica. No atual contexto econômico e político do país, a meu ver, o conjunto destas distinções e conceitos tem permitido uma reflexão que permite conectar, concretamente, as políticas de desregulação ao empobrecimento do campo político anteriormente prometido pela ampliação da participação popular, bem como ao aprofundamento das desigualdades sociais correlacionadas à negligência e subalternidade a que foram relegadas as políticas públicas, especialmente as que representam vias de acesso fundamentais à sobrevivência das populações pobres do país, as quais, é bom lembrar, corporificam direitos e garantias constitucionais no campo social.

Ao mesmo tempo, a produção crítica centrada na noção de cidadania tornou-se traduzível na experiência social, especialmente a das grandes cidades em que se tornavam visíveis o extravasamento dos níveis «normais» de violência, do abandono, da expropriação, do desemprego, da miséria. A palavra «cidadania», circulando como linguagem conotativa de civilidade e integração social, e portanto aparecendo como uma alternativa de segurança e ordem incapaz de ser fornecida pelos tradicionais modos autoritários e policiais de agir e de pensar sobre estes problemas, gerou na opinião pública uma demanda por responsabilidade apenas secundariamente dirigida ao governo. De fato, esta demanda foi capturada através do apelo ao ativismo social voluntário da população, e a palavra «solidariedade» tornou-se, no senso comum, a disposição altruísta voluntária de um indivíduo, uma organização ou uma empresa, um quase sinônimo de cidadania.

Cidadania e solidariedade são demandadas, então, exatamente no momento em que os governos dos anos 90 eram impelidos, pelo modelo econômico neoliberal adotado, a livrar-se do investimento em obrigações públicas de proteção e garantia eficazes dos direitos sociais. Também as elites se convenciam, nas palavras de Francisco de Oliveira (1999: 57), da «desnecessidade do público» diante de um Estado em crise financeira e obrigado a endividar-se junto ao setor privado, criando nestas elites a ilusão de que são politicamente auto-suficientes. As classes médias, por sua vez, seduziam-se pelas idéias de estabilidade monetária e individualismo meritocrático. Além de tudo, a referência estatal em relação à políticas distributivas, apesar de solidamente estabelecida na cultura política do país, aparecia apenas pelo seu histórico lado autoritário, burocrático e ineficaz.

Esse quadro de imposições econômicas, heranças culturais e interesses particulares talvez nos ajude a entender a importância do surgimento relativamente recente de uma assim chamada «sociedade civil» que, através primeiro de movimentos sociais autônomos e politizados e depois de organizações não-governamentais profissionalizadas, deslocou o ativismo político pela cidadania e justiça social para o ativismo civil voltado à solidariedade social. Se o caminho aberto pelos movimentos sociais era fortemente politizado e implicava na demanda direta da população carente organizada por bens públicos, o caminho das ONGs opta por representar as demandas populares em negociações pragmáticas, tecnicamente formuladas, com os governos, dispensando a base ampliada da participação popular. Desse modo, diferentes práticas de responsabilização e compromisso desenham um conflito potencial que diferencia internamente as múltiplas organizações que constituem a emergência daquilo que se entende por sociedade civil no Brasil, e que tendem a se tornar critérios cada vez mais presentes no debate sobre seu sentido.

A partir destas considerações, este capítulo tem como ponto de partida a hoje disseminada idéia de responsabilidade social partilhada entre cidadãos, organizações e governo no contexto sumariamente acima descrito, e visa examinar a entrada, neste terreno do ativismo social voltado ao «benefício público», de um ator nele inesperado: o empresariado. O interesse por examinar sua ação social voluntária vem, sobretudo, da ambigüidade com que se move em relação às delimitações entre interesse privado e ação pública, particularmente evidente do ponto de vista da interrogação do projeto (a possibilidade de ações contra-hegemónicas). É possível perceber, de um lado, o possível potencial inovador que a mobilização responsável empresarial dirige ao transbordamento da pobreza e das oportunidades de vida da população carente. De outro lado, é visível que esta mobilização oculta as políticas que aprofundam a exclusão social e desorientam politicamente a própria sociedade brasileira, alem de ocupar vantajosamente, em termos de seus interesses particulares, o próprio espaço que abre como ação civil para um público.

Nestes termos, espero encaminhar neste capítulo a hipótese que, não obstante os programas sociais produzidos pelo ativismo social empresarial apresentarem dimensões bastante positivas, os critérios próprios à noção de globalização hegemónica propostos neste projeto - a expulsão de populações de um contrato social estável, a aleatoriedade seletiva no tempo e espaço no qual as ações se exercem, a tentativa de construir a resposta para exclusões através unicamente da lógica pasteurizada do capital transnacional -, como também os critérios acima expostos sobre o que vem a ser a dimensão pública e política do agir político parecem indicar que este caso é mais um contra-exemplo de uma ação democrática participativa do que uma ação contra-hegemônica, podendo complementar-se, sem contradições insuperáveis, aos arranjos neoliberais.

Na primeira secção do capítulo, apresento a importância do empresariado como parte da nova e heterogênea sociedade civil brasileira, conectando-a à tentativa governamental de construir um discurso de legitimação para sua auto-desresponsabilização social através da adaptação local da famosa teoria da «terceira via» de Anthony Giddens, aqui enunciada como um novo setor «público não-estatal», que passaria agora a se ocupar dos excluídos e deserdados que povoam a paisagem brasileira. Na segunda secção, descrevo as eficientes ações sociais responsáveis proposta pelos programas de solidariedade social empresarial, apontando as tensões e ambivalências de sua aplicação e resultados práticos diante do duplo objetivo a que se propõe: o de cuidar do social e o de criar uma «consciência cidadã» da classe empresarial através de ações de filantropia privada. Na terceira secção, exponho meus argumentos para mostrar que, por mais inovadora e tecnicamente competente que seja a proposta de investimento sistemático empresarial privado na melhoria das carências mais básicas de parcelas da população pobre brasileira, a face mais conservadora da solidariedade privada contraditoriamente se mostra por inteiro na própria instituição da filantropia empresarial: a de retirar da arena política e pública os conflitos distributivos e a demanda coletiva por cidadania e igualdade. Domesticando o alcance político próprio da noção de bens públicos à eficiência dos procedimentos privados de gestão, intervindo de modo pulverizado ao arbítrio das preferências privadas de financiamento, as ações filantrópicas rompem com a medida pública ampliada entre necessidades e direitos e portanto não criam seu outro pólo, o cidadão participativo que comparece no mundo para alem da figura passiva do beneficiário, sombra de quem o beneficia. Ou seja, são ações que se movem longe do amplo debate público que costuma aparecer, em qualquer teoria política moderna, como a fonte de criatividades antagônicas e dialogantes que formam o centro de uma decisão pública e democrática sobre a alocação dos recursos materiais e simbólicos de uma sociedade.

 

1. O lugar da legitimidade da filantropia empresarial: o discurso do terceiro setor

É importante começar pelo contexto das idéias nas quais se desenvolve a emergência da ação solidária e responsável dos empresários. O centro deste contexto é, no meu entender, a disputa por uma forma de regulação social que aceite, ou recuse, legitimar-se por via da deliberação ampliada sobre a interdependência dos bens públicos e privados. Desse ângulo, duas observações são importantes. Primeiro, a ação responsável empresarial legitima-se, antes de tudo, no interior do assim chamado «terceiro setor», que reivindica um modelo de regulação social mais eficaz do realizado pelo Estado, portanto a ser realizado em um outro lugar: a sociedade civil, composta por uma grande diversidade de ações, atores e organizações, que se unificam pela recusa em pertencer ao âmbito do Estado e do mercado. Segundo, não se trata apenas de uma controvérsia técnica sobre modelos de gestão do social, por mais que a eficácia técnica nos serviços sociais de assistência seja certamente urgente em um país no qual metade da população vive na linha da pobreza. Na expansão do terceiro setor, propõe-se de fato outro modelo para a resolução da questão social - centrado na generalização de competências civis descentralizadas, exercidas pelo ativismo civil voluntário em localidades específicas - e, portanto, uma outra relação com a capacidade política de concretizá-lo.

Em busca de reconhecimento, este modelo procura apoiar-se na junção, prática e teórica, dessas ações, corporificada na idéia de um «setor», que obriga a apelar para «a homogeneização, diluição ou ocultação das diferenças [das ações que o compõem] que podem ser social e politicamente significativas» para poder enfrentar os problemas de legitimidade (Landim e Beres, 2000: 1). Esta é uma consideração importante para entender a facilidade de adesão do empresariado a este «terceiro setor», e torna-se importante compreendê-la no próprio movimento de sua construção discursiva. Na falta de textos sólidos que evitem o tom estratégico persuasivo comum à produção teórica do setor, opto por apresentar este lugar de legitimidade através da versão brasileira da «terceira via», de Anthony Giddens (1998) recriada por Bresser Pereira (1999) através da noção «público não-estatal» para o Brasil, pela óbvia proximidade com a proposta de um «terceiro setor».

Ambos os autores preferem apresentar o tema através de uma classificação política que visa diferenciar as propostas governamentais de desregulamentar paulatinamente os direitos, dominante em seus países, das posturas políticas da esquerda e da direita. Fica visível, neste esforço, a tentativa de exorcizar a ansiedade com que se aplicam em diferenciar tal classificação do neo-liberalismo. Para isso, uma idéia ampliada de «centro» é afirmada, na qual cabem as já célebres rejeições convencionais deste discurso (rejeição da política de classes, do Estado interventor, da segurança estatal aos direitos sociais, do corporativismo, da burocracia, da politização da questão social) e os já usuais exercícios de «wishful thinking» incorporados nas idéias gerais de modernização e eficácia, governo gerencial democrático, plena liberdade ao indivíduo mercantil e estabilidade. No entanto, não importa aqui a concordância de idéias para contextos tão diferentes quanto o são a Grã-Bretanha e o Brasil, e sim suas diferenças, sobretudo aquelas que se referem às políticas sociais.

De fato, as idéias dos dois autores diferenciam-se, em seu significado, no momento em que caem nos contextos, quase incomparáveis, da sociedade e da política de seus países. Giddens não pode ignorar o grande sucesso da experiência histórica do Welfare State inglês, inseparável da formação social e civil da Grã-Bretanha, responsável por generalizar amplamente o instituto universal da proteção contra o risco e torná-lo uma parte central dos direitos de cidadania, modificando, deste modo, o padrão histórico de desigualdade social. Também tem pelas costas a bem menos gloriosa experiência recente do puro neoliberalismo que, na figura emblemática de Mrs. Thatcher, desmontou com alarde os direitos sociais e o bem sucedido poder dos sindicatos em negociá-los, introduzindo o livre mercado como abstração democrática exatamente para restringir o conteúdo do controle democrático público sobre a vida econômica. Premido entre ambas as experiências, Giddens rejeita o que chama de «enfoque negativo» do Welfare State (os valores políticos que levaram a Grã-Bretanha a encetar a guerra à miséria e suas conseqüências) para colocá-lo em um «enfoque positivo», no qual o Estado divide com os indivíduos, agora engajados unicamente com os desafios do presente, a responsabilidade por questões agudamente cruciais, tais como conter a crescente desigualdade, proporcionar um sistema de saúde de cobertura universal, definir uma política de planejamento familiar, estabelecer uma medida ao tempo de trabalho. Tarefa «complicada e espinhosa», admite o próprio Giddens, ao propor que essa parceria configure um «Estado de investimento social», no qual os princípios do Welfare State «continuam» no investimento em «capital humano» como prevenção, mas não no pagamento compensatório dos benefícios. Apesar de tudo, Giddens prevê a proteção física e contratual dos empregados, aceitando, em princípio, o pressuposto que «os trabalhadores não são uma mercadoria como outra qualquer» e que «nenhuma sociedade digna desse nome permitiria tratá-los dessa maneira», não obstante o enfraquecimento das convenções coletivas na estrutura social britânica e sua substituição por contratos individuais de trabalho.

Bresser Pereira também está espremido entre duas experiências históricas da modernização brasileira, mas estas caminharam em sentido contrário ao da experiência britânica. Na adaptação das propostas de um neoliberalismo que também se quer com ares civilizados, pesa bastante o passado brasileiro, um passado que se projeta no presente como a sombra do que um dia foi uma economia de orientação desenvolvimentista e integradora, fruto das tensões internas de uma ditadura civil que, ativa em sua capacidade de regulação social, jamais aceitou, no entanto, a vigência concreta e ampliada dos procedimentos de negociação dos direitos sociais que emitiu legalmente. Tampouco aceitou, portanto, que o ideal de igualdade fizesse parte real da integração social promovida pela expansão do mercado de trabalho, não obstante a forte regulação legal das relações de contrato que chegaram aos trabalhadores, como direitos sociais, pela via autoritária do componente distributivista e financiador do crescimento econômico desse Estado interventor, do qual todo o desenvolvimento brasileiro, e particularmente a formação moderna de suas elites no século XX, era dependente até à medula. Embora o contrato legal de trabalho tenha se generalizado pelo país desde então, a ausência do direito autônomo de negociação sindical praticamente gerou, na regulação do mercado de trabalho, tanto a criminalização da idéia de conflito social por direitos, quanto o revigoramento das antigas relações pessoalizadas, combinadas com a burocratização dos serviços sociais, a desqualificação política dos sindicatos e o uso da violência policial como parte integrante da formação dos trabalhadores brasileiros. A situação de dependência política e sindical foi quebrada apenas há vinte anos, e esta segunda experiência brasileira de instituição de uma medida de igualdade social veio pela via oposta, através de um renovado movimento sindical de âmbito nacional, que pela primeira vez na história moderna do Brasil encaminhou os direitos e benefícios sociais para outro patamar, o de uma cidadania ativa que, para alem de sua identidade de classe, tendeu a construir uma outra medida para a célebre extrema desigualdade social brasileira.

Como acontece em toda a tentativa política de romper com heranças passadas que pesam como tradições identitárias construídas por lutas, utopias e conquistas, a tentativa intelectual de ignorá-las só pode passar pela sinonimização abstrata do novo com o puro tempo presente, que abole a história e memórias continuadamente reinterpretadas. É isto que parece acontecer tanto com a proposta de uma «terceira via» no Brasil como com a credibilidade das fundações teóricas justificadoras das políticas econômicas neoliberais. As duas experiências opostas pelas quais o país conheceu a cidadania social não estão abolidas do presente e pressionam a fragilidade teórica dos intelectuais brasileiros que se esforçam em dar alguma coerência ao desmanche das instituições públicas de direitos sociais.

Bresser Pereira, entre outros, é obrigado a decretar a pouca valia das experiências anteriores para os tempos que correm. Assim, pode sentir-se livre para adaptar os princípios políticos da postura européia ao desmanche brasileiro - uma operação análoga a que os economistas do governo fazem ao repetir as fundamentações teóricas aprendidas em seus doutorados norte-americanos - e construir a versão doméstica da passagem de uma sociedade organizada por referência aos direitos fundamentados na solidariedade coletiva para uma sociedade organizada pela ação solidária privada, transformada em responsável pela «execução de serviços sociais», ao lado da implantação de critérios seletivos das políticas previdenciárias. Para tanto, os direitos à educação, saúde, cuidado à infância e à velhice - para não falar no próprio direito ao emprego - são transformados em investimento em «capital humano» e colocados em terreno puramente dependente de uma boa e confiável gestão, a do setor agora denominado «público não-estatal»: note-se que o argumento não é que as ONGs podem pensar bem os serviços sociais, mas o de que «as ONGs sabem gastar bem», e portanto executarão melhor estes serviços. Também se aposta nos consumidores individuais, os quais, presumivelmente bem de vida e portanto livres para escolher qual a qualidade da escola ou dos serviços de saúde que desejam, são chamados à responsabilidade social.

Enfim, longe de considerar que essas idéias possam de fato expressar o desejo dos governantes de empurrar, para o âmbito privado, a responsabilidade social pública e os destinos da extremada desigualdade brasileira (isto seria uma tese de direita, e não da «nova centro-esquerda» com a qual se identifica), Bresser prefere apresentá-las como compromisso «com a igualdade social possível» no Brasil, nele considerando a inevitabilidade da diminuição da responsabilidade estatal com os programas de previdência social. A definição de qual seria o patamar «possível» deste compromisso, paradoxalmente aponta para a instituição de regras que estimulem a competição no mercado, para a iniciativa e eficiência econômicas, para o florescer dos talentos individuais, para a solidariedade individual ou organizada privadamente; apenas fica misterioso, no contexto brasileiro, como realizar isso «sem prejuízo de uma maior justiça social». Tarefa mais do que complicada, esta, sobretudo porque Bresser Pereira não gasta nem uma palavra a respeito da proteção ao contrato e muito menos aos direitos (constitucionais) dos trabalhadores, objeto aliás de um ataque feroz dos empresários sob a alegação de seus altos custos econômicos, e também do próprio governo com o qual o autor já colaborou, sob a alegação da necessidade de erradicar o «corporativismo» sindical que a garantia dos direitos sociais teriam gerado e, com ela, a ausência de responsabilidade diante das transformações econômicas e sociais. Pede-se então que a população aprenda a viver sem o horizonte das garantias coletivas, ou, para evocar a expressão de Beck (1992) acostumem-se com uma «sociedade de risco», o que de fato não mudaria muito o conhecimento da vida que a população brasileira trabalhadora pobre já tem, há muito tempo, da sociedade onde vivem. Na falta de um contrato social real, resta «humanizar», eficientemente, esta perspectiva, realizando-a radicalmente como uma sociedade civil auto-referida.

 

2. As transformações da responsabilidade social

Temas importantes afloram dessa discussão e abrem as questões que se quer discutir neste capítulo sobre a inédita ocupação, pelo empresariado brasileiro, do espaço «público não-estatal» de ação social aberto pelo encolhimento, admitido pelo próprio governo, das garantias e direitos legais. Uma parcela desse empresariado, diante do aumento das desigualdades sociais e da pobreza no país, lança-se ativamente no campo social, chamando seus pares à responsabilização com o contexto onde desenvolvem seus negócios, e nesse movimento redefine o sentido e o modo de operar da velha filantropia, aproximando-a da noção de cidadania. Ao retorno, redefinido, da idéia e da prática de «filantropia», é acrescentada a palavra «solidária», que se demarca agora como abertura voluntária das empresas privadas ao extravasamento da imensa carência dos pobres brasileiros, ligada, portanto, à prevenção do futuro e respondendo às demandas da reinserção social. Isto pode ser visto através do privilegiamento dos temas da infância, da família e da educação como áreas da responsabilidade social empresarial diante da crescente deterioração da vida coletiva. Uma outra palavra agrega-se ao se tratar de definir um alvo de classe amplo e, no contexto brasileiro, ambicioso: o de criar uma «consciência de cidadania» entre o empresariado, o que significa consciência humanitária ativa do contexto onde atuam, embora a grande maioria do empresariado silencie, deste ângulo, sobre as fontes de produção da miséria e não intervenha no debate sobre a atual política econômica. Mesmo assim, todas estas palavras, juntas, parecem configurar um apelo à responsabilidade dos empresários sobre a própria base social da vida pública, algo realmente inédito na história do país.

Um segundo tema surge do fato de que esta filantropia empresarial organizada se adapta com vantagens, ao mesmo tempo, às formas do lucro empresarial, e, deste prisma, ecoa o discurso neoliberal que preconiza a iniciativa individual e privada contra a ineficiência burocrática do Estado e a politização dos conflitos sociais. É nesses termos que o empresariado brasileiro se agrega ao elogio da sociedade civil e do assim chamado «terceiro setor», aparecendo como um ator que, junto com outras organizações sociais não-governamentais, afirma sua disponibilidade civil em contribuir, no âmbito privado e mercantil, para a redefinição do modo de operar as políticas públicas que se dirigem à integração social e profissional de parcelas da população.

As tensões internas e externas ao aparecimento, na cena brasileira, da presença pública de parte do empresariado brasileiro - responsabilizando-se à sua maneira diante da questão social, reagindo «solidariamente» ao aumento das desigualdades através de um ativismo que se quer alinhado com a promoção da cidadania e marcando sua diferença com um puro assistencialismo - levantam uma série de questões a respeito das transformações e sentidos da relações entre o público e o privado no interior da sociedade brasileira, em passagem para um outro modo de acumulação e outros paradigmas de sociabilidade baseados na descontratualização geral da sociedade (Oliveira, 1998; Santos, 1998). É neste contexto de simultaneidade entre o encolhimento de políticas públicas voltadas à promoção das garantias dos direitos sociais, de um lado, e da abertura do espaço às ações sociais privadas, de outro, que se entende os alcances e limites da filantropia empresarial.

Comecemos pelo significado do primeiro processo. São já bastante discutidos os efeitos produzidos pela aceitação plena, pelo governo brasileiro, das linhas econômicas enunciadas no assim chamado Consenso de Washington, durante a década de 1990. Ela provocou uma visível diminuição do interesse e da capacidade estatal de regulação e um encolhimento dramático do gasto público, sob o pano de fundo do aumento da dependência da economia brasileira aos movimentos financeiros internacionais de um capital globalizado imprevisível em suas investidas especulativas, o que deixou claro o tamanho da vulnerabilidade externa da economia do país. Embora quase todos os países da periferia mundial tenham sido atingidos em suas defesas, é necessário lembrar que o Brasil já entra nessa dança com outro tipo de vulnerabilidade específica, a dos extraordinários níveis, historicamente sempre atualizados, de sua desigualdade social. De fato, para um país que exibe hoje um PIB de aproximadamente 540 bilhões de dólares, impressiona o fato de 34,9% de sua população - 54,4 milhões de pessoas - esteja alocada na contabilidade nacional na rubrica de pobres (são os que conseguem comer, mas não vestir-se nem morar) e 8,7% - 13,6 milhões de pessoas - na rubrica de indigentes (os que não conseguem acesso nem às necessidades alimentares básicas). Embora a renda per capita do país seja aproximadamente 3.176 dólares, a renda média pode ser de apenas 320 dólares. Outros números podem completar esta imagem da desigualdade brasileira. Nas classes médias e altas, foi noticiado que 1% dos contribuintes detém 15% do patrimônio privado, e entre as pessoas de menor renda que pagam imposto de renda, 43% possuem apenas 22% do patrimônio declarado.

É de se supor que a herança histórica brasileira da desigualdade, tematizada como «questão social» desde a segunda década do século XX (quando o Brasil começava a mobilizar-se para seu projeto de crescimento industrial) encontre hoje, na orientação da política econômica atual, um dos seus momentos mais dramáticos. Mesmo sem citar o desemprego (que hoje está entre 8% e 10% da PEA), parece claro que esta política econômica exige que sejam minimizadas a regulação da concentração de capitais e da formação de monopólios e o uso do fundo público segundo regras públicas universalizadas - únicas respostas até hoje conhecidas para reduzir a desigualdade e abrir o acesso da população às políticas públicas de saúde, alimentação, educação, aposentadoria, habitação - deixando aberta sua instrumentalização ao jogo dos interesses privados (Belo, 1999). Francisco de Oliveira (1999) chamou este processo de «privatização do público e publicização do privado», o que supõe, para alem das alianças ainda abertas à disputa, uma verdadeira promiscuidade entre governo e parte das elites, através da qual esta se auto-investe do monopólio de dizer o que as relações mercantis significam. Outro modo de dizê-lo é através da expressão de Boaventura de Sousa Santos (1999): obedecer às diretivas econômicas neoliberais implica a instituição dos «falsos contratos», o contrato leonino, que, «dessocializando a economia», produz uma subclasse de excluídos confinados a «zonas selvagens», marcadas pelos signos de um apartheid social e condenados a um novo estado de natureza. Os falsos contratos são quase impensáveis por isso mesmo: através deles, o apartheid social torna-se a referência geral de sociabilidade, e o Estado esquizofreniza-se em um duplo padrão de ação e presença, democrático para as zonas civilizadas, predador para as zonas selvagens de sociabilidade. Nesse movimento, grupos privados usurpam as funções reguladoras do Estado ao impor formas pré-contratualistas e pós-contratualistas, de fato extra-contratuais pelo seu caráter impositivo.

Para a sociedade brasileira, portanto, isto significa bem mais do que a tão conhecida reprodução das variações dos níveis históricos de desigualdade e distribuição da renda com os quais se fez a trajetória moderna do país. Aproximamo-nos agora daquilo que Hannah Arendt (1989: 329), em sua obra sobre o totalitarismo, chamou de «a produção de uma humanidade supérflua», aquela que perde sua voz e expressão na própria perda da possibilidade de uma comunidade política de participação, na qual os excluídos, antes organizados em movimentos sociais centrados na reivindicação de direitos, pudessem novamente disputar o sentido democrático da vida coletiva e questionar o rompimento de seu espaço de sociabilidade. Em uma palavra, pudessem exercer a política na discussão sobre os assuntos comuns de um mundo comum (Arendt, 1987b). Agora sujeitos a serem natureza descartável pelo próprio desmonte do setor público e pelo menosprezo à universalidade dos direitos de cidadania, sujeitos a todas as formas de violência, separados e hierarquizados pelas barreiras da passagem do privado ao público, resta-lhes a esperança de serem capturados pelas políticas compensatórias e localizadas da filantropia social organizada no âmbito dos grupos da sociedade civil.

A privatização da esfera pública e a publicização dos interesses privados formam o cenário para o segundo processo, o advento do ativismo social voluntário do setor privado e ONGs, dirigido à promoção da situação das pessoas mais vulneráveis da sociedade vítimas do desemprego, da baixa renda e da falta de acesso à oportunidades sociais. Se bem que o Estado mantém ainda, como disposições constitucionais, todas as obrigações legais relativas aos direitos sociais e do trabalho, estas passam por um processo de abalo que visa à sua reforma, e empresários e governo empenham-se em descobrir modos legítimos de desconstituir as garantias sociais como direitos universalizados (por seu custo alto) encolhendo seletivamente seu acesso e apelando para a «criatividade social» dos atingidos. Penso que um desses modos de alcançar a legitimidade para o desmanche das garantias público-estatais seja a adaptação da idéia de «participação de novos atores» na questão social, uma idéia que, tal como a demanda de cidadania, foi originariamente pertencente ao campo dos movimentos sociais da década de 1980. Ao mudar de campo, esta idéia abre espaço para a ação social privada ou não-estatal, e os empresários o ocupam ao seu modo, tornando a participação civil voluntária uma parte interna à nova e excludente eficiência produtiva, fundamentalmente operando através da seletividade das parcelas da população a serem integradas e no controle de quem fica supérfluo a este movimento. É uma operação de desterritorialização dos direitos universais, que se apóia tanto na imagem de uma «cultura do altruísmo» quanto no modelo de gestão empresarial aplicado à rentabilidade e eficiência dos recursos sociais, inclusive os governamentais. Não é preciso mencionar que, em um contexto no qual se somam políticas sociais estatais tradicionalmente burocratizadas e investimento público negligenciado em sua qualidade, apresentar eficiência na resolução de condições sociais muito carentes é um argumento de peso diante da opinião pública, e tende a expandir-se muito alem do âmbito localizado onde a ação de assistência é feita segundo as escolhas privadas das entidades filantrópicas.

Por exemplo, um texto oficial admite que, se bem que o Estado deva ser o principal protagonista na definição de uma política de desenvolvimento social,

não possui condições nem para elaborar sozinho esta política, nem para implementá-la. (...) Somente com uma ampla mobilização da sociedade será possível reunir recursos suficientes para enfrentar o problema [a exclusão social brasileira]. Trata-se, portanto, de buscar parceiros fora do Estado, isto é, na sociedade, ou mais especificamente, nas empresas privadas e no terceiro setor, [e estes, constituindo] o protagonismo dos cidadãos, rompe a dicotomia entre público e privado, na qual o público era sinônimo de estatal, e o privado, de empresarial (Peliano, 2000).

Este tipo de argumento é bastante comum, com variações, no discurso do terceiro setor brasileiro e particularmente, como já mencionado, das entidades voltadas à promoção social, e é tentador pensar aqui sobre os deslizamentos semânticos operados para construir suas bandeiras principais e sobre as conexões imediatas feitas entre sociedade, cidadania e empresa privada para propor algo equivalente a um novo tipo de arranjo localizado e aleatório que substitui o contrato social pela mediação das organizações privadas sociais. Tais deslizamentos acompanham sua inserção no novo campo «neutro», gerencial e pragmático, de que foi dotada a expressão «sociedade civil» e em que se transformou o encanto político e sociológico com as potencialidades de sua descoberta. Mas o que nos ocupa é mostrar como esse espaço aberto está sendo ocupado pelo protagonismo social empresarial.

Suponho que a primeira entidade empresarial a se organizar para ação social nos moldes de uma nova filantropia «cidadã» - a Fundação Abrinq (1990) que, penso, foi a entidade que criou para o Brasil estes novos moldes - dirigiu-se às crianças brasileiras pobres, freqüentemente crescendo em certas situações extremas como a fome e má nutrição, desagregação familiar, trabalho infantil familiar, trabalho forçado infantil, violência, ausência de acesso à escola ou a qualquer referência organizada de vida. Com o crescimento bem sucedido do modo inovador de operar os programas sociais compensatórios e de estimular as empresas a aderir a eles, a direção apontada pela Fundação Abrinq abriu os caminhos para outras organizações e temas para a pauta filantrópica das empresas que adotaram os programas sociais: cultura, educação, saúde da mulher, ecologia e preservação do meio ambiente, esportes, lazer, recreação, desenvolvimento comunitário. Na medida em que as novas idéias e experiências foram se desenvolvendo, foi crescendo também o discurso da responsabilização social das empresas (que pode ser constatada pela crescente adesão de empresas a programas de filantropia) e da conscientização civil da sociedade para com a população carente e excluída (que pode ser vista no crescimento do trabalho social voluntário, agenciado por empresas especializadas no assunto). A proposta de ação social empresarial nessas linhas agregou-se de modo tecnicamente original ao sempre crescente e mal definido «terceiro setor» no Brasil, que se expandiu após o sucesso da Cúpula Mundial Eco-1992 e que, segundo pesquisa recente compõe-se no total de 220 mil entidades beneficientes e prestadoras de serviços sociais diversos (fundações, institutos, associações, organizações sem fins lucrativos). Nele são atendidas hoje aproximadamente nove milhões de pessoas através de 2,2 milhões de trabalhadores, dos quais 1,1 eram voluntários. O orçamento movimentado pelo setor era estimado, em 1995, em nove bilhões de reais, 2/3 dos quais são provenientes de pessoas físicas e doações individuais e 1/3 do financiamento estatal através de parcerias, isenções fiscais e isenção da quota patronal para a Seguridade Social.

O modelo de ação social criado pela Fundação Abrinq, tomado aqui em sua exemplaridade, apóia-se valorativamente na questão da ética empresarial, tentando mobilizar as empresas para a responsabilidade social ampla com seus funcionários, com as comunidades que as sediam, com regras éticas nos negócios, com regras limpas de competição mercantil. Seus dirigentes perceberam claramente não só a importância do surgimento de consumidores bem informados e de uma opinião pública atenta a problemas como o trabalho infantil, o trabalho escravo, o meio ambiente poluído, a utilização de materiais tóxicos e outros, como também da urgência em respondê-los empresarialmente, inclusive em sua conexão com o sucesso mercantil e concorrencial. Sua originalidade reside em reconhecer que, por mais que a grande maioria das empresas adote regras éticas visando o lucro mercantil, no processo de sua adoção os valores sociais acabam por ser reconhecidos pelos empresários, como que funcionando pedagogicamente.

Isso parece explicar a trajetória desta fundação, tal como narrada oficialmente hoje, inicialmente feita pela pressão e denúncia de violações constitucionais e estatutárias aos direitos da criança perante órgãos político-governamentais, e depois dirigida para a ação focalizada em temas prioritários relativos à infância através da sensibilização das empresas, o que implica dar visibilidade tanto às denúncias como à possibilidade de resolução localizada dos problemas através de experiências de ação social empresariais. Mais do que mobilização das empresas para esta ação (também feita através de incentivos para a visibilidade das próprias empresas), a Fundação Abrinq passou a desenhar projetos e programas de ação e oferecê-los às empresas, bem como disponibilizar sua capacidade em captar recursos e repassá-los para os beneficiários dos projetos. O sucesso nestas atividades dota a Fundação Abrinq de um «know-how» especializado e eficaz, exportado como modelo para outras fundações do país que se dirigem ao universo da criança carente. Não menos importante é a tentativa de influir nos governos municipais, estimulando prefeitos a adotar estes programas.

Em suma, a exemplaridade da Fundação Abrinq em abrir uma área eficaz de mobilização social das empresas, explorar as compatibilidades entre lucro e filantropia, criar uma linguagem de cidadania e participação nos interstícios da linguagem mercantil dos interesses privados, readaptar sua estrutura com rapidez e transparência segundo o desenrolar de sua experiência e transformar a aleatória ação filantrópico-caritativa das empresas em uma filantropia de «investimentos cidadãos» lucrativos que é referência para outras fundações, é, sem dúvida, impactante. Mas não isenta a experiência da filantropia empresarial no Brasil de estar atravessada por tensões e contradições no que se refere à sua própria inovação que se quer alternativa, advindas tanto do contexto político brasileiro quanto do mundo das empresas no contexto desregulado do mercado.

Pelo lado das empresas, um destes pontos de tensão é a já citada descoberta de que a filantropia dirigida a grupos carentes da sociedade também faz um grande bem à própria empresa, reforçando sua imagem institucional e melhorando seus negócios. Isso não teria tanta importância assim se é considerada a tentadora hipótese da instituição de um novo caminho para algo como um «capitalismo civilizado» no Brasil (como é, as vezes, interpretada esta ação) não fosse o fato que a ação social empresarial também parece fazer parte não só das operações de lucro, mas também da afirmação de poder social sobre as comunidades em que atua, sobre as relações de trabalho que contrata e sobre as causas que abraça. Se assim for, esse movimento desloca, pouco a pouco, parcelas e territórios sociais para o campo de seus interesses, um movimento silenciado pela intenção e pelo ato original de fundação de uma nova consciência empresarial cidadã, solidária e responsável, intenção que ampara sua reivindicação de reconhecimento como parcela da sociedade civil.

Algumas dimensões da filantropia empresarial podem indicar a sua instrumentalidade como parte do controle do espaço mercantil e social, que opera juntamente com os signos valorativos da ética da doação. Em primeiro lugar, como já mencionado, aparece o predomínio dos procedimentos de gestão mercantil no espaço da filantropia, que lhe fornece um argumento de legitimidade tanto mais forte quanto mais a base de generosidade for organizada como uma empresa. É ilustrativo acompanhar a evolução dos nomes e objetivos dados ao ato de doação empresarial: da «filantropia» à «responsabilidade», e desta ao «investimento social», foi ficando cada vez mais central às empresas responsáveis a discussão dos temas da rentabilidade (mercantil e social) em sua discussão interna, pois a atuação social tornou-se o que se chama, na linguagem do mercado, «um diferencial de competitividade». Como bem resumiu, satisfeito, um especialista internacional: «No ano passado, a maioria das pessoas associava responsabilidade social à filantropia. Hoje, noto que a discussão está muito mais voltada para a ação social como uma oportunidade de negócio do que uma mera atitude filantrópica». A expressão «valor agregado à marca» através da filantropia pode mostrar mais claramente esta dimensão. Definida como «uma atitude favorável que a sociedade atribui a uma organização... [que] constitui-se a base que influencia comportamentos de fidelidade a produtos e marcas, torna-se não só uma fórmula insistente como meio de motivar a adesão das empresas aos programas das fundações empresariais, como também faz pender pesadamente as discussões apenas às propostas instrumentais da medição quantitativa de seus resultados. Nestas ênfases, as realizações do trabalho social viram «produtos» cujo público é formado pelos acionistas e consumidores. Isso pode estar mostrando que a racionalidade econômica dos interesses privados deve comandar bem mais a filantropia empresarial do que o compromisso ético com a sociedade. Certamente os resultados são tão bons que pesquisas de respeitado órgão governamental mostram que, na região mais rica do país, 65% das multinacionais aí instaladas (e 37% das nacionais) admitem claramente que empreendem ações sociais para promover a imagem da empresa, e organizações sociais que coordenam estas ações insistem na motivação da boa imagem para chamar as empresas à responsabilidade social (Peliano, 2000). Não custa mencionar que nos casos onde o empresário não opta por organizar uma entidade específica para o trabalho social (fundações ou institutos) este se aloca nos departamentos de «marketing» da empresa.

Em segundo lugar, há outras indicações que, para as empresas, a filantropia empresarial tem seu lado de um bom negócio. Entre a entrada de dinheiro voltada às finalidades filantrópicas e os seus destinatários finais (os pobres), começam a proliferar uma boa quantidade de instituições mediadoras, configurando uma divisão de trabalho especializada e interna a esta atividade, a qual constantemente abre «nichos no mercado» (para usar a linguagem empresarial) que configuram um setor importante para a realização do lucro mercantil. A linguagem do discurso destas instituições mediadoras o demonstra. A partir do pressuposto comum e inicial em qualquer discurso do pessoal destas instituições, o de que a maioria do empresariado nacional é tradicional, errático e estreito em sua doação filantrópica, segue-se todo um mundo de orientações técnicas que lhe são oferecidas por estes organismos. Há instituições que ensinam o empresário a doar, outras que lhe mostram como captar recursos e fazer parcerias, outras ainda a estruturar uma entidade específica para gerir o trabalho filantrópico, organizar esta entidade de modo que propicie uma ação social mais durável, desenvolver a administração financeira e contábil própria desse tipo de atividade, enfrentar o imposto de renda, pautar matérias jornalísticas, mudar de vocabulário e mentalidade, aprender a informar-se em seminários de discussão e até mesmo compatibilizar as exigências de produtividade da empresa diante de seus trabalhadores («funcionários», na linguagem corrente) através da adoção de programas filantrópicos.

Toda uma nova tecnologia da cidadania nascida no mundo empresarial, inspirada na experiência norte-americana do que hoje se chama de «desenvolvimento social» (sinônimo de «investimento social»), entra no país, e a função técnica local de adaptá-la é bastante importante dada a diferença de contextos políticos, sociais e mesmo fiscais entre os países. Como disse uma técnica entrevistada, é necessário para a área social aquilo que funciona para a área empresarial, e os empresários de ponta pensam que a racionalidade adotada nos negócios é universal em sua eficiência para produzir resultados palpáveis. Evidentemente, toda esta atividade abre um novo mercado e as instituições intermediárias podem oferecer todos os serviços do pacote ou apenas partes deles. Tudo isso exige especialização e universidades abriram cursos específicos sobre administração e gestão do terceiro setor e da ação social empresarial (centradas nas escolas de administração e economia), o que deve ter estimulado o recente crescimento da bibliografia informativa especializada (levantamentos) e prática («marketing social»).

Talvez este mercado aberto pela idéia da filantropia como investimento empresarial e do «marketing social» que lhe segue explique o tamanho do terceiro setor empresarial, embora as listas disponíveis consultadas divirjam bastante entre elas. Segundo uma das empresas de intermediação, as maiores entidades sociais ligadas às empresas do país investiram 437 milhões de reais em 2000 e promoveram mais de 14 mil projetos no país, e houve crescimento importante, embora bastante diferenciado, no orçamento das empresas destinado a investimentos sociais entre 1997 e 2000 (Gife, 2001). No entanto, reportagens e entrevistas nos jornais diários mostram que o investimento privado no Brasil não é proporcional ao tamanho do capital e um consultor do setor diz que, apesar do crescimento das doações, não há comparação com os números dos Estados Unidos, mostrando que as empresas brasileiras gastam 2,8 bilhões de dólares por ano em segurança patrimonial e pessoal de seus executivos, e 18 milhões de dólares por mês em investimentos sociais. Também não parece haver comparação com os EUA quando uma revista voltada ao mundo empresarial comenta que as maiores empresas sociais doadoras de dinheiro para projetos sociais no Brasil de fato não doam de seu bolso, mas sim são captadoras de recursos, usando o modelo de aliança com outras empresas e/ou organismos internacionais para financiar suas idéias, com o qual ocupam, aliás, um espaço aberto pelas leis de incentivo dos governos federal e estaduais.

Também está pouco garantida a avaliação dos impactos dos programas sociais levados a efeito por empresas nos espaços e populações carentes a que se dirigem, ou, em outras palavras, quais as mudanças que operaram nessas realidades sociais. É de se notar que, afora os números da população assistida pelos programas, informados pela própria empresa, a discussão concentra-se quase inteiramente em uma noção de impacto que tem a ver muito mais com a de retorno (mercantil) aos recursos investidos ou à «percepção do público» («público» sinonimizado aqui como consumidores e empregados das empresas que investem socialmente, alem dos acionistas), ficando-se sem saber o que e como foi transformado nas relações sociais concretas do trabalho nas empresas ou nas necessidades da comunidade que foi objeto da ação social empresarial. Uma das raras pesquisas sobre o assunto (Falconer 2000), feita recentemente, sobre a capacidade transformadora de um instrumento específico de conscientização e mobilização empresarial pela eliminação do trabalho infantil - o selo «Empresa Amiga da Criança», criado pela Fundação Abrinq e concedido à empresas que se comprometem a não usar trabalho infantil em seus produtos - pode mostrar alguns aspectos das tensões e contradições entre o contexto de carências, o uso da imagem «correta» do empresariado e a solução que representa para alguns casos de dificuldades nos negócios das empresas.

Ao anotarem as dificuldades metodológicas para medirem o impacto dos programas de certificação através da garantia atestada por selos sociais no Brasil, nas quais também pesa a falta de informação governamental sobre a situação do trabalho infantil no país (os dados oficiais do país são «esquemáticos, incompletos e, ao nível local, freqüentemente inexistentes», dizem eles), os pesquisadores revelam que os próprios programas das fundações empresariais que pioneiramente empreenderam a defesa da infância no Brasil trabalham apenas com informações fornecidas pelas próprias empresas na época dos seus pedidos de credenciamento, sendo portanto incompletas e ultrapassadas. Em um dos institutos estudados, um programa desenvolvido na cidade de Franca (Estado de São Paulo) - voltado à erradicação do trabalho infantil no município e empreendendo ações de compensação ao trabalho famíliar doméstico, terceirizado em algumas fases da produção, que perderam o trabalho de seus filhos menores de 16 anos e não tiveram seu salário aumentado - constatou-se que não havia sequer registro sistemático da ação social das companhias certificadas pelo seu selo, o principal instrumento utilizado. Isto está sem dúvida ligado a uma observação dos pesquisadores, a de que, não obstante o sucesso dos procedimentos de certificação e monitoramento e o sucesso e pioneirismo de seu modelo nos setores produtivos do país atingidos pela denúncia da existência de trabalho infantil, o programa era «primordialmente um serviço aos produtores de calçados, uma garantia ao setor contra sanções, preservando empregos ameaçados pelas acusações que caíram sobre Franca». Pode ser notado, prosseguem, «que o programa tem um objetivo político implícito, o de unir a agora enfraquecida e economicamente deprimida indústria de calçados». Quanto ao fato de o monitoramento mais recente ter encontrado a prática das empresas de «re-subcontratar o trabalho sub-contratado», o que dificulta mantê-lo à vista, os pesquisadores assinalam que a indústria não valoriza de fato o processo de monitoramento regular que ela própria financia.

Já em relação à certificação concedida pela Fundação Abrinq (o selo «Empresa Amiga da Criança»), é fora de dúvida seu sucesso em atrair todo tipo de empresas. Mais do que isso, concentrou sua campanha pelos direitos das crianças em setores acusados de exploração do trabalho infantil, e muitas das empresas acostumadas a seu uso estão agora certificadas, até mesmo operando e apoiando programas que beneficiam crianças. Outra ação importante foi a de levar, em 1996, as grandes montadoras de automóveis a assumirem a responsabilidades com seus fornecedores, dentre os quais está a indústria de carvão, notória usuária de trabalho infantil. Uma vitória significativa foi também obtida com a maior empresa estatal brasileira, a Petrobrás, que após anos de resistência a reconhecer o uso de trabalho infantil na indústria do álcool (fornecedora do Pró-Álcool e fortemente financiada pelo governo), aceitou adotar a cláusula do trabalho infantil para todos os contratos com seus fornecedores. No entanto, os pesquisadores novamente mostram que estes casos bem sucedidos ocorrem quando há a coalizão entre os interesses comerciais e a mobilização anti-trabalho infantil, ou seja, onde existem setores exportadores ameaçados de retaliação comercial, embora não sejam neles que se concentra o trabalho infantil nem as suas mais intoleráveis condições de trabalho. Essa lógica pode ser provada no descompasso entre a certificação dos setores onde há predominância de trabalho infantil (agricultura, atividades informais, ambiente doméstico) e aquela feita nos setores nos quais há, comparativamente, baixa incidência deste (indústria e serviços). Finalmente, a pesquisa conclui que a respeitada certificação da Fundação Abrinq não implica uma garantia real do empenho das empresas pela questão do trabalho infantil. Apesar de toda a qualidade da mobilização e instrumentos de conscientização práticos que seus programas promovem, não há auditorias sociais diretas nas empresas nem outras formas de controlar o compromisso por elas assumido, a não ser a confiança de que a própria visibilidade que a certificação concede à empresa as impeça de transgredi-lo. Suspeita-se, no entanto, que isto não acontece nos setores onde há propensão e tradição em usar o trabalho infantil.

É claro que problemas como esse podem ser sanados tecnicamente e sem dúvida as fundações mais empenhadas no projeto de responsabilidade social empresarial engajam-se nesses pontos. No entanto, o que estes problemas ainda mostram é a ocupação pragmática do espaço da filantropia social pelo tipo de descompromisso padrão da média dos empresários brasileiros, ainda presos em uma variação da sua figura na história e na historiografia do país: como aquele que faz qualquer negócio desde que seus interesses imediatos sejam concretizados e assegurados, de preferência longe do monitoramento público. Isso nos mostra como inovação social é, sem dúvida, muito importante para uma sociedade que tem tolerado as distâncias sociais extremas da desigualdade social e política, expressada em sua formação moderna exatamente pela imagem dependente, estreita e gananciosa de suas classes dominantes, traço agravado pela descontratualização neoliberal. Por outro lado, o visível avanço das empresas sobre o tecido das relações sociais, para alem do trabalho assalariado, pode mostrar porque se torna intolerável, para os próprios empresários das instituições de investimento social, o fechamento tradicional e as operações mercantís pouco claras próprias do antigo patronato brasileiro, bem como indica a importância da produção de uma imagem correta baseada na cultura de um altruísmo civil.

No entanto, falta o essencial a este movimento de conscientização social das elites, exatamente aquilo que os direitos sociais legalmente garantidos pelo contrato social contemplam, mesmo quando burocratizados e esvaziados: um espaço público real porque construído universalmente, portanto aquele no qual a crítica e o dissenso organizado dos excluídos pode se instalar na demanda de direitos. Essa qualidade política faz toda a diferença, seja com a mobilização civil inspirada nos valores da doação, da compaixão e da solidariedade, seja evidentemente com a captura instrumental de uma noção de cidadania particularista que não tem pela frente uma alteridade real, pois não há a figura de outros que possam participar e negociar os bens sociais doados nem um controle público (e não apenas contábil) sobre estas atividades. Pois, por qualquer conceituação sociológica, histórica ou filosófica, um espaço público, civil e pluralizado não acolhe a figura do outro como receptores homogeneizados pela suas carências, nem aceita que os bens sociais produzidos socialmente sejam distribuídos discursivamente como generosidade privada de um doador ou de uma classe. Pelo contrário, os espaços públicos só se tornam assim quando os socialmente desiguais se encontram em equivalência como atores e sujeitos autônomos do protagonismo político e civil e, pelo exercício conjunto e conflitivo do debate, reflexão e deliberação sobre um mundo comum, avancem para alem das garantias constitucionais e jurídicas ao concretizar o direito de participar na pluralidade das demandas de cidadania.

 

3. Ambigüidades e ambivalências

Algumas breves reflexões podem esclarecer a dificuldade de avaliar um tema como este cuja análise parcial foi esboçada neste capítulo, considerando-se a questão principal de nosso projeto, o do potencial contra-hegemônico que as novas formas de ação, conhecimento e associação podem opor ao caminho triunfante das políticas de desregulação social e destituição política das capacidades humanas de invenção de um mundo comum. Tento aqui, à guisa de conclusão, destacar alguns pontos importantes sobre a ambigüidade política da responsabilidade empresarial sobre a questão social.

Em primeiro lugar, creio ser importante esclarecer minha hipótese de que o sentido da «filantropia empresarial cidadã» e de sua auto-investida responsabilidade social no Brasil está indiretamente ligada à substituição da idéia de deliberação participativa ampliada sobre os bens públicos pela noção de gestão eficaz de recursos sociais, cuja distribuição é decidida aleatória e privadamente. Nesse sentido, são práticas que desmancham a referência pública e política para reduzir as injustiças sociais.

As práticas de deliberação participativa, no Brasil, estiveram desde seu início ligadas à visibilidade política dos «novos movimentos sociais» e à redefinição das práticas do movimento operário, nas décadas de 1970 e 1980. Elas foram entendidas através de uma renovada teoria do conflito social, que apontava para formas de participação popular e luta plurais demandantes de representação autônoma nos processos políticos de distribuição de bens públicos e formulação das políticas públicas. O sentido brasileiro da expressão «novos sujeitos sociais» conectava as lutas populares desse momento à visibilidade política de gente que havia sido sempre obscurecida - como «outros que não contam», cidadãos inferiores - pela cultura fortemente classista e hierárquica da sociedade brasileira, gente cuja experiência da modernidade e da cidade passava por vários graus de marginalização, precariedade e exclusão social e cujas demandas perpetuavam-se como não-negociáveis pelo Estado, seja pela negação de seu valor político-institucional ou, no caso contrário de seu reconhecimento positivo, pela necessidade de seu controle.

Desse modo, a experiência da visibilidade deste «outro» agora autonomamente organizado e disputando o sentido do espaço público - os sindicatos antes legalmente controlados, os trabalhadores pobres e excluídos sociais, as pessoas discriminadas por gênero, cor, idade, etnicidade e opção sexual, as pessoas destituídas de seu meio ambiente pela ação predadora do capital - impactou fortemente a cultura política do país. Modificou a forma de exercício do poder local e das grandes cidades, envolveu a virada secular da Igreja, gerou uma nova esquerda política e partidária, introduziu um novo vocabulário político em cujo centro, pela primeira vez, estava a palavra «cidadania», influiu fortemente nos dispositivos da nova Constituição (pós-ditadura militar) dando peso e consistência à palavra «direitos» e introduziu o que mais tarde se configuraria de o »modelo participativo« local de negociação e deliberação pública e política. Levou parte das ciências sociais e da historiografia a uma renovação das linhas de compreensão sociológica do país, filtrando a recepção teórica recebida dos centros hegemônicos de produção intelectual e, sobretudo, deixou claro uma linha divisória, visível nos campos acadêmico e político, entre o tipo de problematização dos que reconheciam as virtualidades utópicas dos processos substanciais em movimento e aqueles alheios ao que neles foi proposto.

Por vias indiretas (e até hoje explicáveis apenas pela desmobilização social e política gerada pelos efeitos do modelo neoliberal), a aspiração de autonomia pública dos movimentos sociais - que se dirigia centralmente a um Estado monopolizador das decisões públicas e injusto na seletividade de interesses com que decidia responder às demandas de distribuição social e negar reconhecimento político e civil da população - tomou gradativamente a forma de organizações públicas não-estatais. Nelas corporificou-se a noção de «sociedade civil» e diluíram-se variavelmente as linguagens do conflito, a visibilidade do protagonismo popular e as utopias republicanas de decisões comuns tomadas por cidadãos equivalentes politicamente, embora socialmente desiguais. Este segundo movimento constituiu-se pela crescente ampliação e especialização das funções ampliadas das ONGs, que se viram cada vez mais como uma representação social especializada na mediação das demandas populares ao poder público. Isto exigiu a sua profissionalização, seja para desenvolver projetos e procedimentos eficazes para encaminhar as reivindicações populares, seja para produzir o diagnóstico social e político das diversas situações em que agem, seja para localizar e propor, elas mesmas, temas e espaços de atuação sobre as carências sociais múltiplas do país.

Em meados da década de 1990, a eficiência das ONGs brasileiras em pensar e propor projetos locais e em participar de redes globalizadas de informação e conscientização coincidiram com a declinante disposição do Estado em corrigir e aperfeiçoar sua capacidade de regulação social e manter os compromissos do contrato social público. Pouco a pouco, muitas ONGs foram preenchendo os espaços locais e temáticos desregulamentados ou abandonados pela política governamental e, embora muitas delas (especialmente as mais antigas) ainda conservem um compromisso político com as populações carentes a quem se dirigem, uma pluralidade muito grande de interesses invadiu e borrou o próprio caráter da pluralidade de iniciativas articuladas em um conjunto coerente de propostas democratizantes, que é uma das bandeiras virtuosas das organizações não-governamentais. Há claramente diferenciações políticas e lógicas ocultas, ou não tanto, na estruturação de algumas dessas instituições voltadas, em teoria, ao mesmo fim comum - a assistência à pobreza ou o «resgate da cidadania». Entre elas, de fato, é possível observar propostas de instrumentalização política inscritas tanto na busca de legitimidade governamental para suas políticas excludentes como na convivência pacífica entre a responsabilidade social e introdução da lógica mercantil na eficácia que devem demonstrar.

Em segundo lugar, é necessário esclarecer os silêncios das ações de investimento social, destacando, em seu processo de afirmação, algumas de suas possíveis direções. Elas tem a ver com esta diluição das fronteiras do conflito público-político pela distribuição social dos bens públicos, que constrói a horizontalidade do denominador comum entre organizações sociais não-governamentais muito distintas, o que pode explicar porque torna-se importante para as organizações empresariais de investimento social institucionalizarem-se como terceiro setor para encaminhar a excelência da resolução privada da questão social sobre a deliberação ampliada dos bens comuns. Também elas entram formalmente neste mundo com a linguagem da cidadania, a consciência de responsabilidade em relação ao contexto social e com a postura crítica à ineficiência burocrática estatal. Essa linguagem, como vimos, pode silenciar sobre suas motivações de interesse mercantil, mas isto talvez nem seja o problema principal: uma auditoria de avaliação de resultados pode também resolver de maneira técnica o descompasso entre intenção e realizações sociais empresariais, com a garantia das fundações sociais legitimadas. A meu ver, o que as empresas apenas falam veladamente é sobre a própria modificação da idéia de troca mercantil que vem incluída em sua imagem virtuosa, através do alargamento de sua presença no social, ou seja, o alargamento do que chamei, evocando Guattari (1985) de «poder social».

Por um lado, usando os recursos técnicos do trabalho social (captação de recursos, cooperação e informação), a empresa entra no espaço não-mercantil (pela introdução da idéia de responsabilidade), indo alem de seu tradicional território inter-muros e também alem dos novos territórios virtuais globalizados, quebrando, nessa viagem, o seu histórico alheamento em relação seja às comunidades reais onde está instalada, seja à vida de seus trabalhadores. Por outro lado, os serviços sociais prestados retornam ao espaço da rentabilidade mercantil agregando potencialmente valor aos produtos, como não se cansam de mencionar os textos de estímulo empresarial produzidos por empresas de consultoria social a respeito da boa imagem da marca dos seus produtos (e não da qualidade dos próprios) de uma empresa filantrópica . Assim, os serviços sociais eficientes mudam a forma dos bens materiais específicos que as empresas produzem, colando-se a eles e atualizando-os com uma virtude até então insuspeitada, a de estar presente responsavelmente no amplo contexto (local e nacional) onde vivem os consumidores e acionistas. Em um duplo movimento para fora de si mesma, a «empresa-cidadã» realiza eficientemente sua beneficiência localizada e produz, para o espaço público da opinião e para o espaço privado de seus pares, a perspectiva de uma presença ampliada, legítima, do próprio poder social do capital. Como disse exemplarmente um dirigente empresarial, «a empresa e a comunidade devem ser a mesma coisa».

Isto inclui, em terceiro lugar, outro resultado ambíguo na ação de solidariedade, desta vez dirigida aos trabalhadores da própria empresa. Esta passa a aparecer internamente também com uma dupla face, a de uma entidade constituída por um conjunto de relações mercantis e não mercantis, por procedimentos que, aparentemente alheios à produtividade do trabalho, acabam sendo soluções de problemas internos antes mais difíceis, como o de conseguir o consentimento dos trabalhadores ou reduzir as incertezas. Novamente surge a ambigüidade da ação social responsável, pois isto não anula o fato de os programas sociais, dirigidos ao corpo de funcionários e de suas famílias ou para a comunidade local, serem bem desenhados e eficazes. No mesmo ato, no entanto, mostram o lado de sua pertinência como instrumento da política da empresa. Ao mesmo tempo, o jogo da visibilidade se aprofunda quando vemos, na imprensa, o destaque dado à figura dos apaziguados e felizes funcionários receptores dos programas sociais ou mobilizados para o trabalho social nas comunidades, em contraste com o apagamento da figura constituída pelo vínculo fundamental do contrato que define sua relação com a empresa, a do trabalhador assalariado.

Em quarto lugar, a ambivalência da própria novidade da filantropia empresarial pode ser vista por mais dois ângulos importantes e relacionados. O primeiro é que essas experiências são apresentadas à opinião pública como prova da ineficiência das políticas públicas estatais e de seu arcaísmo, sobre o argumento de estas criarem apenas cidadãos acomodados ao contexto da miséria circundante. A responsabilização filantrópica privada aparece, portanto, como seu oposto, como a corporificação da modernidade civil agora colocada com ênfase no campo do mercado, a qual, operando através da racionalidade instrumental própria da gestão mercantil, captura uma participação ativista ampla e voluntária que realiza o milagre da cidadania da doação. Como vimos, o uso do trabalho voluntário chega a 12 milhões de pessoas (ou mais, conforme a fonte) que é contabilizado como valor de trabalho não pago, transferindo conhecimento e experiência que permite multiplicar os recursos doados pelas empresas. Junto com a contribuição financeira da classe média às instituições privadas sociais, estas doações cobrem 2/3 dos recursos utilizados os quais, com as contribuições públicas, vão parar nos programas sociais das empresas, transformando-as em promotoras de uma cidadania palpável, noticiada incessantemente em todos os mídia.

Certamente é real a adesão das pessoas que se voluntariam, e há depoimentos no sentido de que doar tempo para o trabalho social é uma experiência significativa de abertura ao mundo, quando menos seja pelo simples encontro pessoal com os pobres, esse outro desvalido e carente que talvez deixe de ser visto em sua pura indiferenciação abstrata: ou seja, a experiência do voluntariado pode ser um meio de reflexão. Mas certamente também esta experiência é feita muito à distância de qualquer discussão politizadora ou de qualquer estímulo para conectá-la às ações governamentais ou ao funcionamento das políticas públicas. Pelo contrário, de ponta a ponta, a responsabilização privada do social é, na expressão de Yazbeck (2001; 1995), despolitizadora da questão social, pois parte em princípio da desqualificação do poder público e portanto desconhece a possibilidade aberta pelo conflito interno no terreno das próprias políticas públicas para criar compromisso e qualidade diante dos cidadãos.

Este tipo de conflito é levantado constantemente pelo pessoal técnico das instituições públicas e seus sindicatos locais: médicos dos hospitais públicos e dos programas públicos de saneamento e prevenção de doenças, professores primários e secundários das escolas públicas, assistentes sociais dos órgãos públicos de serviço social, funcionários das instituições culturais públicas, arquitetos e técnicos dos programas de habitação popular, técnicos dos órgãos públicos do meio-ambiente. Em sua disputa pelo sentido responsável do setor público, todos eles estão apoiados não apenas em sua experiência mas também em uma reflexão informada teoricamente, como o demonstram as suas publicações especializadas e a proximidade que mantém com a produção universitária. No entanto, sob a ótica que prega a falência do Estado e acolhe a idéia de Estado mínimo, os funcionários públicos são desqualificados em uma imagem única: como gente que não faz nada, tem garantias de emprego e são acomodados na mediocridade de seus privilégios. O sucesso dessa imagem acompanha implicitamente o crescimento da responsabilização privada pelo social e obscurece a renovação continuada da parte do serviço público comprometido com a renovação de idéias e práticas e sua conseqüente luta pública por elas, agora tentando ser uma alternativa política ao desmantelamento do setor público pela sua retomada eficiente e renovada. Isso, necessariamente, implica na revitalização da política feita através de suas associações e sindicatos, como um espaço de negociação e de dissenso, tanto no serviço público quanto nos públicos abertos por experiências autônomas locais.

É oportuno, aqui, contrapor as experiências de filantropia empresarial às experiências de solidariedade que estão sendo feitas pelos próprios trabalhadores, por meio de seus sindicatos e centrais sindicais. Como é notório, a atual crise do sindicalismo é a crise do próprio trabalho regulado, no bojo das intensas modificações trazidas pela reestruturação produtiva das empresas e a conseqüente redução do tamanho da força de trabalho. Convencidos que há poucas chances imediatas de se alterar a bipolaridade entre, de um lado, a concentração da força de trabalho empregada nos pólos dinâmicos da produção e, de outro, a manutenção ou aumento dos níveis de desemprego, da economia informal e do uso extensivo do trabalho precário (e da miséria que criam), os sindicatos de trabalhadores foram levados a procurar formas de incorporação dos desempregados de suas próprias categorias. É claro que este desafio foi respondido diferentemente pelas várias experiências tentadas, mas, em qualquer caso, aceitá-lo significa ultrapassar as práticas já conhecidas de representação dentro da própria estrutura sindical e portanto a experiência institucional de mediação entre o mundo do trabalho e aparato institucional do Estado, pela qual os direitos sociais se realizavam.

As duas principais centrais sindicais do país responderam distintamente a este desafio, sobretudo ao constatar a pouca ou nenhuma eficácia dos fóruns oficiais governamentais dirigidos à questão do emprego. Uma delas, a Força Sindical, implantou um Centro de Solidariedade ao Trabalhador que, com recursos públicos, faz diretamente o trabalho de realocar, de modo imediato, os trabalhadores sem emprego (pelos serviços de intermediação de mão de obra, qualificação profissional e habilitação ao seguro-desemprego). A outra, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), constituiu uma Central de Emprego e Renda (localizado no município industrial de Santo André) que, também financiada com recursos públicos e oferecendo ao trabalhador basicamente os mesmos serviços, tem um diferencial importante: faz parte de um conjunto de ações concertadas concebidas como um «sistema público de emprego» em cujo centro está a defesa dos direitos dos trabalhadores. Rejeitando o imediatismo de uma ação solidária que vise apenas resolver, para o momento, uma situação de vulnerabilidade, a CUT faz ênfase em uma concepção de solidariedade consistente com a defesa dos direitos dos trabalhadores e ligada a toda uma concepção de luta por políticas ativas de promoção do emprego.

Assim, as experiências tentadas pela CUT visam constituir modos alternativos de trabalho e renda, entre os quais a formação de cooperativas de produção e trabalho, a montagem de incubadoras, a luta por organização de microcrédito e por bancos do povo. A Central de Trabalho e Renda foi fundada e opera em parceria com a prefeitura de Santo André, uma cidade que passa por iniciativas importantes de discussão e implementação de fóruns públicos (em especial, uma câmara regional formada pelas sete prefeituras dos municípios vizinhos, empresas, sindicatos de trabalhadores e outras organizações) para encaminhar as políticas de desenvolvimento das região e enfrentar seus problemas sociais e ambientais. Mantendo portanto interfaces com todos estes fóruns públicos e sindicais, a ação de recolocação de trabalhadores no mercado pode não só conservar a exigência de contratos legais em empresas idôneas para os empregos conseguidos, como também exercer a criatividade em buscá-los de vários modos, dar-lhes várias formas conforme a especificidade das demandas setoriais e mesmo organizar a oferta de trabalho a partir da demanda de consumidores. Esta acção tenta também intervir nas discriminações por idade e, não menos, modificar o que chama de «a cultura empresarial» tradicional de desconfiança diante do sindicato e desleixo diante da contratação de mão-de-obra, da qualidade do produto e dos modos de produzir.

Por que este sistema pode reivindicar o estatuto de «público»? Alem da proposta abrangente em que está inscrito, parece-me que o fundamental está na concepção claramente assumida que o sistema de emprego é público porque nele se inclui «todos os atores e interesses, cada um contribuindo para o debate», conforme diz o dirigente da central de emprego e renda. Isto tem desdobramentos importantes, como o princípio de rotatividade na gestão do projeto, que hoje é da CUT, e dele se espera «construir a cultura do público para fortalecer [o caráter de] uma agência pública». É primeiro por essa inserção dupla na rede de instituições públicas e depois no «princípio do debate entre interesses divergentes» que se recusa a crítica de assistencialismo dirigida por grupos internos à própria central. A isto, ainda conforme o dirigente, segue-se o argumento que, embora esta ação seja

uma política passiva de trabalho, ela tem alguma coisa importante de política ativa. São os trabalhadores que devem fazer isto e orientar os companheiros que estão em uma carência terrível, tem necessidade de tudo, e [sobretudo] tem necessidade de orientação. Prefiro fazer isso do que deixar para o empresário fazer. Não vai fazer do jeito que o trabalhador mais precisa. Isto é assistencialismo? A meu ver não é.

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É claro que este deslocamento da ação dos sindicatos de trabalhadores não escapa de dilemas importantes. Como já notado, a intervenção direta dos sindicatos na realocação dos trabalhadores no mercado pode «indicar uma modificação na maneira como a CUT concebe o papel do Estado e da sociedade na definição de políticas públicas» (Parra, 2000: 23). Como também aqui aparece a ação do Estado empurrando para a sociedade a questão da resolução do desemprego, assumi-la implica cotidianamente em um pragmatismo no qual os modos de se conseguir eficiência estão plenamente valorizados. É possível também, como aponta a oposição interna da CUT, que a disputa e negociação das verbas públicas entre as centrais, e entre elas e as entidades patronais, acabe pulverizando as ações de um sistema público de empregos e aumentando sua dependência dos recursos públicos. O importante, em qualquer caso, é que estes dilemas são amplamente debatidos e divulgados, e acolhem propostas e sujeitos diferentes em conflito e negociação de valores e projetos cuja referência, por isso mesmo, retém seu caráter público.

Assim, a diferença das referências entre as ações sociais dos sindicatos e dos empresários ajudam a esclarecer e distinguir a presença ou ausência de potenciais contra-hegemônicos no contexto das modificações aceleradas que se produzem tanto na configuração da desigualdade brasileira quanto na aspiração de legitimidade dos desenhos institucionais não estatais para atenuá-la ou revertê-la.

Uma esfera pública não-estatal, conforme rezam todas as inspirações teóricas que mostram o trânsito tenso para uma democracia real em um mundo globalizado, tem todo o direito a se produzir como espaço público ativo desde que suas práticas e presença tenham uma interlocução constante com o contexto político da sociedade e do Estado, o que implica em que sejam também espaço inovador de circulação de idéias e de experiências de participação democrática. As instituições voltadas à filantropia empresarial falham precisamente neste aspecto: externamente, evitam incorporar-se no debate sobre as decisões governamentais, e sua presença diante do Estado aparece apenas pelo lado tradicionalíssimo de pressão para seus interesses econômicos e financeiros, não escondidos em sua demanda de ser intermediária de recursos públicos. Internamente, diante de sua clientela específica, o modo de funcionamento de sua ação social também reproduz algo muito tradicional: transforma cidadãos designados como sujeitos de direitos em receptores de favores e generosidades, e, desse ângulo, a diferença com o velho modo de se fazer caridade repousa unicamente na excelência dos programas adotados e no compromisso de quem os cria.

Nada dessa excelência técnica garante que seu modo de funcionamento nas empresas impeça progressivamente de produzir o apagamento do sujeito cidadão autonomizado e diferenciado pela consciência e práticas cidadãs de ter direitos. Estas últimas são as únicas bases até agora conhecidas sobre as quais a produção de uma esfera pública se faz concretamente em qualquer espaço e tempo em que possa ser exercida, pela única razão de que a noção de direitos cria comunidades políticas falantes e reflexionantes sobre si mesmas e não submissas à aleatoriedade das necessidades e conveniências que lhe vem de fora, por mais compensadoras e admiráveis que sejam. É nesses termos, penso, que a mudança dos paradigmas de acumulação e organização social, advindas no contraditório movimento da globalização atual, pode gerar o senso-comum descrito por Santos (1995: 50-52), cuja marca política está em seu pluralismo de experiências capturadas como invenções políticas em novos espaços discursivos. Apenas pela participação no sentido e escopo dos direitos é que podem se configurar novas formas de resistência e de sociabilidade que, em si mesmas, são opostas às vazias idéias de futuro, sem crítica e sem projetos, das variantes mercantis do neoliberalismo.

No bojo da ambigüidade com que se constrói e se modifica, aceleradamente, a organização do ativismo empresarial, é claro que, por um lado, a ação social empresarial e os welfares privados nas empresas podem ser uma experiência social e humanitária relevante diante das prementes necessidades e carências da população pobre brasileira. De fato, essas iniciativas marcam o lado positivo da presença empresarial mobilizadora de energias de doação que se remetem discursivamente à cidadania, e nada se poderia dizer contra elas se funcionassem dentro de uma sociedade apoiada em garantias reais de direitos universalizados. Mas, para ser também politicamente relevante como uma experiência de formação de atores investidos de responsabilidade social, seria preciso que o movimento de filantropia empresarial reconhecesse, na sua própria constituição, a projeção da sombra da disputa pelo poder de enunciar o espaço público e a cidadania sob o pano de fundo da desregulação estatal. Desse prisma, a regeneração da classe dominante brasileira se apóia menos em uma clara lógica da cidadania e mais na eficiência da integração social para limitar o perigo e o risco inerente à presença aumentada dos excluídos e sem-direitos. Sua utopia de responsabilidade torna-se então conservadora porque, por mais sensível que seja às desigualdades sociais, preserva ao mesmo tempo as hierarquias desiguais que produzem a descapacitação («disempowerment») dos cidadãos, ao recriá-los como cidadãos de segunda e terceira classe dependentes da caridade da ação externa privada para a possiblidade de inclusão social. Dependem portanto das intenções, dos interesses e das flutuações dos acertos e enganos próprios ao mundo mercantil e inerentes à liberdade com que afinal foi cunhada, há dois séculos atrás, a expressão «iniciativa privada», contra a qual formaram-se os espaços públicos diferenciados, críticos e propositivos, voltados à emancipação ampliada de um mundo comum.

 

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Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança:

Uma história de ação: 1990-1997

Relatório de Atividades 1998

Relatório de Atividades 1999

Programa Prefeito Criança (campanha para adoção de projetos pelos candidatos à prefeituras municipais).

Programa Crer para Ver (rede de apoio à melhoria de qualidade da escola pública). Programa Empresa Amiga da Criança (voltado à prevenção e erradicação do trabalho infantil).

Boletins informativos do Projeto Nossas Crianças (sistema de adoção financeira de crianças e jovens).

Projeto Adotei um Sorriso (dentistas voluntários).

Projeto Biblioteca Viva.

Projeto Cidadania Jovem (jovens voluntários mediadores de leitura)

Projeto Jornalista Amigo da Criança (rede de jornalistas que defendem direitos da criança e adolescente).

 

Instituto Ethos Empresas e Responsabilidade Social:

Visão, Missão e Atividades.

Manual: O que as empresas podem fazer pela educação. São Paulo, 1999.

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Instituto Ayrton Senna (IAS). Revista Conjuntura Social