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Elísio Estanque

A Reinvenção do Sindicalismo e os Novos Desafios Emancipatórios: do despotismo local à mobilização global

(texto não editado)

 

Introdução

A emancipação é uma noção repetidamente invocada, mas de contornos mal definidos. A perspectiva multidimensional de Ernesto Laclau pressupõe que a emancipação contém, entre outras, as seguintes dimensões: dicotómica, porque se afirma em oposição à ordem social; holística, porque visa encontrar alternativas em todos os domínios da vida social; transcendente, porque é dirigida à eliminação do poder; anti-opressiva, porque quer eliminar os mecanismos opressivos que impedem o livre desenvolvimento de algo; libertadora, porque rompe com os mecanismos de dominação e opressão; racional, porque obedece ao principio de uma racionalidade absoluta capaz de ver o real para além da positividade opaca de que se reveste (Laclau, 1996: 1-2). Além deste conjunto de dimensões, a emancipação encerra lógicas contraditórias e paradoxais, onde a objectividade do social se justapõe à sua impossibilidade, e onde as exclusões radicais exigem integrações radicais.

Será possível conceber a emancipação social como algo substantivo ou apenas se pode falar em discursos emancipatórios? Na verdade, a emancipação não passou até hoje de uma promessa, ou de uma pluralidade de promessas. Mas, enquanto promessa ou discurso libertador, ela perpassou o pensamento humano ao longo dos séculos, e modelou um leque vastíssimo de práticas, movimentos e rupturas que abalaram a vida dos povos, como aconteceu, por exemplo, com o Cristianismo. O seu triunfo no Ocidente partiu da construção da imagem de uma futura humanidade, ou pós-humanidade, de onde todo o mal seria erradicado, ou seja, o discurso emancipatório traz consigo a utopia fundada numa fé em que o bem triunfa sobre o mal (Laclau, 1996). Contudo, as lutas sociais contemporâneas já pouco ou nada têm a ver com o discurso emancipatório religioso. Daí que algumas análises - mais optimistas -, possam afirmar que caminhamos para o fim da emancipação e para o início da liberdade. As sociedades ocidentais modernas têm assistido à criação de padrões difusos de acção colectiva em torno de políticas de bem estar, dos direitos do trabalho e dos trabalhadores, da resistência a culturas patriarcais, que em parte derivam das dinâmicas do capital global. Isto prende-se com o papel do dinheiro e do poder projectados no mundo da vida, segundo a perspectiva de Habermas (1989; 1998). A racionalização desta dimensão cria condições e capacidades de aprendizagem e adaptação, que não podem ser institucionalizadas em grande escala, porque o dinheiro e o poder entram nos poros comunicativos do mundo da vida, corrompendo-o, promovendo identidades contraditórias, mas ao mesmo tempo inibindo a formação de discursos públicos não convencionais que poderiam funcionar como cenários emancipatórios (Ray, 1993: 72-75).

Por seu lado, os caminhos emancipatórios, de que fala Boaventura de Sousa Santos, também eles funcionam segundo modelos ambivalentes, sob constelações, na base das quais os grupos e as pessoas promovem hierarquias discrepantes, por vezes antagónicas, onde as igualdades e as diferenças capacitantes se inscrevem. Para evitar o risco de trivializar o conceito de emancipação - porque, se ela está em todo o lado, não está em lado nenhum - há que situar as propostas emancipatórias em proporções adequadas. É esse o objectivo de uma teoria crítica pós-moderna, que passa, desde logo, pela identificação dos múltiplos lugares de opressão e suas possíveis interligações. Dir-se-á que a própria identificação de tais situações constitui em si mesmo um primeiro passo para uma orientação emancipatória da acção, já que a nomeação pressupõe a existência de actores com capacidade de categorizar relações enquanto opressivas. Ou seja, essa capacidade exige, ela própria, a presença de instrumentos e conhecimentos sociais disponíveis para promover constelações de relações alternativas.

Só o discurso crítico pode promover a acção emancipatória, mas ao mesmo tempo a crítica radical, para ter condições de objectivação, tem que procurar a exploração imaginária de novas possibilidades, tornando-se assim porta-voz de algo radicalmente melhor. Algo que, em face da actual crise de alternativas, pode considerar-se como uma espécie de utopia que, paradoxalmente, se assume como anti-utopia. Uma utopia para superar o pensamento desacreditante e a subjectividade conformista que gira à sua volta - fruto do desmoronamento das velhas utopias -, capaz de abrir novos horizontes de expectativas e possibilidades, e criar a vontade de lutar por alternativas. Em suma, a ideia de uma «deslocação radical dentro do mesmo lugar», proposta por Santos, enquanto heterotopia, pode representar um avanço que se funda num aparente e inevitável recuo. Recuo aparente porque exige o abandono de um modelo imaginário e perfeito - o lugar mítico situado algures ou nenhures -, que historicamente gerou profundos danos na vitalidade dos movimentos sociais, e que pode agora ser reparado, olhando ao redor, visualizando o invisível, e valorizando a partir das margens as múltiplas potencialidades emancipatórias que o centro tem vindo a apagar ou a excluir (Santos, 2000: 305-311).

É claro que as perplexidades que hoje se nos levantam a este respeito têm vindo a adquirir um novo significado no actual quadro de globalização e, nessa medida, qualquer abordagem que pretenda captar essas potencialidades alternativas terá de desconstruir a visão idílica, neutra e fictícia de uma globalização homogeneizante e harmoniosa, que tem sido largamente construída pelos arautos do neoliberalismo e pelos mass media ao serviço do poder hegemónico. Se em termos históricos podemos referir várias épocas de «globalização» - das cruzadas aos descobrimentos, dos ciclos de comércio colonial às redes globais actuais -, os fluxos e movimentos de âmbito global das últimas três décadas encerram igualmente dinâmicas muito variadas. Acresce que a globalização não existe fora do tempo e do espaço, nem paira sobre os poderes políticos, económicos e institucionais que regulam o sistema mundial. Pelo contrário, pode mesmo dizer-se que são os Estados, principalmente os Estados mais poderosos dos países centrais, que estão a promover a globalização económica e institucional do capitalismo tardio em que vivemos.

A interpretação destes fenómenos está, portanto, longe de ser pacífica. Do mesmo modo que a realidade é complexa, contraditória e conflitual, também o conhecimento científico que pretende compreendê-la é marcado por essas mesmas características. Suscita leituras e interpretações díspares. A abordagem que aqui é privilegiada segue de perto as propostas de Boaventura de Sousa Santos, procurando ir além das interpretações subparadigmáticas e aproximando-se de uma abordagem paradigmática (Santos, 1995b: 258 e ss), capaz de contrapor à globalização hegemónica uma análise que dê visibilidade às tendências e movimentos de globalização contra-hegemónica, permitindo-me, assim, ir ao encontro das práticas e orientações de sentido emancipatório anunciadas pelo estudo de caso que adiante irei apresentar. É neste quadro que uma análise crítica à globalização neoliberal deve revelar aquilo que ela tende a esconder. Deve, por exemplo, mostrar que a geografia e a política, a economia e a cultura constituem dimensões sobre as quais a globalização desenha variados contrastes e estabelece inúmeras conexões. A forma como essas diferentes lógicas se cruzam no mesmo processo acarreta consequências e impactos de ordem social, territorialmente vinculados, que não são senão o espelho das enormes discrepâncias de poder, de visibilidade e de oportunidades, que tal processo transporta. Um processo de contaminações recíprocas, em que as lógicas de «localização» são a contraparte da «globalização», em que as «subclasses locais» são a contraparte das «sobreclasses globais» (Lash, 1999).

Pode, pois, dizer-se que, hoje mais do que nunca, é necessário pôr a ciência e a teoria crítica ao serviço das iniciativas alternativas que, embora de modo fragmentário, vêm surgindo no actual contexto global. Dar voz às vozes da margem, lançar luz sobre os pequenos exemplos que marcam a diferença, pode contribuir para a sua visibilidade enquanto «modelos de realismo utópico» (Giddens, 1990) e para ampliar os seus possíveis impactos em diferentes escalas. Contrapor à utopia liberal uma heterotopia de resistência, dinamizar novas experiências emancipatórias, plurais e disseminadas nas margens do sistema, é um percurso capaz de conduzir a novas ligações entre essa diversidade de experiências - movimentos, protestos, associativismo, cooperativismo, reinvenção de raízes e de opções -, cujo resultado, há que admiti-lo, pode culminar se não numa nova alternativa, na abertura de múltiplas possibilidades alternativas, ou, se quisermos, na formulação de respostas potenciais que se recusam a aceitar que aquilo que existe deve existir só porque existe (Santos, 2000: 307).

Como é sabido, a mitologia comunista caiu por terra e o sindicalismo «de classe» vê-se hoje mergulhado em inúmeros problemas e fragilidades. Não só o capitalismo conseguiu «canibalizar» as lutas da classe trabalhadora, mas até as estruturas dirigentes dos principais sindicatos se tornaram em larga medida instrumentos da acção reguladora do Estado. Com isso, contribuíram, também os sindicatos, para «canibalizar» as velhas propostas de acção emancipatória. No meio de todo esse processo, as conquistas dos trabalhadores e do movimento sindical tradicional cederam, na prática, às pressões da lógica cooptativa, entrando sem o perceber na dinâmica do sistema, ou seja, deixando-se absorver pela lógica de regulação (Santos, 2000: 335). Porém, lado a lado com as tendências de desacreditação do «velho» sindicalismo de base operária e nacional, diversos sinais de renovação - sobretudo no plano das ideias e do debate político - têm vindo a surgir, tanto no campo académico como no domínio sindical, apontando para a emergência de um «novo» movimento social sindical de âmbito global ou internacional (Ashwin, 2000; Bezuidenhout, 1999; Moody, 1997).

As propostas recentes de Peter Waterman vão exactamente nesse sentido. Para uma reconceptualização do velho internacionalismo sindical de base nacional/ industrial/ colonial que possa adequá-lo à actual era do capitalismo das redes globalizadas/ informatizadas, será necessário um novo sindicalismo social fundado num novo internacionalismo laboral cujos principais traços passarão por estratégias de luta de orientação democrática e pluralista que saibam aliar as reivindicações do mundo operário e laboral aos problemas de outros segmentos sociais, movimentos e comunidades, no quadro da construção de uma ética de solidariedade internacionalista «que ultrapasse o modelo de solidariedade de exportação praticando a solidariedade internacional em casa através do combate às causas e efeitos locais da exploração e repressão internacional» (Waterman, 2000). Como é bom de ver, estas propostas encontram acolhimento nas teses sobre o sindicalismo português, apresentadas em 1995 por Boaventura de Sousa Santos, em que o autor enfatiza o princípio da solidariedade, como resposta necessária ao crescente reforço das regulações locais e transnacionais em prejuízo dos mecanismos nacionais de regulação. A construção de uma cidadania activa passaria pela combinação entre um maior envolvimento directo do sindicalismo no espaço da produção, nomeadamente através do reforço do papel das comissões de trabalhadores, e uma maior intervenção fora do espaço da produção: articulando-se com «outros movimentos sociais progressistas, movimentos de consumidores, feministas, etc. (...), as energias contestatárias do movimento sindical devem ser deslocadas para a articulação com estes outros movimentos» (Santos, 1995a: 135). Significa isto que o sindicalismo, para se reinventar, terá de abrir-se para campos exteriores à produção e libertar-se do formato nacional e sectorial em que está enredado. Como sugere José Manuel Pureza, a intervenção transformadora e emancipatória do movimento sindical ou permanece enredada nos pactos sociais nacionais, ou se reconstitui como movimento social de combate à lógica de internacionalização do capital (Pureza, 2001).

Para além da noção de emancipação se revestir, como se viu, de sentidos por vezes paradoxais, as experiências do mundo da vida, sejam elas enquadradas na esfera da comunidade, na esfera da produção ou na esfera doméstica, podem oferecer-se como campos de disputa entre as contaminações do sistema e as contaminações da acção emancipatória. As experiências de luta, mesmo quando os objectivos materiais não foram alcançados, não deixam por isso de ser experiências vividas, cujos efeitos, ao incidirem no plano da reconfiguração reflexiva das identificações, individuais ou colectivas, incidem também nas condições da acção futura. O vivido encerra ele próprio elementos de reflexividade constituintes do envolvimento cognitivo dos actores nas lutas emancipatórias. Por isso os líderes se entregam à exaltação recorrente das lutas passadas. Erigir em património identitário a memória da experiência histórica é uma forma de recuperar a dignidade colectiva e procurar abrir os caminhos do futuro. Mesmo quando o passado não foi edificante, a sua compreensão reflexiva é sempre preferível ao seu esquecimento.

Da regulação à emancipação: entre a indústria e a comunidade, entre o local e o global

É à luz destas preocupações que procurarei analisar os principais processos e mecanismos de regulação social, mas também formas de resistência, momentos de luta e de rebeldia emancipatória que, com todas as suas contradições e ambiguidades, conduziram ao enquadramento da classe trabalhadora da região de S. João da Madeira (SJM). A interpretação desses processos fundamenta-se numa dupla articulação: a primeira diz respeito à articulação entre a indústria e a comunidade e a segunda diz respeito à articulação entre o local e o global. Estas duas dinâmicas não constituem, obviamente, realidades separadas, visto que a indústria se afirmou como o principal elemento mediador que favoreceu a penetração dos factores exteriores - o mercado e as instâncias nacionais e internacionais - junto das comunidades locais. Tomo-as, no entanto, como dimensões analiticamente distintas na medida em que operam em diferentes escalas e permitem visualizar o modo como esta dupla lógica incidiu sobre a complexidade sociocultural da região. É em larga medida sob essas duas vertentes que têm lugar os processos de estruturação das identidades comunitárias e das subjectividades colectivas dos actores locais. Como procurarei mostrar, isso justifica que em qualquer destas articulações o sindicato do calçado - o sector industrial mais representativo da região - seja tomado como um actor colectivo privilegiado, já que, em diferentes momentos, e na actualidade de forma cada vez mais notória, o mesmo tem vindo a afirmar-se como o principal factor impulsionador da resistência perante a lógica hegemónica que se vem exercendo através das duas articulações referidas. Qualquer delas configura, portanto, um modelo de regulação no quadro do paradigma actualmente dominante, mas ao mesmo tempo qualquer delas é susceptível de produzir orientações e subjectividades de carácter emancipatório, pelo que, procurarei captá-las a partir das propostas de Boaventura de Sousa Santos sobre o novo paradigma emergente. Isto justifica ainda a importância atribuída à reconstrução da experiência histórica, o que significa procurar pôr em prática um trabalho «de escavação arqueológica no magma regulatório a fim de recuperar a chama emancipatória, por muito enfraquecida que esteja» (Santos, 2000: 335). É, portanto, com base na análise desta dupla articulação que pretendo, por um lado, dar conta do modo como historicamente foram sendo produzidos os principais mecanismos sociais de enquadramento e dominação sobre o operariado da região, e por outro lado, evidenciar os contornos dos actuais desafios, que continuam a revelar o carácter dialéctico da conjugação entre as novas tendências de globalização hegemónica e as novas redes de solidariedade emancipatória.

Na primeira articulação, a indústria sobrepôs-se à comunidade territorializada, reestruturando-a e adaptando-a à lógica produtiva e de mercado, mas soube gerir essa conexão no sentido de neutralizar a formação de fortes comunidades de resistência. Quer isto dizer que a perspectiva economicista e individualista em que se apoia o capital conseguiu penetrar mais profunda e eficazmente as colectividades trabalhadoras do que o conseguiu a perspectiva sócio-política e colectivista em que se apoia a luta sindical. Ou seja, foi principalmente sob pressão do capital e não do trabalho (ou da classe) que as comunidades rurais se aproximaram da indústria. Porém, esta articulação nunca foi estática, foi antes marcada por múltiplos dinamismos e formas de resistência, latentes ou explícitas.

Como já terá ficado claro, a perspectiva aqui adoptada sobre o conceito de comunidade, nomeadamente quando se discute a sua relação com a indústria, vai no sentido de a conceber no quadro de um conjunto de construções discursivas, muitas vezes rivais, que servem de suporte à sua estruturação identitária. Deve, por isso, evitar-se concebê-la num sentido meramente territorial, substantivo e, menos ainda, estático. A comunidade é um processo sociocultural dinâmico, que transporta múltiplas lutas, discursos e dinâmicas de identificação, que oscilam entre a subordinação localizada e dependente das exigências produtivistas, e a comunidade em movimento, que afirma a sua originalidade e exige reconhecimento, dignidade e oportunidades de expansão perante os poderes dominantes. É nessa medida que poderemos antever uma nova viragem na articulação entre a indústria e a comunidade, que permita a esta última impor à primeira formas de pressão de sentido «cosmopolita» dirigidas à defesa de direitos agredidos e à conquista de novos direitos para os trabalhadores e as colectividades.

A acontecer, tal viragem passará pela capacidade de coordenação e renovação da acção sindical, cujas iniciativas terão de combinar-se mais fortemente com outras estruturas associativas locais, exteriores ao trabalho industrial, tendo em vista reforçar a sua capacidade de intervenção. Só reestruturando o papel da comunidade se reestruturará o protagonismo das colectividades operárias no seio das empresas, o que significa que o futuro da acção sindical deixará de apoiar-se primordialmente na acção «de classe» para se tornar numa agregação de movimentos locais que dirijam a sua luta não só para a - e dentro da - empresa mas, simultaneamente, para - e dentro de - outras instituições, estatais e sociais, e que combinem múltiplas orientações de carácter político, cultural ou económico. Isto exigirá, evidentemente, conceber o papel do movimento sindical, não tanto no sentido clássico de motor da mobilização «de massas», de fora para dentro - contra o mundo «satânico» da empresa capitalista ou contra o «Estado-fortaleza» - mas sim actuando paralelamente dentro e fora da empresa e do Estado (Santos, 2000: 319).

Quanto à segunda articulação, entre o global e o local, pode dizer-se que os impactos da industrialização e a dinâmica de mercado que se implantou na região ao longo do tempo se traduziram na crescente hegemonia da lógica global sobre o local. Deve acrescentar-se que uma tal lógica foi e continua a ser marcadamente intermediada pelo nacional, e também que essa sobredeterminação do global só foi eficaz na medida em que soube incorporar e cooptar elementos significativos da dinâmica local, vinculando-os às necessidades da indústria (como referi atrás) e potenciando, assim, os seus efeitos modeladores. Trata-se, assim, de formas de globalismo localizado (Santos, 1995b: 263) que, através de diversos agentes e aparelhos de enquadramento, impediram que as culturas locais e as colectividades trabalhadoras promovessem a sua afirmação e os seus direitos num sentido inverso, ou seja, para esferas mais alargadas, que vão do local ao global, passando pelo nacional. Em diferentes momentos, foram os interesses gerais da economia, das instituições estatais e dos mercados globais que mais formataram as identidades e subjectividades locais, mantendo-as circunscritas à região ou às comunidades fortaleza (Santos, 2000: 314). Também esta articulação, apesar de transportar ainda uma hegemonia do global sobre o local, poderá inverter-se no médio prazo, o que, a acontecer, passará pela reinvenção do sindicalismo do sector e pela sua capacidade de introduzir nos seus programas de luta global os elementos de base local, com as suas especificidades e dinâmicas socioculturais. Se conseguir levar por diante novas formas de transnacionalização e o projecto de alargamento das redes de solidariedade internacional em que participa, o sindicato do calçado poderá assumir-se como a principal instância de mediação entre o local e o global, num sentido contra-hegemónico. Deste modo, a acção sindical e os movimentos de base local com os quais ela procura conjugar-se assumir-se-iam como factores de travagem da actual lógica de globalização hegemónica (seja sob a forma de globalismo localizado ou de localismo globalizado), opondo-lhe uma nova lógica de globalização solidarista promovida através de novas dinâmicas emancipatórias, novas coligações e alianças, orientadas para a defesa da dignidade do trabalho e do reconhecimento da comunidade.

A articulação entre a indústria e a comunidade

Apesar da importância social e política dos primeiros movimentos do operariado português, é conhecido o seu carácter disperso e relativamente frágil em termos organizativos (Cabral, 1979; Tengarrinha, 1981). Essas experiências, que inauguraram a linguagem de classe do operariado, para além do discurso dramatizado e até das possibilidades emancipatórias que abriram à classe trabalhadora, foram, à semelhança do que se passou em Inglaterra na primeira metade do século XIX, claramente marcadas pela lógica das comunidades locais, pelo carácter defensivo e até conservador face às ameaças da maquinaria e da indústria moderna (Thompson, 1963; Hobsbawm, 1984, Jones, 1989).

Foi um processo semelhante que, nesta região, levou a que diversos ingredientes socioculturais se transferissem da esfera familiar e artesanal para a esfera industrial, em particular na primeira fase de crescimento industrial e comercial, que se desencadeou a partir de finais do século XIX. Num primeiro momento, as unidades produtivas foram-se multiplicando na base da mesma matriz familiar em que funcionava a tradicional profissão do sapateiro. Situado no espaço doméstico, recorrendo à ajuda dos filhos e aprendizes contratados através das redes de vizinhança, o mestre só necessitou de criar condições para responder a um número crescente de encomendas. Mesmo após a instalação das primeiras unidades fabris, a maioria dos trabalhadores continuavam a produzir em suas casas, e quando passaram a trabalhar em unidades maiores, parte dos instrumentos de trabalho eram pertença de cada assalariado, o que ilustra bem a presença da lógica artesanal. Além disso, a implantação de empresas já dotadas de equipamentos mecanizados não impediu, de imediato, que a produção continuasse a depender, em boa parte, de produtores isolados, que resistiam a deslocar-se diariamente para a fábrica. A pressão para a maior concentração da força de trabalho veio mais tarde, por um lado, da parte dos empresários que apostaram na mecanização, mas por outro lado dos activistas sindicais, que viam nisso melhores condições para a acção reivindicativa.

A construção do paternalismo autoritário

Deste modo, pode dizer-se que a primeira fase de expansão da indústria do calçado obedeceu sobretudo à lógica do patriarcado, que então continuava a marcar as exigências produtivas e os processos de estruturação das relações industriais, mantendo-se, assim, sob forte influência da família. Mas, se a família se instituiu como primeiro espaço estrutural de mediação entre a comunidade e a produção, à medida que a industria foi crescendo e as exigências do mercado se fortaleceram, foi-se progressivamente deslocando o pólo mais forte do poder estrutural. Sabe-se que a dinâmica das afinidades e lealdades de raiz familiar continua presente nas empresas. Contudo, assistiu-se a uma evolução, lenta mas persistente, do governo da família para o governo através da família, ou seja, com a crescente perda de autonomia da família, também a comunidade passou de bastião de resistência para veículo de dominação (Burawoy, 1985).

À medida que a produção oficinal foi perdendo a sua hegemonia inicial, a lógica familiar e as próprias comunidades foram aos poucos dando lugar a um novo tipo de paternalismo, de raiz neo-feudal, através do qual o despotismo empresarial estendeu os seus mecanismos de controle sobre a classe trabalhadora, através da família e da comunidade. Tal despotismo veiculava a lógica mercantilista sem no entanto perder a dimensão paternalista. Pode, aliás, dizer-se que esta dupla lógica, justamente porque é ambígua, conseguiu impor à comunidade mecanismos de enquadramento através da dimensão paternalista para simultaneamente exercer sobre os trabalhadores o poder despótico no espaço fabril. Longe de ser linear, este processo assumiu contornos interessantes, que demonstram quer as razões da sua força e da sua eficácia, quer a forma como, para ser eficaz na lógica de modelação regulatória, teve de produzir e assimilar experiências emancipatórias. Duas situações marcantes, vividas nas primeiras décadas do século XX, permitem ilustrar este argumento.

A primeira refere-se àquela que terá sido a luta colectiva mais significativa desta fase - a greve dos trabalhadores do calçado, em 1914 - numa altura em que o sindicalismo autónomo e de classe parecia penetrar na região. Mas, apesar de influenciado pelos sindicatos, este movimento mobilizou tanto os trabalhadores assalariados (que recusavam a introdução de nova maquinaria e de técnicos especialistas oriundos da Alemanha) quanto os pequenos proprietários do calçado (que viam na iniciativa uma ameaça às suas condições de produção). Esta luta representou um triunfo, ainda que pontual, da comunidade sobre a dinâmica industrial de modernização, e por isso pode ser interpretada como reflexo da penetração do discurso classista e emancipatório na lógica da comunidade. Há que notar, contudo, que outros sentidos de prática social concorriam com este. E alguns deles jogaram o seu papel regulador no próprio interior das práticas culturais da comunidade, no sentido de a acomodar aos interesses da estratégia empresarial.

A segunda situação diz respeito à forma como as novas elites industriais se ocuparam da vida colectiva das comunidades, pondo em prática diversas iniciativas que visavam responder a algumas das suas principais carências. Pode dizer-se que, ao longo das primeiras duas décadas do século XX, se construiu em SJM uma espécie de proto-sociedade-providência, dotada de traços de modernidade, e que inclusivamente teve um alcance institucional significativo. Hospitais, asilos, escolas, creches, infraestruturas desportivas e outras formas assistenciais de combate à pobreza, constituíram alguns dos principais projectos dinamizados pela elite industrial local neste período. Convenientemente acompanhados de um convincente discurso de protecção e solidariedade para com os mais fracos, tais empreendimentos não podiam deixar de ter reflexos na forma como os trabalhadores da região de dedicavam à actividade industrial.

Importa ainda notar que a generalidade dos empresários de SJM, mesmo os mais abastados, tinham as suas raízes sociais na classe trabalhadora. Alguns começaram a sua actividade com pequenas unidades produtivas na região, mas aqueles que neste período mais contribuíram para acelerar o processo de modernização industrial tinham acumulado grande parte da sua riqueza através de negócios que mantinham no Brasil, como se sabe, o destino privilegiado do movimento migratório desde o século XIX. Em qualquer dos casos, os assalariados não deixavam de reconhecer nos empresários - dos pequenos aos grandes - exemplos de que a dedicação ao trabalho e o sentido da disciplina produtiva poderiam abrir perspectivas de sucesso económico. E esses exemplos produziam tanto mais frutos quanto as acções de apoio social aos desprotegidos na esfera da comunidade tinham também a sua correspondência em algumas empresas, onde chegou a haver subsídios salariais suplementares para os trabalhadores mais pobres. Estamos, assim, perante resultados que, sendo palpáveis enquanto vividos subjectivamente como emancipações individuais, estruturavam do mesmo passo modalidades de acção colectivamente adaptadas. A lógica de regulação era, portanto, cerzida sobre as fracturas identitárias que o processo de industrialização vinha promovendo, induzindo novos caminhos de recomposição sociocultural e novas representações e habitus individuais.

Um núcleo central dessa recomposição assentou justamente na apologia da ideia produtivista, que levaria ao projecto de desenvolvimento de SJM como «Terra do Trabalho», a fórmula que continua a ser exibida na bandeira da actual cidade. A readaptação da velha comunidade aos novos mecanismos de regulação passou, assim, pela reconversão do tradicional sentido paternalista, que acompanhava a relação entre as elites locais e o povo, para a forma de um neo-paternalismo entre empregadores e assalariados. À medida que as exigências do mercado e da produtividade se tornavam mais fortes esse paternalismo foi progressivamente cedendo o passo ao despotismo de empresa.

É conveniente notar a este respeito o papel repressivo do Estado salazarista, com o seu projecto corporativista, que a partir de 1933 proibiu, como se sabe, os antigos sindicatos de classe e impôs os chamados «sindicatos corporativos» que reuniam patrões e trabalhadores no mesmo organismo (com os segundos naturalmente submetidos aos interesses dos primeiros). Tudo isto no quadro de um edifício de rígido controlo autoritário e ideológico, de inspiração católica, conservadora e ruralista, que viria a manter o país em situação de enorme atraso socio-económico e sem liberdades políticas, até 1974.

Porém, esse processo foi sempre acompanhado por uma dialéctica conflitual. Tal como as fórmulas reguladoras se revestiram por vezes de contornos de emancipação, também as dinâmicas emancipatórias foram por vezes despoletadas a partir do quadro institucional oficial, como aconteceu, por exemplo, com o sindicato corporativo de 1933, que passou pela cooptação de um dirigente simpatizante dos ideais comunistas. A origem artesanal do sector e a proximidade entre trabalhadores e pequenos patrões na mesma matriz comunitária contribuíram para criar alianças atípicas. O processo de submissão da comunidade aos poderes hegemónicos obedeceu a um duplo controle: a acção repressiva e disciplinar, exercida sobretudo através da repressão ao sindicalismo autónomo e do enquadramento disciplinar dos trabalhadores no seio das empresas; e a acção doutrinária e ideológica, exercida através das instituições do Estado e da Igreja sobre as restantes estruturas associativas do operariado e da comunidade.

Ao longo das últimas quatro décadas (principalmente desde os anos 60), o crescimento difuso da indústria para as orlas das colectividades mais ruralizadas, permitiu que o semi-operariado permanecesse ligado às ocupações agrícolas e a um associativismo religioso e recreativo de carácter inofensivo, ao mesmo tempo que a força do mercado se tornou mais avassaladora, injectando no universo comunitário todo um conjunto de referências e códigos consumistas que promovem a alienação individualista e inibem a participação colectiva. Mas, apesar dos mecanismos de regulação terem neutralizado ou cooptado algumas das lutas e acções de resistência do passado, daí não deverá concluir-se que a comunidade perdeu todas as suas potencialidades emancipatórias. É neste quadro que a acção sindical tem vindo a jogar um papel essencial ao longo das últimas décadas.

Potencialidades de um sindicalismo aberto à comunidade

Uma das principais virtudes desta estrutura sindical - o Sindicato dos Trabalhadores do Calçado, Malas e Afins dos Distritos de Aveiro e Coimbra, surgido no pós-25 de Abril - prende-se precisamente com a atenção que tem dedicado ao trabalho de base e à proximidade com as colectividades de trabalhadores, não só junto das empresas mas também em articulação com outras actividades associativas e culturais. Desde logo, o próprio facto de o principal dirigente sindical deste sindicato (M. Graça) ter iniciado a sua actividade associativa na esfera do associativismo cultural, de base comunitária, permite antever que estamos aqui perante um conceito de sindicalismo que se afasta do modelo dominante em Portugal.

A luta reivindicativa dos trabalhadores desta região antes do 25 de Abril de 1974, só excepcionalmente alcançou contornos de contestação aberta, como foi o caso da greve de 1943, atrás referida, ou das movimentações grevistas de finais anos 60, no sector metalúrgico (na empresa de máquinas de costura Oliva). No chamado período do «verão quente» (de 1975), quando surgiram no país diversos protestos anti-comunistas, SJM foi uma das primeiras localidades onde as sedes dos partidos de esquerda foram assaltadas e vandalizadas. Uma vez mais, foram contestações de base comunitária, nas quais participaram sectores do operariado local, mas onde sem dúvida pontificavam interesses patronais, nessa altura particularmente alarmados com o poder que o discurso revolucionário e o papel do PCP estavam a conquistar na sociedade portuguesa. Num panorama de profundas clivagens político-ideológicas, não é de admirar que, lado a lado com esses acontecimentos - que ficaram conotados com a direita conservadora - se assistisse, também nesta região, a exemplo do que acontecia um pouco por todo o país nos anos conturbados da Revolução dos Cravos, diversos protestos operários, ocupações de empresas e a uma adesão massiva à sindicalização. Porém, na sequência da viragem política que ocorreu no país em finais de 1975, entrou-se num período de refluxo de mobilização popular e sindical - o qual, como já referi, nunca foi muito forte nesta região - o que favoreceu o clima de perseguição aos activistas dentro das empresas, ou, noutros casos a sua cooptação para categorias melhor remuneradas em troca pelo abandono da actividade sindical.

Foi neste cenário que nos finais da década de setenta a nova direcção do sindicato do calçado traçou um programa de acção mais consentâneo com a realidade do sector, sob a influência do dirigente Manuel Graça. Sendo embora um dirigente operário, o seu passado foi desde cedo marcado pelo activismo associativo e pela intervenção política, o que favorece a atenção que ultimamente o sindicato vem dedicando à dinamização cultural e ao estabelecimento de alianças com outras associações e ONGs em diversos domínios. É precisamente este esforço de congregação de iniciativas dirigidas às outras esferas da comunidade que, em estreita articulação com a intervenção junto das empresas, se pode tornar o principal factor capacitante das energias emancipatórias, permitindo-lhe opor-se à lógica reguladora que vem submetendo a comunidade.

Diversas iniciativas têm vindo a ser promovidas nesse sentido, muitas delas a evidenciar os mesmo traços contraditórios que marcaram a articulação entre os «novos» e os «velhos» movimentos sociais em Portugal (Santos, 1994). Um sindicato, cujo principal dirigente, sendo de origem operária, revelou desde cedo uma particular apetência pela dimensão cultural; um sindicato onde se combinam valores ideológicos da esquerda radical com um apurado sentido pragmático; uma orientação que apela à participação popular, sem deixar de assumir a importância do diálogo e da negociação; que advoga a combinação entre democracia participativa e representativa, em larga medida por influência da intensa experiência vivida pelo actual líder no período revolucionário do pós-25 de Abril .

Eu acreditava nas lutas imediatas, mas defendia - contra muita gente, que não acreditava - as eleições legislativas e a democracia representativa, porque achava (e ainda acho) que as coisas não são incompatíveis. É possível combinar isso com uma democracia participativa, com a intervenção das massas, das organizações populares de base. Isso não é nada incompatível. Acho que é um direito das pessoas se organizarem em partidos e em organizações. Isso para mim é um direito... sagrado! Eu não sou católico, mas é um direito... sagrado. Agora, em casos concretos é evidente que eu me colocava sempre do lado dos que defendiam a participação popular, disso não tinha dúvida nenhuma (Dirigente Sindical, SJM, Julho/ 2000).

Sem dúvida que estas características têm vindo a influenciar sobremaneira a actuação da estrutura sindical desde os princípios da década de 80, e a isso não é certamente alheio a implantação e os níveis de simpatia que este sindicato tem vindo a granjear junto dos trabalhadores do sector. Foi este conceito de militância que permitiu fazer face a um clima particularmente difícil que se vivia na indústria há duas décadas atrás:

Havia uma repressão muito grande nas empresas e começava-se a generalizar a recessão do movimento sindical, não é?... Portanto, havia muitos activistas que eram despedidos... Apesar dessa greve ter sido muito participada, e durou quinze dias. Por isso a seguir veio um ciclo de despedimentos. Foi o período de maior repressão e muita gente que foi despedida, principalmente os mais activistas, os que estavam nos piquetes de greve. Nessa altura nas empresas houve uma repressão muito brutal, portanto, directa. Agora é mais subtil, não é? Foi uma "limpeza", que durou para aí quatro anos, portanto, um período em que se deu um grande recuo. (Dirigente Sindical, SJM, Julho/ 2000).

Perante as dificuldades de criação de estruturas organizadas, fortes e coesas, no seio das empresas - sobretudo nas pequenas e médias empresas, que predominam no sector -, os dirigentes sindicais deslocam-se diariamente às portas das fábricas, ouvem os trabalhadores, procuram informá-los dos seus direitos; perante as ilegalidades e supressão de direitos, o sindicato responde combinando o discurso da indignação com o recurso à via jurídica, com resultados largamente favoráveis aos trabalhadores; perante as atitudes prepotentes ou mesmo as acções de violência exercidas por muitos proprietários sobre os trabalhadores, o sindicato protesta e denuncia, mas sem deixar de preservar os canais de diálogo; perante as práticas discriminatórias face à condição da mulher, o sindicato promove a sua defesa, pela via da denúncia e pela via jurídica; perante os casos de recurso à mão-de-obra infantil, o sindicato procura pressionar a Inspecção Geral do Trabalho e lança campanhas junto dos mass media, que a partir de meados dos anos noventa obtiveram um sucesso assinalável; perante a lógica produtiva assente no trabalho intensivo e na mão-de-obra barata, que prevalece no sector, o sindicato procura assegurar a defesa dos interesses dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo acompanhando os processos negociação em tono de programas de reconversão das maiores empresas.

As práticas repressivas continuam a pontificar nas empresas do sector, mas a acção de denúncia e o recurso ao sistema judicial, com numerosos resultados de acções favoráveis aos direitos dos trabalhadores, parecem estar a gerar um efeito dissuasor junto do patronato. Esta orientação mostra, justamente, as razões por que este sindicato pode ser tomado como um caso exemplar na combinação coerente que tem sabido preservar entre as diferentes componentes da sua actividade. Para além da capacidade de articular as funções tradicionalmente cometidas aos sindicatos - de defesa dos associados, de diálogo com os parceiros sociais, e a função política (Rosanvallon, 1988) -, esta estrutura sindical tem dado provas de grande consistência no esforço de conjugação entre a defesa firme dos princípios emancipatórios por que se guia e o sentido realista da acção, permitindo-lhe assegurar o justo equilíbrio entre o protesto e a negociação.

Por exemplo, apesar do poder disciplinar e do autoritarismo despótico que vigora na fábrica, os operários conseguem muitas vezes ludibriar as suas formas através de múltiplas tácticas de jogo subversivo (Estanque, 2000: 270 e ss.). Durante os três meses em que trabalhei e convivi com os operários de uma fábrica de calçado, pude testemunhar inúmeros sinais que evidenciam como o «consentimento» é acompanhado por formas de «resistência tácita» que procuram minar esse despotismo e por vezes subvertem as estruturas do poder. Mesmo reconhecendo a fragilidade da «consciência de classe» destes trabalhadores, a reestruturação da sua identidade colectiva no espaço fabril produz múltiplos escapismos e jogos que pervertem o poder disciplinar através das práticas quotidianas da colectividade operária (Linstead, 1985). Tais práticas, são bem reveladores de que não estamos perante uma classe trabalhadora que se limita a consentir passivamente a exploração, mas resiste a ela de forma subtil, procurando preservar e recriar zonas de liberdade, resguardar a dignidade colectiva repetidamente agredida. Embora as formas abertas e organizadas de acção colectiva sejam escassas, estas micro-tácticas de «guerrilha» (De Certeau, 1984) são ilustrativas de que as potencialidades emancipatórias não morreram.

É certo que as dificuldades de organização e de luta que o movimento sindical enfrenta hoje a nível geral também estão presentes nesta região. Mas, as especificidades deste caso, se por um lado o afastaram das condições favoráveis vividas noutros ambientes industriais há 25 anos atrás (por exemplo, nas cinturas industriais de Lisboa e Setúbal), por outro lado, permitiram à estrutura sindical acumular uma enorme experiência de trabalho organizativo sob condições que, por serem estruturalmente mais adversas, a obrigaram desde cedo a reinventar as suas formas de intervenção. Enquanto o sindicalismo português no seu conjunto beneficiou do clima revolucionário e da linguagem de classe que se expandiu na sociedade portuguesa no pós-25 de Abril (Estanque, 1999), no caso sector do calçado - e sobretudo em SJM - a penetração dessa atmosfera reivindicativa foi sempre muito escassa. Em regiões de industrialização difusa, como esta, a instabilidade, mobilidade e dispersão do tecido produtivo, o retraimento e a desconfiança de um operariado semi-rural, são factores que, desde sempre, obrigaram a que a actuação sindical recorresse a estratégias diferentes. E a questão é que actualmente, muitos dos problemas que nesta região estão presentes desde há décadas pontificam também nos ambientes industriais tradicionais onde ocorreram nas últimas décadas múltiplos processos de privatização e reconversão industrial (Lima et al., 1992; Rosa, 1998).

Daí a apurada sensibilidade face aos novos desafios da acção sindical, num contexto como este. Daí a recusa em pôr em prática grandes discursos «demagógicos» num sector caracterizado por um operariado pouco qualificado e com baixos níveis de instrução.

O problema é este: se tu começas a falar muito das coisas, acabas por afastar as pessoas. Se tu fizeres muita demagogia sobre isso, isso não funciona. Portanto, as pessoas, os dirigentes, têm que ver o nível dos trabalhadores. Têm que ver que os trabalhadores de um centro de calçado não estão ao mesmo nível de um activista ou de um dirigente sindical. Têm um nível de instrução muito baixo, e eu percebo isso. Muitas vezes até me custa estar a fazer esse tipo de discursos. Prefiro discussões mais concretas. Eu tenho sempre esse princípio, de se tentar formar uma sociedade mais justa, agora, falá-lo de forma sistemática e mais profunda não, porque acho que isso se torna demagógico. (Dirigente Sindical, SJM, Julho/ 2000).

São estas dificuldades que obrigaram a direcção do sindicato a estudar novas formas de consolidar os níveis de implantação alcançados, desenvolvendo o sentido crítico e a denúncia dos abusos patronais, sem perder o sentido pragmático que as condições socioeconómicas impõem. Ao mesmo tempo que mobiliza e contesta, não deixa de apoiar e integrar, por exemplo, os programas de modernização tecnológica e formação profissional, seja no âmbito dos acordos de empresa (sobretudo no caso das grandes empresas), seja através do Centro Tecnológico do Calçado, em cuja direcção tem representantes, em parceria com a associação empresarial do sector (APICCAPS). Ao mesmo tempo que dinamiza assembleias e promove lutas em muitas empresas, não descura a actividade cultural e a relação com outras estruturas associativas na esfera comunitária.

Esta estratégia de desdobramento de formas e esferas de intervenção surge, portanto, como a necessidade de suscitar a participação colectiva em espaços onde a apatia tem pontificado. A intervenção nesse domínio poderá produzir uma nova síntese a partir da clivagem entre uma actividade industrial submetida a mudanças rápidas e bruscas e uma actividade comunitária ainda abrigada nas estagnações profundas das suas raízes ruralistas.

Entre as associações com quem o sindicato mantém uma colaboração regular, ou estabeleceu protocolos, contam-se: Associação Abril em Maio - Assiciação Cultural/ Lisboa; Associação Recreativa e Cultural de Arouca; O Sítio - Associação de Jovens «Ecos Urbanos», de S. João da Madeira; Academia de Música de S. João da Madeira; SOS-Racismo; Olho Vivo - Associação Anti-Racismo; APCC - Associação de Apoio às Crianças Carenciadas; Escola de Bailado e Artes Cénicas, de Vila da Feira; IGRECA - Grupo de Estudo do Trabalho ao Domicílio; Centro de Documentação 25 de Abril; Mutualidades - Associação Cultural, Esmoriz/ Ovar. Para além dos múltiplos eventos públicos em que estas organizações intervêm, por iniciativa sindical, e que ocorrem em diversas freguesias da região, outros acontecimentos, igualmente no domínio da dinamização cultural têm vindo a ser promovidos na sede do sindicato do Calçado, em SJM. Em particular, os que têm lugar no Auditório José Afonso, que funciona nas suas instalações e que foi inaugurado há cerca de dois anos.

Esta variedade de redes e de actividades é bem ilustrativa da importância atribuída à dinamização cultural, enquanto retaguarda fundamental da estratégia sindical. O trabalho de base passa por uma clara abertura a linguagens e formas plurais de intervenção e denúncia que, preservando a profunda convicção na luta anti-capitalista, apela à necessidade de alianças políticas fora do campo sindical: «a nível político [é preciso recuperar o papel das] ONGs, das organizações ligadas à ecologia, aos direitos das mulheres, às minorias, à defesa dos pobres e sem abrigo..., portanto, tem que haver uma articulação desses movimentos, que não existe, estão todos destruídos e desarticulados...» (Dirigente Sindical, 20/7/2000). Esta orientação, sem dúvida reforçada por uma demarcação face à ortodoxia e ao dogmatismo que minou o movimento sindical português, aponta justamente no sentido de uma busca das «heterotopias de resistência», no sentido avançado por Santos (2000: 311), procurando escavar nas margens do sistema experiências alternativas que ajudem a reinventar novos caminhos para a emancipação. Trata-se, pois, de caminhos que simultaneamente dão combate à utopia liberal dominante e se demarcam da rigidez da velha utopia socialista, sem no entanto caírem no pessimismo desacreditante e conformista. Pode considerar-se que a praxis desta estrutura sindical desenvolve um olhar crítico que supera o ressentimento através da imaginação criativa. Só nestas condições é possível identificar espaços sociais onde os actores não se limitam a aceitar a submissão e a exploração, mas driblam e corroem o sistema, através de formas de resistência inovadoras.

Sem dúvida que o trabalho de base que este sindicato vem promovendo se defronta com imensas dificuldades e é difícil antever um cenário de lutas emancipatórias generalizadas. Mas, como sabemos, os novos movimentos, aqueles que hoje são porventura mais activos e eficazes na acção colectiva emancipatória, fazem-no contrapondo às conexões de dominação hegemónica, novas conexões de resistência anti-hegemónica - entre a exploração e a exclusão, entre a economia e a cultura, entre a fábrica e a comunidade, entre o local e o global.

Entre o local e o global

É sabido que o sector industrial do calçado se tem revelado um dos mais dinâmicos da indústria portuguesa ao longo das últimas décadas e que esse dinamismo se prende em larga medida com a sua vocação exportadora. Convirá, no entanto, começar por referir que essa orientação para os mercados internacionais, longe de ser uma tendência recente, acompanhou o esforço de crescimento do sector desde que a indústria deu os primeiros passos no sentido da mecanização e modernização, nas primeiras décadas do século XX. É, de resto, essa tradicional ligação às transações económicas internacionais que justifica esta linha de análise. Pretende-se, por um lado, compreender o modo como as dinâmicas locais e globais se conjugaram na produção dos mecanismos de regulação adaptativa (do global sobre o local) e, por outro, identificar e analisar as experiências mais recentes promovidas a partir do âmbito comunitário, nomeadamente as que vêm sendo activadas através da acção sindical, no sentido de rearticular resistências locais e acção global, direccionando-as numa perspectiva anti-hegmónica e cosmopolita.

A expansão industrial e os efeitos da globalização hegemónica

Como atrás assinalei, o arranque da indústria moderna nesta região - em especial a indústria do calçado - teve inicialmente como principal suporte os capitais acumulados pela geração de emigrantes locais que haviam enriquecido no Brasil. Muitas destas figuras têm hoje os seus nomes inscritos na toponímia da actual cidade de SJM, por terem visto reconhecido o seu papel de «notáveis», que promoveram o desenvolvimento local desde as primeiras décadas do século XX.

Os avultados investimentos que canalizaram para a dinamização industrial e os contributos que deram à criação de diversas infraestruturas, obedeceram a uma estratégia que alimentou o discurso filantrópico e permitiu legitimar o protagonismo político local que algumas destas personalidades viriam a assumir. Se é verdade que o seu aparente voluntarismo não teria sucesso se a dinâmica de mercado não estivesse já a marcar a actividade económica na região, também se pode dizer que, por esta via, estavam a dar-se passos significativos na reconversão das comunidades rurais tradicionais segundo uma lógica de crescente ligação à indústria. Para além da intensificação das relações comerciais nacionais e regionais ter constituído um factor decisivo no desenvolvimento industrial, a sua dinamização foi assim fortemente mediada pela circulação transnacional de capitais, o que significa dizer que, já neste período, as transações económicas de âmbito global marcaram profundamente os processos locais. Pode ainda acrescentar-se que o próprio processo de mobilidade - saída e regresso de emigrantes -, ao posiciononar este sector social como pivôt da modernização, encerra lógicas contraditórias de desterritorialização/ reterritorialização que se inscrevem na recomposição identitária das comunidades e na sua adaptação a uma regulação subordinada às exigências de acumulação capitalista.

Uma outra dimensão que atesta o modo como os impactos locais da expansão industrial sempre se combinaram com factores de ordem global, prende-se com a exportação do calçado. Os primeiros industriais do sector, muitos dos quais tinham desenvolvido, como vimos, actividades económicas no Brasil, procuraram consolidar esse mercado como destino privilegiado dos seus produtos. Mas o primeiro impulso na produção de calçado português fabricado nesta região destinou-se a satisfazer encomendas do exército português, designadamente para ser utilizado pelos batalhões que participaram na I Guerra Mundial. Embora não se tratasse de uma actividade propriamente exportadora, tratou-se sem dúvida de uma conjuntura geo-política que, além das consequências dramáticas que teve, obedeceu evidentemente a ditames de natureza global e repercutiu-se localmente de forma notória. Não só porque promoveu as primeiras unidades mecânicas do sector como, indirectamente, levou ao surgimento de diversas pequenas empresas que começaram a produzir em regime de subcontratação para aquele industrial.

Essa circunstância, embora conjuntural, tornou-se estruturante da actividade industrial local e dos seus impactos junto das comunidades. Ao mesmo tempo que permitiu que o sector se virasse crescentemente para a exportação, lançou as bases que progressivamente foram acentuando a vulnerabilidade da classe trabalhadora e da indústria em geral perante as oscilações internacionais, no plano político e no plano económico. As incidências locais dessa vulnerabilidade processaram-se de modo a absorver cada vez mais sectores da força de trabalho da actividade agrícola tradicional, o que fez emergir um semiproletariado superexplorado, dócil e dependente, que via na fábrica uma alternativa ou um complemento económico atractivo, perante os parcos modos de subsistência em que estava encerrado. Precisamente porque ao longo dos anos 30 e 40 a exportação de calçado português para a Europa se havia reforçado significativamente, os períodos de guerra ou de maior agitação social e política, com as óbvias incidências na recessão económica e contracção dos mercados, traduziam-se a nível local no encerramento de muitas empresas e consequentes vagas de fome, doença e miséria para a classe trabalhadora da região, como aconteceu durante a guerra civil espanhola e principalmente na conjuntura da II Guerra Mundial.

Os períodos de crise internacional e as suas consequências devastadoras nesta região ilustram bem as interdependências que se vinham estabelecendo entre os mercados globais e a relação salarial do sector. Não obstante as políticas restritivas, repressivas e nacionalistas do Estado salazarista, a indústria do calçado conseguiu apesar de tudo permanecer como janela aberta para a internacionalização. Os segmentos de mercado que vinham sendo conquistados pelo sector a nível mundial tiveram a sua natural continuidade no período de crescimento e estabilidade internacional do pós-guerra.

A partir dos anos 50, e em especial ao longo da década de 60, a expansão das exportações de calçado alargou-se substancialmente, conseguindo penetrar no mercado americano e nos países do bloco soviético, além de manter os laços comerciais com a Europa ocidental, as colónias africanas e o Brasil. Mas, a divisão internacional do trabalho, se bem que interligada por estes laços de interdependência, vinha dando lugar a sistemas produtivos e experiências de acção sindical extremamente díspares. E essas experiências do passado têm repercussões no presente. Enquanto nos países e regiões onde o movimento operário e os sistemas industriais passaram pela experiência do «fordismo» o velho modelo de sindicalismo está hoje a braços para criar estratégias de acção adequadas às actuais tendências globais - de fragmentação do trabalho e crise da mobilização sindical -, nesta região, apesar da tutela do Estado Novo, pode dizer-se que, a partir dos anos 60, se entrou directamente no «pós-fordismo» sem nunca se ter passado pelo «fordismo». No entanto, as profundas assimetrias, clivagens socioculturais e recomposições identitárias que tais mudanças suscitaram, podem reverter-se numa vantagem potencial para a renovação do sindicalismo, e, através dela, para a reanimação do princípio da comunidade.

O discurso que, nas primeiras décadas do século XX, produziu a «comunidade adaptada» de SJM, muito embora centrado nas articulações entre o local e o nacional, transportava representações direccionadas para um sentido subjectivo de universalização no qual se inscrevia o binómio local-global. Os primeiros movimentos locais, desencadeados pelos notáveis e «novos ricos» da região, visando a conquista do estatuto de vila e de concelho, foram acompanhados por um discurso que glorificava o «espírito de sacrifício» e a dedicação ao trabalho, mas era efectuado em nome da luta pelo «progresso» e pela modernização industrial. O novo estatuto que SJM passou a ostentar no mapa territorial do país reflecte, sem dúvida, uma promoção que lhe proporcionou uma maior visibilidade. Mas, como sabemos, não pode confundir-se o protagonismo das classes dominantes com a emancipação do povo. Se para as elites locais esta foi uma importante conquista, essa conquista foi talvez mais significativa pelos seus efeitos no fortalecimento dos mecanismos de regulação do tipo «top down», na relação com as classes trabalhadoras, do que pela afirmação de um poder do tipo «bottom up», na relação com as instâncias e poderes oficiais. Reflexo disso é, desde logo, o facto deste discurso, de cariz bairrista, ter começado a confundir-se com a doutrina nacionalista então emergente, uma e outro de contornos paternalistas, funcionando como suporte ideológico do regime salazarista e elo fundamental de articulação entre as suas políticas disciplinares e os poderes locais. O seu impacto foi notável no enquadramento das comunidades, tanto na esfera do trabalho como no plano das actividades recreativas, nomeadamente através da aplicação local da célebre fórmula fascista cinicamente designada por «Alegria no Trabalho».

Do ponto de vista da acção estatal, esta foi uma orientação doutrinária e repressiva que se destinava, à semelhança da experiência nazi, por exemplo, a reconverter o mito da velha comunidade medievalista numa nova comunidade «esteticizada» e «folclórica», ao serviço do Estado salazarista. Mas, do ponto de vista das dinâmicas locais que já estavam em marcha, é importante notar que esta espécie de «modernismo reaccionário», promove uma comunidade fictícia, adaptada e regulada a partir «de dentro», isto é, a partir do «núcleo duro» dos poderes locais já instalados e que responde largamente às necessidades de expansão da indústria local com base na fabricação de novas lógicas disciplinares, mecanismos de consentimento, que se traduziram na subjugação da classe trabalhadora e na «localização» ou «colonização» da comunidade, não apenas pelo Estado nacional, mas em obediência a vinculações económicas mais vastas submetidas ao princípio do mercado e à estratégia exportadora da indústria local do calçado.

Muito embora, como já indiquei, os impactos locais da globalização sejam antigos, o novo liberalismo global das últimas décadas não deixou de ter consequências visíveis nesta região. Consequências que se inserem na lógica geral de crescimento exponencial das economias centrais e, consequentemente, se traduzem na dominação das economias mais frágeis, ou seja, as que se situam nas regiões periféricas do sistema mundial. Se no caso português se reflectem as contradições próprias de uma sociedade semiperiférica inserida num bloco central (a União Europeia), no seu interior existem sectores produtivos - como o presente exemplo da indústria do calçado - onde essas contradições são particularmente contrastantes. Ao mesmo tempo que a vocação exportadora do sector se mantém acima dos 80% da produção, o investimento externo, que, principalmente desde os anos 60, vem beneficiando do baixo custo da força de trabalho, tem na última década vindo a deslocar-se, pelas mesmas razões, para os países do Sul, em especial os do continente asiático, cuja concorrência se repercute no nosso país, induzindo múltiplas situações de deslocalização de empresas, encerramentos inusitados e falências fraudulentas.

Apesar do sector do calçado no seu conjunto continuar a resistir às novas condições da concorrência global, os custos salariais ocupam apenas 17% dos custos de produção, reflexo de que a mão-de-obra intensiva continua a ser a regra, com o salário médio do sector a situar-se nos 75.500$00 brutos (=328,54US dollars). A heterogeneidade do tecido empresarial continua a alimentar profundas clivagens e interdependências entre as grandes empresas mais inovadoras e a esmagadora maioria das pequenas unidades que subsistem na estreita dependência das maiores, produzindo em regime de subcontratação, alimentando o trabalho domiciliário, a produção clandestina (inclusive o trabalho infantil), etc., etc. Ao mesmo tempo que surgem débeis sinais por parte de alguns produtores que começam a apostar na reconversão tecnológica, no design, e na competitividade diferenciada e qualitativa, muitas empresas, mesmo as mais modernas, fabricam em geral para marcas internacionais, europeias e americanas, que distribuem os produtos portugueses pelo mundo a partir de grandes cadeias comerciais e entrepostos de distribuição, onde o acrónimo made in desaparece. Os detentores das grandes marcas, designadamente inglesas e escandinavas, desenvolvem contratos de franchising com extraordinários ganhos de comercialização, vendendo produtos fabricados «onde calha» (INOFOR, 2001) e conquistando vastos segmentos dos mercados globais através das suas siglas e imagens, sem que as origens nacionais e os nomes dos fabricantes sejam alguma vez conhecidos. Estamos, pois, perante uma estratégia de marketing global que se insere na primazia do ciberespaço sobre a geografia, na primazia das redes globais sobre os conceitos clássicos de troca e de mercado. Estratégia essa que encontra paralelo em casos como o da prestigiada marca Nike que, como refere Jeremy Rifkin, «não tem capital produtivo: faz produzir os seus sapatos através de empreitadas anónimas no Sudeste Asiático - é um custo de funcionamento. Os clientes da marca pagam o custo de entrar na sua lenda» (Rifkin, 2001: 18).

Dir-se-ia que, neste caso, os «localismos globalizados» não são propriamente «localismos» mas sim processos difusos e complexos que permitem ao capital transnacional aperfeiçoar os mecanismos de «sugagem» de recursos, exercendo e aumentando exponencialmente a sua dominação e acumulação de riqueza. Como resultado disso, assiste-se não só ao total silenciamento e apagamento do país ou das sedes de produção, mas sobretudo à completa omissão e exclusão silenciosa de milhões de trabalhadores, num processo em que o «trabalho vivo» desaparece e o que fica é o hiper-realismo estético de um produto adornado com as cores da classe média «global». Dir-se-ia que os «globalismos localizados» correspondem, neste caso, aos impactos locais do poder económico sobre esses trabalhadores e as suas comunidades, uns cumulativamente explorados no seu trabalho, outras silenciadas e remetidas para as margens da sociedade e do sistema. A globalização hegemónica da última década apenas acentuou e complexificou as malhas de todo um tecido feito de interdependências, onde a intensidade da exploração se resguardou em poderes mais subtis, em opressões mais escondidas e em formas de dominação mais sofisticadas, que se reproduzem em cadeia, desde os centros internacionais do poder económico à esfera doméstica do trabalhador mais depauperado. É neste sentido que a subordinação das comunidades à indústria obedece à mesma lógica da «colonização» do local pelo global, ou seja, da dominação das colectividades trabalhadoras e dos seus modos de vida comunitários e familiares pelo poder do capital global. Por essa razão, faz todo o sentido, a meu ver, interpretar as dificuldades e potencialidades das novas estratégias de internacionalização solidarista por parte do sindicato enquanto contraponto dos poderosos impactos que os mercados globais têm feito incidir sobre a região e a sua classe trabalhadora, como acabámos de ver.

Por um novo internacionalismo sindical, global e anti-hegemónico

Já no início fiz referência à natureza contraditória das tendências sociais e políticas que vêm ocorrendo na actual fase de capitalismo tardio. Sem dúvida que tais contradições não alteram o facto de a globalização hegemónica fortalecer o poder dos que já são poderosos e ampliar a riqueza dos que já são ricos. Essa é, como se sabe, uma consequência que radica na própria natureza do capitalismo liberal e que os mercados globais vieram agravar. Ao proporcionar a emergência de novas oportunidades individuais para certos segmentos sociais, produz do mesmo passo mecanismos de opressão e omissão que tendem a submeter e a esconder, sob o manto do empowerment individualista, o seu reverso: a exclusão e precarização que recai sobre os sectores mais precarizados e vulneráveis. Os efeitos da globalização neoliberal incidem localmente num sentido dialéctico, activando plataformas de oportunidade que se esgotam na pura lógica individualista ao mesmo tempo que pulverizam, fragmentam ou marginalizam os potenciais promotores de novas formas de acção colectiva, processo este que tem vindo a incidir drasticamente na fragilização do movimento sindical.

Mas, apesar disso, e sendo embora uma verdade insofismável que o trabalho se encontra hoje mais dividido e precarizado e o capital mais unido e coordenado à escala global, não deriva daí necessariamente a conclusão irrevogável, sustentada por Castells (1996: 360), segundo a qual «o movimento operário foi historicamente suprimido», ou sequer que o mesmo perdeu a sua capacidade transformadora e emancipatória (Waterman, 1999). É certo que o sindicalismo tradicional parece estar em vias de esgotamento, mas há sinais de que a sua revitalização é possível, se bem que sob novas bases de intervenção. A experiência europeia de implementação dos Conselhos de Empresa Europeus (CEEs), embora circunscrita às grandes empresas e sujeita a inúmeras dificuldades, apresenta potencialidades que desafiam a capacidade de resposta dos trabalhadores e do sindicalismo português, com possíveis consequências emancipatórias (Costa, 2000); enquanto que, por exemplo, o caso da rede sindical da rede SIGTUR, estudado por Lambert e Webster (2000), ilustra de forma eloquente as virtualidades de um movimento social global anti-hegemónico, fundado num novo internacionalismo operário, que tenta combinar a organização sindical tradicional com as redes da era da informação.

À semelhança destes, o caso aqui em análise apresenta, também ele, potencialidades inovadoras neste domínio. Já mostrei na primeira parte como o sindicato do calçado tem vindo a sobressair na região, não só na denúncia de direitos agredidos e da exploração desenfreada dos trabalhadores, mas também como um decisivo pivot de solidariedade e de dinamização de múltiplas iniciativas associativas na esfera da comunidade. Prosseguindo agora a linha de análise que tenho vindo a usar, importa pôr em evidência os esforços que o sindicato do calçado tem vindo a desenvolver no sentido de contrapor aos efeitos destrutivos da globalização neoliberal, formas inovadoras de globalização contra-hegemónica que tentam ir ao encontro dos novos movimentos globais de resistência, através da participação em redes internacionais de mobilização colectiva.

A sua actividade começou a orientar-se, principalmente ao longo dos anos 90, no sentido de alargar as suas coligações da escala local para a escala global, onde se combinam actores diversificados e formas plurais de intervenção. Foi o que aconteceu, quando a partir de 1997 a direcção do sindicato integrou o projecto das Marchas Europeias (inclusive participando na assembleia de preparação, em Bruxelas, em Abril desse ano), uma iniciativa tomada autonomamente, já que a proposta nesse sentido que havia apresentado ao Conselho Nacional da CGTP-IN, foi nessa altura rejeitada (só posteriormente esta central começou a integrar aquele movimento). Quer isto dizer que a orientação internacionalista que estava a ser proposta não é alheia ao esforço renovador e à intervenção crítica que, desde há muito, tem vindo a guiar a actuação deste sindicato no interior daquela estrutura federativa. Esse esforço de intervenção nas redes internacionais - principalmente no espaço europeu, mas que se estende também ao Brasil - ilustra bem a importância atribuída, quer ao enquadramento institucional das políticas laborais no âmbito da União Europeia, quer às iniciativas promovidas pelas organizações sindicais no plano transnacional. Tal intervenção reflecte-se, pois, tanto a nível das instâncias de diálogo e negociação como em manifestações de protesto. Por exemplo, no âmbito da directiva europeia sobre os Conselhos de Empresa Europeus (CEEs), o sindicato esteve representado em diversos encontros relacionados com a aplicação da directiva a empresas multinacionais do sector, instaladas na região (são os casos das firmas Ecco Let, C. & J. Clark, e Rhode), acompanhando de perto esses processos e sendo, inclusivamente, levado a denunciar tentativas de manipulação dos respectivos actos eleitorais destinados a eleger os representantes dos trabalhadores nos CEEs. Foi, aliás, graças a essa acção que aqueles actos ilegais foram anulados. É também este tipo de intervenção que permite reforçar o papel mediador do sindicato nos processos negociais, bem como a sua posição internacional junto dos sindicatos congéneres da Europa.

No âmbito das Marchas Europeias contra o Desemprego e a Precaridade, o sindicato tem participado activamente, integrando estruturas organizativas, divulgando iniciativas, promovendo a mobilização de associados e dirigentes, que estiverem presentes em algumas dessas manifestações de protesto (como em Nice, Dez/ 2000; em Bruxelas, Abr/ 1997; na marcha Zurich-Marselha, Maio/ 1997; e no Porto, Jan/ 2000). Para além disso, tem vindo a estreitar as suas ligações com o movimento sindical brasileiro, mantendo contactos com a CUT e com o Sindicato dos Sapateiros de Nova Amburgo, tendo participado em Dezembro de 1999 em diversos encontros sindicais no Rio Grande do Sul.

Seguindo uma linha de actuação semelhante à dos actuais movimentos sociais globais, a direcção do sindicato do calçado de SJM recorre cada vez mais às redes cibernéticas/ www para captar e actualizar informação, que depois divulga aos seus associados e à população local, procurando mostrar que os problemas locais têm muitas vezes na sua génese factores globais, sem dúvida uma forma de promover sentimentos de solidariedade para com as vítimas da globalização hegemónica a nível planetário. Diversas associações e movimentos de âmbito internacional fazem parte do rol de parcerias e convénios que tem vindo a desenvolver nos últimos anos.

MST - Movimento dos Sem Terra, Brasil;

CUT - Central Única dos Trabalhadores, Brasil;

VIENTO SUR - Revista de Assuntos Económicos e Sociais, Brasil;

MOVIMENTO DOS «SEN PAPIERS», França;

AGIR CONTRE LE CHÔMAGE, França;

PLATAFORMA 0,7 - Madrid;

CGT - CONFEDERACIÓN GENERAL DEL TRABAJO, Madrid;

DERECHOS PARA TOD@S, Madrid;

PAZ AHORA, Madrid;

EUROPEAN HOMEWORKING GROUP, Inglaterra - Leeds;

COMISSIÓN OBRERA NACIONAL DE CATALUNHA, Barcelona;

OIBRÍ BAILE (Grupo de trabalho no Domicílio), Irlanda;

MAQUILA SOLIDARITY NETWORK (Grupo de trabalho no Domicílio), Toronto;

HOMENET (Grupos de Trabalho no Domicílio), India, Tailândia, Santiago do Chile;

OUTWORK TCFUA (Grupo de trabalho no Domicílio), Austrália, Carlon;

(FONTE: Sindicato dos Trabalhadores do Calçado, Malas e Afins dos Distritos de Aveiro e Coimbra)

Muitas destas organizações têm vindo a integrar de forma concertada diversas concentrações e protestos colectivos (designadamente no âmbito das Marchas Europeias, a que trás aludi), e inserem-se, tal como a estrutura sindical aqui em análise, no amplo movimento de contestação pacífica à globalização hegemónica. Este esforço de intervenção, que oscila entre o local e o global e que procura conectar ambas as lógicas no mesmo processo, pode ser lido não apenas segundo o velho lema dos movimentos ecologistas, quando apelavam à necessidade de «pensar globalmente, agir localmente», mas como a tentativa de lhe acrescentar o princípio, talvez mais adequado ao contexto actual, segundo o qual é necessário «pensar localmente, agir globalmente». Esta perspectiva repousa, pois, na ideia de que o pensamento e a acção têm, hoje mais do que nunca, condições para transgredir fronteiras e dialecticamente produzir soluções para os actuais problemas, seja descobrindo alternativas para as questões locais a partir da acção global, seja contribuindo para um novo humanismo solidarista e universal a partir da acção local. Poder-se-á então considerar que quando a realidade laboral dos operários do calçado de SJM é denunciada nos fora internacionais não é apenas o mundo da produção industrial que é posta em questão, mas todo o contexto local onde essa realidade se inscreve.

A orientação emancipatória que tem sido seguida baseia-se, portanto, não unicamente na construção de plataformas e alianças locais, mas na sua expansão para a escala global de intervenção. E é precisamente aqui que se insere a estratégia que na última década tem vindo a guiar a actuação deste sindicato e da sua liderança. Ou seja, trata-se de uma estratégia que simultaneamente transporta preocupações ligadas a «velhas» e novas modalidades de internacionalismo, que simultaneamente veicula uma solidariedade operária de tipo «revolucionário» e um sentimento onde se espelham experiências acumuladas através de um trabalho de base que não se circunscreve à militância sindicalista. Convirá a este respeito ter presente que o principal líder do sindicato manteve no passado uma intensa actividade associativa e partidária onde se misturaram a intervenção cultural (já mencionada no ponto anterior) e a filiação em partidos de extrema esquerda (de inspiração trotskista, como a LCI e o PSR), bem como uma identificação com correntes sindicais de matriz basista (como a BASE-FUT). Não é, pois de admirar que aqui se combine uma vocação culturalista e «basista» com uma grande abertura face aos actuais movimentos de solidariedade global. Isso mesmo fica claro num discurso que reúne a critica radical à globalização capitalista e a profunda convicção de que nada se consegue sem o persistente trabalho de organização e mobilização, um discurso que, no fundo, articula o radicalismo ideológico, aberto e actualizado, com o sentido pragmático da acção imediata.

É preciso que se criem alternativas a este sistema. Se levarmos ao extremo as medidas ecologistas, é evidente que o movimento tem de ser anti-capitalista, no sentido rigoroso do sistema capitalista, que é só pela acumulação, pois não tem em vista servir o ser humano. Porque hoje o ser humano, com o conhecimento actual e as tecnologias, como se sabe, está num nível que não era necessário haver tanta pobreza... Só que este sistema está feito para criar essa pobreza e essa riqueza (...)

E nada se faz sem haver trabalho de organização (...) Portanto, tem que haver uma articulação desses movimentos, tanto a nível de Portugal como a nível planetário. Quer dizer, nada acontece se não houver um trabalho profundo de mobilização, de organização, de reflexão, para que todos juntos consigamos pôr um "pau na engrenagem", tentar criar movimentos mais fortes e mais poderosos, em Portugal e a nível da Europa e do planeta. Há milhões de pessoas no mundo que estão a agir agora! Estão a agir, como agora em França, com aquele dirigente dos camponeses que invadiu o Mc’Donald’s. Aquilo não foi banditismo, aquilo é uma acção contra este sistema de normalização, de globalização, que barra toda a gente, despede toda a gente, põe toda a gente no desemprego, e que é a favor dos grandes grupos económicos, da acumulação brutal das grandes fortunas, não é? Aquela acção despertou simpatias em milhões de pessoas, e agora o que é preciso é articular estas forças em todas as áreas (Dirigente Sindical, SJM, Julho/ 2000).

Nesta visão sobressai claramente a importância atribuída aos movimentos contra-hegemónicos que se desenham no mundo actual, conjugada com a necessidade de articular o movimento sindical com outros movimentos, de articular os problemas locais e nacionais com a lógica global. Por outro lado, ressalta deste discurso a consciência clara de que os actuais movimentos sociais e culturais se encontram dispersos, e que é preciso um grande esforço de articulação entre os diferentes campos da acção colectiva, sem o qual a acção sindical dificilmente encontrará os caminhos alternativos para uma sociedade mais justa e solidária.

Constituindo esta uma concepção que é, afinal, produto da realidade cultural e socioeconómica da região, ela não pode deixar de se assumir como um exemplo que personifica, ele próprio, uma prova empírica dos argumentos que procurei desenvolver ao longo deste capítulo. O mesmo enquadramento local que ao longo dos anos se tornou um sustentáculo decisivo da normalização reguladora, também produziu subterraneamente locus de contestação e vozes dissidentes. Se bem que estas possam ser mera expressão de uma emancipação subjugada e absorvida pela regulação (Santos, 2000: 335), estes germens silenciados tendem a persistir como resistências latentes. Nascida do silêncio das margens, a voz da estrutura sindical apoia-se nas vibrações ocultas da comunidade «localizada» para se erguer em sonoridade amplificada nos centros de contestação «cosmopolita». Dir-se-á que, neste sentido, o cosmopolitismo não é senão o heterónimo universalizado do localismo.

Conclusão

A crescente fragmentação e fragilização do trabalho e do movimento sindical tradicional está a colocar na ordem do dia a necessidade de estudar os novos desafios que este campo tem vindo a enfrentar, bem como a urgência de descortinar formas alternativas para a sua revitalização e reinvenção. Uma análise crítica e ao mesmo tempo politicamente empenhada não pode limitar-se a sublinhar as dificuldades e a dramatizar as situações que já são dramáticas. Não pode, por outro lado, sobrevoar sobre a realidade e inventar o que não existe. Mas pode, e a meu ver deve, se quiser manter-se fiel à teoria crítica que forneceu o principal suporte analítico do presente projecto colectivo, mostrar aquela (contra)parte do que existe mas não se deixa ver, dando visibilidade tanto aos dramas humanos que se escondem sob o manto das múltiplas opressões existentes como às experiências, lutas e iniciativas que, pela sua exemplaridade, possam abrir novos caminhos emancipatórios e contribuir para o fortalecimento das formas emergentes do novo internacionalismo solidário e humanista a que o mundo tem vindo a assistir na última década.

O presente capítulo analisou um caso onde, justamente, as velhas e novas formas de opressão, exploração e exclusão se inscrevem claramente na lógica de dominação económica global. A interpretação que adoptei na análise desses processos procurou compreendê-los a partir dos factores históricos e socioculturais que acompanharam a implantação industrial na região desde os princípios do século XX, mostrando, por um lado, o poder e a capacidade de enquadramento da produção industrial sobre as comunidades locais e, por outro, o modo como esse enquadramento obedeceu aos ditames economicistas dos mercados e sofreu influência das conjunturas políticas internacionais. Não obstante a inquestionável eficácia da cadeia de factores, que soube interligar as instâncias transnacionais do poder económico aos mecanismos de controlo locais, não obstante a força reguladora da elite capitalista local e o seu triunfo sobre as práticas e lutas classistas e sobre a rebeldia comunitária, tratou-se do exercício de um conjunto de poderes - económicos, sociais e simbólicos - que, no entanto, sempre encontraram pela frente factores de rebeldia e de resistência vindos de baixo.

O modo como o princípio do mercado se impôs ao princípio da comunidade nunca deixou de denunciar as contradições do primeiro e a criatividade do segundo. Se a adaptação da comunidade teve de ser acompanhada por iniciativas de solidariedade tuteladas pelos industriais, a hegemonia do mercado teve de socorrer-se da acção estatal, em especial na modalidade repressiva e autoritária do Estado salazarista, para conduzir a formas de consentimento adequadas a tais desígnios. Paralelamente, o modo como se fizeram sentir os impactos locais de variados mecanismos vinculados à escala global traduziram-se em factores de pressão reguladora e opressiva, que a partir dos anos 80 se reforçaram enormemente. Uma tendência alarmante que, por isso mesmo, desencadeou na última década novas políticas de alianças por parte do sindicato, levando-o a reorientar a sua intervenção para o plano transnacional, procurando contrapor ao localismo de exclusão o sentido globalista, inclusivo e cosmopolita, que tenta combater as opressões locais a partir das solidariedades globais.

A recomposição da comunidade sofreu ao longo do tempo influências contraditórias que por vezes abriram espaço a iniciativas de resistência e acções de rebeldia. Foi, de resto, nos interstícios dessas contradições que a actividade sindical se imiscuiu para promover as lutas operárias. Porém, confrontados com formas de regulação que evoluíram das velhas lealdades patriarcais para os modernos despotismos patronais, os trabalhadores raramente aderiram a uma mobilização sindical circunscrita à realidade produtiva. É precisamente por isso que a luta operária promovida pelo sindicato do sector, apesar das importantes vitórias alcançadas ao longo dos anos 80 - nomeadamente nas lutas contra a violência arbitrária dos empresários, a discriminação da mulher e o trabalho infantil -, começou a desdobrar-se e a dirigir-se cada vez mais à esfera do associativismo e à dinamização cultural no espaço comunitário, como forma de reforçar a sua capacidade de intervenção junto dos trabalhadores. Esta abertura, se bem que ainda com ténues resultados no plano da mobilização, é bem ilustrativa de um potencial de imaginação e criatividade heterodoxa que se inspira numa liderança capaz de aliar ao trabalho de base no quotidiano, à grande proximidade com os trabalhadores, dentro e fora das empresas, a enorme sensibilidade para a intervenção cultural junto das colectividades e do movimento associativo da região. Trata-se de uma estratégia que não só resiste ao indiferentismo retraído e individualista como procura promover a emancipação da comunidade construindo novas alianças e aproximando segmentos da força de trabalho mais precarizada e vulnerável (os desempregados, idosos, jovens e mulheres em regime de produção domiciliária, etc.).

Uma tal estratégia de intervenção plural contribui, por um lado, para reforçar as condições e os programas de negociação, que o sindicato persegue noutras sedes - dialogando com as entidades patronais, o Estado e os outros parceiros sociais -, evidenciando assim como a luta paradigmática se trava simultaneamente por dentro e por fora, recuperando nas margens a força para corroer os centros de poder no interior dos próprios mecanismos de regulação. Por outro lado, esta orientação favorece também a articulação entre a acção operária e os diversos movimentos sociais e culturais. Este é, de resto, um dos caminhos geralmente apontados para a revitalização do sindicalismo. Mas, se este tipo de resposta é revelador de potencialidades criativas para a reinvenção da acção sindical, esta, pode ainda ser complementada com as outras formas de participação, designadamente no plano transnacional e global.

Deste modo, a praxis internacionalista da estrutura sindical deste sector, ao assumir um crescente protagonismo em plataformas de luta contra a globalização hegemónica neoliberal, lado a lado com outras formas de activismo e outros movimentos sociais, orienta-se por uma estratégia de actuação que, tanto pode contrariar e resistir aos efeitos demolidores das empresas multinacionais do sector, como se esforça por inverter o processo de «localização opressiva» que tem submetido as colectividades operárias e as suas comunidades em «sociabilidades conformistas», procurando dirigir a sua acção num sentido anti-hegemónico e contribuindo, assim, para uma nova visibilidade dos problemas dos trabalhadores e para reforçar novas dimensões e redes de solidariedade internacional. Antecipando-se à generalidade do mundo sindical português, o sindicato do calçado de SJM e a sua liderança apresentam um potencial de iniciativas e de imaginação que me permitem posicioná-lo na linha dianteira dos movimentos internacionalistas e emancipatórios da actualidade.

Pode pois concluir-se dizendo que a luta emancipatória que esta organização sindical tem travado ilustra bem as potencialidades que se escondem por detrás das lógicas de regulação que ao longo do tempo foram criadas com base nas forças hegemónicas que submeteram a comunidade à indústria, e o local ao global. Procurando rearticular o que foi separado, pretende reconstruir a dignidade do trabalho a partir da intervenção na comunidade e promover a emancipação do local a partir da intervenção no global. O sindicato do calçado de SJM é o exemplo de uma prática «arqueológica» que tenta recuperar o que foi destruído, descobrir o que foi encoberto, através de um percurso «de fronteira», que combina raízes e opções, em suma, que constrói a luta paradigmática de emancipação a partir da imaginação «heterotópica».

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