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Alberto Melo

A Acção local dos cidadãos como meio de resistência à nova vaga de colonização global: O caso da Associação In Loco no Sul de Portugal

 

 

1. Prefácio

    1. Uma busca interior
    2. Este capítulo representa uma descrição e análise subjectiva e certamente parcial que derivou gradualmente de uma intensa experiência pessoal. A vida consiste numa combinatória de acaso e opção, resultando as escolhas de um emaranhado de ideias e emoções. Desta forma, este capítulo não pretende ser um relatório académico de investigação, mas antes uma busca interior (claramente entrelaçada num contexto exterior de teorias, ideologias, contactos sociais e condições materiais) analisando os factores que desencadearam e acompanharam, de 1985 a 1998, o meu próprio envolvimento no arranque e gestão quotidiana de um projecto de Desenvolvimento Local no interior rural do Sul de Portugal.

    3. A dimensão política
    4. Tomei consciência de mim mesmo enquanto ser social no contexto extremamente conservador e autoritário da sociedade portuguesa da década de 50. Não constitui, assim, surpresa que a dimensão política tenha desde muito cedo assumido uma grande relevância nas minhas preocupações. E muito cedo também, fiz outras opções fundamentais que moldaram a minha consciência política de adolescente. Após um grande empenho inicial contra a ditadura de direita e a pobreza crescente na sociedade portuguesa, emergiu uma forte convicção: todo o despotismo é de direita, apesar das suas aparentes divergências e antagonismos, porque todos os regimes fundamentados na intimidação física e na propaganda do tipo «lavagem cerebral» visam apenas a protecção dos interesses obscuros dos poderosos e o bloqueio do livre curso da mudança social que beneficie a imensa maioria oprimida. Mais do que tentar encontrar a minha posição na tradicional dicotomia «esquerda-direita», comecei por procurar um compromisso político no continuum «autonomia pessoal versus constrangimentos externos». Algum tempo depois, a situação evoluiu para outro tipo de continuum, «autodeterminação social versus imposição estatal», e, mais tarde ainda, para «iniciativa colectiva local versus extinção determinada pela globalização económica hegemónica» ou «consciência cidadã e vontade colectiva versus totalitarismo prepotente e mercantilista» ou simplesmente «energias vitais versus pulsões fatais».

    5. Educação crítica
    6. Até ao final da década de 70, numa época de intenso debate ideológico, mesmo (senão essencialmente) no seio da Esquerda, a minha postura era deveras desconfortável. Eu não me encontrava entre os que queriam «tomar o poder», de forma a definir e implementar uma política governamental completamente diferente, em que todas as medidas seriam de orientação de «esquerda pura». A minha maior preocupação era a de constantemente «quebrar e dividir o poder existente» de forma a diluí-lo por milhões de «partículas», que seriam assumidas e administradas crescentemente por todos os cidadãos. Isto fez-me compreender, primeiro, que não tinha lugar em nenhum partido político e que nenhum partido político existente teria interesse na aplicação das minhas ideias. Segundo, que, caso mantivesse interesse num envolvimento político activo, teria que encontrar um significado para uma política muito mais abrangente que a convencional «política do poder». Posto isto, o tipo de trabalho político que encoraja continuamente os cidadãos a se tornarem mais autónomos, mais informados, mais poderosos em todos os sectores da vida pessoal e social, deve denominar-se Educação (crítica). E é por isso que, após vários anos de uma vivência estudantil deveras infeliz e, por vezes, rebelde, me senti obrigado a regressar à esfera do ensino. No entanto, ao analisar a Educação de um ponto de vista político, apercebi-me da urgência que havia em descobrir - ao aprender fazendo e ao fazer aprendendo - uma nova metodologia de educação que não fosse apenas uma forma de doutrinar a hegemonia de alguns sobre a maioria, nem um novo pilar de apoio do poder convencional e da sua cultura e ideologia dominantes. Uma educação assim crítica, construtiva e transformadora implicaria retirar o seu controlo absoluto aos professores e às salas de aula e construir fortes elos com os movimentos sociais. Um novo processo em que «professores» e «alunos» estariam envolvidos de uma forma igualmente activa numa busca comum de soluções para os problemas locais que afectam quotidianamente os socialmente desfavorecidos. Aqui, a educação já não pretende fornecer respostas predefinidas (para questões que geralmente nem sequer foram colocadas), mas antes o oposto: significa estar-se atento aos problemas que as pessoas enfrentam e depois procurar e produzir os necessários conhecimentos, comportamentos e capacidades que poderão contribuir para a elaboração e implementação das respostas mais apropriadas e eficientes.

       

       

    7. O «laboratório» da acção social
    8. Entretanto, muitas coisas eram ouvidas e lidas, algumas ditas, mas muito poucas escritas (pois eu nunca fui de escrita fácil e fluente). E duas outras percepções fundamentais que iluminaram o meu espírito foram decisivas para o posterior desenrolar dos acontecimentos. Primeiro, o facto de que definir, discutir, demonstrar - ao mero nível do discurso - não era afinal um método verdadeiramente «científico», porque só se conhece uma realidade depois de a experimentar e um entendimento da sociedade exige a entrada no «laboratório» da acção social. Segundo, que após meados da década de 70, o «mundo da política» estava a retroceder rapidamente e a assumir um papel cada vez mais subserviente sob a égide do poder económico e financeiro. A consequência desta percepção foi a decisão, tomada no início da década de 80 - e enquanto autodenominado «cientista social» - de me tornar um praticante, directamente envolvido num processo que deveria, de algum modo e em algum lugar, tocar, embora numa escala microscópica, alguns dos problemas fulcrais que enfrentava a sociedade contemporânea.

    9. Uma encruzilhada ilustrativa
    10. Para um melhor entendimento das realidades sociais existentes, e um simultâneo avanço em termos de política activa, a área escolhida para esse envolvimento pessoal e colectivo foi a então inovadora área do Desenvolvimento Local. Como é óbvio, esta escolha não significa que o Desenvolvimento Local seja o único ou sequer o melhor sector onde uma pessoa pode aplicar o seu empenho político. É apenas um entre muitos outros. Neste aspecto não há escolhas perfeitas. Quem quiser prosseguir a sua visão de uma sociedade melhor tem apenas que descobrir a melhor maneira (e isto abrange o campo e a forma onde a pessoa se sente simultaneamente mais útil e mais apreciada), no momento certo e no local adequado. Essa opção pode e é efectivamente muito diversificada, de acordo com cada pessoa e mesmo de acordo com a fase de vida de cada pessoa. Para alguém como eu, que tinha acabado de regressar a Portugal, em vésperas da sua adesão à União Europeia, e mais especificamente, que se estava a instalar no Algarve, onde o crescimento desordenado do litoral turístico contrasta fortemente com o vasto interior rural sob ameaça de extinção, o Desenvolvimento Local surgiu no início da década de 80 como a escolha adequada, uma encruzilhada ilustrativa das contradições fundamentais e estratégicas da sociedade portuguesa.

    11. Uma caminhada pessoal

As páginas que se seguem vão tentar revelar o ambiente concreto e ideológico onde foi desenvolvido um trabalho pessoal e colectivo de Desenvolvimento Local. Naturalmente que todo o processo significou um esforço colectivo - comummente compreendido, desejado, decidido, apreciado e suportado por todos os que, mulheres (maioritariamente) e homens, desempenharam, e a grande maioria ainda desempenha, um papel importante nesta aventura aliciante, às vezes penosa, mas frequentemente recompensadora. Não pretendo, no entanto, expressar as opiniões de ninguém mais além de mim próprio, na medida em que, neste capítulo, procuro um conhecimento mais profundo dos prós e dos contras, dos altos e baixos, do meu próprio envolvimento no Desenvolvimento Local desde 1983. E não o faço apenas para efeitos de introspecção individual, pois acredito que este exercício possa ter alguma utilidade para outros que pretendam melhor compreender a sua própria caminhada de empenhamento social.

Existirá alguma autoria individual quando se escrevem textos resultantes da junção de ideias e opiniões próprias com as de outros que estão incomensuravelmente incorporadas dentro do capital mental de cada um? Eu certamente não alego ter elaborado este capítulo sozinho, nem deter os direitos de autor a ele referentes. Eu cogitei-o e escrevi-o, é certo, e à custa de muito esforço. Mas houve tantos, mortos e vivos, que contribuíram tão decisivamente para ele, que não posso de forma alguma reclamar uma qualquer autoria. Por fim, permita-me alertar o leitor de que não tenho por hábito efectuar citações muito fiéis (facto pelo qual peço desculpa aos meus colegas da academia), pois geralmente perco a noção da diferença entre aquilo que outros escreveram e disseram e aquilo com que eu concordei, me identifiquei, meditei e assimilei. No entanto, sempre que consiga recordar o autor ou livro que mais me influenciou em determinado assunto, partilharei uma referência adequada no final do capítulo.

 

2. O início da Associação In Loco

2.1. Um projecto de vida

Em 1983, quando iniciei as diligências para um regresso definitivo a Portugal, após dezoito anos vivendo e trabalhando quase ininterruptamente no estrangeiro, esbocei um projecto de «desenvolvimento comunitário participativo». O regresso a casa só faria sentido se me permitisse desempenhar uma actividade completamente nova, uma demanda aliciante que se pudesse tornar um projecto de vida. A proposta - então denominada «Projecto Verde-Azul» (dado ser concebido para uma zona rural na orla do Oceano Atlântico) - foi remetida a dois municípios no Centro-Oeste de Portugal, uma região que eu bem conhecia desde a infância e adolescência. Para minha surpresa, não recebi qualquer resposta das autoridades locais. Como mais tarde compreendi, nos primeiros 20 anos após a revolução de 1974, de um regime de subdesenvolvimento planeado passara-se para um regime em que as recém criadas entidades de poder local estavam exclusivamente preocupadas com a infra-estruturação física e não dispunham de tempo nem de disposição para as denominadas iniciativas «imateriais». Esse projecto, no entanto, não ficou esquecido quando, um ano depois, aceitei um convite para me mudar para o Algarve, a província mais a sul de Portugal, e participar no processo de implementação do Instituto Politécnico de Faro (a cidade capital do Algarve).

2.2. O «interior escondido»

Não conhecendo esta região, que fica a cerca de 300 Km a sul de Lisboa, passei os primeiros meses, para além de algum trabalho administrativo, em missões de reconhecimento através do «interior esquecido». E foi uma enorme surpresa descobrir, mesmo por trás das apelativas e cosmopolitas praias do Algarve - uma das mais famosas estâncias balneares do mundo -, um panorama completamente oposto, uma sociedade rural que ainda mantinha a grande maioria das suas características essenciais. A Serra do Caldeirão é uma zona semi-montanhosa que, apesar do seu solo pouco fértil e declives acentuados, tem proporcionado abrigo e alimento às pessoas que ali se fixaram desde tempos imemoriais. A subsistência humana na região baseia-se numa utilização diversificada da terra (floresta mediterrânica e árvores de fruto, pequenas hortas, criação de gado, etc.) e numa cultura de auto-subsistência fortemente enraizada.

 

2.3. Uma identidade negativa

Esta Serra é um dos inúmeros territórios rurais europeus de hoje que são vítimas de marginalização, condenados a uma extinção progressiva pelos «macro-arquitectos» da Economia moderna. Aqui estava, portanto, a arena natural para a peleja entre as novas ideologias económicas e a determinação de «pôr as pessoas em primeiro lugar» e de fazer a demonstração prática de que a vontade, a emoção, o querer e a acção humanas podem resistir aos desígnios destrutivos da economia mundial. O primeiro obstáculo a ultrapassar era o da onda de derrotismo existente entre a população local. Tinham interiorizado uma identidade negativa: uma pessoa da Serra era desde há muito, aos olhos da população citadina, sinónimo de pessoa retrógrada e atrasada. Era por isso que, ao viajar pela zona, a pergunta «Aqui já é Serra?» obtinha invariavelmente a resposta «Não, não, a Serra é mais acima». E mais e mais acima, até que começávamos a descer a encosta do lado contrário sem ter chegado ainda à «Serra»...

Particularmente após a década de 60, anos sucessivos de emigração tinham espoliado as comunidades locais dos seus membros mais activos e enérgicos, facto que agravou fortemente esta desalentada perspectiva. «Esta é apenas a terra daqueles que já foram e dos que ainda hão-de ser» — era desta forma que alguns dos residentes se referiam à sua zona, como um território onde apenas os idosos e as crianças conseguiam tolerar viver. Os pais eram os primeiros a motivar os seus rebentos a partir bem cedo em busca de emprego e de melhores condições de vida.

 

 

 

2.4. Um plano de acção provisório

Com o auxílio de alguns colegas do Instituto Politécnico de Faro, preparei um «plano de acção para o desenvolvimento integrado», durante 1984, que foi mais tarde entregue na Fundação holandesa Bernard van Leer na procura de um eventual financiamento. Acontece que esta fundação é especializada no apoio a projectos de apoio à primeira infância. Desta forma, a nossa proposta inicial teve que ser necessariamente reorganizada de forma a dar prioridade a este sector específico. E aqui fica uma das primeiras lições a aprender: embora a vida humana seja multiforme e, consequentemente, qualquer processo conduzido em busca de soluções para problemas locais deva abarcar todas as facetas da sociedade, o formulário de candidatura a ser submetido aos financiadores existentes tem que focar predominantemente o campo de acção que mais provavelmente despertará a sua atenção.

Após uma visita à zona e alguns meses de negociações, a decisão foi favorável e o nosso projecto - que inicialmente previa implementação em apenas uma aldeia - foi financiado e, por sugestão da própria Fundação, expandido a três novas localidades, enquanto a sua duração passava de um ano (como nós tínhamos modestamente solicitado), para uma primeira fase de três anos. Esta foi sem dúvida uma situação única em toda a minha experiência de «corredor de fundos», quando o montante que eu tinha inicialmente pedido foi, por decisão dos financiadores, multiplicado por 10!

2.5. O Projecto RADIAL

Era então possível começar a construir uma equipa a tempo inteiro. No entanto, os meus colegas do Instituto Politécnico de Faro estavam na altura demasiado embrenhados nos seus projectos e carreiras académicas, onde a «acção comunitária» não é validada nem valorizada. Assim, de forma a desenvolver o projecto «Rede de Apoio para o Desenvolvimento Integrado do Algarve — RADIAL», com início previsto para Outubro de 1985, os novos membros teriam que ser recrutados no exterior. E não só fora do Politécnico, como também fora do Algarve. Das três pessoas que constituíam a equipa que iniciou o processo, nenhuma era originária do Algarve, provavelmente porque as pessoas mais familiarizadas com o território e com os seus principais problemas não acreditavam que pudesse ser feito algo para alterar o rumo dos acontecimentos.

2.6. Uma auscultação preliminar

Ainda antes do início do projecto RADIAL, teve lugar, em Maio de 1985, uma reunião de auscultação preliminar. Foram convidados três representantes de cada uma das 8 freguesias rurais incluídas no território seleccionado para a fase inicial das actividades: o presidente da Junta, um empresário ou «líder natural» e um jovem desempregado. Os principais serviços públicos existentes no Algarve (delegações regionais de diferentes ministérios, a Universidade e o Politécnico, os municípios envolvidos) também se fizeram representar, bem como membros da OCDE e da Comissão Europeia - apesar do processo de adesão de Portugal à Comunidade Europeia se concluir apenas no ano seguinte. Os representantes locais foram os primeiros a ter a palavra, sendo-lhes pedido que fizessem uma pequena apresentação da sua localidade, focando mais o seu potencial de criação de emprego (por exemplo, recursos sub-utilizados) e menos as suas limitações. Após cada uma destas «auditorias aos recursos locais», os representantes dos organismos presentes foram questionados acerca de programas e medidas que os seus serviços pudessem desenvolver e que fossem adequados ao apoio das iniciativas locais sugeridas. As conclusões gerais foram, primeiro, que em todas as localidades existiam recursos locais e que em todas as localidades esses recursos precisavam de apoios e, segundo, que existia um montante elevado de fundos públicos disponíveis, mas não ao alcance destas populações, que não tinham a informação necessária nem as competências técnicas para poderem preparar candidaturas adequadas. Entre o nível local e a esfera pública havia uma «terra de ninguém» a ultrapassar, através de uma estrutura e de um processo de animação, ligação, informação, formação. Tal foi o fundamento do início, cinco meses depois, do projecto RADIAL.

2.7. Acção imediata

Quatro aldeias, bem como os seus arredores rurais, foram inicialmente seleccionadas para acção imediata e três questões foram escolhidas como trampolim de desenvolvimento local integrado: animação infantil, formação para o auto-emprego e apoio às associações locais. Paralelamente, foram convocadas reuniões locais com toda a população para debater «o futuro das nossas crianças». Esta problemática, embora imposta pela Fundação van Leer, revelou-se de facto um tema muito útil e consensual como forma de arranque de um programa de acção comunitária com vista a um processo de desenvolvimento local cada vez mais abrangente. E esta questão de «consenso local» é realmente de uma relevância crítica neste tipo de trabalho de campo territorial, especialmente na fase inicial, pois as pequenas comunidades estão invariavelmente divididas por conflitos que atravessam gerações.

Estas reuniões obtiveram sempre uma forte adesão (60 a 80 participantes em cada) e originaram a decisão colectivamente assumida de criar nas aldeias centros que pudessem proporcionar acompanhamento e actividades pré-escolares e de tempos livres para as suas crianças. As comissões de pais foram então formadas para procurarem instalações adequadas, juntar equipamentos e recolher fundos. Teria sido possível ao projecto RADIAL investir alguns fundos em edifícios e materiais e depois abrir e entregar esses centros às famílias locais. O nosso objectivo principal, no entanto, era o de fomentar o empoderamento das populações locais, não as transformando em meras receptoras de «prendas» vindas do exterior. E, para que tal acontecesse, parecia crucial o envolvimento do maior número possível de pessoas desde o início do processo. Os «centros de animação infantil» locais tinham que ser os seus centros, não nossos. Em menos de um ano, as quatro comissões de famílias tinham-se constituído formalmente como (ou integrado em) associações locais, cada uma delas tomando conta da gestão do seu recente centro.

2.8. Os centros de animação infantil

A equipa RADIAL, após a fase inicial de mobilização e organização locais, podia agora concentrar-se na tarefa de recrutar e formar os animadores para os centros infantis. Dada a falta de perspectivas de emprego para os jovens locais, foi decidido recrutar entre eles os «para-profissionais» que ficariam encarregues da gestão e animação quotidiana dos centros. Naturalmente, estes não tinham formação específica para poderem ser considerados «educadores de infância» e a sua escolaridade era geralmente baixa. No entanto, como pretendíamos adoptar como regra um processo de aprendizagem contínua, qualquer obstáculo inicial iria ser transformado em fonte de uma inovação promissora. A formação foi então coordenada pela equipa RADIAL e, como a abertura dos centros não podia ser adiada um ou dois anos - enquanto se esperasse que toda a formação necessária fosse ministrada - os formação em alternância surgiu como a resposta natural. Esta necessidade premente de se organizar formação para pessoas já em actividade na área para que devem receber formação, acabou por se tornar numa «imagem de marca» do projecto RADIAL e, após 1988, também da associação In Loco, quando esta metodologia foi aperfeiçoada e implementada na formação de agentes e animadores de desenvolvimento local.

2.9. Formação para o auto-emprego

Durante 1986, ao mesmo tempo em que os centros infantis locais iniciavam as suas actividades, foram também lançados os cursos de formação para o auto-emprego nas mesmas povoações, sempre no âmbito do projecto RADIAL. Uma vez que o processo desenvolvido pelas famílias locais e pela equipa RADIAL tinha levado à abertura dos primeiros centros infantis nas aldeias abrangidas, várias mães pediram um outro apoio em relação a actividades geradoras de rendimento, pois não havia perspectivas de emprego a nível local no curto ou no médio prazo. Em todo o seu trabalho de campo, a abordagem do projecto RADIAL nunca fora a de começar pelo que faltava, pelas limitações e deficiências, mas sim pelo que os locais já tinham e melhor conheciam. E este foi também o princípio adoptado relativamente a esta formação. Os cursos iniciais eram supervisionados por artesãos locais e incidiam sobre actividades tradicionais (tecelagem, confecção, bonecas de juta). O objectivo da formação, no entanto, era ir muito mais longe, logo que a arte local fosse devidamente reconhecida e assimilada. Incluía módulos de desenvolvimento pessoal, autogestão, trabalho de equipa, tecnologias modernas, equipamento e materiais, design de novos produtos, percepção de tendências de mercado, etc. Seguiu-se uma segunda geração de cursos de formação, dois anos depois, em jogos e brinquedos de madeira, tricot, ervas aromáticas e confecção de bolos. Como resultado, em 1989, sete novas unidades produtivas de cariz local tinham sido instaladas, proporcionando uma ocupação independente e remunerada para as cerca de 50 mulheres envolvidas. Os conteúdos de cada curso, bem como as oficinas assim criadas, foram o resultado de vários factores confluentes, nomeadamente, tradição local, potenciais escoamentos comerciais, utilização de recursos negligenciados, impacto multiplicador na economia local.

2.10. A questão dos subsídios das formandas

Transformar donas de casa residentes em remotas aldeias rurais em produtoras e gestoras qualificadas, capazes e dispostas a cooperar numa oficina de propriedade comum, não era tarefa fácil. Felizmente, encontravam-se à data disponíveis alguns programas de formação de financiamento europeu que facultavam cursos de 2 a 3 anos em regime de tempo inteiro, e que também atribuíam aos formandos um subsídio equivalente ao salário mínimo. A questão dos subsídios individuais levantou um problema fundamental que foi atempadamente transformado em mais uma oportunidade para uma inovação bastante apropriada. O salário mínimo era um rendimento relativamente elevado nestas aldeias, particularmente para mulheres que nunca antes tinham exercido uma actividade remunerada. E nós sabíamos que após os cursos de formação, quando as mulheres começassem a sua actividade empresarial, o rendimento esperado seria, nos primeiros meses, apenas de 25% a 30% do montante que elas anteriormente recebiam como formandas... Uma fórmula infalível para a morte prematura das novas empresas.

O seguinte esquema foi então elaborado e proposto a todas as candidatas dos cursos promovidos pelo RADIAL (e depois pela In Loco): foi pedido às formandas que poupassem uma parte do seu subsídio todos os meses; este montante seria por elas depositado numa conta bancária comummente titulada por todas as participantes em cada curso. O dinheiro assim poupado seria utilizado quando as formandas decidissem colectivamente investir em equipamento, matérias primas ou participação em feiras, e mais tarde, quando acabassem os subsídios, seria utilizado como suplemento aos parcos rendimentos iniciais das suas empresas.

2.11. Produzir e vender

Relativamente a actividades produtivas em remotas zonas rurais como a Serra do Caldeirão, surgem problemas essenciais em ambos os extremos da linha: produzir e vender. De facto, não é fácil mobilizar as populações locais para o reflorescimento de produtos e processos que elas tendem a associar com um passado retrógrado e de extrema pobreza. E se e quando algumas pessoas se interessam, então não é viável apenas recriar os velhos processos produtivos. Novos mercados, novas tendências de consumo, novas exigências relativamente ao tempo e rendimento do produtor, todos esses factores apontam para uma mudança radical na organização do trabalho. Novas tecnologias são normalmente necessárias, mas a sua introdução deve ser ponderada, tendo consciente que os produtos e muitos dos procedimentos se encontram fortemente enraizados na herança cultural dos produtores. Cada produto, seja ele um artefacto ou um produto alimentar, não é apenas algo para vender, mas é também a expressão de uma cultura, de uma sociedade local, da determinação dos produtores e das suas famílias em viver e trabalhar na zona que escolheram. E este facto levanta novos problemas e novas oportunidades.

2.12. A pequena escala

Um dos problemas a enfrentar e a tentar resolver tem a ver com a escala de produção local: muito reduzida, não irá garantir uma actividade economicamente viável; muito alargada, irá certamente desvirtuar a sua natureza de produção caseira e manual. Outra questão essencial é efectivamente a comercialização da produção local. Dada a sua reduzida dimensão e a existência de numerosos produtores dispersos, as estratégias convencionais de marketing não se adequavam.

Os produtos locais genuínos não ambicionam a conquista dos mercados globais... Eles devem combinar a qualidade com a raridade. Idilicamente, deveriam ser vendidos à porta de casa, a visitantes atraídos pela cultura local sobrevivente e desejosos de levar consigo provas vivas sob a forma de «produtos culturais». E um território que se torna fortemente atractivo, dados os seus ex libris naturais e culturais, pode também apostar em outras formas de turismo rural, detido e gerido pelos locais. A manufactura de produtos diferenciados e bem cotados de forma a atrair turistas e, ao mesmo tempo, a promoção do turismo rural para aumentar a venda dos produtos locais: eis, sem dúvida, uma fórmula deveras promissora de desenvolvimento local integrado. No entanto, antes de se atingir esta situação ideal, têm que se utilizar vários expedientes, tais como a colocação dos produtos em lojas nas cidades (preferencialmente lojas especializadas em produtos naturais de elevada qualidade e não em bugigangas importadas de países de mão-de-obra barata), e algumas feiras seleccionadas com uma imagem forte de «desenvolvimento rural ou local».

2.14. O efeito multiplicador

Em 1992, a associação In Loco inventou uma nova feira para a região algarvia - a «Feira da Serra» - exclusivamente concebida para os produtores locais exibirem e venderem os seus produtos, num ambiente festivo onde a expressão da cultura local, bem como projectos e estruturas locais encontram amplo espaço de divulgação durante os 3 a 4 dias de duração do evento. A Feira atrai aproximadamente 20 000 visitantes, grande parte em busca do «Algarve genuíno», e mais de uma centena de produtores locais. Alguns destes últimos afirmaram mesmo que mais de metade do seu rendimento anual resulta agora de vendas aí efectuadas. Mais do que isso, ao longo das 18 edições desta Feira, criou-se entre os produtores participantes um forte sentimento de que não participam apenas como vendedores, mas também como «embaixadores» da Serra, e porta-vozes da sua «diferença», da sua cultura local; e sentem-se bastante orgulhosos desse facto.

Em outras ocasiões, os produtores locais começaram a desempenhar também eles um papel de agentes de desenvolvimento local: estimulando outros a estabelecer as suas iniciativas e empresas locais, organizando eventos locais - festivais, feiras de artesanato e gastronomia, concursos de culinária, museus locais... Este efeito multiplicador é sem dúvida a chancela da estratégia estabelecida e desenvolvida pela associação In Loco desde os seus primórdios. Nas quatro aldeias em que o trabalho foi iniciado, as primeiras iniciativas encontravam-se fortemente interrelacionadas: a oficina de brinquedos de madeira também produzia para os centros infantis, as tecelãs ajudavam as crianças com os seus projectos escolares relativos a cultura e artesanato local, integravam os órgãos sociais das associações locais ou participavam activamente nos grupos de música e dança tradicionais, as formandas dos cursos de ervas aromáticas recolhiam antigas receitas de idosos nos lares da 3ª idade ou a domicílio,... E este princípio tem sido aplicado desde sempre. Por exemplo, um moinho de vento e um moinho de água foram restaurados devido ao seu valor cultural, mas também para ajudar a atrair turistas que rentabilizassem recém-abertos restaurantes locais.

2.14. A criação da In Loco

Já é tempo de esta associação ser devidamente apresentada. Em Agosto de 1988, e a partir do projecto RADIAL original, a associação In Loco foi formalmente constituída por 12 membros fundadores. Após os cerca de 3 anos da fase inicial, quando todos os procedimentos oficiais eram assegurados pelo Instituto Politécnico de Faro, a existência de uma estrutura autónoma, privada e flexível era agora tida como uma forte e urgente necessidade. Um dos objectivos da iniciativa foi, de facto, demonstrar que a acção cívica era aqui não apenas possível mas necessária, pois podia ser mais pertinente e eficaz, particularmente em relação a um desenvolvimento local ambientalmente e socialmente sustentável, do que os procedimentos anónimos e rotineiros da administração pública. Cumulativamente, Portugal tinha entretanto aderido à Comunidade Europeia e isso abria novas oportunidades de diversificação e ampliação das fontes de financiamento possíveis para iniciativas em benefício da Serra do Caldeirão.

2.14.1 Uma associação de cidadãos

A In Loco foi assim criada como uma associação de fins não lucrativos, composta de indivíduos, cidadãos preocupados com o desenvolvimento diferenciado que existe no mundo em geral e no interior rural algarvio em concreto. O seu compromisso era o de dedicar o seu tempo e competências profissionais na concepção e implementação de actividades que visassem «o melhoramento das condições de vida culturais e materiais nas comunidades locais do interior rural» - conforme estipulado nos estatutos da associação. A maioria dos membros fundadores já desempenhava um papel activo no projecto RADIAL e os outros já tinham, em alguma situação, participado na rede informal de cumplicidades que se tinha naturalmente tecido entre profissionais igualmente interessados e comprometidos. Contrariamente a outras associações de Desenvolvimento Local em Portugal (que seriam mais tarde criadas, essencialmente a partir de 1991, e sob a égide das autoridades locais), a In Loco foi uma iniciativa tomada por cidadãos individuais e ainda não conta, entre os seus membros, com nenhuma organização colectiva. Afirmar a capacidade e o poder dos cidadãos interessados e garantir total independência de interesses económicos ou politico-partidários na concepção e desenvolvimento de iniciativas de desenvolvimento local foram, de facto, dois factores muito fortes na constituição da In Loco e que ainda são aplicados actualmente.

2.14.2. Promover o desenvolvimento sustentável

Durante os anos iniciais, paralelamente à sua missão central de promover uma cidadania activa e desenvolvimento sustentável através de empreendedorismo local, a In Loco desenvolveu muitos outros projectos, sempre que fundos europeus ou nacionais se encontrassem disponíveis para iniciativas específicas que a In Loco considerasse benéficas para as pessoas e para a região da Serra do Caldeirão. Na altura da criação da In Loco, o projecto RADIAL mantinha-se em actividade, graças ao apoio incessante da Fundação van Leer, e tornou-se um dos vários pólos de actividade dentro da nova associação, posto agora ao serviço de uma estratégia global de desenvolvimento local. Assim, após a consolidação dos centros de actividade infantil, foi decidido em 1989 estender o seu âmbito da aldeia-sede - para as povoações menores da mesma freguesia. E isto foi feito através de um novo projecto de educação itinerante: primeiro, organizando visitas regulares de carro, em que uma educadora de infância qualificada visitava as povoações dispersas e, mais tarde, através do lançamento das chamadas «ludotecas itinerantes». Este princípio de levar os serviços necessários aos locais onde as pessoas efectivamente vivem, em vez de as obrigar a vir sempre ao «centro», foi mais tarde também adoptado por um dos municípios locais no planeamento e implementação do serviço de saúde local.

 

2.14.3. Actividades iniciais

Desde a sua origem e até 1992, as actividades da In Loco consistiam essencialmente em formação (em Planeamento Local e Regional), intercâmbios transnacionais acerca de assuntos relacionados com o ambiente (por exemplo, quatro «Campus de Verão» de um mês sobre património natural e cultural, para estudantes universitários europeus), estudos e organização de seminários e conferências (por exemplo, uma em Dezembro de 1991, com a Comissão Europeia, sobre avaliação de projectos sociais). Estas actividades facultaram à In Loco uma grande visibilidade, tanto a nível europeu como nacional, particularmente numa altura em que ainda muito pouco estava feito, em Portugal, relativamente ao Desenvolvimento Local. Pode dizer-se que o reconhecimento inicial da In Loco a nível europeu facilitou uma aceitação posterior pelo governo português. A aceitação generalizada pela classe política local e regional demorou mais tempo a conseguir, verificando-se sobretudo quando a In Loco atingiu o estatuto de instituição «para-pública», o que aconteceu no âmbito do Programa Europeu LEADER.

 

3. Amadurecimento ou transformação?

3.1. O Programa Europeu LEADER

De facto, uma nova fase foi iniciada em 1992, quando a In Loco foi convidada pelo Ministério da Agricultura para elaborar um «plano de acção local» como parte da fase preparatória da Iniciativa Europeia LEADER. A área de intervenção da In Loco subitamente iria aumentar das iniciais 4 freguesias rurais para 29 (e posteriormente para 32) e o seu leque de actividades ir-se-ia alargar de forma a abranger todos os sectores passíveis de contribuir para um «desenvolvimento rural integrado». Para mais, o relacionamento da In Loco com a administração pública e com as autoridades locais estava para mudar radicalmente: uma organização que costumava mendigar-lhes apoio material, poderia agora transformar-se em parceiro e sentar-se à mesma mesa para negociar e tomar decisões conjuntas.

De acordo com os regulamentos europeus, a cada instituição privada (sem fins lucrativos) credenciada para tomar conta de um programa territorial LEADER é atribuído um subsídio específico para cobrir as suas despesas de funcionamento (até um máximo de, inicialmente, 10% e, posteriormente, 15%) e para a adjudicação e atribuição de cofinanciamentos a iniciativas de empreendedores e instituições locais. A prerrogativa de gerir «fundos públicos» (cerca de 7 milhões de Euros durante 10 anos) que foi outorgada à In Loco desde 1992, quando se tornou um dos 20 «Grupos de Acção Local» (GALs) LEADER portugueses (e, após 1995, um dos 48 GALs Portugueses credenciados, no LEADER II), foi a causa de uma profunda mudança na sua postura e imagem, que ainda não foi analisada exaustivamente.

3.2. Uma rede de animadores locais

Com o início do Programa LEADER, em Maio de 1992, a In Loco deu inquestionavelmente um salto, tanto quantitativo como qualitativo. A primeira decisão importante foi a de estabelecer uma rede de animadores de desenvolvimento local. Se o anterior trabalho com um número reduzido de freguesias tinha requerido uma equipa base de 7 a 8 membros, manter uma metodologia similar baseada em intensos contactos locais requereria certamente uma equipa base de pelo menos 40 (e isto apenas para este Programa de Desenvolvimento Rural Europeu), o que não era nem viável nem desejado. Consequentemente, foi estabelecida uma organização a dois níveis: animadores locais e equipa central. A área total, de mais de 3 500 quilómetros quadrados, foi dividida em 7 sub-áreas, cada uma sob a coordenação de um «veterano», que aí trabalharia em cooperação próxima com residentes seleccionados, geralmente com menos de 30 anos, remunerados em regime de tempo inteiro e frequentando simultaneamente um curso de formação organizado pela equipa base da In Loco.

Esta metodologia revelou-se bastante fértil e demonstrou o entusiasmo e eficiência que jovens adultos (aqui maioritariamente mulheres) podem colocar no trabalho em favor das suas próprias comunidades, quando se consciencializam das necessidades locais e das questões em jogo e da sua própria capacidade para exercer uma influência positiva na situação. Os animadores apoiam todos os empresários locais, reais ou potenciais, sociais ou económicos, na transformação das suas ideias em projectos viáveis. Também começaram a recolher informação, opiniões, calendários de iniciativas, produzindo assim um boletim mensal de freguesia bastante popular, entregue a todos os residentes em suas casas. Atente-se nas palavras de uma animadora local, que colabora neste processo desde 1992:

Muitas pessoas tinham vergonha de dizer que viviam no interior rural. Agora é diferente, as pessoas têm orgulho em fazer saber que vivem na Serra. Isso acontece porque temos uma qualidade de vida diferente, para melhor. Eu estou pessoalmente empenhada, porque gosto sinceramente deste tipo de trabalho. Talvez eu esteja demasiado envolvida, o que é por vezes insuportável, mas estou fortemente ligada às pessoas de cá e às suas iniciativas. O nosso emprego é precário e não temos verdadeiras perspectivas de futuro, pois este trabalho pode acabar de um dia para o outro. Mas isso não me preocupa. Cada dia é um novo dia. Alguma coisa há-de aparecer. O que é importante é que este trabalho é a minha maior motivação. Eu acredito no interior algarvio e também acredito que é possível fazer alguma coisa, mesmo coisas pequenas, que quando unidas e articuladas, podem proporcionar melhores condições de vida às populações locais e fazê-las apreciar devidamente o território onde vivem.

Esta estrutura de animadores implementada pela In Loco permitiu que todo um conjunto de projectos surgisse e se desenvolvesse, o que não teria sido possível sem a nossa acção. Inicialmente era bastante frustrante, porque eu procurava e não conseguia ver os resultados do meu trabalho. Chorei muito nesses tempos iniciais. Hoje eu vejo instalações turísticas, unidades produtivas e restaurantes novos ou melhorados, muito mais actividades de associações locais e uma imensidão de novas actividades e iniciativas de toda a espécie. Há alguns anos, as pessoas diziam «o Algarve é só mar e praia!». Hoje, até a comunicação social descobriu o «outro Algarve» [...].

Os animadores da In Loco têm exercido uma influência assinalável na criação e reforço de associações locais, e alguns deles até já participaram, como candidatos, em eleições locais ao nível de freguesia.

3.3. Uma estratégia coerente

Com o inovador Programa Europeu LEADER, a In Loco conseguiu finalmente garantir os meios necessários - humanos e materiais - para tentar desenvolver uma estratégia coerente de desenvolvimento local integrado. Naturalmente que esta afirmação deve ser enquadrada nos seus devidos limites. Por um lado, os fundos disponíveis podem ser suficientes para assegurar alguns «projectos piloto», mas não uma política global (foi estimado por um Director Regional do Ministério da Agricultura que o Programa LEADER na zona da In Loco tinha recebido menos de 1/100 dos fundos europeus simultaneamente disponibilizados para financiar a «agricultura petroquímica» no Algarve, precisamente o tipo de agricultura produtivista que está a matar o meio rural por toda a Europa). Por outro lado, o Programa LEADER nunca financia nenhum projecto a 100%, mas apenas 50% ou 75% dos custos totais. Projectos privados com lucros esperados no curto prazo encontram facilmente fundos para costear o remanescente. No entanto, o mesmo não se pode dizer relativamente aos residentes pobres ou relativamente às iniciativas inovadoras de interesse geral, que a «In Loco» teve que desenvolver de modo a assegurar o sucesso da operação como um todo. Sem recursos financeiros próprios, nesses casos, a associação teve que procurar parceiros interessados em cobrir parte do investimento. E isto não era nada fácil de conseguir, até porque a In Loco passara então a ser considerada uma associação «muito rica», que mexia milhões e até dava subsídios a pessoas e instituições locais...

3.4. Problemas novos e críticos

O novo papel quase oficial da In Loco, no âmbito do Programa LEADER, levantou problemas efectivamente cruciais: externamente, em relação à sua imagem perante as pessoas locais, a quem agora tinha que exigir todo o tipo de documentos (Segurança Social, IRS e IVA, certidões de nascimento, licenças de construção, etc.) sempre que queriam concorrer a um eventual subsídio; e internamente, pois vários membros, anteriormente ocupados com o essencial trabalho de campo, tinham agora que permanecer na sede para lidar com a imensa burocracia. Um elevado preço a pagar, sem dúvida, para garantir que alguns projectos novos e essenciais pudessem finalmente ser levados a cabo no interior rural e começar a abrir caminho a um processo sustentado de desenvolvimento local. E cedo se tornou claro que muitos dos que exibiam elevada competência no desempenho de funções de contacto pessoal, educacional e organizacional a nível local, manifestavam uma inultrapassável inépcia para lidar com a quantidade e complexidade de trabalho administrativo com que agora se deparavam. Como resultado, um pequeno grupo entre o pessoal da In Loco teve que se voluntariar e gradualmente especializar no «suplício burocrático», sem no entanto deixar de guardar algum ressentimento para com os outros colegas que apenas queriam fazer o trabalho menos espinhoso. Desequilíbrios nas cargas de trabalho, nos níveis de envolvimento pessoal e no stress, um hiato crescente entre aqueles que desenvolviam este trabalho porque acreditavam no que faziam e nos valores pessoais e sociais que desenvolviam e em que se empenhavam, e aqueles que dali queriam apenas um trabalho remunerado, são indubitavelmente aspectos que geralmente afectam o ambiente de qualquer organização cívica de solidariedade. E a In Loco não constituiu excepção. Surgem regularmente conflitos entre eficácia, que é efectivamente muito elevada, e eficiência, que normalmente se fica por um nível baixo, que causam bastante stress e um evitável desperdício de tempo e de outros recursos valiosos. Parece que muitos activistas, embora profissionais, não apreciam uma organização administrativa. O acertar de agulhas entre «veteranos» e «caloiros» também pode originar alguns mal-entendidos e conflitos, os mais antigos insistindo em prerrogativas adquiridas, enquanto os mais novos adoptam por vezes uma «atitude de empregado».

Por enquanto ainda não houve nenhuma convulsão séria na In Loco. Talvez os sucessos contínuos, a imagem muito positiva que conseguiu construir entre os residentes na Serra e as diversas instituições públicas e privadas, o profundo e desinteressado empenho dos seus responsáveis e colaboradores, tenham sido factores que ajudaram a ultrapassar os inevitáveis e inerentes conflitos que existem em qualquer grupo de pessoas. Também a democracia interna das estruturas da In Loco e a sua gestão quotidiana, baseada na descentralização e autonomia dos projectos e equipas, a grande acessibilidade dos dirigentes, bem como o plenário de debate anual (se e quando há fundos disponíveis) sobre todos os aspectos da existência interna e externa da In Loco, podem ajudar a explicar a sua existência relativamente sossegada.

3.5. Impacto externo

É justo dizer que o impacto da In Loco não se fez sentir apenas a nível local. Muitas vezes as suas actividades, opiniões e publicações (brochuras, livros, revista, jornal mensal) tiveram algum impacto na legislação existente, no pensamento institucional e nos procedimentos administrativos. Foi também muito importante para o surgimento de outras estruturas similares em vários pontos do país, para a criação de uma associação-rede nacional de agências e profissionais especializados de Desenvolvimento Local («ANIMAR»), e para a proposta e produção de um «parlamento» bienal, espectáculo e festival de organizações cívicas e solidárias, produtos locais, cultura alternativa e tradicional, que tem lugar em Portugal desde 1994 (a «Manifesta»).

Como exemplo de impacto rápido na política pública, pode-se mencionar o facto de a In Loco (tal como muitas outras associações de desenvolvimento local em todo o país) ter ganho - graças ao Programa Europeu LEADER - uma palavra a dizer no tipo de projectos a serem seleccionados para fundos europeus, o que eventualmente resultou na introdução, por exemplo, de formas de turismo rural mais «democráticas» em Portugal. Até então, a Direcção Geral de Turismo, em Lisboa, tinha adoptado uma política muito restritiva e elitista relativamente às áreas rurais. Somente eminentes edifícios históricos e grandes quintas aristocráticas eram autorizadas e subsidiadas como instalações hoteleiras, enquanto candidaturas para converter pequenas casas de campo em alojamentos turísticos eram inexoravelmente indeferidas. Quando todas as associações portuguesas do Programa LEADER perceberam o peso estratégico do rendimento suplementar resultante do «turismo de pequena escala» relativamente ao orçamento de uma família rural e começaram a implementar centenas de projectos similares em todo o país, a política nacional teve que ser alterada, apesar da forte oposição por parte da sempre céptica Direcção Geral de Turismo.

3.6. Produtos locais

Produção local de escala reduzida - aqui estava outra importante batalha. As leis e regulamentos existentes praticamente excluíam a produção caseira de escala reduzida. De facto, os avultados investimentos necessários para assegurar todas as condições requeridas para uma «produção legal» em sectores como a produção de queijo, a destilação de aguardentes, a preparação de chouriços e presuntos ou o processamento de bens alimentares como um todo, estavam a empurrar toda esta produção para os braços da indústria massificada. E, apesar disso, eram muitos os consumidores que preferiam a qualidade superior proporcionada pelo «toque pessoal e tradicional» que possuíam esses produtos. Uma vez mais, as macro-decisões eram tomadas contra os interesses e anseios da grande maioria dos produtores e consumidores, facto que se tornou por demais evidente no âmbito da Política Agrícola Comum da União Europeia, mas obviamente em muitas outras esferas.

Como já foi mencionado, durante o primeiro ano do Programa LEADER, em Novembro de 1992, foi organizada a primeira «Feira da Serra» pela In Loco. Pela primeira vez, todos os produtores locais da Serra (quer legalmente habilitados, quer não) foram convidados a exibir, explicar e vender os seus próprios produtos alimentares ou peças de artesanato numa «feira franca», organizada numa cidade localizada a meio caminho entre as depauperadas colinas do norte e o litoral congestionado. O sucesso desta iniciativa da In Loco foi sem dúvida enorme. O entusiasmo foi imenso, quer entre os organizadores, quer entre os visitantes e produtores. Para lá da larga variedade e elevada qualidade das actividades e produtos em exposição, do grande volume de vendas e de cobrança de entradas, a Feira emergiu também como o melhor «curso de formação» possível para os produtores locais aprenderem como apresentar e promover os seus produtos e para se actualizarem relativamente aos gostos das pessoas da cidade e dos turistas estrangeiros. Esta Feira foi efectivamente concebida, não apenas como um evento comercial, mas essencialmente como uma viva e pitoresca montra da Serra do Caldeirão, onde actividades sociais, culturais e ambientais - aqui inter-relacionadas - podiam assumir uma expressão adequada. Após organizar as primeiras edições, contando para isso com um financiamento parcial do Programa LEADER, a In Loco - sempre advogando o seu «princípio de devolução» - transferiu posteriormente as responsabilidades das Feiras da Serra para o município da cidade onde são efectuadas. Actualmente, pretende-se que a cada estação do ano corresponda uma dessas Feiras, com quatro municípios assumindo a sua organização, num sistema rotativo.

Actualmente, e após um grande esforço de lobbying na questão da produção em escala reduzida efectuado por associações de desenvolvimento rural, muita delas fortalecidas pela sua participação no Programa LEADER, foram finalmente introduzidas pelo governo português algumas regras de excepção relativas aos produtos locais, talvez não as medidas ideais, mas pelo menos demonstrando pela primeira vez uma certa empatia com os princípios e objectivos do Desenvolvimento Local.

3.7. Parcerias

Naturalmente, foram muitas e variadas as parcerias estabelecidas entre a In Loco e outras instituições, privadas e públicas, incluindo as autarquias locais, de forma a conceber e implementar projectos específicos no âmbito do LEADER e de outros programas nacionais e europeus de menor dimensão. Uma das parcerias focou, por exemplo, a já mencionada formação e supervisão dos «animadores» de desenvolvimento rural. Vinte e cinco residentes foram seleccionados em 1992 para participar num curso de formação integrado de 2 anos em desenvolvimento local e, simultaneamente, estimular e ajudar os seus conterrâneos na concepção e execução de projectos locais viáveis, essencialmente de natureza económica. Cada projecto seria posteriormente analisado exaustivamente em conjunto e debatido pelo promotor, pelo animador e pela equipa central da «In Loco», sendo muitas vezes requisitado parecer às autarquias locais, a líderes locais, consultores externos ou representantes de serviços públicos. As autoridades locais aceitaram suportar os fundos necessários para as «bolsas» pagas aos formandos e, mais tarde, os salários desses animadores locais; forneceram também instalações adequadas e o equipamento indispensável.

3.8. A caminho da democracia local?

No entanto, apesar das muitas oportunidades que os habitantes da Serra do Caldeirão tiveram para participar de uma forma aberta e livre neste processo de Desenvolvimento Local, com as suas opiniões, atitudes ou decisões, nunca houve uma estrutura formal concebida especificamente para assegurar uma auscultação regular das populações relativamente a questões de interesse colectivo. E, na minha opinião, isso é absolutamente indispensável quando se pretende promover uma melhoria na democracia representativa quer a nível de freguesia, quer a nível municipal e introduzir algumas noções básicas de democracia participativa local. Os municípios deveriam, assim, iniciar um processo de incentivo à participação, tendente à elaboração e periódico controlo, discussão e revisão de um plano de desenvolvimento local.

Até agora, a tarefa de preparação de uma estrutura participativa a nível municipal dificilmente poderia ter sido assumida pela In Loco. O seu papel dentro de uma visão de «democracia participativa» tem sido geralmente desempenhado através das diferentes iniciativas - maioritariamente de natureza educacional (no seu sentido mais lato) - desenvolvidas pelos seus membros, fortemente empenhados em ambas as causas da promoção de uma cidadania activa e de um desenvolvimento local integrado. Até ao momento, de facto, a In Loco ainda não afirmou publicamente uma posição ideológica ou política ao longo das suas muitas e variadas actividades. No entanto, a In Loco pode, e certamente deve, tornar-se um parceiro importante nesse processo, se e quando uma autarquia local decidir desenvolver tal tipo de iniciativa. E poderia até colaborar para implementar novos processos decisórios, mais participativos ao nível da governação municipal.

Tal constituiria uma ruptura, possivelmente desejável, com a estratégia actual da In Loco. Pode estar próximo, de facto, o momento certo para a In Loco dar um passo em frente na direcção de estruturas locais e processos decisórios mais participativos e capacitantes. O grande problema consiste no facto de uma associação como a In Loco não possuir fundos próprios e, consequentemente, depender de projectos a serem elaborados, propostos e eventualmente aprovados para cobrir os seus custos de funcionamento e de pessoal. Sob tais condicionalismos, como disponibilizar pessoas e tempo para tarefas, mesmo se importantes, para as quais não há financiamento? Terá então a In Loco que, inevitavelmente, assumir o simples papel de braço extra da política pública, restando-lhe apenas parcas oportunidades para ocasionalmente «meter a colherada»?

De acordo com Isabel Guerra, no seu capítulo inserido no actual projecto de investigação, estes projectos e estruturas locais podem ser considerados «novas formas de regulação social». E acrescenta que «para alguns seriam extensões do aparelho estatal, para outros o embrião da democracia participativa e para outros ainda os gestores dos conflitos sociais existentes, numa arena para a exibição das contradições da sociedade global». Pela experiência da In Loco, esta não parece ser uma questão de «assim ou assado», mas sim que uma organização cívica e solidária, envolvida num processo de Desenvolvimento Local Sustentável, assume necessariamente diversos papéis de acordo com o contexto e com as orientações estratégicas. A In Loco fez realmente tudo isso em diversos momentos da sua curta existência e ninguém pode prever com segurança qual será a lógica dominante nos anos vindouros.

Até agora, o objectivo principal tem sido apoiar as populações locais - como indivíduos, famílias ou grupos - e ajudá-las a melhorar a sua compreensão dos factores que mais influenciam a sua sociedade e a serem cada vez mais capazes de controlar as suas próprias vidas. Confirmando o escrito por Isabel Guerra, é um facto que a percentagem das populações locais que participam activamente em actividades com a In Loco é efectivamente reduzida e não se pode afirmar que aqueles que o fazem representam sempre os grandes interesses colectivos. Neste género de acção social, no entanto, não é tanto o número que conta, mas antes a relevância e a qualidade das iniciativas e do seu impacto local - e por vezes global - a curto e longo prazo.

A In Loco também tem sido relativamente bem sucedida em ultrapassar algumas posições paroquiais enraizadas e em modernizar o conceito de «Serra» - agora uma referência comum para as cerca de 30 freguesias e 9 municípios até hoje envolvidos na «odisseia regional» da In Loco. Foi sob esta bandeira que as Feiras foram organizadas, que um novo jornal mensal foi publicado (Jornal da Serra), que foram abertas lojas («Casa da Serra») e festividades organizadas («Réveillon da Serra»). À medida que estas iniciativas passam para a alçada das autarquias locais e outras organizações, o que acaba por ser a concretização definitiva da sua estratégia, a In Loco poderá num futuro próximo começar a desempenhar um papel menos técnico e mais político (em favor de uma cidadania mais activa e participativa) na região algarvia. Tudo dependerá, naturalmente, da vontade colectiva dos seus actuais membros e do contexto socio-político.

3.9. Condições precárias

Cerca de 30 pessoas formam o núcleo de colaboradores, a direcção e a assembleia geral da In Loco. Em picos de actividade, quando mais de 50 projectos decorriam em simultâneo, havia mais de 70 pessoas a tempo inteiro. A precariedade, no entanto, tem sido e ainda é a regra. As entradas de fundos são garantidas apenas enquanto duram os projectos aprovados, e isto significa que enquanto estão a ser desenvolvidos trabalhos dos projectos em curso, novas candidaturas têm que ser elaboradas e preparadas para avaliação e selecção. E mesmo durante a execução de projectos aprovados e financiados, os regulamentos, os atrasos injustificados (e impunes) nos pagamentos e a falta de um sistema de empréstimos sem juros obriga esta, e todas as outras associações em situação similar, a viver uma existência muito dura e angustiante, para conseguir afinal produzir os seus «bens públicos» e elevar assim o bem-estar da nossa sociedade.

A In Loco não tem nenhum apoio institucional regular nem nenhuma agregação política ou religiosa. Para conseguir sobreviver e ser eficiente, a In Loco tem incessantemente procurado parcerias, negociado e feito concessões para alcançar e formalizar os necessários acordos. Naturalmente, tem tentado promover abordagens mais participativas dentro das estruturas de poder e procedimentos administrativos existentes. De facto, o trabalho em curso de desenvolvimento local e a pressão decorrente de organizações de cidadãos estão a forçar a criação de um fórum apartidário que possibilite um amplo debate e eventualmente iniciativas comuns entre diversas entidades locais, regionais ou nacionais. Em Portugal, até hoje, este processo tem inquestionavelmente gerado alguns ainda mal explorados avanços no domínio da democracia local, o que, esperamos, irá contribuir a termo para uma democracia mais participativa a nível nacional.

3.10. Relacionamento com os poderes formais

Como é óbvio, o desenvolvimento futuro dependerá sempre dos contextos políticos e institucionais globais, que definirão as relações entre os poderes políticos formais, nos seus vários níveis, e as organizações cívicas e solidárias (ou OCSs - uma denominação melhor, na minha opinião, do que a «definição pela negativa» implícita no conceito «organizações não governamentais» - ONGs).

Tendo em conta o facto de que as Associações de Desenvolvimento Local produzem efectivamente «bens públicos», faria todo o sentido que recebessem regularmente um subsídio do Orçamento de Estado, independentemente dos projectos em curso, apenas baseado nas actividades anteriores e estipulado de acordo com indicadores de actividade previamente acordados. Este subsídio - «financiamento estratégico» — iria enfim assegurar uma relativa estabilidade, um nível básico de estrutura (uma equipa nuclear permanente e os custos mínimos de funcionamento), garantindo assim um trampolim permanente de onde sairiam sucessivamente os desejados e necessários projectos e iniciativas, estes financiados por várias entidades e desenvolvidos por equipas combinando profissionais permanentes com temporários, colaboradores remunerados com voluntários. No entanto, presentemente, a conjuntura geral não aponta nessa direcção. Em vista dos crescentes e muitas vezes absurdos constrangimentos - administrativos e financeiros - que são impostos quer pelos programas europeus quer pelos nacionais, bem como a «postura de poder» que muitas instituições públicas e os seus decisores e outros representantes ainda adoptam em debates, negociações e acordos «impostos», atrevo-me a afirmar que o futuro não parece muito prometedor para as OCSs nem para as parcerias público-privadas, pelo menos em Portugal.

No melhor dos casos, as estruturas do poder continuarão a «tolerá-las» enquanto cumprirem rigorosamente as tarefas que lhes delegam, mas enquadradas num regime legal que impede qualquer ímpeto de inovação ou autonomia adequado ao trabalho no local. Em vez de actuarem como fontes de criatividade social, estarão as OCSs limitadas a ser meros agentes «extensionistas» das políticas imutáveis estabelecidas?

Um problemático colete de forças financeiro está, efectivamente, a empurrar as OCSs para um impasse Damocleano. Se elas pretendem continuar a desenvolver actividades de cariz altamente profissional, não podem depender apenas de trabalho voluntário e necessitam também de instalações e equipamento adequados. E tudo isto requer uma entrada regular de fundos bem como uma gestão profissional e rigorosa. Quando, para além de tudo isto, surge um grande empenho para trabalhar em benefício de populações e territórios que não têm capacidade para pagar os «serviços de desenvolvimento» que lhes são prestados, é óbvia a conclusão de que as OCSs terão sempre que receber fundos públicos (de preferência sem implicações politico-partidárias associadas). Não há motivo para se ter vergonha nisso. As OCSs certamente recebem uma percentagem muito diminuta dos dinheiros públicos, quando comparadas com outras organizações representativas dos parceiros sociais ou com as grandes empresas. E o que quer que recebam é mais do que justificado pelo facto de - em certas zonas e relativamente a certos objectivos - desempenharem «funções públicas» de uma forma mais importante e eficiente do que os serviços públicos «das 9h às 5h» alguma vez poderiam fazer. Por fim, as actividades específicas desenvolvidas pelas OCSs, quando asseguradas por diferentes esquemas públicos não deverão ser financiadas por subsídios mas, por regra, na base de «contratos-programa» previamente negociados - e nunca rigorosamente pré-definidos mas suficientemente flexíveis para permitir as necessárias revisões e ajustamentos, conforme os contextos (territoriais e sociais) específicos da sua implementação.

3.11. Trabalho em rede

A debilidade institucional de cada OCS, e também a predisposição natural para a cooperação a vários níveis, conduziu a vários processos de trabalho em rede, quer a nível nacional, quer a nível internacional. O movimento de cooperação entre as várias entidades de desenvolvimento local e intervenção social dos cidadãos iniciou-se em Portugal em 1992. A In Loco era então um dos 10 parceiros de um processo que culminou, em Setembro de 1993, com a criação da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local - ANIMAR, que é actualmente a grande referência nacional para pessoas e agências que trabalham para o desenvolvimento participativo e integrado, quer em zonas rurais, quer em zonas urbanas. Entre outras iniciativas, a ANIMAR lançou a bienal Manifesta: desde 1994, este «Festival, Feira e Parlamento do Desenvolvimento Local» - que visa aumentar a visibilidade de todo o movimento e incrementar o ânimo e o peso social dos envolvidos - já teve 4 edições. A última, em Abril de 2001, co-organizada pela In Loco, juntou mais de 300 agências portuguesas e milhares de agentes, apoiantes e visitantes (inclusivamente o Presidente da República), ao longo dos seus 4 dias de duração.

Há ainda muito a fazer relativamente ao trabalho em rede internacional. A maioria das OCSs portuguesas - e a In Loco não é certamente excepção - já estabeleceu contactos regulares ou pontuais com parceiros transnacionais. No entanto, muito mais poderia e deveria ser feito para a construção de um movimento alternativo internacional, de acordo com a lógica de uma globalização anti-hegemónica. As Associações de Desenvolvimento Local e outras OCSs portuguesas deviam, por exemplo, envolver-se de uma forma muito mais intensa no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, no Brasil.

3.12. Um trabalho que nunca acaba

Como em qualquer outro processo dentro desta perspectiva, em que se tenta avançar contra a corrente, não há vitórias definitivas nos projectos de Desenvolvimento Local que são desenvolvidos através de acção local dos cidadãos. Qualquer eventual sucesso, que é inexoravelmente alcançado através de um esforço pessoal desproporcionado, acaba por ser apenas o início de nova corrida de obstáculos. O sentimento generalizado entre os participantes neste movimento é o de que estão permanentemente a tentar subir um lanço descendente de escadas rolantes... No entanto, quando se entra num movimento deste género, é impossível parar ou sair, pois cada momento de uma tal luta traz um animador sentimento de se «estar vivo», um passo recompensador no nosso esforço pessoal e colectivo para a melhoria da nossa sociedade e do mundo em geral e, ao fazê-lo, para nos melhorarmos a nós mesmos.

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4. A cidadania activa no desenvolvimento local sustentável como uma forma criativa de resistência

4.1. Ensinamentos de Spinoza

Quando alguém enfrenta uma série de acontecimentos - a uma escala local, regional, nacional ou mundial - que desafia fortemente a sua filosofia e os seus valores, o que há a fazer? Qual é e onde está a oportunidade para se acrescentar um contributo pessoal de forma a reforçar o que acreditamos serem forças de Vida, Cultura e Civilização, contra a tendência actual, embora largamente predominante ou hegemónica, que encaminha inevitavelmente a Humanidade e todas as outras formas de vida para a discórdia, infelicidade, degradação, morte?

Há cerca de 320 anos, Baruch de Spinoza, em Amesterdão, concebeu um conceito extremamente «moderno» do «indivíduo» e do direito e dever de cada um de se tornar um membro activo da sociedade. Para Spinoza, cada pessoa não é o átomo isolado e indivisível do liberalismo anglo-saxónico, mas antes uma rede coerente de relações, físicas e intelectuais, com a natureza, com todas as coisas, com as outras pessoas. E essas relações afectam constantemente cada ser-humano. Consequentemente, nenhum indivíduo pode ser uma individualidade estritamente isolada.

A coerência inerente a essas relações pode e deve ser continuamente reforçada, aprofundada e melhorada, mas também se pode deteriorar e desaparecer. De forma a melhorar esta coerência interna própria, cada pessoa tem que compreender perfeitamente o tipo de relações que são positivas e úteis, reforçando assim a sua autonomia, mas também perceber que o que é útil não é apenas aquilo que é conveniente, numa base puramente individual. O útil está acima de tudo naquilo que faz uma pessoa sentir e agir solidariamente com o mundo natural e social em que todos vivemos.

De forma a atingir este limiar de sabedoria e ser capaz de efectuar um processo pessoal de auto-melhoramento e actualização, será necessário, segundo Spinoza, desenvolver uma experiência prática diária: agir sobre o mundo, procurando e experimentando inúmeras e diversas relações com o mundo físico e social. Ou, nas suas palavras, sendo constantemente activo através de «trabalho» e através de «política».

De forma recíproca, existe uma obrigação inalienável da sociedade política, de qualquer Estado, de criar e promover constantemente o contexto mais favorável para um desenvolvimento pessoal completo de todos os cidadãos através desses dois campos de actividade humana.

Mais recentemente, encontramos nas palavras de Paulo Freire uma mensagem semelhante, quando escreve que ser cultural e ser consciente é a forma radical de ser humano e que os seres humanos, ao refazer um mundo que não fizeram, estão a fazer o seu próprio mundo, e neste fazer e refazer, refazem-se a si próprios (Freire, 1975).

4.2. Um movimento global de cidadania activa

Certamente inspirados por uma filosofia igualmente humanista - que afirma que tudo o que está relacionado com a esfera social nunca se pode sujeitar a leis imutáveis e inexoráveis - numerosas organizações de cidadãos activos têm sido criadas nos últimos anos, buscando respostas locais para os problemas quotidianos provocados ou exacerbados pelas tendências macro-económicas dominantes do mundo globalizado actual. Este é um movimento extremamente disperso e diversificado, onde cada projecto e cada grupo local procura as soluções - em termos de organização, método e conteúdos - mais adequadas ao seu contexto específico, bem como às capacidades, necessidades e expectativas das pessoas envolvidas.

Na maioria dos casos, estas iniciativas surgem como resposta ao rolo-compressor «produtivista», embora não se tentem isolar do mundo exterior nem do domínio económico. Em vez disso, tentam encontrar e validar formas alternativas, viáveis e sustentáveis de combinar interesses económicos e sociais. Encontram-se geralmente ligadas ou a um dado território ou a um grupo específico, sob ameaça de marginalização, se não de erradicação, devido a serem considerados «descartáveis» pelos poderes hegemónicos. De acordo com a ideologia actualmente dominante, tudo o que se afaste dos parâmetros da «única economia» (ou seja, a economia globalizada dominada pelos mercados financeiros), não tem lugar na sociedade actual.

4.3. Os três níveis da Economia

Dentro desta tendência abrangente, o movimento anti-hegemónico global, conhecido como Desenvolvimento Local Sustentável, começa por negar a existência de uma única economia. Ao fazer isto, adopta a estrutura pluralista proposta pelo historiador económico francês Fernand Braudel que, em 1980, definiu três esferas económicas relativamente independentes, cada qual com as suas regras e características específicas: a economia mundial, a economia local de mercado e a economia familiar ou de subsistência.

Num trabalho mais recente (Verschave, 1994), sustenta-se que a estrutura tripartida Braudeliana permite, mesmo no mundo quase-totalitário dos nossos dias, alguma margem de liberdade humana e criatividade social. Existe comunicação e também interdependência entre os três níveis da economia, mas não existe sobre-determinação: os impasses e contradições que ocorrem em cada um dos três níveis também podem influenciar os restantes.

O nível superior - a economia mundial - tem sido essencialmente dominado pelos «novos conquistadores», as grandes multinacionais e os grandes cartéis financeiros que podem construir ou destruir a maioria das economias nacionais e regionais do dia para a noite. Neste contexto novo e singular, as funções do Estado foram reduzidas a meras engenharias financeiras, legais e burocráticas, com o objectivo principal de garantir as condições mais favoráveis à maximização da acumulação monetária pelas grandes empresas nacionais e transnacionais. Desta forma, a essência do Estado, como expressão política do interesse público comum, parece estar a desvanecer-se. O Estado tem sido privatizado. A aliança entre o Estado e os interesses económicos está agora bem patente, em detrimento da democracia e dos cidadãos. O Estado, que deveria ser o braço político da sociedade humana, transformou-se em agente, se não refém, da economia mundial. Os Estados sofrem agora uma fiscalização próxima e implacável: os fundos públicos têm de ser investidos de acordo com os decretos da economia mundial e não tendo em vista a vontade e as necessidades dos cidadãos. Consequentemente, aqueles governos que a dada altura se possam sentir mais preocupados com a situação de localidades marginalizadas ou de grupos sociais vítimas de exclusão e que tenham intenções de implementar programas públicos importantes em seu benefício são imediatamente repreendidos pelos seus «supervisores» e castigados por infringir as normas de «convergência financeira». Se persistirem nesses comportamentos serão colocados na «lista negra» dos investidores e bancos internacionais, e as suas economias sofrerão os efeitos negativos (inflação, estagnação, desemprego, etc.).

4.4. Construindo alternativas de baixo para cima

Dadas as restrições existentes sobre as políticas e instituições governamentais, atrevo-me a dizer que a possibilidade de um verdadeiro - justo e sustentável - desenvolvimento global começa a nível local, porque todas as medidas macro-económicas se centram forçosamente no crescimento e, dessa forma, adoptam critérios quantitativos, monetários e produtivistas e indicadores incompatíveis com um desenvolvimento centrado nas pessoas. E enquanto a assunção do crescimento conduz inexoravelmente à concentração e ao totalitarismo, já o Desenvolvimento Local Sustentável é fortemente direccionado para a liberdade, pois tende a propiciar a autonomia, a consciência e a participação cooperativa da maioria.

Hoje, aliás, a questão não é apenas tentar encontrar respostas economicamente viáveis a nível local, mas sim envolver-se num processo que - a longo prazo e através de trabalho em rede de um conjunto de estruturas e experiências locais - produza uma alternativa global (ou antes alternativas, pois o Desenvolvimento Local implica diversidade) à destrutiva economia dominante e às nossas sociedades fragmentadas. Não consiste, no entanto, num novo sistema para substituir o antigo, mas antes, creio, no lento mas sólido estabelecimento de uma coexistência criativa e fértil de diferentes formas de trabalho, produção, consumo e convivência. E isto é sem dúvida um passo decisivo no avanço da democracia: atingir uma economia plural como parte de uma sociedade verdadeiramente aberta.

Não nos aproximamos do «fim da história»: as nossas sociedades estão actualmente, e estarão sempre, envolvidas num processo permanente de criação, de construção do futuro. E o futuro está a ser construído - hoje, sempre - dentro das «fendas» culturais, sociais, económicas e ambientais do sistema dominante - através de múltiplas e variadas experiências, incluindo aquelas que ocorrem no âmbito das actividades do Desenvolvimento Local. A adopção da abordagem do Desenvolvimento Local Sustentável nas sociedades contemporâneas implica enfrentar permanentemente a pretensão ilegítima de um sistema económico e político único e hegemónico e proporcionar, em sua substituição, a eclosão das iniciativas e escolhas mais diversas, assegurando assim pluralismo e diversidade, que são dimensões vitais, não apenas da vida orgânica, mas também da vida social.

Dentro desta nova tendência, existe uma grande necessidade de resistência face à dominação imposta pelos mercados financeiros globais. Os projectos locais, portanto, têm que conquistar determinado grau de autonomia a vários níveis (desde local a inter-local e internacional), e vai tornar-se necessário, entre outras medidas, reduzir a dependência face ao comércio mundial e, consequentemente, fugir das devastadoras manipulações dos mercados de câmbios. Certamente que no mundo actual já não há lugar para autarcia e proteccionismo excessivos. Mas nada deve impedir uma localidade ou uma região ou um país de implementar estratégias baseadas num certo grau de autoconfiança económica, nomeadamente, no estratégico sector alimentar. Para que tal aconteça, as políticas actuais têm que sofrer uma reviravolta e começar a redesenhar e a reorganizar a vida económica e social de «baixo para cima». É necessário testar o princípio da subsidiariedade também no domínio económico: detectando necessidades básicas, identificando recursos actuais e potenciais, localidade a localidade; e apenas em relação a bens e serviços não disponíveis localmente é que serão estabelecidas relações com mercados regionais e, seguindo a mesma lógica, com mercados nacionais, continentais e mundiais. E, depois do sector alimentar, todos os outros campos da vida económica e social deverão seguir esta abordagem.

Com base em auditorias e levantamentos realizados a nível local, é possível elaborar um plano integrado relativo ao desenvolvimento sustentável e à qualidade de vida, como quadro orientador que exige necessariamente estratégias diferenciadas e descentralizadas para territórios e sectores diferentes: em alguns casos, ainda haverá lugar para crescimento económico, noutros casos, a prioridade será dada a uma economia estacionária de crescimento nulo e, em localidades excessivamente congestionadas, o objectivo poderá ser uma taxa de crescimento negativa, pelo menos por algum tempo, enquanto em todas as situações, o fim último será o de promover constantemente a melhoria da qualidade de vida (de todas as formas de vida) para as gerações actuais e futuras.

4.5. O anseio por um contexto político mais favorável

Ao mesmo tempo, um quadro institucional favorável tem que ser elaborado de forma a promover as micro-iniciativas dispersas. Por exemplo, encorajando agências intermediárias - como comissões locais e associações de desenvolvimento local - a emergirem, a consolidarem-se e a assumirem um papel activo por intermédio de «contratos-programa», financiados através de um fundo descentralizado concebido para promover o Desenvolvimento Local Sustentável. Obviamente, terá que ser adoptada nova legislação e implementadas novas regras, que não penalizem mas que promovam a criação de micro-empresas e o auto-emprego a uma escala reduzida, nomeadamente quanto aos requisitos legais de produção (actualmente baseados nas necessidades da produção industrial em massa), à fiscalidade e às deduções para a Segurança Social. É também necessário estimular as universidades e centros de investigação a dirigir as suas actividades para as comunidades e economias locais, bem como para a produção de escala reduzida. Também será necessária a existência de agências de crédito e de sociedades de capital de risco e companhias de seguros descentralizadas, de forma a canalizar a poupança local para iniciativas na zona. Outra inovação necessária, já existente em vários sítios, é a criação de «dinheiro local», que pode retirar do mercado mundial uma parte importante das trocas efectuadas localmente. Certos subsídios, por exemplo, poderiam ser pagos nesta moeda, através de cheques válidos apenas para a aquisição de bens e serviços disponíveis localmente que necessitem de ser protegidos e estimulados, apesar de não serem competitivos em mercado aberto. Desta forma, garantia-se que pelo menos uma parte das bonificações e subsídios pagos localmente serviriam efectivamente para reforçar e estimular as economias locais em vez de serem engolidos pelas forças dominantes da economia global. Estes «cheques locais» poderiam também ser emitidos para instituições, como escolas, hospitais e lares de terceira idade, assim representando um canal de escoamento importante para os produtos e serviços locais, como por exemplo, colheitas agrícolas e produtos alimentares considerados não comercializáveis pelos padrões macro-económicos. Mais ainda, todos os concursos públicos deveriam incluir cláusulas sociais e ecológicas, dando preferência a candidatos que garantissem, por exemplo, a criação ou melhoria do emprego local bem como um verdadeiro respeito pelas questões ambientais.

Dada esta pequena lista de exemplos, e sabendo que muitos mais poderiam certamente ser mencionados, é fácil perceber o alcance e a profundidade das mudanças que poderiam ser induzidas nas nossas sociedades através da implementação prioritária do Desenvolvimento Local Sustentável, por meio de planos e iniciativas territoriais. Daí a importância vital das experiências sociais que estão a decorrer a nível global e que se podem incluir sob este título. Neste contexto, «local» significa forçosamente muito mais do que apenas o «4º nível» de implementação de medidas macro-económicas. É efectivamente o único escalão em que é possível atingir, num dado território viável, a efectiva integração de programas sectoriais e ao mesmo tempo garantir participação total, quotidiana e empoderamento de uma percentagem crescente dos cidadãos. E é também ao nível local que as associações de cidadãos podem desenvolver os seus projectos políticos, sociais e económicos, pois é apenas a esta escala que a criatividade da sociedade civil consegue ser claramente exprimida e materializada.

4.6. Ainda uma questão muito complexa

O Desenvolvimento Local Sustentável tem provado ser uma resposta muito positiva para grupos e territórios postos de parte pela economia mundial. No entanto, o Desenvolvimento Local é em si um assunto muito complexo. Criar, a partir dos recursos existentes, aplicações alternativas, que têm que ser, pelo menos parcialmente, viáveis no contexto económico global, não é tarefa fácil. Pedir o apoio indispensável à sociedade em geral, sob a forma de subsídios e outros esquemas de ajuda, sem ficar refém de ajuda permanente, também constitui uma questão delicada. E combinar o conhecimento local com o externo de forma a conceber projectos que ajudem a reavivar o tecido social e económico das comunidades locais não é certamente um processo linear, mas sim muito complexo e propenso à emergência de conflitos. Transformar o conflito em criatividade é a competência que tem que ser adquirida e desenvolvida por todos os que participam nestes processos e estruturas.

Além disso, como promover a «cultura de desenvolvimento» ou o «anseio por autonomia» nas zonas mais carenciadas e fortemente afectadas pelo isolamento, pela aculturação, dependência, emigração e falta de confiança? É um facto que, em zonas rurais em declínio enfrentando processos de pré-desertificação, quer em termos demográficos quer em termos ecológicos, bem como em áreas urbanas marginalizadas e desfavorecidas, um movimento social de mudança - para uma melhor qualidade de vida, e não apenas para uma vida - terá normalmente que ser introduzido a partir do exterior. Há obviamente alguns recursos locais - humanos e naturais - onde se pode fundamentar. No entanto, dada a ruptura social e cultural provocada pelos fortes constrangimentos externos e também por um sentimento fortemente enraizado de descrença nos seus recursos e capacidades, o paradoxo seguinte deve ser bem entendido e aceite no âmbito do Desenvolvimento Local: qualquer processo tendente a um desenvolvimento endógeno abrangente necessita de um impulso externo, seguramente na fase inicial, mas também frequentemente como fio condutor acessório por alguns anos, até que a capacidade organizacional local alcance um estádio de maturidade e auto-suficiência.

4.7. Tem a In Loco um futuro viável?

A Associação In Loco, já descrita e analisada, desempenhou esse tipo de papel desde meados da década de 80. A prova final do seu sucesso seria a sua eventual perda de relevância à medida que novas associações locais - de freguesia ou concelhias - ganham existência. Este processo está efectivamente a acontecer, mas ainda de uma forma tímida e desigual, e a In Loco tem sempre dado todo o apoio a essa construção de capacidade organizacional. Tal desenvolvimento, todavia, não parece tornar a In Loco redundante, pois são continuamente feitas novas solicitações por parte de estruturas locais e regionais. A sua natureza pode, no entanto, mudar radicalmente como resultado de um melhor ordenamento territorial, e a In Loco tornar-se-á provavelmente mais especializada tecnicamente e mais activa politicamente: concentrando as suas competências e experiência prática em questões estratégicas, como assistência técnica às autarquias e associações locais acerca do Desenvolvimento Local Sustentável, um papel mediador em parcerias inter-locais, experimentações e demonstrações - como «dínamo» para a inovação tecnológica e organizacional, centro de formação para activistas profissionais e escola prática para a cidadania activa.

 

Bibliografia

Freire, Paulo (1975), Pedagogia do Oprimido. Porto: Afrontamento.

Verschave, François-Xavier (1994), Libres Leçons de Braudel. Passerelles pour une société non excluante. Paris: Fondation pour le progrès de l’homme; Ed. Syros.