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Shamim Meer

Que Trabalhadores, Que Mulheres, Que Interesses? Raça, Classe e Género na África do Sul do Pós-Apartheid

 

 

Introdução

O título deste artigo capítulo decorre de duas questões que abordei num artigo anterior. Nesse artigo procurei avaliar os desafios que se colocam às ONGs e aos movimentos sociais, cinco anos após a eleição do primeiro governo democrático. Constatei que muitos dos trabalhadores que fundaram os sindicatos militantes, durante as décadas de 70 e 80 e que, mais tarde, vieram a formar o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (COSATU), deixaram de ser sindicalistas.. Uma grande parte desses trabalhadores têm perdido os seus empregos nas últimas décadas, devido à supressão de postos de trabalho e, na sua maioria, regressaram às áreas rurais. A nova indústria exige hoje mão de obra qualificada e um menor número de trabalhadores, pelo que o seu trabalho, maioritariamente não qualificado, deixou de ter procura. Assim, apesar do número de trabalhadores membros do COSATU não ter sofrido grandes alterações, esse número é mantido pela entrada de novos membros nos sindicatos, maioritariamente de trabalhadores dos serviços, provenientes de sectores como o sector público ou a banca. Este facto é relevante por nos indicar que os trabalhadores militantes que construíram um movimento sindical forte, foram vítimas do sistema capitalista. A questão é saber como é que os seus interesses poderiam ser defendidos, ou se tal é de facto possível, na África do Sul de hoje.

A segunda questão que abordei nesse meu artigo dizia respeito às mulheres. Verifiquei que na sociedade sul-africana, no período pós-apartheid, um dos grupos que parece ter sido bem sucedido foi o das mulheres. Contudo, se numa análise mais pormenorizada estudarmos as mulheres que saíram vitoriosas, torna-se evidente que não pertencem à classe trabalhadora negra ou ao meio rural mais pobre. Foram predominantemente mulheres brancas que conseguiram um maior sucesso, apoiadas nas estratégias de empoderamento que visavam tornar proporcional o rácio de mulheres trabalhadoras nas instituições dos sectores público e privado.

O significado destas duas questões, tendo em conta uma análise do modo como os habitantes rurais estão isolados na África do Sul do pós-apartheid, demonstra que os pontos sociais de ruptura da antiga África do Sul permanecem mais ou menos intactos. Alguns negros e mulheres conseguiram encontrar um lugar na elite, mas os interesses da maioria dos cidadãos sul-africanos, homens e mulheres sem qualificações e pobres, dos meios rurais e urbanos, continuam sem uma defesa adequada. Esta situação coloca questões acerca do papel do Estado no período pós-apartheid relativamente à compensação dos desequilíbrios criados pelo capitalismo e colonialismo durante o período do apartheid. Levanta também uma questão relativa ao papel do Congresso Nacional Africano (ANC) que, apesar de se ter comprometido a defender as necessidades da maioria, parece ter sido mal sucedido nessa tarefa.

Esta situação coloca-nos ainda questões sobre os movimentos sociais que lutaram para que o apartheid tivesse fim, questões essas que se prendem com o destino desses movimentos sociais e dos indivíduos que os ajudaram a construir e desenvolver.

Embora a luta nacional pela democracia privilegiasse a reversão dos efeitos da discriminação racial, tal não se traduziu na defesa dos interesses da maioria da população negra. Um lobby feminino conseguiu chamar a atenção para questões relacionadas com o sexo durante a fase da transição. Todavia, na fase de democratização, os benefícios para as mulheres ainda são moldados pelos privilégios de raça e de classe que trouxeram do tempo do apartheid. As lutas dos trabalhadores organizados não lhes permitiram manter os seus empregos devido à supressão de postos de trabalho e ao florescimento do trabalho temporário. Tudo isto acontece devido às formas como os sistemas de exploração e opressão baseados no sexo, na classe e na raça interagem com o status quo, suportando-o.

É necessário tomar em consideração as formas como raça, sexo, e classe social afectam o acesso à cidadania e o próprio processo de democratização. A maior parte das análises sobre a África do Sul evidencia os problemas relacionados com as dinâmicas de raça ou classe, ou ambas, e ignora a questão do sexo. Desta forma, as discussões sobre transições, cidadania e democracia partem de pressupostos errados por não considerarem as experiências diferenciadas de homens e mulheres em relação à raça, à classe e à cidadania. O abrangente programa do novo Governo não coloca a erradicação da pobreza ou da enorme desigualdade existente na sociedade sul-africana no centro da sua agenda. Apesar da retórica que expressa uma preocupação com os pobres e com o fim das injustiças criadas pelo apartheid, após sete anos de democracia as políticas do governo continuam a favorecer, sobremaneira, os historicamente privilegiados.

A estratégia global do programa do governo também não tem providenciado benefícios significativos para as mulheres sul-africanas. A viragem do ANC para o neoliberalismo e a adesão ao Consenso de Washington representam melhorias para poucos e vidas persistentemente árduas para a maioria. Os antigos bantustões continuam a ser as partes mais atingidas pela pobreza do país e, conjuntamente com os bairros degradados da periferia urbana, continuam a reproduzir o apartheid. O Estado nomeia comissões dedicadas à erradicação da pobreza e a outras questões - como a regeneração moral, por exemplo -, mas estas comissões funcionam de acordo com a lógica defeituosa do capitalismo neoliberal e não nos permitem rectificar as desigualdades no país. Há poucos factos que nos transmitam a ideia de que a África do Sul se esteja a afastar da sua posição de uma das sociedades mais desiguais do mundo. A pobreza e a desigualdade assumem uma forma racial, sexual e espacial. Será que os interesses vigentes durante o apartheid são aproximadamente os mesmos que estão a ser hoje defendidos? Estarão ainda em vigor as anteriores concepções de cidadania?

O ANC, um partido claramente guiado pelo sonhos expressos na Carta das Liberdades e, durante a campanha eleitoral de 1994, das promessas do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento, parece ter trocado estes sonhos e promessas pela austeridade sob os auspícios da sua política macro-económica Growth Employment and Redistribution (GEAR), designada como a política doméstica de ajustamento estrutural da África do Sul.

A esperança para o futuro reside na emergência de movimentos e/ou grupos sociais que apresentem reivindicações e responsabilizem o Estado. Contudo, o seu advento parece ser lento. Os movimentos sociais nascidos nos anos 80 e nos inícios dos anos 90 parecem ter desaparecido ou não ter uma liderança ou objectivo. No momento presente, as questões mais prementes são as seguintes: o que terá acontecido àquela que em tempos foi uma sociedade civil forte? Quais serão as lacunas e as oportunidades que permitirão mudar a agenda do governo? Quais as acções que contêm o potencial de mudança em favor dos interesses das mulheres trabalhadoras e pobres dos meios rurais?

O presente capítulo analisa algumas das explicações existentes para compreender o contexto actual - explicações que realçam a transição como um pacto de elites, que lidou com questões políticas mas que evitou questões económicas fulcrais. Defende também a ideia de que as organizações-movimento foram capazes de fazer exigências e de as ver satisfeitas durante a transição, especialmente como resultado da sua posição na Aliança Tripartida composta pelo ANC, COSATU e South African Communist Party (SACP). De entre as exigências satisfeitas incluem-se o Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (PRD), a política apresentada pelo ANC em vésperas de eleições; as instituições como a Commission on Gender Equality (CGE) e o Office on the Status of Women (OSW), cujo principal objectivo é aprofundar os direitos das mulheres; e o número representativo de líderes do COSATU, de membros do SACP e de mulheres na lista de deputados do ANC. Todavia, apesar destes progressos, as organizações de mulheres e os movimentos de trabalhadores ainda não foram capazes de manter a sua influência, o que levou ao abandono do PRD, por parte do governo, bem como à adopção de políticas económicas que favorecem os ricos e poderosos.

Hoje, uma questão crucial é a de saber como é que as organizações e grupos, representantes dos interesses de uma maioria que continua a ser economicamente marginalizada, se deveriam posicionar relativamente ao Estado. Esta questão torna-se bastante incómoda quando sabemos que os indivíduos que integram o actual aparelho estatal foram recrutados nessas mesmas organizações, sendo inclusivamente, em muitos casos, os seus fundadores. Por outras palavras, muitas pessoas dentro do Estado são as mesmas que construíram as organizações-movimento. A manutenção de laços entre as organizações-movimento e as instituições do Estado pós-apartheid, embora essencial, tem sido negligenciada. Da mesma forma, a questão de como tais organizações podem ser mantidas também foi descurada.

Este capítulo postula que o estabelecimento de relações com instituições estatais e com o Estado, como método para corrigir as desigualdades sociais, não foi suficientemente abordado por estas organizações e movimentos. Ao invés, pressupôs-se, tendo por base o seu passado histórico de movimento de libertação nacional, que o partido ANC iria automaticamente dirigir os seus esforços para resolução daqueles problemas. O capítulo aponta igualmente para as deficiências conceptuais e políticas dos académicos, dos teóricos de esquerda, dos políticos e das organizações-movimento resultantes de considerações inadequadas acerca do modo como os sistemas de raça, classe e género se combinam de forma a perpetuar a exclusão económica da larga maioria dos sul-africanos. O capítulo enfatiza ainda a importância destas falhas tendo em conta as ligações existentes entre a teoria e prática.

1. A crise da pobreza e da desigualdade

O capitalismo do apartheid foi responsável pelas alarmantes taxas de pobreza e desigualdade verificadas na África do Sul. Tal como o ministro sem pasta, Jay Naidoo, responsável pelo PRD, afirmou ao jornal Star em Março de 1996, os 75% da população sul-africana negra vivia em condições de Terceiro Mundo e com um nível de vida ligeiramente superior ao do Congo, enquanto que os 12% de população sul-africana branca gozava um padrão de vida semelhante ao dos canadianos. No que diz respeito à distribuição de rendimentos, terras e água, a África do Sul era uma das sociedades mais desiguais do mundo (Lipton et al, 1996).

Um relatório sobre os indicadores-chave de pobreza na África do Sul, preparado para o gabinete do PRD (PRD, 1995), revelou a extensão da pobreza (medida em termos de rendimento) na África do Sul, bem como a natureza racial, espacial e sexual dessa pobreza. Na generalidade, o relatório demonstrou que 53% da população sul-africana era classificada como pobre, vivendo com elevadas taxas de desemprego, com fome e mal nutrida, com incapacidade para pagar ou falta de acesso a cuidados de saúde e a serviços básicos, e em risco de se tornar sem abrigo. Do ponto de vista racial, 65% de todos os africanos eram pobres e, destes, cerca de 95% eram negros, 5% eram mestiços e menos de 1% indianos ou brancos. Eram pobres 33% de todos os mestiços, 2,5% de todos os indianos e 0,7% de todos os brancos. A pobreza era maior nas áreas rurais e, dentro destas, nos antigos bantustões. Assim, aproximadamente dois terços dos pobres do país viviam no Eastern Cape, Kwa Zulu Natal e na Northern Province.

O referido estudo não considerou as diferenças de acesso ao rendimento entre homens e mulheres em cada unidade doméstica e é, por isso, incapaz de diferenciar o grau de pobreza por sexo, e em particular a situação das mulheres. Mencionou, todavia, o sexo do chefe de família e verificou que as famílias lideradas por mulheres tinham uma taxa de pobreza 50% superior à das famílias lideradas por homens. O estudo constatou que menos de um terço dos africanos tinha electricidade, água canalizada em casa e sanitas com sistema de autoclismo e recolha de lixo. As maiores preocupações dos pobres eram o emprego, a água canalizada, a habitação, a ajuda alimentar, a electricidade e as escolas, por esta ordem. Para os pobres em meio rural, as clínicas e as estradas eram assuntos prioritários adicionais.

Cinco anos após o advento do governo pós-apartheid, poucas indicações existiam de que a pobreza e as desigualdades estivessem a ser aliviadas ou reduzidas, ou que acções significativas estivessem a ocorrer no sentido da sua erradicação. Ao invés, tal como Hemson (1999) refere, havia sinais de um crescente distanciamento entre ricos e pobres, com o declínio dos rendimentos rurais e com a crescente incapacidade dos pobres em pagar os serviços que eram fornecidos. Por exemplo, um grande número dos projectos de fornecimento de água nos meios rurais deixou de funcionar meses após estarem terminados, assim como os serviços de electricidade ou de telefone, pouco depois de terem sido instalados, foram desligados. As despesas estatais com a saúde foram drasticamente reduzidas, dificultando a implementação de novas políticas de saúde destinadas a beneficiar os pobres. Os subsídios para crianças, que visavam beneficiar 30% das crianças mais pobres, conseguiram atingir somente 0,8% daquelas. Apenas 0.06% da terra arável foi transferida para as comunidades negras (Hemson, 1999). Hoje, o fornecimento de água a comunidades pobres e a escolas está constantemente sob ameaça de serem suprimidos. Muitos deles são mesmo suprimidos devido à crescente pobreza e desemprego que impossibilitam algumas comunidades de os pagarem. Estas comunidades organizam concentrações, gritando em protesto: «Acabem com o novo apartheid - os ricos contra os pobres» (cântico numa concentração em Hammersdale, Kwa Zulu Natal - 29 de Abril de 2001).

Em vez de considerar a pobreza e a desigualdade como preocupações centrais, a África do Sul de hoje verga-se perante as pressões globais. Tal como Sitas (1999: 6) argumenta, «em vez de colocarmos os pobres, rurais e urbanos, no centro da nossa agenda e de encorajarmos o desenvolvimento a favor do povo e dos pobres, somos arrastados para a lógica global dos despedimentos, do trabalho temporário, dos subcontratos e da marginalização» (Sitas, 1999: 6). Desta forma, podemos dizer que a África do Sul nem conseguiu ainda atingir a mais estreita noção de emancipação explorada por Klug (2002), i.e. não conseguiu a simples libertação da opressão de pobreza estrutural. Estamos numa situação em que as chamadas duas nações do primeiro e terceiro mundo se mantêm; em que as taxas crescentes de criminalidade criam cidades do primeiro mundo protegidas por muralhas e empresas paramilitares de segurança; em que a África do Sul realizou o maior transporte aéreo de aves durante a recente saga sobre a problemática dos pinguins do Cabo; em que um poderoso empresário da Cidade do Cabo resolve trazer divas da ópera para descobrir talentos nos Cape Flats, entre as quais Kayelitsha, enquanto, as guerras dos táxis e dos autocarros continuam a ceifar vidas.

 

2. Compreendendo a transição - pactos de elites e organizações-movimento

A actual situação na África do Sul deve ser entendida considerando a natureza da transição e as escolhas políticas e económicas feitas pelo governo. Paralelamente, o papel das organizações-movimento deve ser compreendido quer durante o período de transição, quer no presente.

Tal como a maioria dos acordos negociados, o acordo sul-africano assumiu a forma de um pacto entre elites com interesses opostos. Tal como sucedeu com as transições na América do Norte e da Europa de Leste (Jaquette e Wolchik, 1998), os movimentos sociais tomaram parte activa na luta, mas as decisões cruciais resultaram de negociações entre as elites. O acordo exigia que o consenso fosse atingido pelos diversos partidos políticos e em especial pelo ANC e pelo Partido Nacional, bem como pelos representantes da economia nacional. As elites tinham que fazer um esforço especial

para aprender sobre os objectivos, filosofias e discursos elementares de uns e outros, e tiveram de começar a fazer concessões - sobretudo retóricas, mas também, até certo ponto, concretas - de modo a fomentar a confiança entre partes em negociação que, em tempos, defenderam interesses fortemente opostos. Gradualmente, e abrangendo muitos sectores da sociedade, foi imposta uma espécie de «harmonia forçada» (Bond, 2000: 56).

O consenso obtido reflectiu uma posição intermédia, marginalizando os elementos extremistas de ambos os lados. As partes envolvidas tiveram que mudar significativamente as suas anteriores posições de modo a alcançar esta posição intermédia que permitisse o consenso. O consenso negociado baseou-se na reestruturação da esfera política, deixando as estruturas de poder económico relativamente intactas. Marais (1998) refere que isto ia de encontro à posição do ANC de atribuir maior ênfase ao político do que ao económico.

Há também uma tendência geral para que os acordos negociados estruturem em termos políticos as crises sociais mais amplas. Tal como nota Carlos Villas, as transições não se

projectam na esfera económica, nem estabelecem a base de uma mudança substancial no nível de acesso de grupos subordinados aos recursos sócio-económicos - através da distribuição do rendimento, da criação de emprego, da melhoria das condições de vida, etc. (citado por Nzimande in Marais 1998: 90).

Deste modo, o ANC negociou o acordo sem que tivesse um programa claro de desmantelamento da sociedade das «duas nações» - uma nação empobrecida, com condições e oportunidades de vida equivalentes às dos países mais pobres do mundo, e uma outra nação com condições semelhante às dos países ocidentais.

Os movimentos sociais foram capazes de pressionar e obter vitórias, em especial a partir do momento em que o ANC se aliou ao COSATU e ao SACP. O COSATU e as organizações cívicas, sob a alçada da South African National Civics Organisation (SANCO), iniciaram e desenvolveram o PRD de forma a colmatarem as falhas da política económica do ANC. Nisto se converteu o programa estratégico e o manifesto eleitoral do ANC, mesmo antes das eleições de 1994.

Durante o período de negociações, as organizações de mulheres agruparam-se na Women’s National Coalition (WNC) e foram pioneiras na chamada de atenção para as necessidades específicas das mulheres. A Women’s League do ANC liderou a formação da WNC, que reunia as organizações de mulheres dos partidos envolvidos nas negociações e outras organizações de mulheres, tais como a Young Women’s Christian Association (YWCA), as mulheres da igreja, as mulheres afrikaans e as mulheres judias. A influência do lobby das mulheres dentro da Aliança Tripartida (do ANC, do COSATU e do SACP), assim como através da WNC, pode ser observada, por exemplo, através da preocupação expressa pelo PRD relativamente às mulheres, em especial dentro dos grupos rurais e muito pobres da sociedade sul-africana. Essa influência foi patente na capacidade do lobby de evitar a adopção de uma cláusula na Constituição nacional que ameaçava isentar os líderes tradicionais da cláusula de igualdade, cláusula que salvaguarda a igualdade entre os sexos (Meintjes, 1996).

Contudo, provavelmente mais poderosa que a influência dos movimentos sociais dos pobres e da classe trabalhadora foi a influência dos tradicionais centros do poder do capital, dos agricultores brancos fortemente organizados e dos chefes tradicionais, quer na constituição, quer na produção de leis.

No que diz respeito aos líderes tradicionais, a Constituição Sul-Africana reconhece o papel de liderança social tradicional e o direito consuetudinário, ainda que subordinados aos limites impostos pelos Direitos Fundamentais constitucionais e à igualdade entre os sexos (Klug, 2002). Todavia, o papel dos líderes tradicionais permanece uma «área cinzenta» que não foi tratada adequadamente, quer no âmbito da Constituição, quer no âmbito da administração pública local, o que contribuiu para lutas contínuas entre os líderes e o Estado. No decurso das eleições para o governo local de 2000, os líderes tradicionais atrasaram o processo eleitoral ao protestarem contra a nova divisão administrativa do território, que consideram uma tentativa de diminuir os seus poderes.

Para muitos habitantes dos meios rurais que continuam encurralados nos territórios dos antigos bantustões (na sua maioria mulheres, devido à contínua emigração masculina para as cidades), a realidade continua a sujeitá-los a sistemas tradicionais em que o acesso das mulheres à terra e ao poder continua a ser efectuado através dos homens. Estes cidadãos da África do Sul estão, assim, privados dos seus direitos democráticos. Mamdani (1998) argumenta que a democratização, no contexto africano, não pode ser encarada apenas como uma simples reforma da sociedade civil, devendo incluir o desmantelamento do sistema jurídico que é legitimado pelo direito consuetudinário. Este autor refere que a preocupação, nos estudos africanos e sul-africanos, com o modo de produção, levou a que estes ignorassem quer o sistema jurídico estabelecido, quer as especificidades que o poder colonial assumiu em África; defende ainda que se tem fracassado na tentativa de questionar as formas de poder que dominam as populações rurais. As atenções têm sido centradas nos direitos dos quais foram excluídos, com base na raça, os povos colonizados. Esta perspectiva excluiu a consideração do sistema consuetudinário através do qual as populações rurais eram governadas. A atenção dos movimentos foi, portanto, enviesada por uma perspectiva urbana. Mamdani refere também que «o deslumbramento com a noção de sociedade civil esconde as verdadeiras formas de poder através das quais as populações rurais são governadas» e que, «sem uma reforma do poder local, a democratização será superficial mas também explosiva» (1998: 288).

 

3. O Programa de Reconstrução de Desenvolvimento (PRD)

O Programa de Reconstrução de Desenvolvimento (PRD) tinha como preocupação central a satisfação das necessidades básicas relativas à habitação, electricidade, emprego, redistribuição de terra agrícola, água potável e saneamento, qualidade ambiental, direitos reprodutivos para as mulheres, cuidados de saúde primários universais, bem-estar social e educação. O PRD procurou conjugar a satisfação de necessidades básicas com o crescimento económico. O documento do PRD referia que o principal catalisador para a obtenção os seus objectivos seria um Estado activo, que tendesse a favorecer os interesses da maioria desfavorecida, e uma sociedade civil forte.

Contudo, paralelamente ao enfraquecimento dos objectivos do acordo político negociado, também o PRD viria a ser debilitado. Tal como Marais refere, «o paradigma da transição (inclusão, conciliação, consenso, estabilidade) era também aplicado ao PRD, um desenvolvimento que não é surpreendente» (1998: 177). Quando se converteu num programa de governo, o PRD perdeu o seu potencial transformador. Em Abril de 1996, o gabinete do PRD foi extinto e as suas competências foram transferidas para os gabinetes do vice-presidente e do ministro das finanças, com a justificação de que o PRD fora integrado com sucesso nas funções destes departamentos.

 

4. Adoptando o GEAR

Outra mudança, que se afasta de qualquer noção de redistribuição, ocorreu em Junho 1996, quando o governo divulgou o seu plano macro-económico denominado Growth Employment and Redistribution (GEAR). Em vez de centrar as suas atenções na luta contra a pobreza e nos esforços necessários para suprir as necessidades da maioria negra sul-africana, esta política tem como objectivos principais consolidar a confiança na economia, melhorar as condições para a expansão do sector privado e liberalizar a economia. O GEAR representa a adopção de uma abordagem que concentra os benefícios no topo do sistema social com a justificação de que eles acabarão por se repercutir positivamente na base (trickle down approach). Não promete um alívio da pobreza ou das desigualdades, não sendo assim do interesse dos homens e mulheres pobres.

É preciso dizer-se que, embora seja necessário o desenvolvimento económico, o desenvolvimento, em si, não reduz a pobreza nem ameniza as desigualdades sociais. Bond (2000) refere que as políticas orientadas para o mercado nunca, em nenhuma parte do mundo, conseguiram grandes avanços em áreas de desenvolvimento. O GEAR falhou claramente na obtenção dos seus próprios objectivos. O crescimento económico em 1996 ficou dez pontos percentuais abaixo do que o GEAR havia previsto; 71.000 postos de trabalho foram perdidos - um número muito distante dos 126.000 novos postos de trabalho previstos para Junho desse ano.

Em meados de 1994, o governo começou a implementar o General Agreement on Tariffs and Trade (GATT). As consequências do GATT, tal como referem Adelzadeh e Padayachee (in Marais 1998), seriam a erosão das leis nacionais de regulação económica e social (desregulação), a promoção de programas de privatização, o enfraquecimento dos sindicatos e dos direitos dos trabalhadores.

Nem Bond (2000), nem Marais (1998) consideraram os impactos diferenciados do GEAR ou do GATT sobre as mulheres e sobre os homens. A produção académica feminista acerca dos programas de ajustamento estrutural noutros contextos evidenciou, por exemplo, a forma como os encargos das mulheres com a reprodução aumentam em resultado da diminuição das despesas sociais por parte do Estado. Na África do Sul, um dos efeitos da desregulação foi o encerramento de empresas de roupas e têxteis, o que tem afectado o emprego de mulheres, uma vez que estas constituem a maioria da força de trabalho nesses sectores. Marais (1998) formula a acusação de que, desde 1994, a política governamental tem sido consistente, já que até mesmo o PRD se baseava na liberalização, nos mercados livres, na promoção dos negócios e no aumento da confiança dos investidores. Na sua perspectiva, o conceito de necessidades básicas e o papel da sociedade civil continuaram a ser preocupações de retórica política.

Logo após a emergência do novo governo, tornou-se claro qual a classe cujos interesses seriam privilegiados no novo sistema. As organizações de massa pareciam já não ser ouvidas. Mandela, no 1º de Maio de 1994, tal como foi noticiado pelo Sunday Times, garantiu aos investidores que «nem uma só referência a coisas como o nacionalismo» permaneceria nas políticas económicas do ANC e que estas haviam sido «limpas de tudo quanto nos relacionasse com a ideologia marxista». Jeremy Cronin, do Partido Comunista Sul-Africano, outro dos parceiros de aliança do ANC (in Marais 1998), referiu que os argumentos do capital eram «mais atraentes e persuasivos para um amplo espectro da liderança do ANC do que os contra-argumentos, que são menos seguros, menos coerentes».

5. As organizações-movimento durante o apartheid

Para procurar entender a questão dos movimentos sociais é importante analisar a relação Estado/sociedade e a forma como as organizações-movimento são moldadas pelo Estado ao mesmo tempo que têm impacto sobre ele. Como Alvarez (1990) realça, os discursos e as estratégias políticas dos movimentos são respostas às políticas estatais. Ao mesmo tempo, as acções dos movimentos exercem influência sobre os discursos e políticas públicas do Estado. A relação entre Estados e movimentos é, pois, dinâmica e dialéctica.

No contexto sul-africano, as respostas dos movimentos foram moldadas pela repressão do Estado capitalista, colonial e do apartheid; e o Estado foi pressionado por estes movimentos a vários níveis. A história da resistência na África do Sul tem sido marcada por períodos de resistência política aberta, bem como por períodos de aparente inactividade durante os quais as organizações-movimento operaram clandestinamente.

A resistência, assim como os relatos de resistência, são também moldados pelas ideologias dominantes acerca do sexo. Assim, enquanto que os relatos históricos sobre resistência ao apartheid denunciam a origem tanto racial como social dos movimentos e das lutas, a maior parte das análises não tem abordado as questões de subordinação sexual, tratando indiferenciadamente os vários actores sociais das organizações de resistência. Contudo, é óbvio que a repressão estatal afectou homens e mulheres de modo diferente. As mulheres envolveram-se na resistência política contra o Estado colonial e o apartheid, ainda que muita desta resistência tenha ocorrido no seio de organizações políticas, dominadas por homens, que reconheciam a questão da mulher (tal como é apresentada pelo discurso marxista e de liberação nacional), mas que não consideravam a desigualdade sexual como uma contradição fundamental que necessitava ser resolvida de forma a obter uma sociedade mais igualitária.

Deste modo, as mulheres foram membros activos no ANC e no SACP desde a sua formação. Mulheres, a título individual, fizeram contribuições significativas no seio destas organizações e, por diversas vezes, grupos específicos de mulheres ergueram-se em protesto activo, tal como sucedeu no caso dos protestos contra as leis relativas à produção de cerveja e ao passe.

Com o restabelecimento de uma actividade política aberta nos anos 70 e 80, os esforços organizacionais dispersos por diversas partes do país conjugaram-se numa forte federação nacional de sindicatos - a maior que o país alguma vez viu -, no Black Consciousness Movement, e no estabelecimento da United Democratic Front (UDF), que juntou, sobretudo, organizações comunitárias urbanas de todo o país. Durante este período assistiu-se à unificação das lutas estudantis, comunitárias e de trabalhadores. Os estudantes universitários e os intelectuais desempenharam um papel significativo ao promover e apoiar o movimento sindical emergente, através de organizações como a Wages Commission e o Institute for Industrial Education. A actividade política era escassa ou inexistente nas áreas rurais, inclusive nas quintas de fazendeiros brancos e nos bantustões.

Os trabalhadores negros resistiram à investida do capitalismo racial que os impedia de formar ou aderir a sindicatos. Na década de 80, os sindicatos tornaram-se mais fortes. Durante este período, houve divisões no seio dos sindicatos recém-formados. Alguns associaram-se ao ANC/SACP, outros, que faziam parte da Federation of South African Trade Unions (FOSATU), assumiram uma postura que enfatizou o controlo do trabalhador, e outros, pertencentes à National Council of Trade Unions (NACTU), juntaram-se a organizações de consciência negra. Em meados dos anos 80, os sindicatos ligados ao ANC e filiados na FOSATU juntaram-se a diversos sindicatos independentes para formarem o COSATU. Nos anos 90, o COSATU continuou a funcionar como organização independente ao mesmo tempo que se juntou à Aliança Tripartida.

6. A organização das mulheres sob o apartheid

O que tem sido designado por movimento das mulheres na África do Sul emergiu essencialmente das lutas nacionais e dos trabalhadores. Os actores centrais do movimento de mulheres foram as organizações de mulheres da UDF (United Democratic Front), as mulheres do ANC e as mulheres sindicalistas. A sua organização foi moldada pela repressão política e económica prevalecente e, com menor intensidade, pelas dinâmicas de género dentro da UDF, do ANC e do movimento sindical.

As mulheres nas comunidades e nos sindicatos tornaram-se cada vez mais activas e interventivas durante os anos 80. Os ideais de libertação foram estruturados a partir dos conceitos de nacionalismo e socialismo, com ambos os «ismos» a conviverem em simbiose, de umas vezes, e, de outras, a entrarem em conflito. As mulheres activas nos sindicatos e nas organizações comunitárias, bem como as mulheres estudantes, estiveram envolvidas no debate sobre o papel da mulher na luta pela libertação e nos sindicatos, ao mesmo tempo que se envolveram em lutas conjuntamente com os homens dentro destas organizações. As preocupações das mulheres foram moldadas pelas ideias socialistas e nacionalistas e, à medida que enfrentaram estes desafios, muitas mulheres activistas foram inspiradas pela segunda vaga do feminismo e pelo feminismo nacional negro e do Terceiro Mundo.

As mulheres nos sindicatos fomentaram laços entre as lutas na fábrica, na comunidade, no país e em casa. Dada a sua posição na sociedade, relativamente ao Estado e ao capital, as suas lutas tiveram o mérito de conjugarem raça, classe e género.

Houve muita discussão acerca do lugar do feminismo dentro do movimento de libertação nacional. Para alguns, a luta das mulheres era encarada como um elemento perturbador da luta contra a contradição principal, que, dependendo da perspectiva, poderia ser a libertação nacional ou a revolução socialista. Contudo, estes debates ocorreram num contexto onde as discussões mais importantes e acesas aconteciam entre socialistas e nacionalistas, discussões essas que se intensificaram à medida que a UDF foi sendo constituída e que a FOSATU se converteu em COSATU. Por vezes, em deferência para com o que era entendido como sendo questões mais urgentes, o activismo das mulheres assumiu uma postura de apoio à luta geral sem colocar questões específicas relativas ao género.

Todavia, a posição consensual de que as mulheres deveriam envolver-se activamente nas organizações, ainda que isso significasse aderir a movimentos dominados por homens em busca de um aumento dos seus números (de modo a combater o Estado ou os capitalistas individuais), trouxe à superfície questões centrais sobre a opressão sexual - questões relativas à responsabilidade reprodutiva, por exemplo, que impediram muitas mulheres de participarem activamente nas organizações. Parte da discussão sobre a necessidade de partilha da responsabilidade reprodutiva entre homens e mulheres foi enquadrada na defesa do fortalecimento do papel das mulheres nesta luta. O discurso era, portanto, em grande medida, um discurso de instrumentalização - por exemplo, a pertença das mulheres aos sindicatos como um meio de obter acordos de reconhecimento por parte das administrações de cada fábrica, pois, para que os sindicatos fossem reconhecidos, tinham que ter 51% dos trabalhadores como membros.

Contudo, as coisas não ficaram por aí. Assim que se tornaram membros dos sindicatos, as mulheres levantaram questões como a licença de maternidade, o assédio sexual, a partilha das tarefas de reprodução com os homens e a violência doméstica. Os desafios aos patrões alargaram-se aos desafios aos parceiros em casa, assim como aos camaradas masculinos nos sindicatos. As sindicalistas começaram a formar estruturas separadas - fóruns de mulheres -, enquanto espaços seguros onde podiam discutir as suas preocupações, delinear estratégias de sensibilização das lideranças masculinas relativamente às questões das mulheres e engendrar uma forma de colocar mulheres nas estruturas de liderança sindical que eram, na sua totalidade, masculinas.

À medida que o envolvimento das mulheres nos sindicatos foi aumentando, também cresceu o seu envolvimento nas organizações comunitárias emergentes, bem como nas organizações de mulheres como a United Women’s Organization (UWO) (sediada no Cabo Ocidental), a Natal Organization of Women (NOW) ou a Federation of Transval Women (FEDTRAW). Foram feitas várias tentativas para agregar as diversas organizações provinciais de mulheres numa Federação de Mulheres Sul-Africanas e, mais tarde, na UDF Women’s Congress. Estes esforços no sentido de uma formação nacional não conseguiram atingir o seu objectivo.

Em meados dos anos 80, emergiu uma tensão entre as organizações da UDF e as mulheres no COSATU. As mulheres da UDF questionaram a existência de fóruns de mulheres no COSATU, fóruns que consideravam ser estruturas paralelas que impediam as mulheres de se juntarem às organizações de mulheres pertencentes à UDF. Os fóruns de mulheres ficaram também sob fogo cerrado vindo de outra frente, por motivos diferentes - por parte dos homens sindicalizados que encaravam os fóruns de mulheres uma absoluta perda de tempo.

Às mulheres no COSATU não foi fácil ver os seus interesses correspondidos. Por exemplo, em finais dos anos 80 e inícios dos anos 90, as suas exigências para que os sindicatos discutissem o assédio sexual fracassaram, e perderam a luta pelo estabelecimento de quotas na liderança do COSATU. Todavia, a formulação destes problemas provocou muita discussão nos congressos do COSATU. A líder sindical Maggie Magubane (Meer, 1998) lembra que muitas das vitórias foram conseguidas apenas no papel, uma vez que a liderança e os membros do COSATU continuam a assumir atitudes patriarcais:

Nós temos de ouvir os nossos camaradas dizer que não há hipótese alguma de poderem ser liderados por uma mulher. Temos de ouvir alguns delegados sindicais insistir que mulheres não podem ser eleitas para qualquer cargo de chefia, que é contra a tradição (Magubane in Meer, 1998: 74).

As sindicalistas viram-se obrigadas a defender, uma vez mais, a necessidade dos fóruns de mulheres que haviam conquistado há anos atrás, pois os dirigentes masculinos entendiam que «o género dizia respeito quer a mulheres, quer a homens» - esta perspectiva retira o carácter político à questão, visto não considerar as noções de poder masculino e de subordinação feminina. O sexismo e o assédio sexual continuam ainda hoje a fazer parte da experiência das mulheres no COSATU e nas organizações filiadas.

Quando o ANC deixou de estar interdito, a questão do futuro das organizações filiadas na UDF foi um assunto estratégico central. O ANC estava prestes a estabelecer delegações em cada canto do país e as organizações da UDF, incluindo as cívicas, eram consideradas estruturas rivais. A discussão prosseguiu sobre se as organizações cívicas deveriam continuar a existir e, caso isso acontecesse, como seria a sua relação com as delegações do ANC (Marais, 1998). Algumas filiadas na UDF fundiram-se com as delegações do ANC, mas algumas organizações cívicas no âmbito da SANCO resistiram à pressão de dissolução, alargando-se a novas áreas, tais como os antigos bantustões, onde ainda não haviam marcado presença. Todas as organizações de mulheres da UDF dissolveram-se e fundiram-se na Liga das Mulheres do ANC. Quis isto dizer que organizações formadas e mantidas durante um período de 5 a 10 anos, que tinham membros, infra-estruturas e projectos desenvolvidos, deixaram subitamente de existir.

Cronin (1992 in Marais 1998) refere que o desmantelamento das organizações da UDF, assim que o ANC foi legalizado, evidencia que a UDF era a equipa suplente que deixara de ser necessária, uma vez que a equipa principal, o ANC, estava de volta. Isto demonstra também que as organizações-movimento têm um papel de eixos de transmissão relativamente ao partido. O desmantelamento das organizações da UDF foi uma tragédia e uma nova mobilização tem sido difícil nos tempos mais recentes.

No período que antecedeu as negociações, quando estas já eram previsíveis, as mulheres do ANC delinearam estratégias de modo a colocar as suas preocupações na agenda política do ANC. Entre estas iniciativas, destacam-se: a afirmação de 2 de Novembro, comprometendo o ANC com a igualdade entre sexos; a comissão sobre a emancipação da mulher; a inclusão da reivindicação de aborto seguro em debates sobre saúde; e uma conferência do departamento de política do ANC sobre trabalho não-remunerado.

As mulheres do ANC exigiram o estabelecimento de quotas na direcção do ANC em 1991, de modo a garantir que as mulheres constituíssem pelo menos um terço da liderança do partido, mas esta exigência não foi bem sucedida. Nos anos seguintes, as mulheres do ANC fizeram campanha por esta questão e retomaram-na novamente durante a campanha eleitoral para as primeiras eleições democráticas do país, desta feita obtendo uma quota de um terço de mulheres nas listas do partido para o parlamento. Isto significou a conquista de 101 lugares, num total de 400, no primeiro parlamento democrático. Relativamente a esta vitória, torna-se necessário tecer duas considerações. Em primeiro lugar, este ganho foi facilitado pelo sistema eleitoral de representação proporcional, um sistema que foi criticado por não facilitar uma responsabilização directa perante o eleitorado. Em segundo lugar, é necessário ter em conta que as quotas são política do partido e não lei estatal (como acontece no Uganda), e que a manutenção das quotas está à disposição do partido.

Paralelamente às organizações de resistência dos anos 80 e 90, houve uma série de ONGs apoiantes e uma imprensa independente florescente. Em questões de mulheres e de género, duas publicações, a SPEAK - uma revista para mulheres do povo - e o jornal Agenda -, que contribuíram para o arejamento dos debates entre a comunidade, os sindicatos e os activistas políticos, estudantes e académicos.

 

7. Os movimentos e o Estado na transição e na nova democracia

Assim que o ANC passou a participar nas negociações, a relação entre as organizações-movimento e o Estado do apartheid deixou de envolver um confronto directo. As organizações-movimento saíam em protestos ocasionais quando as negociações esmoreciam.

Southall e Wood referem que a participação do COSATU na Aliança Tripartida (ANC, SACP e COSATU) foi um meio de garantir que «a preferência pela classe trabalhadora prevalecesse na política e nos programas adoptados pelo ANC assim que este fizesse parte do governo». Ou seja, embora o ANC, enquanto partido no governo, devesse comprometer-se a defender o interesse nacional, «a Aliança Tripartida foi construída para garantir que, daí em diante, o novo governo democrático da África do Sul tivesse em consideração as necessidades da classe trabalhadora» (Southhall e Wood, 1999: 68).

Todavia, após 1994 as relações entre o Estado e os sindicatos tornaram-se tensas, particularmente no que diz respeito ao GEAR e a certas leis laborais. Uma questão que foi levantada e debatida consistia em saber se os interesses dos trabalhadores seriam mais bem defendidos caso o COSATU abandonasse a Aliança. O COSATU já criticou o próprio papel que desempenha na aliança. Buhlungu (1997: 72) cita um documento do COSATU, Um Esboço de Programa para a Aliança, que refere: «A Aliança nunca se reuniu para debater sistematicamente os desafios da transição e para formular uma estratégia conjunta, nem para decidir qual o papel que cada uma das organizações deveria desempenhar no seio dessa estratégia». Nesse documento o COSATU lamenta o facto de a produção de políticas se ter tornado um feudo de consultores, economistas conservadores, burocratas do regime anterior e instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Refere ainda que o PRD foi debilitado por várias forças, que as organizações populares foram desmobilizadas e que «a maioria dos activistas já não sabem quais são os objectivos estratégicos» (Buhlungu, 1997: 72). Todavia, a posição dominante do COSATU é a de manter o envolvimento na Aliança, desafiando, contudo, o governo quando os interesses dos trabalhadores são ameaçados.

Southall e Wood argumentam que o COSATU era crítico acerca do conteúdo assim como da falta de consulta em torno do GEAR. Todavia, o COSATU deu todo o seu apoio ao ANC nas eleições de 1999, «pronunciando-se a favor dos trabalhadores e dos pobres». O COSATU envolveu-se em manifestações de massa, ao mesmo tempo que negociou com o poder económico no National Economic Development and Labour Council (NEDLAC), e abriu um gabinete parlamentar para pressionar o Parlamento.

Os contínuos despedimentos representaram a perda de um grande número de membros sindicalizados como, por exemplo, homens do sector mineiro e mulheres do sector têxtil. As tentativas do COSATU de organizar os trabalhadores desempregados nos anos 80 foram abandonadas. Com o desmantelamento do South African Domestic Workers Union (SADWU), o COSATU não considerou as necessidades dos trabalhadores domésticos prioritárias. Nem tão-pouco considerou prioritárias as necessidades do sector informal (em grande medida um sector de mulheres). Dadas as transformações na estrutura dos trabalhadores sindicalizados - desde a predominância de colarinhos azuis até ao crescente número de colarinhos brancos -, e a sua tendência cada vez mais restritiva de defesa dos interesses dos seus membros, o COSATU parece desviar-se do forte sindicalismo político que uniu os interesses de classe com a luta pela libertação nacional.

Nem o COSATU, nem a Aliança Tripartida consideraram a discriminação sexual sistémica ou a posição das mulheres como prioritária. Estas organizações são dominadas por homens e regidas por ideologias patriarcais. As mulheres nos sindicatos têm estado à defesa na década de 90 - tendo obtido vitórias em meados dos anos 80, elas necessitaram lutar fortemente para as manter. Enquanto as mulheres do ANC obtiveram uma quota de um terço no partido, as mulheres do COSATU, até à data, ainda não o conseguiram e falam dos «telhados de vidro» dos sindicatos que continuam intactos.

 

8. A Coligação Nacional de Mulheres

Em 1991, a Liga das Mulheres do ANC liderou a formação da Women’s National Coalition (WNC). A WNC agregou cerca de 60 organizações, incluindo mulheres dos maiores partidos políticos, pelo simples propósito de desenvolver uma carta dos direitos das mulheres.

Aproveitando estrategicamente as oportunidades oferecidas pela transição e pelo processo de democratização que decorria, a WNC foi capaz de dar à questão do género uma posição mais central na agenda política. Desempenhou um papel central ao garantir que o princípio da igualdade das mulheres fosse considerado como hierarquicamente superior ao direito consuetudinário na Constituição sul-africana. Defendeu e conseguiu convencer o aparato político em torno das questões de género (OSW, CGE e questões-chave de género em quase todos os departamentos) com vista a defender os interesses das mulheres. Teve um papel importante na sensibilização de todos os partidos políticos para a importância dos votos das mulheres e, portanto, da vantagem de aumentar o número de mulheres em posições de liderança.

A WNC esteve quase a tornar-se um movimento. Contudo, as críticas dirigidas à WNC chamam a atenção para diversas questões, tais como: o domínio exercido pelos partidos; o facto de raramente se conseguir obter um consenso devido à diversidade dos seus membros (Abrams, 2000); o facto de nunca ter resolvido a questão do aborto; o facto de a WNC se preocupar mais com temas da classe média, do que com os problemas da classe trabalhadora, dos desempregados e das mulheres não-organizadas; e, em última instância, o facto de ter fracassado na formação de um movimento de mulheres, embora tenha tentado fazê-lo (Duarte in Meer, 1998).

Membros do executivo e do comité dirigente da WNC estiveram envolvidos nas negociações nacionais como conselheiros e fazendo lobby. Adoptaram esta estratégia para enfrentar um processo de negociação dominado por homens durante a primeira volta das negociações nacionais (Convention for a Democratic South Africa - CODESA). Militantes de diferentes partidos políticos receavam que as mulheres fossem excluídas das diversas delegações e, para evitá-lo, uniram esforços estabelecendo um Gender Advisory Committee (GAC) durante a primeira ronda de negociações (CODESA). Mas a violência política no país conduziu ao colapso das conversações da CODESA no momento em que o GAC tinha começado a tomar forma. Quando a segunda ronda de conversações - as Conversações Multi-Partidárias - arrancou, em Março 1993, a WNC tinha um gabinete nacional, uma estratégia de campanha e um processo de controle através da Negotiations Monitoring Team. Isto permitiu à WNC fazer uma contribuição significativa quando os líderes tradicionais se opuseram às cláusulas de igualdade na carta dos direitos.

A inspirada Carta dos Direitos das Mulheres, da WNC, foi divulgada em Junho de 1994. Todavia, a esperança de que a Carta se tornasse o cerne da mobilização e organização de um movimento de mulheres forte e efectivo na África do Sul não se realizou. Meintjes (1996) justifica-o, em parte, devido à diversidade de interesses representados no seio da organização, sem que um tema agregador os unisse, e devido aos problemas de liderança, uma vez que os seus líderes foram «absorvidos pelo Parlamento, onde as energias se dispersaram em políticas nacionais e em tarefas do momento, mais do que em lutas pela emancipação da mulher» (Meintjes, 1996: 61).

Os relatórios da WNC salientam o sucesso da agregação de um grupo diversificado de mulheres, mas, ao enfatizá-lo, tendem a obscurecer uma compreensão mais estruturada acerca da própria WNC, bem como do período histórico, com todas as suas oportunidades e constrangimentos (Meintjes, 1996; Hassim, 2000).

Uma série de questões necessita ser mencionada. Em primeiro lugar, a WNC deve ser entendida à luz das lutas anteriores a 1991 dentro e entre as organizações de mulheres, uma vez que estas tensões modelaram os resultados dentro da coligação. Entre estas incluem-se as tensões entre trabalhistas (socialistas) e populistas (nacionalistas), que, no seio das organizações de mulheres, assumiram a forma de tensões entre as mulheres do COSATU e da UDF, e as tensões entre exilados e não exilados. Uma consequência destas tensões foi a tentativa de envolvimento das mulheres sindicalistas na WNC, o que influenciou a tendência pró-classe da organização.

Em segundo lugar, é necessário ter em conta que a desmobilização das organizações de mulheres da UDF resultou na ausência de um forte núcleo de organizações de resistência no qual a WNC se pudesse apoiar.

Em terceiro lugar, por causa do papel estratégico fundamental desempenhado pela Liga das Mulheres do ANC na WNC, as tensões dentro da Liga tiveram impacto na WNC. Uma cisão na Liga das Mulheres do ANC, após as eleições de 1994, quando dois grupos rivais lutavam pelo controlo da organização, resultou na destituição da liderança do grupo mais feminista e estrategicamente orientado que havia liderado a WNC e os desafios às negociações. Até mesmo antes desta derrota, as tensões no ANC tornaram mais esporádica a participação do ANC na WNC. A perda destas estrategas, juntamente com a saída dos membros do executivo da WNC para o Parlamento e a decisão de que os deputados não poderiam mais pertencer à WNC, representou um duro golpe para a organização que, até hoje, ainda não recuperou o seu papel estratégico nas políticas de género na África do Sul.

Em quarto lugar, a carta e as estratégias da WNC parecem reflectir um ponto intermédio, tal como sucedeu com as negociações entre os maiores partidos. Parece justo afirmar que isto se traduziu em algo semelhante a um feminismo liberal com estratégias liberais que não se opuseram aos privilégios de classe e raça de um modo relevante.

Em quinto lugar, não é de admirar que mulheres vindas de diferentes contextos se tenham unido da forma como o fizeram, já que os homens dessas organizações já haviam estabelecido negociações entre si na CODESA e, mais tarde, na última volta das negociações. Desde logo, estas mulheres tinham em comum a sua exclusão do processo de negociação.

Em sexto lugar, é necessário lembrar que enquanto a WNC funcionava, de facto, como uma organização independente, os principais intervenientes dentro da organização eram as alas femininas dos partidos políticos. Contudo, estas alas não eram, em si, independentes, estando vinculadas pela disciplina e pelas políticas partidárias.

O que é significativo é o modo como a WNC foi capaz de utilizar o espaço aberto pela transição para constituir um Gender Advisory Committee (GAC) e um Comité de Acompanhamento para monitorizar e moldar o resultado das negociações. Ainda mais relevante do que isto, a WNC (em conjunto com uma das organizações nela filiada, o Rural Women’s Movement) foi capaz de intervir no processo de desenvolvimento da Constituição impedindo a inclusão de uma cláusula proposta pelos líderes tradicionais que isentava as autoridades tradicionais do cumprimento da cláusula constitucional sobre a igualdade entre os sexos (Meintjes, 1996).

Simultaneamente, desde o início da luta foi sendo desenvolvido um clima conducente a que as questões de género e das mulheres fossem ouvidas: o envolvimento das mulheres nas lutas, em número significativo e com impactos relevantes, incluindo as campanhas pelo passe, de inícios do século XX e o grande protesto de 1956. A chamada de atenção para as preocupações das mulheres e o seu envolvimento activo no COSATU e na UDF; as discussões e debates acerca da libertação da mulher e da libertação nacional; o género enquanto uma questão de direitos humanos universais; a década das mulheres nas Nações Unidas; e a crescente pressão de organizações internacionais doadoras contribuíram para uma situação em que nenhum revolucionário respeitável ou aspirante a funcionário de Estado poderia ignorar o género.

Contudo, de um modo geral, a WNC não foi capaz de prolongar o seu ímpeto organizacional para além do desenvolvimento da Carta. Paralelamente à contínua mudança do contexto político, as dificuldades em manter unidas as diversas organizações filiadas depois de terminada a Carta, os conflitos dentro da Liga das Mulheres do ANC e a saída de muitos dos membros da WNC para o Parlamento contribuíram para o enfraquecimento da organização. Este êxodo também afectou outros movimentos, tais como os sindicatos, as organizações cívicas e as ONGs.

9. Enfrentando novos desafios

O ANC teve de se transformar de movimento de libertação em partido maioritário no Estado. O facto de ser proveniente de movimentos sociais não se traduziu automaticamente numa relação positiva entre os movimentos e o Estado. Também se notaram, desde cedo, desencontros entre o discurso do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (PRD) sobre os movimentos e a abordagem real às organizações-movimento. O PRD notou que a existência de um forte sector de ONGs era uma contribuição importante para assegurar uma sociedade civil forte e vibrante, o que, por sua vez, era vital para garantir resposta às necessidades básicas. No entanto, apesar do forte apelo feito pelo documento do PRD às parcerias entre o Estado e a sociedade civil, as atitudes do governo para com a sociedade civil têm sido, na realidade, ambíguas. Durante o período de negociações, os movimentos eram accionados sempre que as lideranças envolvidas nas negociações necessitavam de demonstrações de apoio em massa e, depois, desligados quando já não eram mais necessários. Por vezes, elementos do ANC consideraram a sociedade civil e as ONGs irritantes (Marais, 1998; Cronin, 1992).

Têm havido pressões crescentes para que as ONGs e as Community Based Organisations (CBOs), que, no tempo do activismo anti-apartheid, deram apoio aos movimentos populares, transfiram a sua atenção da «luta» para o «desenvolvimento». As actividades de desenvolvimento passaram a ser cada vez mais definidas por relação às agências internacionais de desenvolvimento dominantes, tais como as agências das Nações Unidas, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, i.e., em termos puramente técnicos mais do que políticos, — como se o poder e as lutas não fossem factores que determinam quem verá os seus interesses defendidos em nome do desenvolvimento na África do Sul pós-apartheid..

 

10. A ingerência do neoliberalismo

O novo contexto em que nos encontramos está estruturado pelas políticas económicas neoliberais e pelas noções liberais de direitos democráticos. Há uma confiança excessiva nos mercados e na justiça como se o acesso a estes não fosse moldado pelas vantagens e desvantagens baseadas na raça, no género e na classe.

O objectivo da luta de libertação nacional era dominar o aparelho estatal, o que levou a uma entrada de muitos indivíduos do ANC, dos seus aliados e de muitas organizações activistas no Parlamento nacional, nos nove Parlamentos de província, no governo local e nos diversos níveis da burocracia estatal e paraestatal, apesar da existência da sunset clause por força da qual os funcionários públicos do período do apartheid permaneceriam em funções.

Muitos dos antigos activistas pertencem hoje ao aparelho de Estado. Aqueles que estão nos sindicatos desafiam o Estado como forma de defender as conquistas obtidas no passado sempre que estas são ameaçadas. Alguns antigos activistas, pertencentes a ONGs, procuram defender os mais marginalizados em diversas áreas, tais como a reforma agrária, sida e desenvolvimento; as mulheres activistas defendem a reforma agrária, os direitos reprodutivos, as políticas de saúde, lutam contra a sida e a violência contra as mulheres e as violações. Organizações como o Gender Advocacy Project e iniciativas como o Women’s Budget Project e o New Women’s Movement, representam novas iniciativas no sentido de introduzir as preocupações das mulheres como parte integrante do actual processo de democratização.

Muita desta actividade é desenvolvida nos termos estabelecidos pelo governo e partindo de uma perspectiva que privilegia a actividade legislativa como veículo preferencial da mudança. As mulheres pertencentes a todas estas organizações articulam-se com os departamentos de Estado, com os funcionários públicos e com o aparato político relacionado com questões de género (CGE e OSW). Todos utilizam o actual espaço de manobra para investigar, formar e pressionar indivíduos e estruturas dentro do Estado. Por exemplo, juízes e polícias obtêm formação em questões de violação e violência com base no género, de modo a tornar estas instituições mais receptivas às preocupações das mulheres.

Tais lutas são travadas num novo contexto, com os desafios de adaptação à nova democracia. Tal como Jaquette e Wolchick referem relativamente ao contexto da América Latina e da Europa de Leste, o regresso à política democrática gerou problemas inesperados ao movimento das mulheres e aos movimentos sociais em geral. A democracia significou

que novos e corajosos conceitos tiveram de ser convertidos em legislação exequível, que seria necessário um esforço organizacional sustentado de forma a garantir que as questões das mulheres seriam assumidas pelos partidos políticos e que a legislação seria implementada e monitorizada. [...] O entusiasmo arrebatador da transição, com um sentido de envolvimento e solidariedade de massas, deu lugar a esforços menores e mais concentrados (1998: 7).

Relativamente ao contexto brasileiro, Alvarez (1990) argumenta que as vitórias feministas durante a transição não se transformaram automaticamente em conquistas permanentes de poder efectivo e influência política. Este argumento é comprovado pela situação sul-africana. Entre as vitórias obtidas pelas mulheres na África do Sul incluem-se a legislação sobre preocupações específicas de mulheres, e a legislação mais sensível à mulher de um modo geral. Contudo, na sua globalidade, as conquistas obtidas pelos activistas através de reformas políticas e legislativas mantiveram-se dentro de numa estrutura que não questiona a economia neoliberal, nem a noção de direitos democráticos liberais. As ideias de socialismo parecem ter desaparecido subitamente e o discurso dominante de todos os partidos (incluindo o da maior parte dos activistas sindicais e de género) é dominado pelas ideias neoliberais.

A problemática central reside no facto de muitos dos activistas das ONGs, sindicatos ou comunidades não problematizarem suficientemente os resultados das suas decisões estratégicas. Miller e Razavi (1999) apontam para os perigos de as feministas ficarem presas na orientação neoliberal dominante - e isto aplica-se a outros movimentos. Referem que, devido à crescente influência da filosofia neoliberal, que é inerentemente contrária a intervenções políticas destinadas a obter a igualdade social, os defensores da política feminista tendem a ligar a igualdade sexual a preocupações consideradas politicamente correctas, tais como o crescimento económico e a eficiência do mercado. Portanto, as feministas utilizam o discurso da eficiência proveniente da economia neoliberal, falam de distorções baseadas no género em vez de se referirem a direitos humanos, enquadram questões de violência doméstica em análises de custo económico. Este discurso é adoptado porque é ouvido de forma mais expedita por aqueles que estão preocupados com a promoção do crescimento económico e com a remoção de distorções nos mercados. Contudo, tal como Goetz e Mayoux (in Miller e Ravazi, 1999) argumentam, o reenquadramento da questão da igualdade entre os sexos, em termos de ganhos de eficiência económica e social, tem como efeito a despolitização do problema. Corre também o risco de tornar as mulheres mais susceptíveis à exploração, já que a tendência para promover o investimento nas mulheres poder ter como consequência o aumento do volume de trabalho destas.

Fraser (in Miller e Razavi) chama a atenção para o facto de instituições que produzem políticas tenderem a despolitizar certas questões, estruturando-as como imperativos impessoais do mercado, prerrogativas de propriedade privada ou problemas técnicos. Surgem lutas acerca da interpretação dos conceitos. Miller e Razavi (1999) detectam tensões entre feministas que defendem cenários em que todos obtêm vantagens, que frequentemente requerem políticas para o «bem-comum» na linguagem do individualismo liberal, e aquelas que utilizam discursos de confronto, enraizados numa compreensão mais estrutural da subordinação das mulheres. As abordagens lançadas em termos neoliberais estão abertas à co-optação e ao instrumentalismo, bem como aos riscos de neutralizar a natureza transformativa da agenda feminista. Por outro lado, o debate sobre conceitos como a eficiência pode ser um meio de subverter o discurso neoliberal dominante.

Dentro dos departamentos governamentais, das ONGs e do sector privado na África do Sul, a noção de transformação assumiu uma vertente quantitativa, sendo mais importante contar as presenças de negros e mulheres do que reflectir sobre o modo como o Estado continua a reforçar as desigualdades de raça, classe e género existentes na sociedade. Paralelamente, a avaliação de como as pessoas estão a ser bem sucedidas nestas instituições parece centrar-se mais sobre o grau de adaptação dos novos membros (por exemplo, as mulheres deputadas) as estas instituições, do que sobre a sua capacidade de realizar transformações significativas em prol do interesse dos mais marginalizados.

Além do mais, a transformação de instituições estatais tende a ser entendida como um objectivo, procurando com essa transformação torná-las mais representativas da estrutura demográfica da sociedade sul-africana. O papel destas instituições na democratização é pouco realçado. A entrada nestas instituições tem-se tornado mais um meio de aburguesamento do que uma forma de promoção da melhoria das condições de vida na sociedade (Sitas, 1998).

Uma perspectiva centrada no Estado tem-se tornado a orientação dominante - exemplo disso é a atenção unidirecionada para a política parlamentar do livro do CGE, Redefinindo a Política, como se a política não existisse para além da arena formal do Estado. Um artigo de Tenjiwe Mtintso, na mesma publicação, incita as mulheres que não estão no Parlamento a organizarem-se e a apoiarem as mulheres no Parlamento, ignorando a possibilidade de se organizarem para fiscalizarem os parlamentares. É como se os líderes do movimento de libertação, tendo-se integrado no Estado, o tenham tornado em centro das atenções, fazendo com que tudo o que está fora seja desvalorizado ou invisível.

Então há a grande questão, que muitos tentam compreender, de como é que os que defenderam (ou pareciam defender) outras causas no passado, defendem hoje causas com objectivos tão contrários. Paralelamente a esta questão, existe a de saber como isto aconteceu tão cedo, quando nem dois anos passaram sobre o início da nova ordem democrática.

O que aconteceu então às esperanças de ver as mulheres e os sindicalistas, uma vez no Parlamento, a lutarem pelos interesses dos pobres e dos trabalhadores? O seu desempenho, nesta área, não é bom. O ministro sul-africano do Comércio e Indústria, um antigo líder sindical e da líder SACP, pertence agora à direcção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e promove as políticas desta organização e do GEAR. A actual ministra do Território e Agricultura, que no passado foi secretária da WNC, promove hoje políticas vocacionadas para a criação de uma elite de agricultores negros, oferecendo muito pouco para os desejos das mulheres que marcharam em Mpumalanga.

Collins (1997) levanta questões de fiscalização em relação aos sindicalistas pertencentes à lista de deputados do ANC. Ela enfatiza o facto de o COSATU não ter considerado as questões de responsabilização quando tomou a decisão de nomear 20 dos seus líderes seniores como candidatos do ANC para o Parlamento nas eleições de 1994. Refere que não existia uma relação estruturada entre estes líderes e os seus sindicatos; que faltava uma facção trabalhista no Parlamento; que havia confusão sobre qual organização estes líderes representavam (ANC, COSATU, ou as suas filiadas). Também surgiram questões de responsabilização quando alguns destes líderes sindicalistas começaram a deixar o Parlamento para integrarem empresas de investimento - não sendo claro se, para isto, tiveram o apoio dos sindicatos e do COSATU.

Para as mulheres no Parlamento, a questão da prestação de contas é mais difícil dado que não existe, hoje, qualquer organização nacional que represente as mulheres. Todavia, a responsabilização poderia ser exercida relativamente aos movimentos comunitários existentes e ao assegurar de laços entre as mulheres deputadas e as mulheres sindicalistas e nos grupos comunitários. Contudo, esta responsabilização parece não existir. O que é preocupante é a perspectiva centrada no Estado e a sugestão de que os laços entre as mulheres, fora e dentro do Parlamento, deveriam concentrar-se nas necessidades das mulheres deputadas.

Esta perspectiva é compreensível visto que mulheres e homens do ANC, que entraram no Parlamento pela primeira vez em 1994, foram esmagados pelas regras do jogo dentro dessa instituição e tiveram que realizar ajustamentos consideráveis. Todavia, o que esta perspectiva ignora é a importância de contínua existência de organizações dentro da sociedade, para pedir contas aos deputados e a quem estes devem prestar contas. Mtintso (1999) refere que as mulheres deputadas tiveram de se afirmar, que o seu desempenho passou de uma completa confusão para segurança e capacidade de funcionar no sistema. Refere igualmente que as mulheres precisam conhecer as regras do jogo para poderem modificá-las. Contudo, até à data, parece que a maior parte das mulheres deputadas tem estado ainda a aprender a trabalhar com as regras estabelecidas, tendo sido escassas as mudanças ocorridas.

Mtintso (1999) refere ainda que entre as activistas que se preocupam com a questão do género há uma diferença entre as que têm e as que não têm assento parlamentar. Segundo Mtintso, é necessário que exista um grupo de mulheres activistas que se preocupe com esta causa e que no centro desse grupo dever-se-iam encontrar as mulheres deputadas, ou seja, que o activismo ligado a esta questão, originário de todos os sectores da sociedade civil, deveria ser forte e coordenar os seus esforços com os seus membros parlamentares. A autora refere que tais activistas dever-se-iam organizar num forte movimento feminista e de mulheres actuando como uma base de suporte aos activistas que se encontrem no Parlamento. Miller e Razavi (1999) apontam também para os laços existentes entre mulheres com e sem assento parlamentar de uma forma que tende a privilegiar as primeiras, pois referem a importância de «uma clientela feminina que sirva de base para a defesa de políticas ligadas à questão de género no Parlamento».

Embora seja óbvio que uma ligação entre os que estão fora e os que estão dentro do Parlamento é crucial, a natureza dessa ligação, bem como os termos nos quais a mesma se baseia, são questões fundamentais que necessitam ser analisadas. Por exemplo, quais os interesses de classe que serão defendidos por uma tal aliança?

Miller e Razavi (1999) resumem os assuntos centrais abordados pelas feministas ao considerarem o entryism como uma estratégia. Os autores argumentam que é difícil propor agendas transformadoras a partir de dentro, ao mesmo tempo que se realiza um esforço de adaptação às técnicas e práticas da burocracia. Evidenciam também que a estratégia de envolvimento feminista visa promover a mudança dentro das estruturas burocráticas existentes, mesmo que se reconheça que a mudança seja gradual.

A estratégia de implementar a mudança a partir de dentro, pressupõe uma ampla variedade de capacidades: uma compreensão profunda de como funciona o aparelho burocrático; uma astúcia política para identificar onde se encontram os pontos estratégicos de influência no sistema político; e sabedoria para cultivar aliados apesar da desconfiança dos burocratas tradicionais.

Para além dos problemas de ligação e fiscalização entre os diversos grupos, existe a questão do aburguesamento e de uma nova moralidade que acompanha a transformação. Como refere Buhlungu,

os processos de formação de classes ou de formação de elites aceleraram, com muitos dos principais activistas que faziam parte da tradição de participação democrática a beneficiarem das novas oportunidades criadas pela desracialização da sociedade. Assim, o discurso de uma cultura democrática participativa colectiva foi superado por uma cultura de individualismo e de construção de carreiras, em que a obtenção de poder é vista como resultado do aproveitamento das oportunidades criadas pela desracialização (Buhlungu, 2002: 163).

A transição abre novas oportunidades e contradições. O tipo de nacionalismo que sobreviveu procura o

caminho do empoderamento e da acumulação, para um novo bloco de poder, de populistas pragmáticos, herdeiros dos processos globais de empoderamento. Esta reformulação da elite política tem sido mais um passo a caminho de uma lógica de desintegração dos movimentos sociais (Sitas, 1998).

Saul (1999) questiona o fundamento do ANC em escolher soluções de mercado, não sabendo se tal escolha quis servir novos interesses de classes das lideranças ou se essas soluções são desenvolvimentistas ou inevitáveis nas actuais condições locais e globais. Este autor sugere que, para tornar apetecíveis as suas escolhas económicas conservadoras, o governo reveste estas políticas de uma retórica radical e um discurso sobre o «Renascimento Africano».

É claro que há um certo número de forças que moldam o presente. Sitas (1998) refere que tendências como a globalização, a transição institucional e o desenvolvimento de novos caminhos de poder moldam o presente. A capacidade do Estado para moldar os resultados é reduzida devido à recente entrada da África do Sul nos mercados mundiais. A mudança está limitada, igualmente, pelas lutas entre blocos de poder com agendas conflituantes, nomeadamente entre os funcionários públicos da era do apartheid e aqueles que são simpatizantes do ANC.

A transição «gera uma lógica de desintegração que afecta e modela os próprios movimentos sociais que introduzem a transformação» (Sitas, 1998: 43). Acordos políticos mais amplos determinam a forma e o funcionamento dos movimentos sociais que, por sua vez, continuam a influenciar, subtilmente, a lógica do processo mais amplo.

As vanguardas e organizações revolucionárias nunca podem livremente influenciar as transições, elas são antes moldadas, tal como o são as condições que enfrentam, por forças estruturais mais abrangentes, encontrando-se, entre os não menos importantes, os parâmetros políticos e internacionais (Sitas, 1998: 43).

O anterior movimento de libertação auto-transforma-se como parte do amplo processo de transformação, acompanhado pela formação e realinhamento de classes, fazendo com que os antigos objectivos deixem de ser partilhados (Buhlungu, 1997).

 

11. Reinventar a Emancipação Social

Saul questiona-se:

por quanto tempo mais os sul-africanos - historicamente tão habituados à mobilização em defesa dos seus interesses - permanecerão satisfeitos com as fracas expectativas que lhes são oferecidas por parte do «realismo do mágico mercado», antes que se mobilizem para reactivar a luta pela concretização de estratégias sócio-económicas genuinamente desenvolvimentistas e mais humanas para o seu país. Esta é uma das questões centrais à medida que entramos no milénio (1999: 64).

Durante os últimos sete anos as comunidades e os trabalhadores pobres, quer rurais quer urbanos, mobilizaram-se pela defesa de várias causas. As suas acções tomaram a forma de invasões de terras, de marchas de protesto e manifestações. Sitas menciona que entretanto se verificou uma

mudança de abordagem, passando de um movimento social militante a uma variedade de iniciativas, não necessariamente interligadas, cada qual com as suas dinâmicas, compromissos e inovações que implicam quer resistência, quer acomodação aos acordos centrais [do governo pós-apartheid] (Sitas, 1998).

Mais recentemente têm-se notado com maior evidência sinais de desespero entre os pobres e marginalizados. Por exemplo, em Novembro de 1999, em Mpumalanga, as mulheres do campo marcharam publicamente nuas de forma a fazer com que as suas exigências fossem ouvidas. Josephine Tsabedze, de 70 anos, e 27 outras mulheres do campo passaram uma semana na cadeia por terem marchado nuas na rua principal de Beffelspruit em Mpumalanga, protestando contra um chefe local que se recusara a reconhecer os seus direitos à terra. Tsabedze disse:

Nós marchamos pelas ruas, sem as nossas roupas, para mostrar ao chefe que estamos zangadas. Queremos mostrar-lhe os nossos estômagos vazios. A minha maior preocupação são as crianças. Por isso é que nós acabámos na prisão. Eu fiz tudo por causa da fome (Shongwe, 2000: 18).

As mulheres sentiram-se culpadas por terem passado uma semana na cadeia porque tiveram lá refeições melhores do que aquelas que os seus filhos e netos tiveram em suas casas. Em média, cada mulher tem entre cinco e nove crianças para alimentar e vestir. Muitas vezes estas mulheres são os únicos membros da família com rendimentos. Elas precisam de terra para cultivar e obter alimentos para os seus filhos.

Em Fevereiro de 2001, em Insipingo, perto de Durban, os moradores organizaram reuniões e marchas de protesto contra os despejos determinados pelo Conselho local dominado pelo ANC. Uma das famílias prestes a ser despejada era a da Sra. Munisamy, de 65 anos, da sua filha de 27, Kantha, que luta diariamente contra um cancro, e do seu neto de 6 anos. Eles vivem num apartamento do Conselho que se encontrava vazio. O rendimento desta família consistia na pensão da Sra. Munisamy, de cerca de 540 rands por mês, pensão essa que foi cortada por razões aparentemente burocráticas. A sua renda era de 268 rands mensais, tendo ainda que pagar a electricidade e a água. A Sra. Munisamy sofre de asma mas não pode ir ao hospital receber tratamento por não ter como o pagar. Um dos oradores na reunião de protesto, que juntou cerca de 800 manifestantes, lembrou aos residentes que foram eles que venceram o apartheid e incitou-os a derrotar este novo inimigo combatendo juntos contra os despejos. O prosseguimento das acções judiciais conduziu à suspensão dos despejos. A organização e o protesto dos residentes produziram resultados (Richard Pithouse, Sunday Tribune, 4 de Fevereiro de 2001).

A 29 de Abril de 2001, na cidade de Mpumalanga, perto de Hammersdale, no Kwa Zulu Natal, os habitantes organizaram uma manifestação. A cidade situa-se numa área semi-rural, em resultado de ideias do apartheid que postulavam que os negros não deveriam viver muito longe de subúrbios brancos. Muitos daqueles residentes tinham emprego em indústrias locais de criação de aves domésticas, todavia perderam os seus empregos pois essas empresas fecharam. Os residentes não podem, por isso pagar os serviços, tendo já sido ameaçados com cortes de água. A manifestação tinha como objectivo resistir a esses cortes.

Ainda não se sabe se estas acções se irão unir, ou como é que isso acontecerá. Contudo, parece claro que é improvável que sejam os movimentos sociais dos anos 80 a desempenhar esse papel aglutinador dos vários protestos individuais. As organizações de movimentos das mulheres dos anos 80 já não existem, nem a Women’s National Coalition (WNC), nem o Rural Women’s Movement (RWM). As organizações de mulheres da UDF também já não existem pois foram desmanteladas para formar a Liga das Mulheres do ANC. Esta parece estar imobilizada, pois os seus líderes principais estão no Parlamento, ficando assim indisponíveis para participar na construção de um novo movimento.

As ONGs dos anos 80, que apoiaram as lutas das comunidades e dos sindicatos naquela década, quando os «inimigos» eram os agentes do Estado do apartheid, estão hoje silenciosas, não participando em qualquer luta. As ONGs de desenvolvimento pressionam o governo, mas fazem-no dentro da lógica neoliberal e da agenda política estabelecida pelo Estado. Além do mais, as ONGs debatem-se com o problema de falta de fundos, uma crise que se esperava que fosse resolvida pelo Estado ao reconhecer a importância de um forte sector de ONGs.

A forma e a natureza do movimento sindical mudou, diminuindo a sua capacidade de moldar a transição. No movimento sindical actual, o fortalecimento organizativo não é uma prioridade - os seus líderes dedicam a maior parte do tempo voltados para as políticas, procurando influenciar a política e o direito estatal. Os activistas e as bases dos sindicatos foram desmobilizados. Os sindicatos negligenciam a construção do seu poder independente e confundem as suas orientações estratégicas com as do partido dominante (Buhlungu, 1997).

 

12. Conclusão

O papel de uma forte organização-movimento fora das estruturas do Estado é crucial para garantir que os representantes representem, de facto, os interesses do seu eleitorado. No entanto, a permanência do movimento sindical sul-africano, juntamente com os sindicalistas com assento parlamentar, não resultou na satisfação dos interesses dos trabalhadores. Tal facto pode ser constatado nas tensões persistentes nos últimos anos, entre o COSATU e o governo, acerca de questões como o GEAR, a Lei de Relações Laborais e a Lei de Condições Básicas de Trabalho; no aumento dos despedimentos que levou a uma mudança na massa sindicalizada, passando de uma maioria de trabalhadores de colarinho azul para um peso crescente dos trabalhadores de colarinho branco. No presente contexto, ao invés da promessa de uma pressão forte sobre o Estado, os sindicatos parecem antes estar a enfraquecer.

As organizações de mulheres são representadas hoje, não por uma organização de cúpula, mas por uma variedade de iniciativas, menores e direccionadas para atingir interesses específicos. As organizações de mulheres mais importantes dos anos 80 eram alas e secções dos movimentos de libertação e dos sindicados liderados por homens. Dado o extremo de repressão capitalista do apartheid, as mulheres activistas envolveram-se em organizações de libertação, ao mesmo tempo que se organizaram separadamente em movimentos de mulheres, tendo o destino dessas organizações ficado assim ligado a um movimento mais abrangente. As mulheres eleitas para o Parlamento, como foi o caso de sindicalistas e de membros do SACP, foram-no como representantes do partido político ANC, pelo que a sua fidelidade era, em primeiro lugar, para com o partido.

A questão da representação de interesses está relacionada com processos mais amplos, que incluem o modo como se articulam os sistemas globais e nacionais de raça, classe e género. As políticas governamentais da África do Sul de hoje, bem como as respostas dos activistas, tendem a ser enquadradas numa lógica neoliberal esmagadora. Os interesses de homens e mulheres pobres, rurais e urbanos, não estão a ser defendidos adequadamente. Tal como demonstrámos no presente capítulo, as elevadas taxas de pobreza e desigualdade persistem ao longo de traços determinados pela legislação e políticas do apartheid.

Os esforços para compreender a transição e o actual momento de consolidação democrática, revelam que foram as elites que tomaram as decisões, embora os movimentos tenham desempenhado um papel; e demonstram o efeito fragmentador das transições. Assim, embora as transições criem oportunidades, parecem ter também um efeito desestabilizador sobre os movimentos. E o enfraquecimento dos movimentos permite que o Estado prossiga quase sem ser contestado. Assim se justificam políticas como o GEAR, que não fazem nada para resolver a questão da pobreza e da desigualdade que persistem desde os dias do apartheid.

Na África do Sul de hoje, raça, classe e género continuam a determinar o acesso ao poder económico. A transição conduziu a uma estabilização e a uma busca de um equilíbrio. A natureza da democracia em consolidação está baseada em noções liberais de direitos, comparáveis à doutrina económica neoliberal.

Este capítulo procurou demonstrar o modo como os movimentos foram moldados pelas respostas do Estado durante o apartheid, o período de transição e o período de democratização. Procurou ainda clarificar a relação dialéctica entre os movimentos e o Estado.

O perigo actual reside na tendência das exigências serem estruturadas em termos neoliberais. Os perigos de entryism consistem nas novas entradas que se enquadram no sistema sem o desafiarem, e utilizam a entrada como um meio de aburguesamento.

As sementes de desafio ao neoliberalismo estão, provavelmente, nos movimentos dispersos que se estão a desenvolver em diversas partes do país. São necessários novos desafios para mudar as regras do jogo, em vez de compromissos com as ideias capitalistas. Poderemos ter de aceitar a ideia de incrementalismo, mas precisamos ser muito claros relativamente à direcção para onde nos levam as mudanças incrementais.

 

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