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Boaventura de Sousa Santos

Introdução Geral

 

A globalização neoliberal é hoje um factor explicativo importante dos processos económicos, sociais, políticos e culturais das sociedades nacionais. Contudo, apesar de mais importante e hegemónica, esta globalização não é única. De par com ela e em grande medida por reacção a ela está a emergir uma outra globalização, constituída pelas redes e alianças transfronteiriças entre movimentos, lutas e organizações locais ou nacionais que nos diferentes cantos do globo se mobilizam para lutar contra a exclusão social, a precarização do trabalho, o declínio das políticas públicas, a destruição do meio ambiente e da biodiversidade, o desemprego, as violações dos direitos humanos, as pandemias, os ódios inter-étnicos produzidos directa ou indirectamente pela globalização neoliberal.

Há, assim, uma globalização alternativa, contra-hegemónica, organizada da base para o topo das sociedades. Esta globalização é apenas emergente mas é mais antiga que a sua manifestação mais consistente, até hoje, a realização do primeiro Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em Janeiro de 2001.

O tema desta colecção de livros é a globalização alternativa. Apresenta em sete livros os resultados principais de um projecto de pesquisa intitulado «Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos». Realizado em seis países - África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal -, este projecto visou analisar iniciativas, organizações e movimentos progressistas em cinco domínios sociais: democracia participativa; sistemas alternativos de produção; multiculturalismo, justiça e cidadania culturais; luta pela biodiversidade entre conhecimentos rivais; novo internacionalismo operário. Para além de estudos de cientistas sociais e de cientistas sociais-activistas, foram recolhidas entrevistas com líderes e activistas de movimentos sociais, um sub-projecto a que foi dado o nome geral de Vozes do Mundo.

Este projecto foi dirigido por mim com a colaboração de coordenadores de pesquisa em cada um dos seis países: Sakhela Buhlungu, na África do Sul, Maria Célia Paoli, no Brasil, Mauricio García Villegas, na Colômbia, Shalini Randeria e Achuyt Yagnik, na Índia, Teresa Cruz e Silva, em Moçambique e João Arriscado Nunes, em Portugal. Este projecto envolveu 69 pesquisadores e foram analisadas 60 iniciativas, movimentos ou organizações.

 

1. Os pressupostos e os desafios

Os pressupostos deste projecto são fundamentalmente dois, um epistemológico e um sócio-político. O pressuposto epistemológico é o de que a ciência em geral e as ciências sociais em especial atravessam hoje uma profunda crise de confiança epistemológica. As promessas que legitimaram o privilégio epistemológico do conhecimento científico a partir do século XIX - as promessas da paz e da racionalidade, da liberdade e da igualdade, do progresso e da partilha do progresso - não só não se realizaram nem sequer no centro do sistema mundial, como se transformaram nos países da periferia e da semiperiferia - o que se convencionou chamar Terceiro Mundo - na ideologia legitimadora da subordinação ao imperialismo ocidental. Em nome da ciência moderna destruíram-se muitos conhecimentos e ciências alternativas e humilharam-se os grupos sociais que neles se apoiavam para prosseguir as suas vias próprias e autónomas de desenvolvimento. Em suma, em nome da ciência cometeu-se muito epistemicídio e o poder imperial socorreu-se dele para desarmar a resistência dos povos e grupos sociais conquistados.

Esta epistemologia imperial consolidou-se a partir de meados do século XIX e dominou todo o século XX. Não é em si nenhuma novidade. O que há de novo hoje? Em primeiro lugar, é hoje mais do que nunca evidente que o universalismo da ciência moderna é um particularismo ocidental cuja particularidade consiste em ter poder para definir como particulares, locais, contextuais e situacionais todos os conhecimentos que com ela rivalizam. Daqui decorre a constatação que houve e há outras ciências e outras modernidades não ocidentais e muitos outros conhecimentos que se validam por outros critérios que não o serem científicos ou serem modernos. A diversidade epistemológica do mundo é assim potencialmente infinita. Todos os conhecimentos são contextuais e são-no tanto mais quanto se arrogam não sê-lo. Não há nem conhecimentos puros, nem conhecimentos completos, há constelações de conhecimentos. No interior dessas constelações há hibridizações mas estas, em vez de eliminarem as relações desiguais entre os poderes, contribuem muitas vezes para vincá-las.

A desigualdade das relações consiste na capacidade de uma forma de conhecimento converter uma outra em recurso ou matéria prima. As constelações de conhecimento no âmbito da biodiversidade são apenas a manifestação mais dramática de uma desigualdade epistemológica que atravessa todas as áreas temáticas abrangidas por este projecto de pesquisa.

O reconhecimento mesmo viciado de outros conhecimentos rivais é já uma manifestação da crise de confiança epistemológica. Mas há outras, das teorias da complexidade às teorias do caos, das situações de bifurcação à hipótese Gaia, das novas teorias quânticas à teoria dos campos mórficos que hoje mostram que o rigor e a verdade da ciência moderna eurocêntrica não é mais que o discurso do rigor e da verdade e que as distinções que o constituem, tais como as distinções sujeito/objecto, natureza/sociedade, não são mais que violências epistemológicas. Mostra-se também que a ciência moderna foi muito mais eficaz em ampliar a capacidade da acção humana do que em ampliar as consequências da acção humana. Por essa razão, as consequências da acção científica tendem a ser menos científicas que as acções que as causaram. À medida que os nexos de causalidade se volatilizam, o mundo enche-se paradoxalmente de consequências indesejadas de acções desejadas.

O que há, pois, de novo neste limiar de século é o reconhecimento de que há conhecimentos rivais alternativos à ciência moderna e de que mesmo no interior desta há alternativas aos paradigmas dominantes. Com isto, a possibilidade de uma ciência multicultural, ou melhor, de ciências multiculturais é hoje mais real do que nunca. Esta possibilidade não está, no entanto, igualmente distribuída pelas diferentes comunidades científicas. Ela é tanto mais vaga quanto mais dominante é a hegemonia do paradigma científico, com suas estritas e estreitas divisões disciplinares, as suas metodologias positivistas que não distinguem objectividade de neutralidade, a sua organização burocrática e discriminatória dos conhecimentos em departamentos, laboratórios e faculdades que reduzem a aventura do conhecimento a privilégios corporativos. Daí, que seja precisamente no centro do sistema mundial, nos países centrais e centros hegemónicos de produção científica, que está hoje mais limitada a capacidade de verdadeira inovação científica. As ideias novas, sobretudo aquelas que procuram religar à ciência às suas promessas originais, raramente passam a barreira dos referees e das exigências do mercado livreiro.

Desta verificação nasce o primeiro desafio deste projecto. Este projecto foi concebido e executado fora dos centros hegemónicos de produção científica, por comunidades científicas da semiperiferia e da periferia do sistema mundial. Será esse facto suficiente para caucionar os objectivos renovadores deste projecto? Os cientistas sociais, uns mais relutantemente do que outros, são, em geral, herdeiros do paradigma científico hegemónico. Sendo assim, como poderão os cientistas que trabalham fora dos centros hegemónicos converter a sua excentricidade e relativa marginalidade numa energia inovadora? E essa inovação deve limitar-se a construir novas epistemologias contra-hegemónicas ou tem potencialidades para se transformar numa nova hegemonia? E, neste último caso, essa nova hegemonia será melhor que a actual? De que ponto de vista? Para quem?

Antes de referir o modo como é possível responder a este desafio, detenho-me sobre o segundo pressuposto deste projecto que, como disse, é de natureza sócio-política. Os êxitos da ciência moderna medem-se hoje cada vez mais pela capacidade desta em submeter mais relações sociais em mais partes do mundo à lógica do capitalismo global. Trata-se de um longo processo histórico que desde o século XV até hoje teve muitas facetas e assumiu muitos nomes: descobrimentos, colonialismo, evangelização, escravatura, imperalismo, desenvolvimento e subdesenvolvimento, modernização e, por último, globalização. O pressuposto deste projecto é, antes de mais, que a globalização não é algo de radicalmente novo: significa uma expansão exponencial das relações transfronteiriças, umas voluntárias outras forçadas, com a consequente transformação das escalas que têm dominado até agora os campos sociais da economia, da sociedade, da política e da cultura. Como sempre sucedeu na história do capitalismo moderno e em todas as formas anteriores de globalização centradas na Ásia, no Índico ou no chamado Médio Oriente, o que designamos por globalização são conjuntos de relações sociais desiguais, sendo por isso mais correcto falar de globalizações do que de globalização. No âmbito deste projecto foi crucial a distinção entre globalização hegemónica, dominada pela lógica do capitalismo neoliberal mundial, e a globalização contra-hegemónica, as iniciativas locais-globais dos grupos sociais subalternos e dominados no sentido de resistir contra a opressão, a descaracterização, a marginalização produzidas pela globalização hegemónica.

Como disse, nada disto é radicalmente novo. O capitalismo moderno é na sua origem um projecto de vocação global e que se desenvolveu sempre sob a forma de intensificação da globalização. Por outro lado, sempre houve resistências a esse projecto tão dinâmico quanto predador, da revolta dos escravos às lutas de libertação nacional, das lutas operárias aos projectos socialistas, dos movimentos anarquistas ao Movimento dos Não-Alinhados. O que há, pois, de novo na situação em que nos encontramos? Em primeiro lugar, a intensificação exponencial das relações transfronteiriças e as novas tecnologias de comunicação e de informação produziram alterações profundas nas escalas espaciais e temporais da acção social. As longas durações históricas das tendências seculares estão hoje mais do que nunca sujeitas ao tempo instantâneo dos mercados financeiros, ao regresso do passado supostamente superado sob a forma de violência inter-grupal, ao curto circuito dos ciclos de acção política por via da explosão das unidades de decisão.

A turbulência nas escalas temporais é a contrapartida da turbulência nas escalas espaciais. O local é cada vez mais o outro lado do global e, vice-versa, o global é cada vez mais o outro lado do local. E o espaço nacional está a transformar-se na instância de mediação entre o local e o global. Mas, acima de tudo, da explosão das escalas resulta tanto a interdependência como a disjunção. Nunca foi tão profundo o sentimento de desconexão e de exclusão em relação às transformações que marcam o espaço e o tempo do mundo. Por outras palavras, nunca tantos grupos estiveram tão ligados ao resto do mundo por via do isolamento, nunca tantos foram integrados por via do modo como são excluídos.

Um segundo factor novo é a voracidade com que a globalização hegemónica tem vindo a devorar, não só as promessas do progresso, da liberdade, da igualdade, da não discriminação e da racionalidade, como a própria ideia da luta por elas. Ou seja, a regulação social-hegemónica deixou de ser feita em nome de um projecto de futuro e com isso deslegitimou todos os projectos de futuro alternativos antes designados por projectos de emancipação social. A desordem automática dos mercados financeiros é a metáfora de uma forma de regulação social que não precisa da ideia de emancipação social para se sustentar e legitimar. Mas paradoxalmente é dentro deste vazio de regulação e de emancipação que estão a surgir em todo o mundo iniciativas, movimentos, organizações que lutam simultaneamente contra as formas de regulação que não regulam e contra as formas de emancipação que não emancipam.

Daqui resulta o segundo conjunto de desafios com que este projecto se defrontou. É possível unir o que a globalização hegemónica separa e separar o que a globalização hegemónica une? Residirá tão só nisso a globalização contra-hegemónica? É possível contestar as formas de regulação social dominante e a partir daí reinventar a emancipação social? Não será essa reinvenção apenas uma armadilha mais que a modernidade ocidental nos prepara no momento em que nos julgamos a sair dela? Qual o contributo dos pesquisadores para enfrentar estes desafios? Estou hoje convencido de que foi fatal para a ciência moderna e para as ciências sociais em especial ter abandonado o objectivo da luta por uma sociedade mais justa. Com isso estabeleceram-se barreiras entre a ciência e a política, entre conhecimento e acção, entre a racionalidade e a vontade, entre a verdade e o bem que permitiu aos cientistas tornarem-se, com boa consciência, os mercenários dos poderes vigentes. É possível religar o que tem sido tão obstinadamente separado? É possível construir formas de conhecimento mais comprometidas com a condição humana? É possível fazê-lo de modo não eurocêntrico, e não disciplinar?

De pressupostos e desafios tão vastos não podiam resultar senão objectivos ambiciosos. Foram dois os objectivos principais deste projecto: contribuir para a renovação das ciências sociais; contribuir para a reinvenção da emancipação social. Os dois objectivos são de facto um só: a renovação científica que pretendemos não tem outro objectivo senão o de reinventar a emancipação social.

 

2. A renovação das ciências sociais

A ciência donde vimos é um conhecimento arrogante que só reconhece conhecimentos alternativos na medida em que os pode canibalizar; é uma actividade corporativamente autónoma que sabe usar a sua autonomia, tanto para se desvincular das lutas sociais e do exercício da cidadania, como para entrar em contratos chorudos de consultoria mercenária. Em suma, as ciências sociais em que muitos de nós se treinaram são mais parte do problema com que nos defrontamos do que da solução que buscamos. Apesar destas dificuldades, os objectivos deste projecto assentam em algumas condições que lhe conferem consistência.

A primeira condição é geral: estamos numa fase de transição paradigmática, de crise de confiança epistemológica, de crescente confrontação entre conhecimentos rivais. É grande a dissidência no interior do campo científico, propõem-se formas de ciência-acção, de ciência cidadã, de ciência popular, investiga-se o carácter multicultural da ciência, propõem-se novas articulações entre a ciência e conhecimentos rivais. Ou seja, há campo para a inovação e para que a inovação não seja antecipadamente votada ao fracasso.

A segunda condição é específica: neste projecto congregaram-se pesquisadores, cientistas sociais e cientistas-activistas que têm vindo a debater-se, muitas vezes solitariamente, com os limites dos seus instrumentos analíticos, com a possível inutilidade do seu trabalho, quando não mesmo com a angústia de por vezes ter de vender o seu saber a interesses hegemónicos que o cobiçam e o pagam bem ou de, pelo menos, para sobreviver, ter de entrar em compromissos que traem os seus ideais de autonomia ou de solidariedade política com as lutas sociais dos oprimidos.

Por outro lado, trata-se de cientistas sociais que, na sua maioria, são originários e trabalham em países semiperiféricos. Esta escolha não foi feita ao acaso. Assentou em vários factores. Estou convencido que as chamadas novas interdependências criadas pelo capital informacional e comunicacional, longe de terem eliminado as hierarquias do mundo, aprofundaram-nas. Os nomes que usamos para definir essa hierarquia são importantes - países desenvolvidos e em desenvolvimento, países do Primeiro Mundo e do Terceiro Mundo, Norte e Sul, países ricos e países pobres - mas são menos importantes do que reconhecer que essa hierarquia existe e se está a aprofundar. A hierarquia não é hoje entre países apenas, é entre sectores económicos, grupos sociais, regiões, saberes, formas de organização social, culturas e identidades. A hierarquia é o efeito acumulado das desigualdades das relações entre as formas dominantes e as formas dominadas de cada um desses campos.

Penso que essa hierarquia se expressa hoje de duas formas: na dicotomia global-local em que o local é a forma subordinada da realidade ou entidade com capacidade para se autodesignar como global; e na tricotomia centro, semiperiferia e periferia que se aplica especialmente, mas não exclusivamente, a países. Esta última hierarquia foi determinante na concepção deste projecto. Dominam neste projecto países semiperiféricos ou, se se preferir, países de desenvolvimento intermédio: dois na América Latina, Brasil e Colômbia; um na Ásia, Índia; um na África, África do Sul e um na Europa, Portugal. A hipótese de trabalho que presidiu a esta escolha foi a de que, por um lado, é nestes países que mais intensamente colidem hoje as forças da globalização hegemónica e as forças da globalização contra-hegemónica e, por outro, que estes países, apesar de estarem fora dos centros hegemónicos de produção de ciência, constituíram ao longo dos anos fortes e, por vezes numerosas, comunidades científicas.

Estas comunidades científicas têm-se vindo a debater, mais do que quaisquer outras, com uma dupla disjunção: por um lado, a discrepância e desadequação das teorias e quadros analíticos desenvolvidos na ciência central para analisar adequadamente as realidades dos seus países; por outro lado, a incapacidade passiva ou a hostilidade activa da ciência central em reconhecer o trabalho científico produzido nesses países de uma maneira autónoma e sem obediência servil aos cânones metodológicos e teóricos e aos termos de referência desenvolvidos pelos centros hegemónicos de produção científica e por eles exportados, quando não impostos, a nível global.

Aos cientistas sociais da semiperiferia aplica-se melhor do que a quaisquer outros o que o crítico literário cubano, Roberto Retamar, disse a respeito do leitor colonial: «não há ninguém que conheça melhor a literatura dos países centrais que o leitor colonial». De facto, os cientistas sociais da semiperiferia tendem a conhecer bem a ciência central e a conhecê-la melhor que os cientistas centrais porque conhecem os seus limites e muitas vezes buscam as alternativas para os superar. É uma condição mais complexa quando comparada, quer com a condição dos cientistas sociais dos países centrais, quer com a condição dos cientistas sociais dos países periféricos. Os primeiros, os cientistas centrais, em sua esmagadora maioria não conhecem e, se conhecem, não valorizam o conhecimento científico produzido na semiperiferia ou na periferia. Este é considerado inferior em tudo o que for diferente ou alternativo. Por isso, é facilmente canibalizado, convertido em recurso ou matéria prima pela ciência central. No plano organizativo, o resultado é a proletarização dos cientistas periféricos e semiperiféricos. Por sua vez, os cientistas sociais dos países periféricos, além de trabalharem nas condições mais precárias e sujeitos a todo o tipo de perseguições, sentem-se isolados, não conhecem nem apreciam o trabalho que se faz na semiperiferia e quando conseguem vencer o isolamento procuram compensá-lo com lealdades acríticas à ciência central. A inclusão de Moçambique no projecto teve por objectivo ilustrar a possibilidade de relações alternativas entre a periferia e a semiperiferia.

O objectivo epistemologico deste projecto é, pois, o de congregar um número significativo ou uma massa crítica de pesquisadores maioritariamente da semiperiferia, trabalhando em diferentes países e continentes, que, em conjunto e sem as tutelas da ciência central, seja capaz de reivindicar a possibilidade de uma outra ciência menos imperial e mais multicultural, de uma outra relação mais igualitária entre conhecimentos alternativos (práticos, de senso comum, tácitos, plebeus, etc.) e sobretudo a possibilidade de pôr essa constelação de conhecimentos ao serviço da luta contra as diferentes formas de opressão e de discriminação, em suma, ao serviço das tarefas de emancipação social.

É, neste sentido, um projecto pioneiro e inovador, mas, como todos os projectos deste tipo está sujeito, tanto ao fracasso pela inviabilidade, como ao fracasso pelo êxito fácil, ou seja, pela cooptação hegemónica. Consciente dessas vicissitudes, tomámos algumas precauções que, vistas da perspectiva da ciência hegemónica, são violações irresponsáveis dos cânones metodológicos.

Em primeiro lugar, este projecto não tem um quadro teórico estruturado. Em vez disso, tem apenas um conjunto de amplas orientações que constituem um horizonte dentro do qual cabem vários quadros teóricos. Aliás, as próprias orientações estão conscientes de que tanto orientam como desorientam, sobretudo se tivermos em mente que neste projecto se juntam não apenas comunidades científicas diferentes, mas também culturas diferentes. Por exemplo, pode a emancipação social significar o mesmo num contexto cultural, o Oriental, em que o tempo é senhor e indisponível, e num contexto cultural, o Ocidental, em que o tempo é escravo e mercadoria? Em segundo lugar, este projecto não estabelece nenhuma metodologia; abre-se às diferentes metodologias por que optarem os pesquisadores. Em terceiro lugar, não dispõe de um conjunto de hipóteses de trabalho e muito menos de termos de referência. Muito propositadamente, este projecto assume que o que é definido previamente é apenas o que é estritamente necessário para incentivar os cientistas sociais a juntarem os seus esforços em objectivos comuns e suficientemente importantes para serem activamente partilhados. A teoria deste projecto tem, pois, de ser construída colectivamente, de baixo para cima. Os conceitos básicos têm de ser trabalhados em conjunto.

Estas violações do cânone metodológico não se cometem impunemente. Envolvem o risco do caos e da cacofonia. Penso, no entanto, que, neste momento, correr este risco é a única alternativa à proletarização ou mercenarização cientifica.

Por último, e ainda contra a ortodoxia epistemológica, este projecto assume explicitamente a pluralidade dos conhecimentos rivais e alternativos e procura dar-lhes voz, sobretudo no sub-projecto das Vozes do Mundo. Também à revelia do cânone, o que este projecto privilegia é a definição de um vasto campo analítico, muito pouco carregado de conceitos teóricos ou empíricos, mas definido segundo uma orientação geral: a identificação de campos sociais nos quais o conflito entre a globalização hegemónica e a globalização contra-hegemónica se prevê ser ou vir a ser mais intenso; campos sociais conflituais que são também campos de conflitos entre conhecimentos rivais e em que a prioridade analítica é dada às lutas que resistem à globalização hegemónica e propõem alternativas a ela. É pela prioridade dada à globalização contra-hegemónica que antevemos a possibilidade de contribuir para a reinvenção da emancipação social. Por outras palavras, a ciência é para nós um exercício de cidadania e de solidariedade e a sua qualidade afere-se em última instância pela qualidade da cidadania e da solidariedade que promove ou torna possível. Aqui reside o segundo objectivo deste projecto, - a reinvenção da emancipação social - também ele ambicioso, heterodoxo, pouco científico à luz do cânone e pleno de dificuldades e mesmo de antinomias.

 

3. A reinvenção da emancipação social

Este objectivo levanta três dificuldades principais que são outros tantos desafios. A primeira dificuldade diz respeito à própria noção de globalização contra-hegemónica. O que faz com que um conjunto de iniciativas ou movimentos seja considerado uma forma de globalização? Muitas das iniciativas e movimentos que são analisados neste projecto são locais, ocorrem em espaços-tempos muito circunscritos. É certo que em muitas delas é possível identificar articulações e alianças com outras iniciativas ou organizações estrangeiras ou transnacionais, parecendo então legítimo falar-se de globalização. Mas suponhamos que iniciativas diferentes ainda que com algumas semelhanças, por exemplo, na área da democracia participativa, ocorrem no mesmo período em diferentes partes do mundo, mas sem que se conheçam umas às outras ou sem que haja quaisquer contactos entre elas. Esta ocorrência simultânea é suficiente para que possamos falar de globalização das iniciativas?

A concepção dominante da globalização contra-hegemónica tende a restringi-la aos movimentos e organizações não governamentais transnacionais e às suas dramáticas aparições em Seattle, Montreal, Washington, Genebra, Davos, Praga e Porto Alegre. Sem dúvida que este movimento democrático transnacional, de activismo sem fronteiras, é uma forma de globalização contra-hegemónica. Mas não devemos esquecer que esse movimento assenta em iniciativas locais destinadas a mobilizar lutas locais mesmo que para resistir a poderes translocais, nacionais ou globais. Por outro lado, centrar demasiado a análise em acções dramáticas de âmbito global - ou seja, acções que tendem a ocorrer em cidades dos países centrais que suscitam a atenção dos meios de comunicação globais - pode fazer esquecer que a resistência à opressão é uma tarefa quotidiana, protagonizada por gente anónima, fora da atenção mediática e que sem essa resistência o movimento democrático transnacional não é auto-sustentável. Será que entramos numa época em que a distinção local/global deixou de fazer sentido? Será que tudo o que é local é global e vice-versa? Haverá locais, por assim dizer, desglobalizados?

Mas se é difícil definir os limiares do que se considera global, ainda é mais difícil definir o que se considera contra-hegemónico. É demasiado fácil definir como contra-hegemónica toda a iniciativa que resiste e cria alternativas à lógica do capitalismo global. Sabemos que a opressão e a dominação têm muitas faces e que nem todas são directamente um efeito do capitalismo global, tal como a discriminação sexual, a discriminação étnica ou xenofóbica e mesmo a arrogância epistemológica. É, aliás, possível que algumas iniciativas que se apresentam como alternativas ao capitalismo global sejam, elas próprias, também uma forma de opressão. Por outro lado, uma iniciativa que num dado país, numa dada comunidade, num dado momento, é vista como contra-hegemónica pode ser vista noutro país ou noutro momento como hegemónica. Finalmente, iniciativas ou movimentos contra-hegemónicos podem ser cooptados pela globalização hegemónica sem que disso dêem conta os seus activistas ou vejam nisso um fracasso. Podem até ver nisso uma vitória.

A segunda grande dificuldade, e portanto, o segundo grande desafio, é a articulação que pretendemos identificar entre a globalização contra-hegemónica e a emancipação social. O que é afinal a emancipação social? É possível ou legítimo defini-la em abstracto? Se é verdade que não há uma mas várias globalizações, não será igualmente verdade que não há uma mas várias formas de emancipação social? Tal como a ciência, não será a emancipação social de natureza multicultural, definível e validável apenas em certos contextos, lugares e circunstâncias, uma vez que, o que é emancipação social para um grupo social ou num dado momento histórico pode ser considerado regulação ou mesmo opressão social para outro grupo social ou num momento histórico seguinte ou anterior? Todas as lutas contra a opressão, quaisquer que sejam os seus meios e objectivos são lutas pela emancipação social? Há graus de emancipação social? É possível a emancipação social sem a emancipação individual? Emancipação social para quem e para quê, contra quem e contra quê? Quem são os agentes da emancipação social? Há algum agente privilegiado? As forças sociais e institucionais hegemónicas, como, por exemplo, o Estado, podem ser cúmplices ou colaboradores activos de acções de emancipação social? Para que tipo de acções e em que condições?

Se falamos de reinvenção da emancipação social, quer isto dizer que houve outras formas de emancipação antes daquela por que lutamos? Como definir essas formas anteriores? Porque deixaram de ser credíveis? Como definir o seu fracasso? Estaremos a lutar por novos conteúdos de emancipação social ou pelos velhos conteúdos apenas apresentados segundo novos discursos ou prosseguidos por novos processos?

Mais radicalmente, falar de emancipação social não é falar a linguagem hegemónica que tornou impronunciáveis as aspirações de tantos povos e grupos sociais subjugados pela ciência e pela economia política eurocêntricas? Corremos o risco de promover a opressão social usando a linguagem da emancipação social? Em alternativa, podemos atingir todos os nossos objectivos científicos e políticos sem usar o conceito de emancipação social?

A terceira dificuldade e o terceiro desafio são, em meu entender, os mais dilemáticos mas também os mais interessantes. Dizem respeito à escolha dos temas propostos para simultaneamente experimentar caminhos novos de produção de conhecimento e averiguar das possibilidades de emancipação social. Os cinco temas propostos são: a democracia participativa; os sistemas alternativos de produção; o multiculturalismo emancipatório,a justiça e a cidadania culturais; a biodiversidade e os conhecimentos rivais; e o novo internacionalismo operário. Porquê estes temas e não outros? Porquê analisados nos países escolhidos e não noutros? Se é verdade que a globalização produz localização e também produz tanto homogeneização como diferenciação, é possível que estes temas tenham a mesma relevância nos diferentes países? É possível sequer que tenham o mesmo significado? E se é possível detectar alguma coerência entre eles, essa coerência pode ser estabelecida sem recurso a uma teoria geral da qual há muito nos desiludimos por ser demasiado teórica e muito pouco geral?

Os temas foram escolhidos por me parecerem serem aqueles em que os conflitos epistemológicos, sócio-económicos, culturais e políticos entre o Norte e o Sul, entre o centro e as periferias são hoje mais intensos e continuarão a sê-lo nas próximas décadas. Trata-se do resultado de uma verificação empírica ainda não devidamente teorizada. Esta verificação não obrigava de modo nenhum à escolha específica dos países que foi feita. A selecção geral de países foi teoricamente informada pela tese da semiperiferia que formulei acima. Quis, além disso, que houvesse um país semiperiférico de cada um dos grandes blocos geo-regionais em que se divide a globalização hegemónica: Europa, Américas e Ásia, sendo África o exemplo paroxístico da integração por via da exclusão. Esta escolha resultou de trabalhos meus anteriores em que procurei mostrar que, embora a semiperiferia seja um conceito que vigora ao nível do sistema mundial no seu todo, os países semiperiféricos assumem papéis de intermediação e características sócio-políticas muito distintas consoante o bloco regional em que se inserem. Estas diferenças resultam basicamente do efeito acumulado das globalizações anteriores em cada um dos países e, portanto, das vicissitudes da trajectória histórica específica através da qual os países entraram, quase sempre forçadamente, em contacto com a modernidade ocidental. Dentro deste critério, era possível escolher vários países. Escolhi por critérios pragmáticos. Escolhi alguns países em que já realizara antes pesquisa (Portugal, Brasil, Colômbia e Moçambique) e países que não conhecia de todo, mas que, por razões insondáveis, me atraíam poderosamente: a Índia e a África do Sul.

 

 

 

4. Conclusão

As preocupações epistemológicas, teóricas e políticas que sustentaram este projecto de pesquisa estão ancoradas, como não podia deixar de ser, no meu trabalho anterior, nomeadamente no livro Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition, publicado em Nova Iorque pela Routledge, em 1995, e cuja publicação em português, em quatro volumes, está em curso. O primeiro volume, intitulado A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência, foi já publicado pela Cortez Editora, de São Paulo, em 2000.

Entre outras, cheguei a duas conclusões nesse trabalho que se me revelaram fundamentais para a concepção deste projecto. A primeira conclusão era que o paradigma da ciência moderna estava exausto, atravessava uma crise final e que por isso estávamos a entrar numa fase de transição paradigmática que certamente duraria várias décadas. Isto significava que a perda de confiança epistemológica abria espaços para a inovação ainda que durante muito tempo a crítica da epistemologia fosse muito mais avançada que a epistemologia da crítica. Por outras palavras, parecia-me que, por mais lúcidas e radicais que fossem as nossas críticas da epistemologia científica dominante, o nosso trabalho concreto de cientistas sociais ficaria a dever ao paradigma dominante, em termos metodológicos conceituais e analíticos, muito mais do que nós estaríamos dispostos a admitir.

Daí que, para maximizar a inovação, fosse necessário partir de comunidades científicas não hegemónicas, como já referi atrás, e criar desorientação teórica e analítica de modo a que nenhum dos pesquisadores se sentisse obrigado a seguir outros caminhos que não os seus. Por isso, houve de facto teorização mas teorização por omissão, pelo silêncio da teoria. Por outro lado, a confrontação que pretendi suscitar não foi apenas entre teorias e metodologias diferentes, foi também entre conhecimentos diferentes. Por essa razão, incluí, como sub-projecto, as Vozes do Mundo, com o objectivo de confrontar as análises científicas com outras visões do mundo, da vida e, sobretudo dos temas escolhidos, protagonizadas por activistas e líderes de movimentos e organizações populares que aprenderam na luta da resistência contra os poderes hegemónicos o saber prático que afinal faz mover o mundo e, mais do que qualquer outro, dá sentido ao mundo.

A segunda conclusão desse livro era que a sociologia se preocupara demasiado tempo com discussões teóricas estéreis como, por exemplo, a relação entre estrutura e acção ou entre a análise macro e a análise micro e que, em meu entender, a distinção e a relação fundamental a fazer era entre acção conformista e acção rebelde. Esta distinção sustenta-se na prática por comportamentos e atitudes face às formas e dinâmicas de poder em circulação na sociedade. Daí que tenha dedicado muita atenção aos modos de produção de poder. Procedi então a uma análise estrutural-fenomenológica das formas de poder social. Distingui seis formas de poder, confirmadas socialmente por acções conformistas e contestadas socialmente por acções rebeldes. Limito-me aqui a enunciar, sem qualquer ordem de precedência, as seis formas de poder: patriarcado, exploração, feiticismo das mercadorias, diferenciação identitária desigual, dominação e troca desigual. Continuam a ser estes para mim os principais rostos da opressão nas sociedades contemporâneas.

Na minha concepção, as acções rebeldes, quando colectivizadas, são a resistência social contra estas formas de poder e, na medida em que se organizam segundo articulações locais/globais, constituem a globalização contra-hegemónica. Cada um dos temas confronta de modo privilegiado uma ou várias destas formas de poder. Assim, a democracia participativa confronta privilegiadamente a dominação, o patriarcado e a diferenciação identitária desigual; os sistemas de produção alternativos confrontam em especial a exploração, o feiticismo das mercadorias e a troca desigual; o multiculturalismo emancipatório e as justiças e cidadanias alternativas resistem em especial à diferenciação identitária desigual, à dominação e ao patriarcado; a biodiversidade e os conhecimentos rivais confrontam privilegiadamente a troca desigual, a exploração e a diferenciação identitária desigual; finalmente, o novo internacionalismo operário resiste em especial contra a exploração, a troca desigual e o feiticismo das mercadorias.

Trata-se de uma proposta teórica que a seu tempo será desenvolvida no sétimo volume desta colecção. O importante a reter nesta proposta é que todas as lutas consideradas neste projecto de pesquisa confrontam todas as formas de poder, mas cada uma delas tem, como alvos privilegiados, apenas algumas destas formas de poder. Esta distinção é fundamental para discutir em cada contexto histórico e social, as lutas a privilegiar.

Em geral, apenas se pode dizer que nenhuma luta e, portanto, nenhum tema de confrontação ou conflito social detém um privilégio geral e abstracto na concepção deste projecto. Mas, por outro lado, isto não significa que todas as lutas tenham em todos os lugares, tempos e circunstâncias a mesma prioridade.

Esta proposta teórica assenta na ideia utópica de uma exigência radical: é que só haverá emancipação social na medida em que houver resistência a todas as formas de poder. A hegemonia é feita de todas elas e só pode ser combatida se todas forem simultaneamente combatidas. Uma estratégia demasiado centrada na luta contra uma forma de poder, mas negligenciando todas as outras, pode, por mais nobres que sejam as intenções dos activistas, contribuir para aprofundar em vez de atenuar o fardo global da opressão que os grupos sociais subalternos carregam no seu quotidiano.