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Horacio Martins de Carvalho

A emancipação do movimento no movimento de emancipação social continuada

(texto não editado)

 

1. E então?

Teria sido muito difícil para os 80 representantes de trabalhadores rurais sem terra provenientes de 13 Estados do país, reunidos durante o I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Janeiro de 1984, na cidade de Cascavel (PR), vislumbrarem que a constituição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST daria início formal a um dos mais complexos, dinâmicos e inovadores movimentos sociais de massa de trabalhadores rurais já registrados tanto na história no Brasil como na dos demais países da América Latina.

Dezesseis anos depois, durante o IV Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, realizado de 7 a 11 de Agosto de 2000, na capital do país, Brasília - DF, ali no centro do poder político nacional, 11.000 delegados provenientes de 24 Estados e do próprio Distrito Federal, 29 pessoas representando 22 organizações camponesas estrangeiras, 110 pessoas do exterior representando organizações não governamentais ou comitês de amigos do MST, outros convidados e personalidades que marcaram a história das lutas sociais no Brasil e em diversos outros países do mundo, reuniram-se, festejaram, aprenderam e reavivaram suas energias, não apenas para os enfrentamentos das lutas pela terra, mas, agora, pela reforma agrária e contra o modelo econômico vigente.

Assim como nos demais Congressos do MST, o que se presenciou foi um encontro festivo, de cultura, de congraçamento, de solidariedade, de formação e de debate das suas linhas políticas: tornou-se, naquela semana, uma referência nacional para todos aqueles que tinham consciência, seja pelo lado das classes dominantes e dos governos, seja pelo lado das classes subalternas do país, de que esse encontro formal de trabalhadores rurais, o maior já realizado na América Latina, era, antes de tudo, uma demonstração da pujança, firmeza e renovação de um movimento social de massa que vem obrigando politicamente, há dezesseis anos, as classes dominantes a colocarem a reforma agrária como tema de pauta da agenda política nacional. Da mesma forma, para os tecnocratas dos aparelhos de governo, para amplos setores da intelectualidade das universidades e para as centrais sindicais e partidos de centro-esquerda, acentuou a exigência de repensarem o papel das classes subalternas no campo na correlação de forças política e ideológica no país.

Os Congressos do MST são síntese do seu jeito de ser e fazer. Esses encontros são expressão da solidariedade entre lutadores sociais que arriscam suas vidas nos confrontos da luta pela terra, da demonstração de ternura entre os companheiros de mesmo ideal e da renovação dos compromissos com os valores que compartilham. Neles se discutem as linhas gerais da política do Movimento. Não se caracteriza como um espaço político de lutas eleitorais internas. Isso porque nesses congressos não há eleições e as possíveis lutas políticas internas dela resultantes. Os distintos processos de renovação das instâncias de direção realizam-se por outros caminhos.

E por que considero como síntese desse jeito de ser e fazer? Porque durante o Congresso, além de ser um grande encontro festivo e de debate político, se reproduzem práticas similares àquelas dos acampamentos após as ocupações de terras: todos os delegados acampam em grandes barracas de lona preta e organizam suas vidas durante o período do Congresso através de coletivos denominados brigadas, cada uma delas para um setor essencial: as cozinhas comunitárias, os postos de saúde, as creches, os círculos de estudo, o lazer, a segurança, a disciplina, a cultura, enfim, todas aquelas dimensões da vida que constituem o cotidiano das pessoas numa cidade efêmera com mais de 11000 pessoas, cidade essa acampada durante uma semana dentro da capital do país e que se autogovernou sob os olhares atentos dos policiais dos serviços de inteligência.

Então, como explicar essa presença marcante e duradoura do MST no cenário nacional se a luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil, e nela o próprio MST, enfrenta inimigos históricos, com força e poderes econômicos, políticos, ideológicos enormes, tais como:

  • A aliança histórica das classes dominantes no Brasil, desde meados do século XIX, entre o empresariado que constitui os capitais agrário, industrial, comercial e bancário, nacional e internacional, que sempre se manteve, e atualmente mais do nunca, contra a reforma agrária no país;
  • O Governo Federal e a maioria dos governos estaduais, através da manipulação das políticas públicas e dos meios de comunicação de massa contra os interesses das classes subalternas no campo; do aparato repressivo direto como, a polícia federal e as polícias militares estaduais e, indireto através dos serviços de inteligência, sejam os explícitos com a Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, ou os mantidos sob discrição aparente como os serviços de inteligência das forças armadas e os das polícias militares estaduais, todos articulados com os serviços congêneres norte-americanos;
  • As forças para-militares. Tanto os denominados popularmente de jagunços (pistoleiros de aluguel) ou as empresas de segurança privada, contratadas pelos grandes proprietários de terras;
  • As agências multilaterais de financiamento como o Banco Mundial - BIRD e o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID que além de financiarem a reforma do Estado e a reestruturação da economia, conforme os paradigmas do Fundo Monetário Internacional - FMI, atuam na formação de opinião política e ideológica do primeiro escalão do Governo Federal para, como exemplos, implantar a reforma agrária (sic) de mercado ou a privatização dos setores da educação e saúde, não se considerando toda obrigatoriedade de privatização das empresas econômicas estatais no processo de reforma do Estado;
  • Amplos setores da intelectualidade de centro-esquerda do país que ora pelo desencanto pessoal com a política ora pela cooptação pelos setores moderados das classes dominantes (transformismo, conforme Gramsci) aderiram ou às reformas políticas e macroeconômicas neoliberais ou à ideologia dominante que considera os pequenos produtores rurais familiares como setor da produção sem perspectiva histórica.

Os apoios recebidos pelo MST dentro do país e provenientes do exterior são consideráveis e necessários. Porém, eles não são suficientes para darem conta da sua prolongada permanência na luta pela terra, pela reforma agrária e pela superação do atual modelo econômico por mais de dezesseis anos, nem para compreender a complexidade hoje alcançada pelo MST a qual foi aos poucos desenvolvendo-se dentro e pelo movimento de massa. Porém, é oportuno que as fontes dos apoios recebidos sejam sucintamente explicitadas:

  • Os setores progressistas das igrejas, em particular das Igrejas Católica e Luterana, através da Comissão Pastoral da Terra - CPT;
  • Os movimentos sociais populares do campo e das cidades;
  • Os sindicatos rurais, da industria e do comercio e as centrais sindicais progressistas;
  • Frações das classes médias urbanas e rurais;
  • Parcela da intelectualidade progressista de diversas universidades, de centros de pesquisa e de organismos governamentais;
  • Organizações não governamentais do país e do exterior
  • Comitês de solidariedade aos Sem Terra do Brasil constituídos em 12 países da Europa, nos EUA articulados pela Global Exchange e no Canadá através de diversas ONGs;
  • Intercâmbio e apoio de organizações camponesas latinoamericanas através da Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones Campesinas - CLOC na América Latina e da Via Campesina a nível mundial;
  • A maioria da opinião pública brasileira.

No mês de Julho de 2001 foi realizado, na França, o 4º Encontro de Amigos do MST com a presença de 104 pessoas oriundas de 13 países da Europa. Apesar da diversidade e lealdade desses apoios eles não nos indicam como o MST tem resistido e superado embates contra tão fortes oponentes. Quais as energias humanas que estão sendo liberadas no cotidiano das práticas sociais desse movimento de massa que fazem com que centenas de milhares de famílias de trabalhadores rurais sem terra, e uma parte considerável delas já com terra, sintam-se comprometidas com os ideais e valores dos seus pares para resistir na luta, mesmo quando seu suposto objetivo imediato, como a obtenção da terra, tenha sido alcançado? Que procedimentos participativos foram criados que permitem afirmar que esse movimento de massa não se desviou para uma organização burocrática formal, mesmo que percebida por alguns pesquisadores sociais como uma organização social de massa? Quais os segredos íntimos do MST que deverão ser desvendados, quiçá revelados, para que se possa contribuir para a reflexão sobre esse movimento social eivado de surpresas, de inovações e de capacidade de mudar por tão longo tempo?

Desejo sugerir que a vereda para conhece-los encontra-se no movimento desencadeado pelo MST para a emancipação social continuada das classes subalternas no campo, esforço de superação da exploração econômica, da dominação política e da submissão ideológica, enfim, das subalternidades que as famílias dos trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra tem sido submetidas no Brasil. Nesse esforço histórico de emancipação social continuada das classes subalternas no campo o MST mergulhou num processo próprio de emancipação de diversas tutelas potenciais. Ao dar continuidade histórica a diversos movimentos sociais de luta pela terra e pela reforma agrária, o MST teve que se emancipar das igrejas, dos sindicatos, dos partidos, do Estado e do centralismo burocrático.

 

2. Segredos íntimos

As pessoas, os grupos e classes sociais que desejam ser e vir-a-ser sujeitos das suas histórias estão em permanente tensão entre a alienação e a consciência crítica, entre a dominação e a libertação e entre a tutela e a emancipação. Muitas vezes, seja pela alienação e ou pela repressão física e ou mental, pessoas, grupos e classes sociais conformam-se com as subalternidades, ensaiando, qual espasmos, nos limites das suas possibilidades presentes, micro-conquistas num processo continuado de supostas libertações. Essas micro-conquistas podem representar no imaginário das pessoas e grupos sociais libertações sem que, necessariamente, se apercebam que tais liberdades podem estar sendo permitidas por outrem, seja pessoa, grupo ou classe social.

De maneira geral, essas micro-libertações pessoais e sociais não significam efetivamente processos de emancipação, e necessariamente não dão início ao processo de emancipação social. Todavia, no complexo das formas e graus de subalternidades, permitem que aflorem sentimentos de liberdade, formas sublimadas de alienação, que se verificam nos espaços econômicos, políticos e ou ideológicos consentidos pelos dominantes.

Desejo sugerir que a emancipação social é um processo continuado. Pode ter começo e a percepção do seu início poderá até ser datada, mas necessariamente não tem fim. Assim, mesmo nos processos revolucionários, pessoas, grupos e classes sociais conseguem fazer fluir emancipações pessoais e sociais em movimento permanente, isto é, sempre em movimento e incompletas. A cada movimento da sociedade, e a sociedade está sempre em movimento, novas correlações de forças econômicas, políticas e ideológicas são constituídas recolocando as relações de tutela e de emancipação sob novas configurações.

Não suponho que a emancipação social continuada exija a presença de mediações formais tipo representação de interesses, sejam elas as associações, sindicatos, partidos, Estado ou igrejas. Essas mediações podem, em determinadas circunstâncias, ser necessárias, mas não indispensáveis. Os movimentos de massa, na busca da realização de ideais objetivos e subjetivos, permitem que catarses pessoais, revigoramento e descoberta de novos valores humanos, pessoais e sociais, se afirmem proporcionando emancipações pessoais e sociais muitas vezes insuspeitáveis. As ações sociais pela denominada ação direta podem resultar no desencadeamento de processos de emancipação ou, dependendo de como se processou a emulação para a ação direta, já terem sido conseqüência de emancipações em movimento. As ações diretas pelos movimentos de massa não demandam mediações formais de representação de interesses.

Como hipótese afirmaria que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST revigorou e deu um novo sentido ao processo histórico de emancipação social continuada das classes subalternas no campo, processo esse que tem resultado objetiva e subjetivamente na afirmação da identidade social dos trabalhadores rurais sem terra, na redescoberta de um sentido histórico para essa fração das classes subalternas no campo, como na conquista cotidiana da dignidade de milhões de pessoas do campo e da cidade envolvidas nas lutas pela terra, pela reforma agrária e pela mudança no modelo econômico vigente. Essa emulação no processo de emancipação social continuada estaria contribuindo para a construção da cidadania ativa das pessoas de parcelas consideráveis das classes subalternas no campo.

As ações diretas como as ocupações de terras e de prédios públicos e a resistência prolongada nos acampamentos, assim como a implantação de uma pedagogia própria nas escolas, os novos jeitos e maneiras de realizar a formação dos militantes, a busca de formas alternativas de governo dos assentamentos, as místicas e valores adotados como códigos culturais para a afirmação da identidade dos Sem Terra redefinem, na prática social das lutas de emancipação social continuada, novas relações entre o Estado e essa fração da sociedade civil.

Destarte, como as ações diretas do MST contestam e ensaiam redefinir, face às ofensivas das concepções e ações burguesas, o espaço público e as concepções dominantes de sociedade civil, tudo leva a crer que a afirmação cidadã dessas parcelas das classes subalternas que lutam pela terra, pela reforma agrária e pela mudança no modelo econômico vigente ocorra nos espaços sociais criados por eles próprios, numa tensão dialética entre espaços sociais emancipados socialmente e a tentativa também continuada de tutela desses espaços pelas classes dominantes.

Então, o Movimento está sempre em movimento, em especial em relação ao Estado burguês, ao espaço público e à sociedade civil por ele criados historicamente de forma autoritária. Conforme Marilena Chauí, no Brasil é o Estado que funda a sociedade.

Mesmo levando-se em consideração que a constituição do MST deu-se num contexto político histórico favorável às ações de massa - contexto esse sintetizado pelo período de transição entre uma ditadura militarista e uma democracia liberal burguesa, pelo agravamento da situação das classes subalternas no campo, em decorrência do modelo econômico capital-intensivo reproduzido pelo governo do país a partir dos interesses do capital monopolista internacional, e pela ampliação, diversificação e intensificação das organizações e movimentos sociais no âmbito da sociedade civil -, o caráter desse movimento social de massa tem sido produto de uma construção permanente aonde valores, mística, linhas políticas estratégicas, ações diretas de ocupação da terra e emancipações sociais continuadas voltadas para dentro de si mesmo foram sendo afirmados, criticados e superados num esforço social de autoconstrução de um movimento de massa no campo sem precedentes na história do Brasil.

O MST nasceu emancipando-se da tutela de duas ordens de instituições que, ao mesmo tempo em que lhe deram vida, poder-lhe-iam ter tirado a liberdade: as igrejas e os sindicatos de trabalhadores rurais. Também, numa dinâmica participativa com outros movimentos e organizações sociais de redescoberta de novos caminhos para a luta pela terra, foi emancipando-se dos partidos políticos, do Estado e, internamente, do centralismo burocrático que a busca pela unidade estratégica de luta, num país com as proporções territoriais e culturais do Brasil, insinuava.

Pode-se considerar que a Comissão Pastoral da Terra - CPT e os dirigentes de sindicatos de trabalhadores rurais a ela vinculados foram os responsáveis, no âmbito dos debates de constituição do MST, pela sua emancipação da tutela das igrejas (católica e luterana) e do sindicalismo de trabalhadores rurais. Essa posição política ficou explícita no I Encontro Nacional dos Sem-Terra, realizado de 23 a 26 de Setembro de 1982, em Goiânia - GO, com a presença de 28 trabalhadores rurais sem terra oriundos de 16 Estados, juntamente com 22 agentes pastorais vinculados à igreja católica ou à luterana de diversos Estados do país. Na apresentação da Carta aos Companheiros Sem-Terra do Brasil (Comissão Pastoral da Terra, 1982: 9) afirmaram:

No que diz respeito à articulação, os participantes decidiram que devem fortalecer as ligações regionais, isto é, a partir das categorias existentes nas grandes regiões, tais como bóias-frias do sudeste e sul, os arrendatários do sul, os posseiros do centro-oeste, os assalariados da zona da cana de Pernambuco, etc. Depois de fortalecida essa articulação regional estabelecer, então, uma articulação mais ampla e de nível nacional. Para manter esta articulação foi eleita uma coordenação, ainda provisória, dos sem-terra. Entre outras tarefas, esta coordenação terá a função de preparar o 2º Encontro Nacional dos Sem Terra, entre Setembro de 1983 a Janeiro de 1984.

Nesse I Encontro foi externada a preocupação, a partir de membros dirigentes e assessores tanto da CPT como dos sindicatos de trabalhadores rurais, sobre o futuro do movimento dos sem terra, no sentido de que ele fosse constituído como uma organização independente tanto das igrejas como dos sindicatos.

A emancipação social do MST da CPT foi um importante processo vivenciado tanto pelo MST como pela CPT. Importante porque jamais cessou, por parte da CPT, a solidariedade, a cooperação e a defesa das ações efetuadas pelo MST. Nesses 16 anos de história do MST, a CPT foi fundamental não somente para o apoio às ocupações de terras improdutivas mas, sobretudo, para a defesa dos direitos humanos das pessoas perseguidas e injustiçadas no campo, entre elas aquelas denominadas trabalhadores rurais sem terra.

Recentemente, durante o I Congresso Nacional da Comissão Pastoral da Terra - CPT, realizado em Bom Jesus da Lapa (BA), durante o período de 28 de Maio a 1º de Junho deste ano, 25 anos depois da sua fundação, foi proclamada a distinção entre «terra como espaço de produção e terra como espaço de vida». Na Carta da Lapa do Bom Jesus declararam, mais uma vez, como uma das suas ações prioritárias, lutar pelo resgate da liberdade da terra, apoiando e reforçando, entre outras proposições, «as ocupações de terra promovidas pelos sem terra, seus movimentos e organizações» (Maranhão, 2001: 5 ss).

A emancipação do movimento de massa dos trabalhadores rurais sem terra das igrejas e dos sindicatos não significou que a religiosidade e as lutas de caráter corporativo tivessem sido relegadas nem foram subestimadas as experiências do demais movimentos e organizações sociais de luta pela terra no Brasil e na América Latina.

No I Encontro Nacional do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra, realizado em 1984, foram definidos os princípios organizativos, as reivindicações e as formas de luta do Movimento. Alguns dos princípios organizativos já estabeleciam o caráter desse movimento de massa: direção coletiva, a divisão de tarefas (cada qual contribui segundo suas capacidades e habilidades), a disciplina, o estudo, a formação de quadros (formar seus próprios quadros), a luta de massa (esta apoiada na idéia de que o direito assegurado em lei não garante nenhuma conquista para o povo) e a vinculação com a base.

Essas definições formais estabelecidas em 1984 foram sendo concretizadas, revisadas e ampliadas durante toda a história do Movimento, numa práxis permanente que permite afirmar que no MST tudo é movimento, é sempre um longo processo de reflexão, mobilização e de ação. Esta característica permeia a percepção e correção dos erros e desvios. Em função da própria vivência dos trabalhadores rurais sem terra, tem-se como aceitação social que as inovações ou as correções de erros, não se considerando os casuísmos, só sejam implantados após aflorar um sentimento interno generalizado favorável em todas as instâncias do Movimento.

Nessa perspectiva, nem sempre uma crítica corretamente formulada consegue, em curto prazo, ter resultados aplicados. Isso é devido à complexidade e diversidade das inúmeras instâncias diretivas, ao do caráter colegiado dessas direções e, ao nível dos assentamentos, à diversidade das formas de direção e de percepção da realidade. A compreensão das críticas e das mudanças possíveis daí decorrentes demanda tempos não apenas cronológicos mas, sobretudo, culturais. Afloram, deveras, formas muito variadas de descoberta da solução para um mesmo problema.

Quais então os segredos íntimos que deveríamos conhecer para que supostamente pudéssemos compreender um pouco mais esse movimento social de massa que há mais de dezesseis anos incomoda as classes dominantes do país na luta pela emancipação social continuada de frações das classes subalternas no campo? Sugiro que os seguintes aspectos sejam considerados: a ação de massa, a forma de luta ação direta expressa na ocupação de terras, os valores, a mística, a direção coletiva, a formação dos militantes a autonomia do próprio Movimento e a sua capacidade de, involuntariamente, constituir-se como um tipo de sociedade em rede com identidade social de projeto (Castells, 1999: 28).

É minha sugestão que o desvendamento desses segredos íntimos deva partir da ação de massas direta no processo de ocupação de terras.

Quando o MST optou pela forma de luta ação direta, essa concretizada na ocupação de terras, ele inseriu-se diretamente numa luta de classes contra o capital.

Afirma-se freqüentemente que a luta dos trabalhadores rurais sem terra é contra o latifúndio. Essa assertiva não é incorreta, mas é insuficiente. A expressão latifúndio, consagrada na América Latina, significa a grande propriedade da terra rural improdutiva e, no caso brasileiro, aquele imóvel rural que não cumpre a função social. Excluindo-se o fato de que essa expressão não abrange os variados planos sociais em que se realiza a luta social dos trabalhadores rurais sem terra, hoje muito mais ampla e objetivando a reforma agrária e a mudança no modelo econômico, tem sido pouco acentuado o fato de que os grandes proprietários de terra sempre estiveram integrados com o empresariado urbano, seja ele comercial, industrial ou bancário.

Em Fevereiro de 1985, quando da elaboração do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária - 1º PNRA (implantado por lei federal em Outubro de 1985), da então denominada Nova República (autodenominação do primeiro Governo Federal civil eleito após a ditadura militarista de 1964 a 1984), pode-se ter acesso direto às estatísticas cadastrais dos imóveis rurais e, qual foi a surpresa: a maior parte dos grandes proprietários de terras do país (os latifundiários) residiam ou tinham a sede das suas empresas na região metropolitana da cidade de São Paulo (SP), o centro industrial do país.

Essa constatação formal, pelo acesso às estatísticas oficiais, ainda que já anunciada desde meados da década de 70 por diversos estudiosos da matéria, indicava que os grandes imóveis rurais no Brasil estavam concentrados nas mãos do capital financeiro e comercial, e não mais, como muitos suponham, nas dos coronéis dos sertões.

O MST, ao optar pela ocupação dos grandes imóveis rurais improdutivos confrontou-se diretamente com o grande capital financeiro e comercial, nacional e estrangeiro. Ao romper com as prerrogativas históricas e legais do direito de propriedade privada da terra improdutiva estava, de maneira indireta, afirmando que não iria aguardar pela ação do Estado para a realização da reforma agrária no Brasil. Portanto, emancipava-se do Estado. Rompia com a prática histórica de diversos movimentos sociais de luta pela terra e da luta sindical e partidária de reivindicar do Estado a reforma agrária.

A emancipação do MST perante o Estado, mas sem abdicar da disputa pelos recursos e serviços públicos, já estava evidente desde o seu I Congresso Nacional do MST, realizado em Janeiro de 1985, quando uma das recomendações políticas aos militantes foi a de não se iludirem com a Nova República. Nesse Congresso firmou-se a convicção de que a reforma agrária somente iria avançar se houvesse ocupação de terras pela luta de massa (Stédile e Fernandes, 1999: 51).

Essa compreensão do caráter tutelador do Estado sobre as classes subalternas do campo (e da cidade), pelas ações de coerção e de formação de consenso na garantia da hegemonia das classes dirigentes sobre as demais classes sociais do país, foi determinante para a construção da diversidade e complexidade internas do MST.

Como as áreas de terras rurais ocupadas pela ação de massa representavam (e ainda representam) uma afronta aos privilégios legais do suposto direito à propriedade privada absoluta (sic), instituídos consetudinariamente pelas classes dominantes, o Governo Federal sempre dificultou a formulação e a aplicação das políticas públicas agrícolas que se relacionassem com as áreas de terras ocupadas pelo MST para a reforma agrária.

Essa circunstância anteriormente descrita determinou que as lutas por terra fossem gradativamente sendo ampliadas para as lutas por políticas públicas agrícolas compatíveis com a situação econômica dos trabalhadores rurais assentados, lutas pela educação e saúde públicas nos assentamentos, lutas pela segurança física das pessoas nos assentamentos em função das ofensivas da repressão das políticas militares, civis, para-militares e de pistoleiros profissionais, luta pelo acesso aos meios de comunicação de massa, entre tantas outras.

No movimento dessas frentes de luta tão diversificadas foram sendo constituídos diversos coletivos setoriais do MST como frente de massa, educação, saúde, cooperação agrícola, gênero, formação, cultura, direitos humanos, comunicação e relações internacionais, todos esses articulados ao nível de cada Estado Federativo e no Distrito Federal e, finalmente, nacional. A necessidade da instância nacional deveu-se, no Brasil, além da construção de uma unidade estratégica da luta, a duas situações históricas básicas: a presença forte, centralizadora e concentradora do Governo Federal, em especial na formulação das políticas públicas e, em decorrência dessa tendência, ter-se consolidada a arena política nacional como a única passível de negociação política na dinâmica das lutas de classes.

A complexidade desses processos de lutas poderá ser estimada ao ter-se como referência que na atualidade existem aproximadamente 1500 assentamentos sob a hegemonia do MST. Ademais, os assentamentos apresentam formas diferenciadas de gestão numa gama ampla que engloba desde sistemas presidencialistas até inteiramente coletivistas (Carvalho, 1998). Ensaiam processos de participação e organização consensuados (Carvalho, 1994) opondo-se às lógicas governamentais dominantes explícitas nos programas de desenvolvimento rural sustentável financiados pelo Banco Mundial que exigem a criação de organizações populares para que as pessoas e ou famílias possam receber financiamentos governamentais subsidiados.

A estratégia de desenvolvimento autoritário, de cima para baixo, da sociedade civil, através das políticas públicas compensatórias (financiamentos ora subsidiados ora à fundo perdido para os governos) situou-se nos marcos das reformas macroeconômicas promovidas pelo FMI para amenizar o processo de concentração crescente de renda e da riqueza.

A necessidade de «compensar» tem um componente de equidade e de justiça, associados à racionalidade na distribuição dos custos da crise, a estabilização e o ajuste no curto e médio prazos. Mas, integra também a racionalidade da reforma econômica e da reforma social. Trata-se, de fato, de recuperar transitoriamente os equilíbrios distributivos que distorceram pela forma como os distintos setores da sociedade absorveram os custos da crise e das reformas empreendidas para superá-la (BID, 1993: 26).

Para dar conta das lutas locais, regionais, estaduais e nacionais estão em movimento os dez coletivos setoriais, anteriormente referidos, ao nível nacional e ao nível de cada um dos 23 Estados Federativos e do Distrito Federal, nos quais o MST tem presença efetiva. Ademais, há que se considerar que no âmbito de cada Estado, estão constituídas direções regionais havendo, em média, de 4 a 7 por Estado Federativo.

Cada instância, desde o assentamento, passando pelas direções regionais, estaduais e nacional, possui autonomia relativa. Como ilustração pode-se usar a dinâmica de estudo, reflexão e debate dos temas para os Encontros Nacionais, assim como para os Congressos: os temas são debatidos desde os núcleos de base, unidade de articulação das famílias (por vizinhança) dentro de um assentamento, até o nível da direção nacional.

Essas centenas de centros de decisão, aliados ao caráter de massa do MST, dão a esse Movimento uma dinâmica própria: a diversidade e a velocidade das alterações na correlação de forças políticas e ideológicas não propicia condições objetivas para a cristalização de estruturas organizacionais burocráticas seja entre as instâncias de direção ou entre os coletivos setoriais. Uma das razões reside na origem do MST: a ocupação da terra.

A ocupação de terra dá-se a partir de um movimento de massa local, no limite e raramente no âmbito microregional. Para uma ocupação de terra são mobilizadas de centenas e até milhares de famílias (homens e mulheres, crianças, jovens e idosos), ou sejam, milhares de pessoas. Seria muito difícil supor que, por maior que seja a disciplina para as ações de massa na ocupação da terra, ela poderia ser transferida e cristalizar-se numa organização burocrática. São outros os valores que proporcionam unidade interna ao MST. Talvez aí resida um dos mais complexos segredos íntimos do MST.

É minha sugestão que a identidade social construída pelo MST, junto a parcelas das classes subalternas no campo no decorrer da luta pela sua emancipação social continuada, deveu-se à capacidade política e ideológica que esse Movimento teve para consolidar a identidade social de resistência que, tradicionalmente, os movimentos e organizações sociais de luta pela terra acabam por construir.

Ao mesmo tempo em que se consolidava essa identidade de resistência ela própria era superada pela ampliação dos planos sociais em que se verificavam as lutas sociais. Nesse movimento contraditório de consolidar a resistência e de supera-la foi sendo construída a identidade de projeto. Esta ocorre «quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social» (Castells, 1999: 24 ss).

A identidade de projeto desse movimento social está em construção. A consciência social dos Sem Terra de que apenas a obtenção da terra é insuficiente para a realização dos seus objetivos econômicos imediatos já é efetiva; a percepção de que as demais lutas sociais como educação, saúde, cultura, formação, etc. são indispensáveis para a sua emancipação de duas das três cercas que os dominam, o latifúndio e a ignorância, é crescente e já lhes dá significado; a terceira cerca, o capital, em função dos processos de exclusão social e aumento da pobreza no país vai aos poucos fazendo sentido para os Sem Terra.

Entretanto, a derrubada da cerca do capital exigirá uma identidade social mais ampla do que aquela restrita aos Sem Terra ou mesmo às classes subalternas no campo. Pressuporá, para que a identidade de projeto emerja como capaz de buscar a transformação de toda a estrutura social do país, a unidade das classes subalternas do campo e da cidade. Lutando a favor dessa perspectiva, o MST amplia as suas alianças sociais e políticas junto aos setores das classes subalternas da cidade.

Porque propõe uma identidade de projeto, necessária para a emancipação social continuada das classes subalternas no campo, poder-se-ia supor que o MST defenderia a hipótese de que os Sem Terra seriam portadores, eles em si, da força social capaz de transformar a estrutura social do país. Essa é uma percepção equivocada da estratégia do MST. Em função dessa percepção afloram alusões de que o MST estaria convertendo-se num partido político camponês.

Suponho que essa leitura da dinâmica desse movimento de massa deixa de perceber que a luta social camponesa (e a dos trabalhadores amplo senso) é, predominantemente, determinada pela necessidade e não pelas aspirações e utopias, como pode ocorrer com setores das classes médias urbanas. A luta contra a cerca do capital tem-se evidenciado aos Sem Terra como uma necessidade, seja pela consciência que adquirem dos processos de exploração a que estão submetidos ao enfrentarem os mercados de insumos e de produtos, seja em função concreta da pobreza crônica em que se encontram apesar das melhorias que tem obtido nos demais planos sociais das suas vidas como educação, saúde, cultura e organização.

Os novos significados que os diferentes planos sociais de luta, derivados das lutas pela terra, tem proporcionado aos Sem Terra, e que vão se constituindo na base da sua identidade social como Sem Terra, mesmo que muitos já tenham conquistado a terra, têm sido revelados pelos valores que o MST vem adotando e defendendo. Aliado a essas virtudes como referências para os comportamentos pessoais e para as relações de intersubjetividade entre os Sem Terra (Carvalho, 1999), o MST sempre exercitou o desenvolvimento de símbolos e as místicas.

É minha sugestão, ademais, que o movimento de massa MST conseguiu desenvolver internamente uma sociedade em rede. As multidões que ocupam as terras dos latifundiários ou dos grandes capitalistas; a diversidade de tipos de pessoas que configuram essas multidões de Sem Terra; as centenas de centros de decisões gestados e geridos por tantos perfis sócio-culturais distintos; as tentativas de cooptação por parte dos organismos governamentais de militantes, lideranças locais, dirigentes e amigos do MST; as pressões políticas e ideológicas das classes dominantes que ensaiam impedir essas multidões de derrubar as cercas do latifúndio e da ignorância; a repressão militar, as ameaças de morte e de tortura, os assassinatos de lideranças, de famílias de Sem Terra e de seus dirigentes; as manipulações das políticas públicas, as ofensivas ideológicas e financeiras do Banco Mundial para implantar a reforma agrária de mercado (sic); enfim, são tantas as dimensões, os planos sociais e as forças neles atuantes contrárias à construção da identidade social Sem Terra que dificilmente poder-se-ia supor que tais conquistas do MST teriam sido realizadas a partir de estruturas organizacionais burocráticas ou de organizações sociais cuja pertinência seria a estabilidade ou o dirigismo central.

Uma das possíveis evidências da superação pelo MST das formas corporativistas e dos mecanismos liberais da representação política está nas práticas das audiências e reuniões com as autoridades governamentais: sempre comparecem dezenas de Sem Terra. Não se apresentam dois ou três representantes, mas coletivos de trabalhadores que são portadores de decisões da massa de trabalhadores nos assentamentos. Essa prática é, inclusive, motivo para notícias nos meios de comunicação de massa, em função dos impasses constantes que são gerados pela presença, seja nos gabinetes ministeriais seja no do Presidente da República, de dezenas de representantes dos trabalhadores, quando o protocolo instituído exige a presença de apenas uns poucos.

Por vezes, pesquisadores sociais têm estudado e interpretado partes dessa totalidade em movimento denominada MST e, em função dessa abordagem (seja pelo viés sincrônico ou diacrônico), são induzidos a conclusões nem sempre pertinentes. A questão da coletivização nos assentamentos é um caso emblemático.

São poucos os assentamentos no país que exercitam cooperação na produção ou na comercialização expressa, seja essa na forma cooperativista tradicional ou nas cooperativas coletivizadas. O que predomina, denotando uma debilidade no processo de organização da produção para superar o individualismo econômico, é a iniciativa empírica da produção agropecuária ou extrativista familiar tradicional.

Até o final do ano 2000 havia aproximadamente 250000 famílias em cerca de 1500 assentamentos que se identificavam com o MST. Isso significou uma área libertada do poder dos capitalistas de sete milhões de hectares. Nesses assentamentos, até Junho de 2001, foram constituídas e estão em operação 49 Cooperativas de Produção Agropecuária - CPA (regime coletivistas) abrangendo 2299 famílias, 32 Cooperativas de Prestação de Serviços - CPS envolvendo 11174 famílias e mais sete cooperativas sendo duas de crédito, duas de trabalho e três de pequenos produtores, totalizando esse conjunto de cooperativas em 13473 famílias envolvidas. Estão em operação nesses assentamentos 70 unidades agroindustriais do SCA, e mais 27 em fase de projeto. Paralelamente ao Sistema de Cooperativismo dos Assentados - SCA, foram constituídas centenas de associações de produtores induzidas pelas políticas públicas como indispensáveis para o recebimento de créditos rurais subsidiados.

A maioria das 49 Cooperativas de Produção Agropecuária - CPAs, inspiradas num tipo de cooperativas cubanas, foram constituídas como uma forma de resistência política e, ao mesmo tempo, de ensaio para a superação do individualismo econômico. Foram conseqüência de dois fatores conjunturais, ainda que contraditórios: a forte repressão econômica, política, ideológica e policial desencadeada contra o MST durante o período do Governo Collor de Mello (1990-1992), período esse em que o MST sofreu a mais forte perseguição política e policial, e exigiu recuos defensivos na luta pela terra para evitar seu extermínio. Um desses tipos de refúgios criados foi a CPA. O outro fator foi a necessidade de enfrentar politicamente, através de uma forma de organização social da produção mais complexa, a situação oligopolista e oligopsônica dos mercados de insumos e produtos agropecuários, tendo em vista a completa liberalização dos mercados pela eliminação de mecanismos como as aquisições do Governo Federal e os estoques reguladores, imposta à população a partir do Governo Collor. As CPAs e, posteriormente, as CPSs foram respostas a situações concretas vivenciados pelos trabalhadores rurais sem terra assentados.

Porem, se a partir do Governo Collor, e do crescimento das práticas de repressão aos movimentos e organizações populares, o MST teve que buscar formas defensivas, como as CPAs, para evitar seu extermínio, houve, também, um redespertar das forças e energias sociais dentro do próprio MST, que foram canalizadas para diversas atividades de ofensiva, entre elas as marchas.

Entre 1989 e 1994 a palavra de ordem era ocupar, resistir e produzir. Todavia, nos anos 1990 e 91, as ações concentraram-se no resistir. A marcha surge como uma iniciativa para sair da tendência ao isolamento induzido pela ação defensiva do próprio MST e pelas campanhas governamentais nos meios de comunicação de massa. Objetivava «mostrar para a sociedade que um problema social só se resolve com a adoção de medidas políticas» (Stédile, 1999: 151).

As marchas foram transformadas não apenas numa ação política mas, também, educativa quando os caminhantes, passando pelas cidades, localizavam as lideranças populares locais, faziam reuniões nas escolas, paróquias, ofertavam alimentos provenientes dos assentamentos, etc. Nos dias em que os caminhantes permaneciam acampados junto das pequenas cidades a atenção era inteiramente voltada para eles e para as suas ações de animação política.

A ação política e pedagógica das marchas evidenciou que um movimento social de massas poderia realizar uma atividade de mobilização de grande porte e prolongada sem depender dos organismos governamentais, partidários e sindicais (Martins, 2001). A grande marcha para Brasília, a Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, realizada de 17 de Fevereiro até 17 de Abril de 1997, quando outra tentativa massiva do Governo Federal de isolar o MST da opinião pública e de acesso ao povo, reafirmou o entendimento de que somente as ações de massa poderiam evitar o isolamento político dos movimentos sociais.

Uma lição foi aprendida nesse período: é possível manter-se táticas ofensivas mesmo quando se está vivenciando conjunturas caracterizadas pelo resistir. Mas, para que isso possa ocorrer torna-se necessário estar junto com o povo e compartilhar com ele esse gesto coletivo de luta pela emancipação social e de reafirmação da sua identidade social.

Apesar das dificuldades econômicas enfrentadas pelos trabalhadores rurais sem terra a sua identidade social é sempre realimentada socialmente pela prática dos valores e da mística vivenciados pelo MST em todos os seus atos.

Os valores ou as virtudes, «essa força que age, ou que pode agir [...]. É uma disposição adquirida de fazer o bem» (Comte-Sponville, 1995: 7-9), desejadas para cada pessoa militante do MST são assumidos explicitamente sem preconceitos e sem tornar-se preceito. Sete valores são enfatizados: a solidariedade, a beleza, a valorização da vida, o gosto pelos símbolos, o gosto de ser povo, a defesa do trabalho e do estudo e a capacidade de indignar-se (Bogo, 1998: 6ss).

Nos lares e escolas dos assentamentos, nos cursos, encontros e reuniões de formação, na frente de massa durante as ocupações, nos acampamentos, nos atos públicos, enfim, ali aonde uma pessoa militante do MST faz-se presente espera-se que exercite os valores compartilhados com seus companheiros. E, mais ainda, consigo mesmo. As campanhas de embelezamento dos assentamentos, quando a noção do belo é debatida e refletida nos cotidianos da vida, é um segredo íntimo que muitos dos setores considerados de centro-esquerda omitem de ressalta-los, mais ainda nos movimentos de massa. Da ocupação de terras realizada por milhares de famílias, aonde a tensão e o alerta despertam os instintos de defesa e de sobrevivência até a flor que viceja nas praças dos assentamentos, há muitos planos sociais vivenciados pelas pessoas Sem Terra que lhes proporcionam emancipações pessoais e sociais continuadas numa humanização plena de significados e de ideais.

Nesse movimento de resgate e reafirmação de valores, a mística torna-se parte da vida enquanto forma de manifestação coletiva de um sentimento. Os símbolos da mística são resgatados de diversas fontes como a natureza contemplativa da vida camponesa, a cultura popular musical e a devoção religiosa (Bogo, 2001: 2). São diversos os símbolos, entre os quais estão a bandeira, o hino, o Jornal Sem Terra, as ferramentas, os frutos do trabalho no campo e o boné. A constante lembrança dos companheiros mortos faz com que seu exemplo renasça mais forte nos sentimentos de cada Sem Terra. Ele não está mais ausente apenas no seio de uma família, mas de todo o MST.

Aprendeu-se no movimento de emancipação social continuada dos trabalhadores rurais sem terra que se os cursos são necessários para a formação dos militantes, eles não são suficientes. Todos os coletivos de formação devem levar em conta as dez lições aprendidas nas práticas das lutas sociais: que a militância faz-se pela prática, pela experiência, pela ciência, pela cultura, pela disciplina, pelo exemplo, pela convivência e a partilha, pelo espírito de sacrifício, pelo trabalho produtivo e pela crítica e autocrítica. Os cursos e essas dez lições, assim como as virtudes e as qualidades pessoais de cada pessoa/militante que necessitam ser cultivadas, fazem parte de um amplo movimento que é ao mesmo tempo de formação, de aprendizagem e de transformação do mundo.

Em todos os cursos, reuniões ou encontros, a mística relembra os lutadores do povo que foram exemplos na história das lutas de libertação e de emancipação social. Grandes painéis com as faces estampadas de Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo, Olga Benário, Mao Tsé Tung, Fidel Castro, Ho Chi Minh, Ernesto «Che» Guevara, Nelson Mandela, Zumbi dos Palmares, Carlos Marighela, Paulo Freire, Florestan Fernandes, José Gomes da Silva e, recentemente, Milton Santos, entre tantos outros, respondem presença com seus exemplos de vida. Ritos como esses, por vezes interpretados como cultos ao passado e ao anacronismo, são valorizados para que a ruptura e a reconstrução entre as utopias do passado, as que se constroem no presente e as que deverão florescer no futuro sejam referenciadas.

A dinâmica do MST é reflexo da sua prática histórica. Os valores e a mística são ressaltados e reforçados pela educação nos assentamentos e acampamentos.

Nos assentamentos, em Julho de 2000, existiam 1800 escolas de ensino fundamental (1ª a 8ª série) com 3800 educadoras e 150 mil estudantes; havia 1200 educadores de jovens e adultos e 25000 educandos jovens e adultos; 250 cirandas infantis (nome dado pelo MST às creches) e 25 trabalhadores rurais sem terra cursando medicina em Cuba, além de dezenas de outros cursando escolas de nível superior no Brasil. O MST, através do setor de educação, mantém seis cursos de formação de educadores e técnicos, três escolas de ensino médio nas áreas de gestão de cooperativas e organização da produção e um curso supletivo de 1º e 2º graus. O MST estabeleceu convênios e acordos com 25 universidades, entre públicas e privadas, para a realização de diferentes tipos de cursos.

A partir de 1997, e como referência na trajetória da educação escolar, o MST realizou vários encontros e conferências nacionais sobre educação. O I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária - I ENERA, realizado em Julho de 1997 nas dependências da Universidade de Brasília, com o apoio dessa própria universidade, da UNICEF, da UNESCO e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, teve a presença de cerca de 700 participantes, entre professores de escolas de acampamentos e assentamentos, alfabetizadores de jovens e adultos e educadores infantis. Presentes delegações de 19 Estados e do Distrito Federal (Caldart, 2000: 175).

Esse jeito de ser e fazer do MST é aberto a toda a sociedade brasileira e para os estrangeiros que visitam e colaboram com os seus coletivos setoriais. Torna-se permeável às diversas formas de pensar e agir. Para que suas proposições sejam disseminadas, inclusive no sentido de encontrar caminhos para a construção continuada de uma identidade de projeto nas classes populares do país, são utilizados diversos meios e comunicação de massa.

Desde 1987 o MST mantém programa de rádio de alcance nacional, com edições semanais. Em função da importância do rádio no processo de comunicação rural o MST adquiriu horários em várias rádios particulares ou vinculadas às igrejas nos diversos Estados do país, e passou a estimular a criação de rádios comunitárias. Desde o ano 2000 produz o programa de rádio Vozes da Terra, que é distribuído mensalmente a todas as rádios do MST, e às católicas, às universitárias e para algumas rádios comerciais. Aproximadamente 2000 rádios recebem esse programa.

Além disso, ao mesmo tempo em que amplia a penetração dos programas radiofônicos, desenvolve ações através de outros meios de comunicação, sendo a maioria do próprio MST, entre os quais: o Jornal Sem Terra (JST); a Revista Sem Terra (RST); cartazes; exposições; palestras; concursos de músicas, de danças; exposições de fotos e artesanatos; feiras; concursos de poesia, de música e da canção; produção e exibição filmes, encontros, venda de produtos com a marca dos Sem Terra e da Reforma Agrária. Tem avançado a comunicação interna ao MST e desse com outros organismos da sociedade civil nacional e internacional através de rede de computadores e navegação via internet. Através dessa rede, há cinco anos há uma página do MST aberta internacionalmente.

É esse complexo objetivo e subjetivo de assentamentos, acampamentos, instâncias decisórias, frentes de massa, coletivos setoriais, escolas, postos de saúde, meios de comunicação, formação de militantes, valores, mística, símbolos e pessoas motivadas, mobilizadas e participantes que configuram o movimento social de massa denominado MST.

Há dezesseis anos esse Movimento constrói, com várias frações das classes subalternas no campo, uma identidade social de resistência. Movimenta-se solidariamente com outros movimentos e organizações sociais, partidos, sindicatos, igrejas e personalidades para a construção de uma identidade de projeto pelas classes subalternas no campo e na cidade. Compartilha a utopia de poder transformar a estrutura social brasileira pela ação de massas.

Por que o MST consolidou-se como movimento social de massa? Antes de tudo porque obteve conquistas, alcançou resultados práticos em todas as suas frentes de luta. Seus militantes, simpatizantes e o conjunto da sociedade brasileira podem perceber e verificar as vitórias alcançadas.

 

3. Buscando outros caminhos

Sou da opinião de que alguns estudos sobre o MST poderiam seguir uma trilha que ensaie desvendar esse movimento de massa do ponto de vista holístico, em que as dimensões sincrônica e diacrônica cruzem-se sistematicamente através de algumas periodizações possíveis, mas levando sempre em consideração a totalidade da formação social brasileira, num esforço para que o econômico, o político e ideológico não se dissociem analiticamente.

Suponho eu que ensaiar compreender as formas de cooperação nos assentamentos sem levar em conta as mudanças nas políticas públicas para a agricultura e, em especial aquelas para a reforma agrária; que estudar as pedagogias do coletivo setorial da educação sem a devida articulação com as ações conservadoras do ensino-aprendizagem impostas pelos governos nas escolas públicas de 1º grau; que interpretar as ocupações de terras rurais e dos prédios públicos sem resgatar os longos processos de negociações anteriores a essas ações diretas entre os coletivos do MST e as autoridades governamentais; que ensaiar caracterizar as formas de participação social dentro de um movimento de massa como o MST sem considerar que a complexidade do desenvolvimento contemporâneo da sociedade civil brasileira deu-se sob a hegemonia das idéias liberais conservadoras enquanto hegemônicas, reproduzidas tanto pelas igrejas, escolas como pelos meios de comunicação de massa; que as micro-conquistas sociais deram-se nos espaços tutelados pelas classes dominantes; que desconhecer ou omitir o amplo processo de cooptação de parcelas importantes da intelectualidade brasileira, pouca contribuição traria para revelar os segredos íntimos do MST.

Para uma possível identificação do caráter diferenciado desse movimento social de massa eu poderia supor que o MST, mesmo sem a consciência disso, ultrapassou a razão centrada no sujeito (Kant), que privilegiaria o ego solitário, para a razão comunicativa (Habermas), num acordo consensual alcançado através de interação comunicativa entre iguais (ver Kumar, 1997: 191).

Nesse sentido o MST, percebido como um movimento social de massa, não foi gradativamente se transformando numa organização social de massa mas sim, foi adquirindo um caráter similar ao de uma sociedade em rede, similar àquela dominante transformada ou adaptada à globalização. Poderia sugerir, conforme Castells (1999: 426) que:

o segundo e principal agente identificado em nossa jornada pelos campos povoados por movimentos sociais consiste em uma forma de organização e intervenção descentralizada e integrada em rede, característica dos novos movimentos sociais, refletindo a lógica da dominação da formação de redes na sociedade informacional e reagindo a ela... Essas redes fazem mais do que simplesmente organizar atividades e compartilhar informações. Elas representam os verdadeiros produtores e distribuidores de códigos culturais. Não só pela Rede, mas em suas múltiplas formas de intercâmbio e interação.

A questão central a ser destacada na compreensão da trajetória e no caráter do MST é menos a razão e sim o movimento de emancipação social continuada contra a dominação, e daí a problemática colocada pela busca da autoconsciência, autodeterminação e autorealização universais.

 

4. Assim sendo...

Sou tentado a sugerir que o MST traz no seu próprio movimento não apenas uma exigência metodológica de se repensar a natureza e o caráter dos movimentos sociais de massa como faz aflorar elementos novos de indagação sobre a relação movimento social de massa e organização social de massa. Proponho como hipótese que o MST tem mais características de um tipo de sociedade em rede do que de uma organização social de massa. E tudo leva a crer que ele questiona, involuntariamente como prática social, a determinista relação unívoca de movimento social para organização social.

Esse tipo de sociedade em rede proporciona, de alguma maneira e com grande flexibilidade, a emergência de uma massa de pessoas portadora de utopia, nem sempre plenamente consciente dela, muitas vezes cheia de incongruências, mas com uma energia humanizadora que enfrenta, rompe e coloca para a sociedade em que se insere proposições, pensamentos e aspirações muito além, pela superação, daquelas que configuram o pensamento único neoliberal e, nele, o social-democrata. Não têm receio de defender, mesmo que ora timidamente ora sem completo conhecimento do conceito erudito, os valores do socialismo.

A redescoberta de novos códigos culturais para a construção da identidade social dos Sem Terra está em movimento pelos fluxos de informações e de símbolos que lhes abrem comunicação com as demais classes subalternas do país e de outros países da América Latina.

Nesse sentido, o socialismo, e os valores que intrinsecamente pressupõe, já não mais assustam ou desmobilizam amplas parcelas das classes subalternas no campo, hoje identificadas socialmente como Sem Terra.

 

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