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César Rodríguez

À procura de alternativas económicas em tempos de globalização: o caso das cooperativas de recicladores de lixo na Colômbia

(texto não editado)

 

1. Globalização, desigualdade e exclusão

Nos últimos anos - após quase três décadas de profunda intensificação do fluxo de bens, serviços, capitais e pessoas através das fronteiras nacionais - o trabalho de milhares de pessoas e organizações em todo o mundo que têm vindo a denunciar os efeitos excludentes da globalização neoliberal começou a ter um impacto importante nas discussões políticas e académicas acerca do rumo da economia mundial. Com efeito, particularmente após os protestos de Seattle, em finais de 1999, a visibilidade e influência da crítica contra a globalização têm aumentado de forma tão expressiva que hoje as organizações internacionais promotoras do processo de globalização viram-se obrigadas a reconhecer, pelo menos nas declarações oficiais, os efeitos perversos do referido processo, como o demonstraram as recentes cimeiras do Banco Mundial. Desta forma, parece estar a emergir um consenso que - sem pôr ainda em perigo o consenso hegemónico, isto é, o denominado «Consenso de Washington»- torna visível o facto de que a globalização neoliberal está alicerçada em e reproduz condições políticas, sociais e económicas que tendem a acentuar a desigualdade em todas as escalas geográficas: na escala global, entre o Norte e o Sul (Galbraith et al., 1998); na escala nacional, entre classes sociais e entre regiões no interior de cada país, como o põe de relevo o aumento da desigualdade nos países da América Latina nas últimas duas décadas (CEPAL, 1998).

Na escala urbana, o fosso crescente entre ricos e pobres é especialmente patente. Como bem o demonstra uma das vertentes mais interessantes dos estudos sobre a globalização - as análises sobre o aparecimento das «cidades globais» (Nova Iorque, Tóquio e Londres no centro; São Paulo, Cidade do México e Bogotá na semiperiferia latino-americana) enquanto centros de controlo no sistema económico global -, a economia e a sociedade das grandes cidades contemporâneas são caracterizadas por um evidente dualismo (Sassen, 1991; Friedmann, 1995). Nas cidades da semiperiferia e da periferia do sistema mundial, este dualismo manifesta-se na diferença crescente entre os rendimentos e as condições de vida de um pequeno número de trabalhadores qualificados contratados por empresas do sector moderno da economia, e os de um sector, maioritário e em expansão, de pessoas qualificadas e não qualificadas que têm empregos precários (temporários ou com baixos salários), estão desempregadas ou trabalham informalmente. O incremento notável do sector informal na semiperiferia e na periferia é especialmente significativo para os efeitos deste nosso trabalho, não só porque constitui a expressão mais visível da precariedade no trabalho nas grandes cidades, mas porque uma das suas manifestações mais chocantes - a existência de um número massivo e crescente de pessoas à beira da indigência que sobrevive esquadrinhando contentores e lixeiras à procura de materiais recicláveis para a venda - é o tema do estudo prático que apresento mais adiante. Em Bogotá, a cidade na qual se centra o estudo, o sector informal tem vindo a aumentar consideravelmente nos últimos anos ao ponto de, no momento presente, a maioria da população economicamente activa (55%) trabalhar no sector informal (Uribe, 1997: 397). Este fenómeno é comum a todas as grandes cidades da América Latina. De facto, a economia informal é a fonte da maior parte dos empregos criados na década de 90 (CEPAL, 1998) e a sua expansão está intimamente relacionada com as medidas de ajuste estrutural adoptadas na região durante as últimas décadas (Vilas, 1999).

Um dos efeitos centrais do incremento acentuado da desigualdade em todas as escalas é a tendência para a exclusão efectiva de grandes sectores da população mundial do processo de acumulação global de capital. O facto de a economia global contemporânea ter atingido níveis de crescimento sem precedentes ao mesmo tempo que há um aumento no número de pessoas condenadas a viver nas suas margens - os desempregados permanentes ou de longa duração, os camponeses sem terra ou os pequenos proprietários rurais que praticam uma agricultura de subsistência, e os sectores populares urbanos dedicados às actividades informais de sobrevivência - leva a pensar, como aponta Friedmann (1992: 14), que «o capitalismo contemporâneo pode viver [sem essas pessoas]», de tal forma que «a mensagem que se envia a estes sectores é bem explícita: para todos os efeitos práticos, passaram a ser redundantes na acumulação global de capital»: redundantes como produtores, na medida em que desempenham actividades de baixa produtividade e reduzido valor acrescentado; redundantes como consumidores, na medida em que o seu poder aquisitivo é tão sumamente reduzido que, como refere com ironia Moody (1997), a sua participação na sociedade de consumo consiste fundamentalmente em sair à rua para «ver montras». Do ponto de vista espacial, a exclusão de grandes sectores da população é especialmente visível nas grandes cidades, divididas em zonas claramente demarcadas que separam ricos de pobres. Como Santos (1999: 22) evidencia, «esta segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens [onde impera o estado de natureza hobbesiano] e zonas civilizadas [onde opera o contrato social]» constitui um verdadeiro «fascismo de apartheid social».

Contudo, o processo de exclusão social não avança sem encontrar resistência. Os excluídos resistem diariamente através de acções individuais e colectivas muito diversas, que vão desde estratégias de sobrevivência a projectos nacionais e globais de oposição, passando por um inúmero de iniciativas locais. Na América Latina, por exemplo, como mostrou Hirschman (1984) numa sondagem sobre iniciativas económicas populares, os projectos, propostas e organizações de base vão desde os esforços de camponeses pobres para controlarem a comercialização dos seus produtos através de cooperativas de venda até ao trabalho conjunto dos habitantes de bairros de ocupação para acederem à propriedade dos lotes e construírem habitações adequadas, passando pela luta travada pelos pequenos artesãos para impedirem, através de cooperativas de trabalhadores, o desaparecimento dos seus ofícios perante a concorrência de empresas dedicadas ao fabrico maciço de artesanato. Como aponta Hirschman, o que todas estas experiências têm em comum é o facto de através delas, grupos marginalizados se organizarem para «seguir em frente» mediante estratégias económicas colectivas. De igual forma, uma ampla gama de movimentos sociais têm surgido ou persistido na América Latina em tempos de globalização. Entre estes, incluem-se movimentos de negros, trabalhadores, indígenas, camponeses sem terra e mulheres (Álvarez et al., 1998).

Para os efeitos deste artigo, cujo estudo prático incide sobre uma iniciativa popular de organização económica em Bogotá e noutras cidades da Colômbia - a luta colectiva dos recicladores de lixo para melhorar as suas condições de vida -, é especialmente importante ressaltar as iniciativas empreendidas pelas classes populares - isto é, a maioria da população urbana, formada pelos sectores pobres de assalariados, trabalhadores informais e desempregados. Trata-se dos habitantes da cidade para os quais a «rebusca» é a estratégia diária de sobrevivência. Entre eles encontram-se os trabalhadores que ganham apenas o salário mínimo, os vendedores ambulantes, os recicladores de lixo, as empregadas domésticas, os indigentes de todas as idades e os milhares de pessoas que prestam todo o tipo de serviço nas ruas. Quer como compradores, quer como produtores ou vendedores, os membros das classes populares alimentam uma economia urbana de baixo custo que lhes permite aceder a bens e serviços indispensáveis para a sobrevivência. Neste sentido, estas «economias populares» (Burbach et al., 1997) constituem uma forma, ainda que precária, de resistência, porque são mecanismos mediante os quais as classes populares criam e exploram um nicho económico para sobreviverem. Porém, quando consideradas dentro do conjunto da economia urbana, torna-se evidente que as economias populares estão longe de serem autónomas e, por si mesmas, emancipadoras. Por exemplo, a economia informal está plenamente articulada com a economia formal, como evidencia o caso dos recicladores de lixo independentes que vendem os seus produtos a intermediários que, por sua vez, os vendem às grandes companhias produtoras de papel. O caso dos recicladores mostra ainda que as formas económicas populares são fonte de produtos, serviços e mão de obra barata para o sector moderno da economia. Daí que este tipo de actividade possa, por isso mesmo, facilitar, mais do que impedir, a exploração das classes populares.

Tendo pois em conta a ambivalência do papel desempenhado pelas economias populares, a questão fulcral num estudo que, como este, esteja interessado em determinar o potencial emancipador das referidas economias, será a seguinte: que estratégias de organização e de acção colectiva logram mitigar ou eliminar a exploração dos actores económicos populares e liberar o potencial emancipador deste tipo de economias em tempos de globalização? Ao longo deste trabalho sustento que as cooperativas e empresas solidárias populares capazes de sobreviverem num mercado crescentemente global representam uma estratégia particularmente promissora. Na secção seguinte esboço os elementos desta estratégia, cujo alcance e limitações podem ser apreciados em detalhe no estudo prático das cooperativas de recicladores de lixo na Colômbia que exponho mais à frente.

 

1.2. As cooperativas de trabalhadores no contexto da globalização

A procura de alternativas face aos efeitos excludentes do capitalismo inspirada nas teorias e experiências baseadas na associação económica entre iguais e na propriedade solidária não é uma descoberta actual. O pensamento e prática cooperativista modernos são tão antigos como o capitalismo industrial. De facto, as primeiras cooperativas surgiram por volta de 1826 em Inglaterra como reacção contra o empobrecimento provocado pela conversão massiva de camponeses e pequenos produtores em operários das fábricas pioneiras do capitalismo industrial (Birchall, 1997: 3). Como teoria social, o associativismo assenta em dois postulados: por um lado, na defesa de uma economia de mercado baseada em princípios não capitalistas de cooperação e mutualidade, e, por outro, na crítica ao Estado centralizado e a sua predilecção por formas de organização política pluralistas e federalistas que confiram um papel central à sociedade civil (Hirst, 1994: 15). Como prática económica, o cooperativismo inspira-se nos valores de autonomia, democracia participativa, igualdade, equidade e solidariedade (Birchall, 1997: 65). Estes valores estão plasmados por princípios não capitalistas de organização empresarial. De acordo com os princípios que regem as cooperativas de trabalhadores, por exemplo, os trabalhadores são proprietários da empresa e participam directamente e em condições de igualdade nas decisões fundamentais da mesma, independentemente do montante da sua participação no capital (Birchall, 1997: 65). Neste sentido, as cooperativas de trabalhadores visam superar a divisão entre capital e trabalho - e o esquema de propriedade individual e a administração hierárquica que a acompanham - característica das empresas convencionais.

Muito embora, por um lado, o número de cooperativas se tenha multiplicado com celeridade e tenha dado origem a um movimento cooperativista internacional e, por outro, a teoria associativa tenha sido retomada ocasionalmente por movimentos e teorias sociais, nem a prática cooperativa nem o pensamento associativo que lhe serve de base tem chegado a ser predominante. «O associativismo nunca amadureceu ao ponto de se converter numa ideologia coerente» (Hirst, 1994: 17), capaz de resistir aos ataques provenientes tanto das teorias socialistas de teor colectivista como do liberalismo individualista. O cooperativismo deu origem a experiências exemplares de economia solidária - como o complexo cooperativo de Mondragón, Espanha-, mas não conseguiu converter-se numa alternativa importante face ao sector capitalista da economia nacional e mundial. Neste sentido, o cooperativismo, que já desde os seus inícios teve uma clara vocação internacional, continua a ser hoje um projecto não concluído de globalização contra-hegemónica, baseado em princípios de solidariedade e democracia participativa.

A teoria e as práticas cooperativas têm suscitado um renovado interesse nos últimos anos. Perante o fracasso das economias centralizadas e o avanço do capitalismo de corte neoliberal, organizações e governos progressistas em todo o mundo recorrem cada vez mais à tradição de pensamento associativo e à forma cooperativa de organização económica que surgiu precisamente em oposição tanto ao colectivismo como ao individualismo liberal. Embora estejam regidas por valores e princípios não capitalistas - isto é, contrários à separação entre capital e trabalho e à subordinação deste àquele -, as cooperativas são sempre concebidas e operam como unidades produtivas que concorrem no mercado. O interesse recente pelas cooperativas e pelo pensamento associativo é evidente nos países centrais, onde proliferam as análises teóricas sobre a democracia associativa e o cooperativismo (Hirst, 1994; Le Grand e Estrin, 1989; Bowles e Gintis, 1998) e os estudos práticos sobre experiências de cooperativas de trabalhadores com sucesso (Whyte e Whyte, 1988) ou frustradas (Russel, 1985). O interesse é também notório na semiperiferia e na periferia, onde algumas das iniciativas e discussões mais interessantes têm estado associadas ao debate sobre o «desenvolvimento alternativo», que começou nos anos 70 e recebeu novo fôlego por parte de autores e organizações que «ressaltam o papel dos movimentos de base, o conhecimento local e o poder popular na transformação do desenvolvimento» (Escobar, 1995: 15). Os debates sobre o desenvolvimento alternativo em geral, e sobre o cooperativismo em particular, procuram teorizar e tornar viáveis formas de organização económica cujos princípios democráticos e efeitos igualitários contrastam com o despotismo que caracteriza o funcionamento interno das empresas capitalistas e os efeitos desiguais do tipo de desenvolvimento económico baseado nestas (Singer e Souza, 2000). Além disso, em condições de desemprego massivo como as que imperam em boa parte do Sul global, a promoção de cooperativas apresenta-se como uma alternativa às políticas de emprego convencionais, tal como o ilustram as recentes experiências de fundação de cooperativas por parte de habitantes de favelas e camponeses sem terra no Brasil (Singer, 2000; Almeida, 2000) e de trabalhadores na Índia que têm assumido o controlo das fábricas nas quais trabalhavam para evitarem a falência (Bhowmik, 2000).

Apesar do seu contributo decisivo para a crítica dos efeitos excludentes do desenvolvimento capitalista, os estudos sobre o desenvolvimento alternativo e cooperativismo na semiperiferia e na periferia - mais concretamente na América Latina - têm vindo a centrar-se exclusivamente no âmbito local. Esta tendência a idealizar o local em contraste com o nacional e o global é evidente nos mais recentes trabalhos sobre o tema, como o demonstram os estudos de Burbach sobre as economias populares na América Latina (Burbach et al., 1997; Burbach, 1997). Para Burbach estas economias proliferam «nas partes do mundo que o capitalismo rejeitou» e constituem um «novo modo de produção» dedicado às actividades económicas já sem interesse para as empresas transnacionais (por exemplo, a venda ambulante de artigos de baixa qualidade e a recolha de lixos nos aterros sanitários e nas lixeiras) (Burbach, 1997: 18). É por isso que «estas economias não concorrem e não podem concorrer com o capital transnacional no processo de globalização» e daí o seu campo de acção ficar limitado a um âmbito exclusivamente local (Burbach, 1997: 19).

O problema neste aspecto é que - e assim o manifestam as cooperativas de recicladores de lixo na Colômbia e experiências similares noutros países (Cruz e Silva, 2000) - as organizações económicas populares se defrontam cada vez mais com a necessidade de concorrer com o capital transnacional para sobreviverem e atingirem os seus objectivos emancipadores. Enquanto permanecerem nas margens da economia, as referidas organizações continuarão a ser, na maioria dos casos, meios de sobrevivência e de reafirmação da subordinação dos seus membros, e não de melhoria das condições de vida dos sectores populares (Singer e Souza, 2000). As margens, de resto, são cada vez mais estreitas e cheias de riscos. Como o evidencia o estudo prático que apresento adiante, a situação que se está a verificar na semiperiferia e na periferia é, justamente, contrária à descrita por Burbach, isto é, o processo de colonização por parte do capitalismo global estende-se a actividades económicas (por exemplo, a reciclagem de lixos) e a zonas geográficas que até ao momento tinham permanecido nas suas margens. Nestas condições, a articulação das organizações económicas com o Estado e entidades nacionais e internacionais apresenta-se como uma estratégia essencial para que essas organizações possam inserir-se gradualmente no mercado nacional e global e no processo político. Por esta razão, as propostas e teorias económicas progressistas, entre elas as de desenvolvimento alternativo, devem ir mais além do local e estabelecer vínculos entre as iniciativas económicas locais, nacionais e globais. Como enfatiza Harvey (2000), só este tipo de estratégia emancipadora, capaz de movimentar-se com fluidez entre as diferentes escalas, desde o local até ao global e vice-versa, representa uma alternativa fiável frente à globalização neoliberal. É nesta estratégia que se encontra a possibilidade de gerar formas contra-hegemónicas de globalização (Santos, 1995).

1.3. Plano e metodologia de estudo

Contra este pano de fundo, a pergunta central que guia este capítulo é: em que condições podem surgir e consolidar-se organizações económicas populares não capitalistas que ao mesmo tempo facilitem a luta pela inclusão das classes populares e sejam viáveis num mercado globalizado? Para contribuir para a reflexão sobre esta pergunta, apresento um estudo prático sobre a formação e desenvolvimento de cooperativas de recicladores de lixo na Colômbia a partir de finais da década de 80. Baseei-se num trabalho de campo de oito meses na Colômbia que compreendeu o estudo geral da evolução da rede de 94 cooperativas de recicladores, apoiado em análise documental e entrevistas, e a análise detalhada - mediante observação participativa inspirada na metodologia de investigação-acção participativa (Fals Borda, 1998) - do funcionamento de uma das cooperativas mais consolidadas - a Cooperativa «Rescatar» -, fundada em 1987 e cuja sede se encontra em Bogotá.

Quatro razões fazem com que este estudo prático seja especialmente relevante para os propósitos deste artigo. Em primeiro lugar, os recicladores de lixo são um dos grupos cuja presença nas grandes cidades de todo o mundo mostra com maior clareza o carácter global da exclusão social a que anteriormente fiz referência. Longe de ser um fenómeno que se limite à Colômbia ou à América Latina, a existência de milhares de pessoas que sobrevivem recuperando materiais recicláveis nas ruas ou nas lixeiras é comum nas cidades da semiperiferia e na periferia e até, ainda que em menor proporção, nas cidades do centro. Por exemplo, estima-se que na Colômbia cerca de 300.000 pessoas - isto é, cerca de 1% da população - vivam da recuperação de materiais recicláveis nas cidades (Hower, 1997). No México e no Egipto, a população recicladora é ainda mais elevada em termos percentuais (2% do total nacional) (Hoyos, 2000). Em Manila, Filipinas, cerca de 12.000 pessoas dependem directamente da reciclagem. (New York Times, 07/23/2000). Em Beijing, aproximadamente 82.000 camponeses imigrantes trabalham como recicladores informais (New York Times, 02/11/2000). Em segundo lugar, a exclusão social da qual são vítimas os recicladores é especialmente perversa e dramática. Dada a generalizada rejeição social relativamente à sua forma de vida - que com frequência implica viver na rua - e ao seu ofício - que requer estar em contacto permanente com o lixo -, os recicladores são vítimas do mais elevado grau de exclusão e estão relegados às zonas mais selvagens da cartografia urbana - isto é, as lixeiras, as ruas e os guetos onde vendem os seus produtos a intermediários e onde em ocasiões inclusivamente habitam. Na Colômbia, o grau de exclusão dos recicladores reflecte-se claramente na expressão insultuosa - «descartáveis» - que boa parte da população emprega, referindo-se-lhes. O reciclador é excluído ao ponto de ser considerado redundante, eliminável, de igual modo que o é o lixo no qual procura materiais recicláveis, como o mostram as operações de «limpeza social» nas quais os recicladores e outros habitantes das ruas são eliminados por grupos armados de base fascista, por vezes com a colaboração ou a conivência da força pública. Em terceiro lugar, os recicladores colombianos associam-se em volta de formas não capitalistas de produção económica, nomeadamente cooperativas de trabalhadores. Neste sentido, as consideráveis conquistas obtidas e as limitações desta experiência são úteis para responder à pergunta que orienta este estudo. Finalmente, as cooperativas de recicladores tiveram de enfrentar as condições do mercado colombiano e internacional em tempos de abertura económica e de globalização. As cooperativas surgiram em finais dos anos 80 e começos dos anos 90, precisamente na altura em que a política económica na Colômbia dava uma nítida viragem para a internacionalização e o neoliberalismo. É por esta razão que a análise do funcionamento das cooperativas de recicladores pode fornecer informações úteis acerca do potencial emancipador deste tipo de organização no contexto do mercado globalizado. Na secção seguinte exponho em detalhe os resultados deste estudo prático. E faço-o tentando pôr em diálogo os resultados do trabalho empírico com as discussões e a bibliografia sobre desenvolvimento alternativo e cooperativismo. É por isso que ressalto neste estudo a forma como as cooperativas se viram afectadas e responderam ao impacto da globalização. Como já mencionei anteriormente, esta reflexão sobre o global está geralmente ausente da literatura sobre alternativas económicas na semiperiferia e na periferia. Neste sentido, a exposição que apresento nas páginas seguintes constitui um estudo prático alargado (Van Velsen, 1967), dado que a análise do caso concreto das cooperativas de recicladores se faz no intuito de contribuir para a teorização e as discussões gerais sobre alternativas económicas emancipadoras. Após o desenvolvimento do estudo prático, na terceira e última parte do artigo ofereço algumas conclusões.

 

2. De «descartáveis» a empresários solidários: a luta dos recicladores de lixo na Colômbia

2.1. O mercado da reciclagem

A reciclagem de resíduos sólidos recuperáveis ou reutilizáveis - como o papel, o cartão, o vidro, o plástico e o alumínio - é um passo fundamental no ciclo produtivo de numerosas indústrias, nomeadamente em sectores como o da produção de papel, de embalagens e cartão. De facto, boa parte das matérias primas utilizadas por estas indústrias provêm da reciclagem. O uso de materiais reciclados na indústria tem efeitos económicos e ambientais decisivos. A reciclagem é uma actividade económica considerável na Colômbia. Em 1990, o montante gerado pelo conjunto de actividades que compõe o circuito de reciclagem - isto é, a recolha, a transformação e o transporte dos materiais - foi de 22 milhões de dólares (Fundación Social, 1990: 45). Do ponto de vista ambiental, a reciclagem tem efeitos igualmente importantes. Na Colômbia, dado que cada ano se reciclam cerca de 300.000 toneladas de papel e cartão, a reciclagem preserva anualmente seis milhões de árvores (ANR, 2000; Fundación Social, 1998).

As quantias agregadas sobre o tamanho e o impacto do mercado da reciclagem não reflectem, porém, a dinâmica altamente exploradora em que alicerça o seu funcionamento e que evidencia de forma vívida os efeitos do processo de exclusão social nas cidades a que me referi na introdução. Com efeito, tal e como se pratica na Colômbia, a actividade de reciclagem é possível através da combinação de um processo de urbanização acelerado e desordenado - cujo um dos sintomas é um sistema de recolha e disposição de lixos inadequado e a falta de cultura cidadã acerca da reciclagem no lar - e uma marcada fragmentação social e espacial que dá origem à coexistência, por um lado, de um pequeno sector da população com poder de compra que nos seus lares e lugares de trabalho produz a maior parte do lixo e detritos recicláveis da cidade e, por outro, de uma população massiva de desempregados ou subempregados, alguns dos quais encontram na recuperação e venda desses materiais o seu meio de sobrevivência.

Neste pano de fundo é possível entender a estrutura e o funcionamento do mercado da reciclagem que está dividido em três componentes. A primeira é a recuperação dos materiais por parte dos recicladores. Trata-se de uma actividade altamente concorrencial: nela participam cerca de 300.000 recicladores informais no total das cidades colombianas, dos quais aproximadamente 50.000 estão só em Bogotá (Hower, 1997). A segunda componente são os intermediários formais ou informais que compram os materiais aos recuperadores e vendem-nos para as indústrias. Por vezes, os intermediários têm vínculos próximos das indústrias compradoras (ou inclusivamente são financiados por elas). A componente final do mercado são as indústrias que adquirem o material recuperado, transformam-no e reutilizam-no nos seus processos produtivos. Diferentemente do que acontece com a recuperação de materiais, a compra dos mesmos está altamente concentrada. O mercado da reciclagem é um oligopsónio: um reduzido número de empresas consome os materiais recicláveis e impõe as condições e os preços aos recicladores (Fundación Social: 1998).

Dada a estrutura do mercado, não surpreende que os compradores e, em menor medida, os intermediários formais ou informais, se apropriem dos consideráveis benefícios económicos derivados da reciclagem, enquanto que os recicladores recebem rendimentos que, em regra geral, são inferiores ao salário mínimo nacional (isto é, 120 dólares americanos) e que, portanto, os mantêm na miséria. A estrutura e dinâmica do mercado da reciclagem também revela a íntima conexão e relação de exploração entre a economia popular informal e a economia formal. Com efeito, como evidenciou Birkbeck (1978) no seu estudo sobre a reciclagem em Cali, os recicladores são de facto, embora não se reconhecendo nem sendo reconhecidos como tais, empregados desse grupo de indústrias que utilizam materiais reciclados como matéria prima.

2.2. Os recicladores

Quem são esses milhares de pessoas que percorrem as ruas e habitam nas lixeiras das cidades da Colômbia à procura de materiais recicláveis? Os dados fragmentados existentes sobre o tema, completados pelo trabalho de campo levado a efeito para este estudo, demonstram que o ofício da reciclagem é exercido por homens e mulheres em idêntica proporção. Embora predominando os recicladores cuja faixa etária se situa entre os 20 e os 40 anos, velhos e crianças foram encontrados também a trabalhar. Os recicladores dedicam-se ao ofício geralmente em família, não de maneira individual. O estudo etnográfico entre os recicladores da «Cooperativa Rescatar» de Bogotá (daqui em diante a «Cooperativa») nas suas zonas de recolha na rua, mostrou, por exemplo, que as tarefas necessárias para a recuperação do material - por exemplo, rebusca nos sacos e contentores do lixo, selecção e acondicionamento dos materiais, condução do veículo usado para o transporte - são repartidas entre membros do agregado familiar de quatro ou mais pessoas. É habitual que os recicladores levem os filhos menores nos carrinhos em que transportam o material. O comentário de Heidy, de 17 anos e sócia da «Cooperativa» («sou recicladora desde que nasci, porque a minha mãe metia-me numa caixa e levava-me no carro enquanto trabalhava como recicladora») é elucidativo da situação de vários dos recicladores.

A maior parte deles tem um baixo nível de escolaridade. Um estudo recente feito em Bogotá mostra que nas localidades escolhidas 73% dos recicladores não completou a primária e 15% são analfabetos (Corporación Raíces, 1998). A pesquisa etnográfica na «Cooperativa» proporcionou idênticos resultados. Muitos dos sócios da «Cooperativa» começaram a trabalhar como recicladores desde muito novos e abandonaram os estudos pela necessidade de dedicarem mais tempo ao trabalho ou porque, como aconteceu no caso da Heidy, «não havia dinheiro para estudar mais». Porém, é notória a crescente chegada ao ofício em geral, e à «Cooperativa» em particular, de pessoas com instrução secundária e até com estudos superiores, devido ao alastramento do desemprego na Colômbia. O caso de um dos novos sócios da «Cooperativa» - Henry, de 50 anos, que começou a trabalhar como reciclador quando perdeu o emprego de maquinista após a liquidação da empresa estatal dos caminhos de ferro onde trabalhava - é representativo desta nova tendência.

Os recicladores exercem a actividade de três formas diferentes. O sector mais visível da população recicladora trabalha nas ruas, recolhendo num pacote grande, em carrinhos de mão ou numa carrinha, qualquer dos materiais que retiram dos contentores e sacos de lixo.

Nesta modalidade o trabalho dura mais de oito horas e implica atravessar a cidade de ponta a ponta, começando nos bairros populares legais ou nos de ocupação nos quais moram os recicladores, continuando nas zonas opulentas da cidade onde se encontra o lixo mais precioso e acabando de novo nas zonas populares, onde estão os armazéns das cooperativas ou dos intermediários e aonde os recicladores se retiram para descansar. Eles são, assim, um dos poucos grupos que ultrapassam diariamente as fronteiras da cartografia urbana. A segunda modalidade prende-se com a recuperação de materiais nas lixeiras e nos aterros sanitários. Trata-se de uma actividade de homens, mulheres e crianças que trabalham longas horas em condições de extrema insalubridade nesses lugares - e, com frequência, moram nos arredores em casas de cartão e alumínio - seleccionando material à medida que os camiões das empresas de limpeza o descarregam. Por último, a modalidade de trabalho favorável para o reciclador é a recuperação na fonte, isto é, nos próprios edifícios residenciais ou de escritórios. Porém, a imagem generalizada do reciclador como indigente perigoso -como «descartável»- torna o acesso às fontes numa prática muito difícil.

Apesar das duras condições de trabalho, os baixos rendimentos e o estigma social que o acompanha, o ofício de reciclador, em regra geral, não é uma ocupação temporária. São muito frequentes os casos de recicladores que desempenham a profissão durante boa parte ou toda a sua vida. Nas conversas com os membros da «Cooperativa» durante os horários de trabalho na rua ou no armazém de depósito, as respostas recorrentes obtidas foram semelhantes às da Elisa, de 30 anos, que afirmou ser recicladora «desde criancinha» ou às da Darly, de 25 anos, que é «recicladora desde os 13 anos, quando a minha mãe começou a trazer-me para a Cooperativa». São frequentes os casos de pessoas que trabalhavam noutros empregos informais, como Concepción - uns 40 anos - que antes de ser recicladora dedicava-se a fazer «trabalhos domésticos, na imprensa [a vender jornais na rua] e numa espécie de telheiro de olaria [depósito de argila onde se fazem tijolos]». Um fenómeno em aumento - e bem visível na «Cooperativa» - é a entrada no ofício de bacharéis e outros profissionais que ficaram desempregados.

Vários são os motivos que explicam a permanência dos recicladores no ofício. A reciclagem é uma das poucas opções laborais para pessoas com escassos anos de escolaridade. Além disso, o ofício apresenta um atractivo não económico apreciado por quem o desempenha, isto é, a independência e a liberdade de quem trabalha por conta própria. Assim se exprimia numa das nossas conversas Jairo, com cerca de 50 anos e membro da «Cooperativa» durante vários anos: «eu sempre gostei de trabalhar por minha conta [...] não gosto que mandem em mim». De facto, o valor supremo da liberdade na cultura dos recicladores - «é melhor a liberdade de cada um [...], aconteça o que acontecer», nas palavras de Diana, de 25 anos - contribui para uma conduta individualista e concorrencial que perpetua a estrutura exploradora do mercado da reciclagem, e tornam especialmente difíceis - meritórios - os esforços desenvolvidos para organizar a população recicladora em relação aos valores da cooperação e solidariedade.

2.3. Os dois problemas fulcrais

Como se reproduz a marginalização extrema de que são vítimas os recicladores? Que factores explicam a estabilidade das estruturas sociais e económicas das quais se alimenta o mercado da reciclagem e que mantêm os recicladores informais nas margens deste, «apanhados na camada mais baixa do capitalismo, onde o sistema mostra a sua face mais brutal e antagónica?» (Birkbeck, 1978). Dois factores, evidentes na descrição anterior, constituem, em minha opinião, o círculo vicioso que perpetua o processo de empobrecimento dos recicladores. Trata-se da exploração económica derivada da estrutura do mercado da reciclagem e da conduta dos seus actores dominantes (isto é, a grande indústria e os intermediários), por um lado, e a dramática exclusão social de que são objecto os recicladores, por outro. Por outras palavras, os efeitos económicos da estrutura do mercado da reciclagem atrás explicados são ainda acentuados pelo estigma e pela exclusão dos recicladores. No imaginário social urbano na Colômbia os recicladores são colocados nas camadas mais baixas e marginalizadas, juntamente com os indigentes, os pedintes, os ladrões e outros habitantes da rua com os quais são associados pelo facto de trabalharem na via pública e nas lixeiras, em contacto permanente com o lixo. Os recicladores são com frequência inclusivamente excluídos pelos sectores populares e são vítimas de operações de «limpeza social». De facto, um dos episódios que provocou a fundação das redes de cooperativas de recicladores foi o assassinato em Barranquilla, em 1992, de 11 recicladores cujos corpos foram depois utilizados para levar a cabo experiências médicas num centro universitário. Em síntese, a exploração económica cria as condições de indigência que provocam a exclusão social dos recicladores, exclusão que, por sua vez, confina os recicladores a espaços urbanos e a nichos económicos que permitem que o mercado explorador se perpetue.

Atendendo a este círculo vicioso, os poucos estudos sobre os recicladores tendem a terminar com uma conclusão sem esperança. Neste sentido são representativas as conclusões de Birkbeck (1978, 1979) nas suas pesquisas sobre os recicladores de Cali. Para Birkbeck, as dificuldades que enfrentam os recicladores são virtualmente insuperáveis, dada a estrutura do mercado e a necessidade de manter os preços dos materiais recicláveis abaixo do custo da matéria prima nova. Não há, pois, nada que o analista possa propor para melhorar as condições dos recicladores:

Não podemos propor que se incremente de forma substancial a participação [dos recicladores] nas utilidades geradas pela recuperação de materiais devido às limitações estruturais que operam na determinação das referidas utilidades. O reciclador de lixo pode trabalhar duramente, pode ter bom olho para escolher materiais valiosos, pode buscar e rebuscar até encontrar o comprador adequado; enfim, pode ser o exemplo perfeito do indivíduo empreendedor. Porém, nada disto o levará longe (Birkbeck, 1979: 182).

Poucos anos depois, os recicladores, mediante a acção colectiva, viriam a desafiar esta trágica conclusão de Birkbeck. Como acontece em tantas ocasiões, os actores sociais objecto da exploração encontraram caminhos de emancipação que o analista não logrou perceber. Na secção seguinte passo a expor a forma como um sector dos recicladores colombianos se associou em cooperativas de trabalhadores encaminhadas justamente para lutar contra limitações estruturais que pareciam inamovíveis.

2.4. As cooperativas de recicladores

A solução para os problemas apontados implica uma dupla estratégia. Por um lado, requer a transformação das condições de mercado em favor dos recicladores através da luta contra a dispersão e a concorrência frontal entre eles. O mecanismo natural para atingir este objectivo é a concentração da oferta de materiais recicláveis em poucas organizações de recicladores capazes de recuperarem uma quantidade considerável de material que lhes permita terem uma participação importante no mercado e, portanto, negociarem os preços e as condições com as indústrias compradoras. Por outro lado, dado o estigma e a marginalização social que afectam os recicladores serem um obstáculo importante para a luta contra as condições de mercado, é indispensável que as referidas organizações económicas assumam funções sociais, políticas e culturais diversas que contrabalancem a exclusão de que estes são vítimas. Entre elas encontram-se a promoção do acesso dos recicladores a bens e serviços básicos cuja carência reforça o seu isolamento e miséria, tais como educação básica e secundária e atendimento médico adequado; a constituição de mecanismos de representação dos interesses dos recicladores relativamente à sociedade e ao governo e a organização de actividades de integração entre a população recicladora que ajudem a desenvolver os laços de solidariedade necessários para a acção colectiva. Como vieram demonstrar as iniciativas económicas populares emancipadoras na América Latina (Wasserstrom, 1985; Hirschman, 1984), a luta pela melhoria das condições materiais de vida dos membros dos sectores populares está intrinsecamente relacionada com a luta pelos direitos de cidadania destes sectores. No caso concreto dos recicladores, o progresso económico e a luta pela inclusão são duas caras da mesma moeda. Sem uma estratégia económica viável, os recicladores estão condenados à pobreza ou, na melhor das hipóteses, a dependerem indefinidamente da caridade de organizações não governamentais, de benfeitores individuais ou de entidades governamentais isoladas. Sem uma estratégia social, os ganhos económicos derivados da transformação do mercado da reciclagem não alteram as condições de exclusão dos recicladores no seu conjunto.

A necessidade de uma estratégia económica e social foi claramente percebida pelos líderes dentro da comunidade recicladora e por algumas organizações não governamentais e entidades governamentais que, em começos da década de 80, iniciaram os primeiros passos de organização dos recicladores. As lições destas experiências pioneiras foram recolhidas por um grupo de perto de 200 recicladores em Manizales em 1986 que, em estreita colaboração com a entidade estatal encarregada naquela altura de promover o cooperativismo na Colômbia (DANCOOP), a agência estatal de promoção da educação técnica (SENA) e as Empresas Públicas de Manizales, fundaram a «Precooperativa Prosperar» e obtiveram o apoio da «Fundación Social», organização de assistência privada financiada por um conglomerado económico propriedade da comunidade dos jesuítas na Colômbia (Hower, 1997). A «Fundación Social» viria a influenciar decisivamente o processo de organização dos recicladores na Colômbia. Com efeito, a «Fundación Social» jogaria o papel catalisador externo - do «animador social»- que está sempre presente nas experiências de organização económica de comunidades marginalizadas. Inicialmente em colaboração com a DANCOOP e posteriormente por sua própria conta, a «Fundación Social» entrou em contacto com as comunidades de recicladores e os seus líderes e apoiou-os na fundação e consolidação das primeiras cooperativas e redes de cooperativas.

O esforço conjunto de grupos de recicladores, a «Fundación Social» e algumas entidades governamentais nacionais e locais deu origem à rápida proliferação de cooperativas em finais da década de 80 e começos dos anos 90. Uma das primeiras cooperativas fundada desta forma (1987) foi a «Rescatar», com sede em Bogotá. Em 1989 nasceu a «Porvenir», uma das cooperativas de maior sucesso em Bogotá. Iniciativas semelhantes foram empreendidas nas grandes e médias cidades do país, e em 1990 o seu número elevava-se já a cerca de 50, entre as quais a «Fundación Social» apoiava 20 (Fundación Social, 1990). Surgiu então a necessidade de articular os esforços das cooperativas emergentes através de redes regionais e de uma rede nacional. À escala regional foram criadas, por exemplo, a Associação de Recicladores de Bogotá (ARB), em 1990, e a Associação de Recicladores da Costa Norte (ARCON), em 1992; esta última nascia como resposta ao assassinato de 11 recicladores e indigentes em Barranquilla nesse mesmo ano. À escala nacional, a «Fundación Social» patrocinou o Primeiro Encontro Nacional de Recicladores em 1990, que originou a proposta de criação da Associação Nacional de Recicladores (ANR) que entrou em funcionamento em 1991.

A criação de redes regionais e da rede nacional de cooperativas teve lugar no preciso momento em que o Governo colombiano dava uma viragem decisiva para a abertura e desregulamentação da economia, com base em políticas públicas de todo o tipo - fiscais, monetárias, laborais, sociais, etc.- próximas do modelo neoliberal. Uma componente essencial destas políticas foi o impulso para a privatização da prestação de serviços públicos. Um dos primeiros sectores em que esta última estratégia foi utilizada foi o do serviço de recolha de lixo em Bogotá. Em 1990, a Câmara Municipal de Bogotá iniciou o processo de privatização do serviço e outorgou licenças a consórcios criados por empresários colombianos e multinacionais estrangeiras para a recolha de lixos em 60% da cidade. A privatização evidenciou os efeitos ambíguos da abertura e do processo de globalização económica, de que esta faz parte, sobre a população recicladora em geral e sobre as cooperativas e redes em particular. Por um lado, a privatização do mercado da recolha de lixo e da reciclagem cria uma oportunidade para as cooperativas, isto é, a prestação de um serviço antes reservado às empresas estatais de saneamento. Por outro, dado que as privatizações são feitas através de procedimentos em que apenas participam as empresas que reúnem os requisitos financeiros e tecnológicos nas licitações, e estes estão fora do alcance das cooperativas, os recicladores são excluídos à partida da definição do futuro mercado e enfrentam o risco de desaparecimento do nicho de mercado do qual dependem, se as empresas privadas que passam a prestar o serviço - como acontece cada vez com mais frequência - se encarregarem não apenas da recolha do lixo como também da recuperação do material reciclável nele contido. Este risco foi justamente um dos motivos que levou os recicladores a organizarem redes regionais e nacionais que funcionassem como grémios e representassem os seus interesses.

A primeira experiência das cooperativas no processo de privatização reflectiu tanto a oportunidade como a séria ameaça que pairava sobre elas. Quando, em 1992, a empresa estatal de saneamento de Bogotá que detinha ainda toda a responsabilidade da recolha de lixos em 40% da cidade entrou em crise e provocou uma emergência sanitária, a ARB e a «Fundación Social» propuseram ao governo da cidade que as cooperativas de recicladores se encarregassem do serviço nas zonas onde a empresa estatal costumava prestá-lo. A proposta foi aceite e a Câmara contratou a «Fundación Social» - que, por sua vez, subcontratou a ARB - para resolver a emergência sanitária. Porém, após os recicladores organizados terem resolvido com sucesso a emergência, o governo local exigiu, para continuarem com o contrato, que fosse a «Fundación Social» - e não a ARB - quem continuasse a ser o empreiteiro directo, dada a desconfiança do governo na capacidade de gestão dos recicladores, facto que manifesta claramente o clima de receio generalizado perante a população recicladora. Como a «Fundación Social» não podia legalmente assumir essa responsabilidade, o governo decidiu então abandonar esta possibilidade e privatizou 40% do restante serviço através de uma licitação adjudicada a um consórcio internacional.

Ao longo da década de 90 multiplicaram-se as cooperativas e os esforços no sentido de estabelecer alianças entre elas para serem criadas empresas de limpeza e saneamento e manuseamento de resíduos capazes de entrar em concorrência com empresas convencionais à medida que o processo de privatização do serviço fosse avançando pelo país fora. O exemplo mais notável deste tipo de aliança é a empresa «Ecología y Aseo» (ECOASEO), cujos accionistas são cooperativas de recicladores e redes de diversas regiões. A ECOASEO apresentou uma proposta alternativa de prestação de serviços de limpeza e reciclagem que denominou «gestão ambiental de resíduos sólidos com participação comunitária» e que pretende prestar um serviço eficiente e melhorar as condições de vida das comunidades de recicladores organizados (Rivas, 1997). A ECOASEO em termos de capital e tecnologia colocava-se em desvantagem em relação às grandes empresas de limpeza, daí os seus progressos terem sido lentos. Porém, na actualidade presta o serviço de limpeza em três municípios e está em processo de expansão para cidades intermádias. Além disso, as empresas de serviços públicos de tipo cooperativo criadas pelos recicladores tiveram sucesso a nível autárquico, tal como o evidencia a experiência de organização de recicladores de San Gil - um município mediano no nordeste da Colômbia -, que presta o serviço de limpeza e reciclagem em 55% da autarquia.

De resto, um número importante de cooperativas fez avanços económicos muito consideráveis. As cooperativas de maior sucesso têm vindo a diversificar as suas actividades económicas. Incluem não apenas o serviço de limpeza e reciclagem de lixos domiciliários e industriais - e até em zonas extensas das grandes cidades - como também se ocupam da transformação dos materiais reciclados, a actividade de maior valor acrescentado. Além disso, as cooperativas e redes têm tentado ainda comercializar directamente os materiais que recolhem através de cooperativas de venda.

Ao longo dos anos 90 multiplicou-se o número de cooperativas em todo o país, ao ponto de actualmente existirem 94, das quais 88 formam parte da ANR e agrupam cerca de 10% do total da população recicladora do país (ANR, 2000). As cooperativas são muito diversas. Enquanto algumas foram criadas há poucos anos e têm uma base social muito instável, uma capitalização mínima e estão em risco permanente de desaparecerem, outras, como a «Rescatar» e a «El Porvenir» em Bogotá e a «Recuperar» em Medellín, conseguiram consolidar-se e encontrar nichos económicos que lhes permitem manterem-se com vida e inclusivamente reinvestirem na aquisição de bens de capital e diversificarem as suas actividades.

O desenvolvimento das cooperativas tem sido paralelo ao processo de consolidação das redes regionais e da rede nacional. A ANR, que em Março de 2000 celebrou a VIII Assembleia Geral de Recicladores, tem-se estabelecido como a entidade de representação do grémio dos recicladores, articulada com as cooperativas através das 9 redes regionais. Estas vão-se consolidando e empreendendo projectos diversos em favor das cooperativas que formam parte dela.

Até aos começos de 1999, a «Fundación Social» prestou apoio financeiro e técnico a boa parte das cooperativas e redes. Durante os 12 anos que durou o apoio da «Fundación Social», as virtudes e dificuldades características da intervenção de uma organização facilitadora externa foram evidentes. Por um lado, a «Fundación Social» forneceu capital e serviços indispensáveis para a descolagem das cooperativas e das redes, que os recicladores muito possivelmente não teriam podido encontrar em bancos e entidades privadas, especialmente após a falência na Colômbia do sector financeiro solidário em meados dos anos 90. Mas, por outro lado, a possibilidade de a «Fundación Social» intervir directamente na gestão das cooperativas afim de as tornar rentáveis gerou uma reacção negativa entre os recicladores organizados, que insistiram na sua autonomia e na suas capacidades de autogestão.

Em consequência, actualmente, as cooperativas e redes estão a atravessar um período crítico em que a sua capacidade de desenvolvimento autónomo está para ser comprovada. O facto de a entidade facilitadora que as vinha acompanhando e financiando se ter retirado, veio criar um clima de insegurança de que as redes estão a recuperar, enquanto as cooperativas estão a enfrentar, ainda por cima, os efeitos do aprofundamento do processo de privatização dos serviços de limpeza e reciclagem, que cria, como temos visto, tanto oportunidades como ameaças para os recicladores organizados. O exemplo paradigmático desta situação é a iminente entrada em vigência do denominado Plano Mestre de Lixos em Bogotá, um programa camarário alargado que visa resolver nos próximos anos os problemas da recolha e disposição dos resíduos sólidos que passaria para as mãos de empresas privadas de limpeza a responsabilidade de recuperar e separar directamente os materiais recicláveis. No caso de as organizações de recicladores não conseguirem criar alianças para participar e influenciar este processo, é possível que o nicho económico do qual dependem os cerca de 50.000 recicladores de Bogotá desapareça.

Qual é pois o balanço geral da história das cooperativas e das redes de recicladores na Colômbia? Na minha opinião, trata-se de uma história que mostra ao mesmo tempo o imenso potencial emancipador das iniciativas económicas populares articuladas através de formas não capitalistas de produção - o que ficou plasmado, por exemplo, em prémios internacionais de importância outorgados às organizações de recicladores da Colômbia pela sua gestão social e ambiental - e as extremas dificuldades pelas quais atravessa uma população altamente marginalizada dentro de um ambiente económico e político desfavorável. Na secção seguinte trato de responder à questão e ofereço uma síntese das conquistas, limitações e desafios que se colocam às cooperativas na actualidade. Ao debruçar-me sobre isto, considerarei não apenas o balanço económico destas experiências - isto é, se são ou não rentáveis e capazes de manter-se com vida no mercado - como também o balanço social - isto é, os efeitos que tiveram sobre as condições de vida dos recicladores. Dado que estes efeitos só podem ser apreciados com clareza a nível micro-económico, isto é, na vida diária das cooperativas e dos seus membros, na secção seguinte concentrar-me-ei na informação recolhida na investigação etnográfica realizada com os membros da cooperativa «Rescatar» durante os seus horários de trabalho nas ruas de Bogotá e na sede da cooperativa.

2.5. O balanço social das cooperativas

A referência ao balanço social é muito comum tanto nos documentos produzidos pelas cooperativas e as suas redes como nas reuniões dos membros das mesmas. Em «Rescatar», por exemplo, uma das conquistas centrais que os directivos apresentaram aos 37 recicladores sócios presentes na Assembleia Geral do ano 2000 foi o facto de a cooperativa ter produzido uma utilidade económica próxima dos 10 milhões de pesos (por volta de 5.000 dólares norte-americanos) em 1999 e, sobretudo, de a sua «utilidade social» - isto é, o nome utilizado pelo gerente da cooperativa na assembleia para se referir à soma investida no bem-estar do seus sócios (cerca de 25.000 dólares no mesmo ano) - ter sido elevada e de, portanto, o seu balanço social ter sido positivo.

A que se refere este balanço social? Trata-se de uma série de benefícios individuais e colectivos - alguns materiais, mas outros intangíveis - que, embora aparentemente muito pequenos, implicam uma transformação fundamental das condições de vida dos recicladores da cooperativa. A cooperativa promoveu o acesso gradual dos membros aos benefícios anexos a uma ocupação no sector formal da economia. Assim, os recicladores sócios foram filiados em entidades de segurança social (saúde e reformas) e nas caixas de previdência familiar. Desfrutaram também, pela primeira vez, dos benefícios de prémios e de desemprego. Enfim, acederam pela primeira vez a regalias próprias da cidadania social, isto é, a bens e serviços que asseguram o seu bem-estar material mínimo apesar dos baixos rendimentos. Isto tem criado situações claramente excepcionais no contexto da sociedade colombiana, caracterizada por uma forte separação de classes. Por exemplo, os passeios de integração dos recicladores sócios da cooperativa «Rescatar» nos clubes de férias das caixas de compensação familiar deram lugar a uma inusitada convivência, pelo menos por um dia, entre os recicladores e os membros das classes médias nas piscinas e zonas verdes dos referidos clubes.

Além das regalias típicas de um emprego formal, o trabalho nas cooperativas desencadeia mudanças consideráveis nos recicladores em relação à sua conduta diária, às suas condições de trabalho, à comunidade com a qual convivem e à sociedade em geral. No que se refere à conduta individual, a cooperativa exerce uma pressão subtil, geralmente através de mecanismos informais - comentários em reuniões, actividades de integração -, contra hábitos comuns entre a população recicladora não organizada, tais como a violência dentro do agregado familiar, o recurso às drogas e o descuido no vestuário. De facto, boa parte dos cursos de indução que se oferecem periodicamente aos novos membros da «Rescastar» ocupa-se de aspectos como o cuidado com o corpo, o respeito pelos outros e a necessidade de levar uma vida familiar pacífica e responsável. Por exemplo, num desses cursos, em finais de Julho de 2000, o gerente da cooperativa exortava os novos sócios «a se capacitarem... mas não há diferença só porque em termos académicos um sabe mais do que o outro. A equidade está em que quem tem mais conhecimentos tem uma dívida social para quem não os tem e deve compartilhá-los». Na mesma conversa, instava os novos membros a respeitarem as esposas, dado ser bastante comum recorrer à violência contra as próprias mulheres entre a população recicladora: «Somos nós a estabelecermos os padrões de beleza. Vocês sabem qual é o protótipo de mulher bela? O da mulher que cada um de vocês escolheu como esposa... Atenção aos maus tratos. Temos de aprender a resolver os nossos conflitos». Do que se trata, pois, é de converter a pertença à cooperativa num veículo para a transformação gradual dos hábitos que impedem o progresso dos recicladores como indivíduos, família e comunidade. Embora sendo frequentes os problemas na cooperativa graças à persistência de algumas destas condutas, o facto de nenhum dos seus 50 membros viver na rua e de vários deles terem inclusivamente reingressado em instituições de ensino secundário e técnico, a partir da nova experiência de vida na cooperativa, mostra claramente o elevado potencial transformador desta.

No que se refere às condições de trabalho, o facto de formarem parte da cooperativa produz um efeito positivo decisivo. E por razões distintas. Por um lado, a cooperativa torna possível o acesso às fontes de aprovisionamento (isto é, a residências, edifícios e indústrias que lhe contratam directamente o serviço de recuperação de materiais recicláveis). Isto implica que o reciclador pode trabalhar directamente na fonte e deixar de fazer percursos esgotantes através da cidade ou de recuperar materiais nas lixeiras. Por outro lado, o facto de pertencer à cooperativa tem efeitos simbólicos muito importantes que melhoram substancialmente a atitude da polícia e da sociedade em geral face aos membros das cooperativas. As conversas mantidas e o trabalho com os membros mostrou que o facto de poderem trabalhar usando as fardas da cooperativa gerava mudanças notórias nas suas condições de trabalho. O uniforme, semelhante ao dos empregados das empresas de limpeza convencionais, proporciona ao reciclador um estatuto de trabalhador que geralmente lhe é negado quando circula pela cidade vestindo roupas humildes. Neste sentido é elucidativo o comentário de Cristóvão, 25 anos, segundo o qual desde que leva a farda da cooperativa «a polícia não se mete comigo, nem as pessoas que antes me tratavam como ladrão». Henry, o novo sócio da cooperativa já citado anteriormente, referiu do seguinte modo a mudança que implicou deixar de trabalhar por conta própria e entrar na cooperativa: «quando eu trabalhava por conta própria as coisas corriam mais ou menos, mas realmente não tinha as mesmas garantias que temos cá [na cooperativa]. Por exemplo, a estabilidade, ainda por cima aqui a gente vai bem fardada, está bem assessorada, o carrinho em boas condições; bom, há milhares de pequenas coisas que a gente não tem quando trabalha por conta própria».

No que se refere ao trabalho comunitário com o resto dos membros da cooperativa, a participação nos seus diversos órgãos - a assembleia geral, o conselho de administração e o de vigilância, que têm poder decisório e aos quais estão subordinados os membros directivos da cooperativa - foi possivelmente a primeira experiência de participação democrática substancial para muitos dos seus membros, dada a apatia política da população recicladora, consequência directa da sua exclusão dos benefícios da cidadania. De igual forma, o trabalho colectivo na cooperativa tende a gerar laços de solidariedade que mitigam a falta de confiança nos companheiros e no resto das pessoas alheias ao círculo familiar que caracteriza os recicladores. Diferentemente do que referia Birkbeck (1978) do seu estudo sobre o relacionamento entre recicladores desorganizados e intermediários na lixeira de Cali, na qual constatou que uns e outros se serviam de todo o tipo de artimanhas (por exemplo, balanças alteradas ou pedras nos sacos de materiais) para se aldrabarem mutuamente acerca do peso do material, a minha experiência como acompanhante dos condutores dos camiões da cooperativa que recolhem e pesam os materiais recuperados pelos recicladores sócios mostrou que estes confiavam plenamente nas pesagens feitas pelos companheiros encarregados de fazerem as recolhas. Esta mútua confiança tem efeitos positivos não apenas na convivência dos sócios da cooperativa, como também na sua eficiência porque permite acelerar as operações do processo de reciclagem (i.e., a recolha e pesagem do material) que usualmente são lentas ou conflituosas no circuito informal da reciclagem.

Em síntese, as regalias sociais da cooperativa são parte essencial do seu funcionamento e do seu atractivo para os recicladores. De facto, nalguns casos são até a única razão pela qual os recicladores permanecem nela. Nas conversas e no acompanhamento do trabalho diário foram recorrentes os comentários acerca da maior conveniência económica imediata de trabalhar por conta própria e vender a intermediários. Venderem à cooperativa o material recolhido pode ser desvantajoso de um ponto de vista estritamente económico, já que implica a perda da opção de venda ao intermediário que pagar o melhor preço e receber deste adiantamentos ou empréstimos. Nestes casos, então, a permanência do reciclador na cooperativa pode ser explicada apenas pelas inúmeras regalias de que beneficia pelo facto de ser membro dela. Por último, é importante ter em conta que as cooperativas de recicladores - de acordo com os princípios do cooperativismo e com a finalidade de fortalecer a sua base social e económica - buscam activamente novos sócios entre os recicladores desorganizados que trabalham nas ruas. Portanto, os benefícios sociais que proporcionam são potencialmente extensíveis à população recicladora em geral.

É claro que o trabalho cooperativo também gera múltiplas dificuldades que foram evidentes no trabalho de campo. Os benefícios sociais vêm acompanhados de custos sociais que não existem no trabalho individual. Por exemplo, os processos deliberativos de decisão no interior da cooperativa dão lugar a constantes desavenças e conflitos entre os sócios que acabam por afectar o seu funcionamento, às vezes de forma grave. Os conflitos mais frequentes que vêm à tona nas reuniões formais e nas conversas informais têm a ver com a falta de confiança e o ressentimento mútuos entre os sócios que ocupam cargos administrativos de responsabilidade na cooperativa, por um lado, e os que realizam trabalhos manuais nas ruas ou no armazém, por outro. Os sócios da cooperativa também exprimem o seu descontentamento com as frequentes reuniões, que implicam uma carga adicional no trabalho e muitas responsabilidades domésticas. Mas enquanto as fricções típicas dos processos deliberativos são comuns a todas as cooperativas, uma dificuldade adicional está relacionada com as características próprias da população recicladora, especificamente com o seu baixo grau de escolaridade. O facto de a maioria dos sócios não ter estudos secundários impede uma participação plena destes nos cargos de eleição e nas decisões da cooperativa que requerem um conhecimento especializado. A opinião de Concepción, uma das sócias da cooperativa citada em parágrafos anteriores, acerca das suas limitações para participar nas reuniões - «não compreendo muitas das coisas que lá se dizem e é a minha filha que tem que me explicar» - é representativa desta dificuldade. Neste sentido, conforme o atesta Ana Beatriz - uma das sócias fundadoras, de cerca de 70 anos -, é evidente a divisão na cooperativa entre «os chefes e nós, os operários», isto é, entre os directivos e quem trabalha como reciclador. Embora o gerente fosse reciclador antes de entrar na cooperativa - o que acontece em muitas outras cooperativas e nas redes -, a sua transição da rua para os escritórios da cooperativa e eventualmente para a gerência é excepcional quando se compara com a história da grande maioria dos recicladores, que, como o exprimiu um outro dos directivos da cooperativa, «não estão para aqui virados [e] só querem saber dos seus vidros, dos papéis e do cartão e de mais nada». É por esta razão que vários dos cargos administrativos da cooperativa são ocupados por pessoas que nunca foram recicladores e, embora algumas não tenham sequer estudos secundários, têm sim uma motivação e uma capacidade de aprendizagem excepcionais em comparação com o sócio médio da cooperativa. A divisão entre directivos e recicladores, que é constantemente referida por uns e outros, impede a existência de relações horizontais que facilitem o trabalho cooperativo e deliberativo e tende a reproduzir na cooperativa a hierarquia das empresas capitalistas - isto é, entre «chefes» e «operários». As dificuldades para subir de categoria dentro da cooperativa e a atracção pelo retorno a um trabalho por conta própria ajudam a explicar a relativa falta de estabilidade do grupo de sócios e, embora esta cooperativa tenha habitualmente entre 40 e 50 membros, são frequentes os abandonos temporários ou definitivos.

Finalmente, o balanço social e político das redes de cooperativas revela que estas conseguiram converter-se num mecanismo de relação dos recicladores organizados com os governos locais, regionais e nacional. Porém, as redes, contrariamente às cooperativas, não dispõem de fontes de rendimento próprias e, após o afastamento da «Fundación Social», dependem de novas fontes de apoio externo. Por isso as conquistas das redes têm sido limitadas. Por exemplo, um dos projectos mais atraentes da ANR, a aprovação de uma lei que formalizasse a actividade dos recicladores, deu lugar a uma lei (Lei 511/99) cujo conteúdo é predominantemente simbólico, como o demonstra o facto de que a única disposição de imediato cumprimento tenha sido a criação do Dia Nacional do Reciclador.

2.6. O balanço económico das cooperativas

Quais foram até agora as conquistas das cooperativas nas tentativas de transformação da estrutura do mercado da reciclagem em favor dos recicladores? As conquistas económicas notáveis de cooperativas como a «Rescatar», a «El Porvenir» e a «Recuperar» foram mencionadas anteriormente. Actualmente estas e outras cooperativas por esse país fora contam com um capital de trabalho importante que abrange armazéns, camiões, maquinaria e equipamento de escritório. Uma visita ao armazém da «Rescatar», por exemplo, pode surpreender o observador habituado à extrema pobreza dos recicladores na rua. Os dois camiões e o tractor propriedade da cooperativa encontram-se à entrada de um armazém cheio de materiais recicláveis e de maquinaria pesada para embalagem e posterior entrega. Várias cooperativas, em conjunto ou de forma isolada, conseguiram participar no processo de transformação dos materiais reciclados e na prestação de serviços de limpeza e manuseamento integral de resíduos através de empresas de serviços públicos como ECOASEO criadas para o efeito. Neste sentido, várias cooperativas conseguiram gerar um processo incipiente de acumulação de capital que lhes permite permanecer no mercado e até se expandir para novos nichos económicos.

Porém, é também evidente que o mercado da reciclagem continua dominado pelos intermediários e pelas indústrias compradoras e que os rendimentos dos recicladores associados às cooperativas são muito baixos. No que se refere ao primeiro aspecto, o facto de só cerca de 10% dos recicladores estarem associados implica que a oferta de materiais reciclados continua fundamentalmente na mão de recicladores desorganizados que concorrem entre eles e contra as cooperativas, o que perpetua condições favoráveis para os intermediários e compradores. Dada a cultura individualista da população recicladora e o facto das cooperativas estarem apenas na sua fase de nascimento ou consolidação, os esforços destas em concentrar a oferta e alterar a estrutura de preços tiveram um impacto modesto. No que se refere a rendimentos dos recicladores organizados, as conversas com os sócios da cooperativa referem que continuam a ser com frequência inferiores ao salário mínimo. E além disso, dado que o acesso aos benefícios da segurança social é gradual e concedido apenas aos sócios mais estáveis, boa parte dos recicladores organizados ficam excluídos destas regalias.

Que razões explicam as dificuldades das cooperativas em modificar a estrutura do mercado? Alguns dos factores que limitam o sucesso das cooperativas estão fora do seu alcance, como, por exemplo, o predomínio da cultura individualista que impede a integração de mais recicladores informais. Contudo, outros factores estão dentro do quadro de acção das cooperativas e não foram até ao momento suficientemente considerados por estas. Dois destes factores são de importância crucial - como o demonstra a experiência de Mondragón em Espanha (Whyte e Whyte, 1988) - para a sobrevivência das cooperativas nas condições mutáveis do mercado. Em primeiro lugar, as cooperativas de recicladores emergiram e desenvolveram-se como unidades relativamente independentes. As redes que constituíram à escala regional e nacional cumprem funções políticas gremiais e não de coordenação económica, de assessoria ou financiamento como o fazem as entidades de segundo e terceiro nível no complexo de Mondragón. A «Fundación Social» fornecia recursos e assessoria a cooperativas isoladas, mas não servia como instância de planeamento ou coordenação das cooperativas no seu conjunto. Após o afastamento da «Fundación Social», até este tipo de assessoria e apoio tem vindo a desaparecer. Em síntese, as cooperativas não conseguiram integrar-se numa rede económica de ajuda mútua. O seu isolamento vê-se agravado pelo facto de na Colômbia o sector cooperativo ser bastante débil, especialmente após a falência da maioria das entidades financeiras cooperativas em meados dos anos 90 (Valencia, 2000). Em segundo lugar, as cooperativas não foram capazes de estabelecer vínculos duradoiros com entidades estatais e empresas privadas convencionais. O relacionamento das cooperativas e das redes com o Estado é intermitente e variável. Não existe, em geral, uma política estatal de apoio aos recicladores, mas sim esforços ocasionais e isolados de algumas entidades para lançar projectos benéficos para as cooperativas. Embora existam casos excepcionais - como a associação da «Rescatar» com uma empresa de tamanho médio para produzirem lâminas de alta resistência feitas com materiais reciclados -, em geral as cooperativas não conseguiram estabelecer relações de colaboração com empresas privadas. A ausência de vínculos entre as próprias cooperativas, e entre estas e o Estado e o sector capitalista, impede o aparecimento de uma economia cooperativa da reciclagem que, como mostra o caso de Mondragón, constituiria a condição necessária para a prosperidade das cooperativas individuais a longo prazo.

Apesar destas limitações, a história das cooperativas de recicladores mostra que estas podem sobreviver e inclusivamente progredir lentamente nas actuais condições do mercado da reciclagem. Porém, estas condições estão rapidamente a mudar como resultado da privatização e modernização dos serviços de limpeza e reciclagem nas principais cidades colombianas. Isto, por sua vez, acentua as dificuldades surgidas pela falta de integração das cooperativas em redes e em alianças com o Estado e o sector privado. Na secção seguinte porei fim ao estudo prático com uma análise sobre o futuro das cooperativas de recicladores nas cambiantes condições do mercado.

 

2.7. Podem sobreviver as cooperativas?

Duas mudanças fundamentais - representativas das transformações da economia colombiana após a abertura económica em começos dos anos 90 - estão a produzir-se no mercado da reciclagem. Em primeiro lugar, as indústrias compradoras estão a levar a cabo rápidos processos de fusão para fazer face à concorrência de indústrias estrangeiras produtoras de papel, vidro, plástico e outros materiais que utilizam matéria prima reciclada. Com a concentração extrema da procura - de facto, alguns destes mercados passaram de oligopsónios para monopsónios - acentua-se o controlo do mercado por parte dos compradores. Esta evolução foi claramente percebida pelos líderes da comunidade recicladora, como o evidencia a intervenção de Rodrigo Ramírez, gerente da «Rescatar», na assembleia anual da ANR em Março de 2000, à qual assistiram 79 líderes em representação de 44 cooperativas de todo o país:

O que é que se está a passar no sector do papel? A «Cartón de Colombia» [a maior empresa produtora de papel da Colômbia] é praticamente a dona das fábricas nacionais produtoras de papel no país. A única concorrência séria era a da «Papelsa». Que aconteceu? Comprou-a... [De forma similar] estão-se a repartir o mercado da sucata entre as duas únicas siderurgias com que contamos na Colômbia e vejam como acabaram por deprimi-lo, como o reduziram ao nada, desceram os preços... De tal maneira que nós os recicladores começamos a ficar nas mãos de um comprador único. Por outras palavras: nas mãos do monopólio.

Em segundo lugar, o processo de privatização do serviço de recolha de lixo estendeu-se a todo o país. Em vista da insuficiência dos sistemas actuais de recolha de lixo, os governos locais, nomeadamente nas principais cidades, projectaram planos abrangentes - como o Plano Mestre de Lixos de Bogotá - para outorgarem a empresas privadas não apenas o serviço de limpeza (que já está nas mãos de consórcios multinacionais em boa parte das cidades) mas também o da reciclagem. A superioridade destes consórcios em termos de capital e tecnologia sobre as cooperativas, põe em causa a sobrevivência dos recicladores organizados - e até a dos desorganizados - que depende de as cooperativas começarem a implementar a curto prazo estratégias que lhes permitam oferecer serviços de limpeza e reciclagem competitivos. Por outras palavras, devido ao tecnicismo crescente dos serviços que prestam essas empresas, é improvável que a médio e a longo prazo os recicladores possam continuar a desenvolver uma actividade artesanal, nem sequer à margem do mercado. Este grave risco já foi percebido com lucidez pelos representantes dos recicladores organizados, como o mostram, de novo, as palavras do gerente da «Rescatar» na assembleia da ANR:

Vejam o que acontece na Colômbia e no mundo. Isto é uma economia globalizada, é universal. As mesmas privatizações que estão a produzir-se na Colômbia, estão a ser feitas na Venezuela, no Equador, no Peru. Estamos no século XXI e nós, os recicladores, continuamos a trabalhar com ferramentas de 1900. Temos 100 anos de atraso! Estamos a competir em desigualdade de condições, com os nossos carrinhos de rolamentos!, enquanto a empresa operadora de serviços de limpeza tem um veículo americano ou europeu de duzentos milhões de pesos. Assim não se pode concorrer. Temos de aprender a desenvolver projectos.

A necessidade de capitalização para modernizar os equipamentos tem criado nas organizações de recicladores um dilema típico das empresas cooperativas. Dado que os sócios não têm capacidade económica pessoal para obterem capitais, as cooperativas precisam de investidores externos para a sua modernização. Além disso, devido ao facto do sector financeiro cooperativo estar a sair de uma severa crise na Colômbia, não existem fontes de financiamento favoráveis para as cooperativas de recicladores. Nestas condições, as cooperativas passaram a depender ou da sua precária capacidade de acumulação de capital ou de doações ocasionais feitas por entidades governamentais, por fundações ou por governos estrangeiros para a compra de bens de capital.

Que estratégias podem evitar pois o desaparecimento das cooperativas de recicladores e manter o seu potencial emancipador para a população recicladora em geral? A resposta à pergunta remete para os desafios que enfrentam um grande número de cooperativas e organizações económicas populares na semiperiferia e na periferia em tempos de ajustes estruturais e de globalização. A seguir, e em jeito de conclusão, ocupo-me desta pergunta e tento deixar explícitos os elementos de análise que podem derivar do estudo prático que apresentei ao longo deste trabalho.

 

3. Conclusões

O estudo prático ilustra o potencial e as dificuldades das cooperativas de trabalhadores na actualidade, nomeadamente daquelas que surgem em condições de grande marginalidade e que afectam um número crescente de pessoas nos países pobres. O contributo central do estudo prático para as discussões acerca de formas alternativas de organização e de desenvolvimento económicos e para a prática das cooperativas de trabalhadores é a evidente necessidade de superarem o isolamento que frequentemente caracteriza à escala local esta linha de pensamento e de acção. No caso concreto das cooperativas de trabalhadores, é nítido que a sua sobrevivência nas condições de mercado volátil e aberto à concorrência estrangeira depende da sua inserção em redes de apoio com outras cooperativas, com entidades estatais e com empresas capitalistas a nível local, regional, nacional e internacional. Esta parece ser a conclusão «em que todos os estudiosos das cooperativas de trabalhadores estão de acordo: as possibilidades de sucesso a longo prazo de uma cooperativa que trate de sobreviver num mar de empresas privadas são muito baixas» (Whyte e Whyte, 1988: 277). A integração em redes - que explica o êxito das iniciativas cooperativistas mais prósperas como Mondragón e de outros projectos de desenvolvimento local cooperativos (Melo, 2000) - é especialmente importante quando se trata de organizações económicas solidárias de sectores que, como o dos recicladores, vivem na pobreza e trabalham em condições que dificultam a sua mobilização colectiva.

A integração com outras empresas nacionais e estrangeiras do sector solidário -cooperativas de trabalhadores, cooperativas de consumidores, entidades financeiras cooperativas, mutualidades, etc. - é uma estratégia natural para as cooperativas, dado que a colaboração entre elas é um dos suportes básicos da filosofia cooperativista. Do que se trata é de formar um verdadeiro sector solidário da economia baseado na coordenação e a colaboração entre empresas solidárias que realizem actividades complementares. No caso das cooperativas de recicladores, é evidente a necessidade de gerar alianças produtivas com cooperativas similares em todo o país. No estrangeiro, o meio natural para a consecução deste empenho é a colaboração com cooperativas de recicladores e cooperativas de trabalhadores que utilizem matérias primas recicladas no exterior. Esta é possivelmente a estratégia mais difícil de empreender para as cooperativas de recicladores. As cooperativas de maior sucesso apenas estão a começar a experimentar as vantagens das telecomunicações e não contam com os meios nem com o pessoal necessário para iniciarem contactos deste tipo. As barreiras tecnológicas e culturais (a língua, por exemplo) são de momento difíceis de superar para as cooperativas. Nestas condições, o apoio proveniente do estrangeiro continua a consistir em doações de entidades de promoção social ou de governos amigos, e não em laços de cooperação económica duradoiros.

As dificuldades em estabelecer alianças com outras cooperativas nacionais e estrangeiras não são, porém, exclusivas das empresas de recicladores. Na Colômbia, em geral, no âmbito das alianças entre empresas cooperativas está tudo por fazer e, dado que o sector solidário foi fortemente abalado pelos efeitos da abertura económica e do abandono estatal a que o sector foi deixado, a falência do sector financeiro cooperativo, o mais dinâmico da incipiente economia solidária do país, era inevitável. Não obstante, existem no país numerosas experiências isoladas que mantêm viva, a médio e longo prazo, a promessa de consolidação de uma economia solidária. Alguns exemplos são as cooperativas de trabalhadores de sucesso como a Colanta, fabricante de derivados lácteos. De igual forma, comunidades de camponeses com o apoio de organizações não governamentais e organizações estatais empreenderam um esforço ambicioso de fundação de economias cooperativas regionais precisamente nas zonas mais afectadas pelo conflito armado (Valencia, 2000). Do progresso destas iniciativas locais e regionais e da sua articulação numa economia solidária nacional e internacional depende a viabilidade destas formas alternativas de organização económica no país.

A integração das cooperativas populares de trabalhadores com organismos estatais encarregados de funções de promoção económica e social é também igualmente importante, como já advertia Friedmann (1992: 7): «embora um desenvolvimento alternativo tenha de começar localmente, não pode deter-se aí. Queiramos ou não, o Estado continua a ser um actor protagonista». A tradicional reserva que as teorias e iniciativas económicas de base apresentam face ao Estado têm o mérito de evitar a sua cooptação e a criação de relações de dependência dos actores económicos populares frente ao Estado. Porém, é improvável - tal como perceberam os recicladores na Colômbia quando formaram redes de representação política - que sem o apoio estatal se possam gerar as condições necessárias para que prospere uma economia solidária. Isto implica um desafio considerável para o Estado e, nomeadamente, para quem dentro dele é responsável pelas políticas económicas e sociais. Como, de uma forma dramática, o evidencia a guerra civil na Colômbia, adiar a solução dos problemas de distribuição da riqueza e de exclusão da maior parte da população da vida económica e política tem efeitos explosivos. Não é por acaso, neste sentido, que a situação de violência no país piorou após se verem frustrados os projectos redistributivos contidos na Constituição de 1991 - que inclui normas específicas, mas nunca aplicadas, visando promover o acesso dos trabalhadores à propriedade das empresas - e que o tema da promoção deste sector da economia seja um dos que com maior frequência surge nas discussões sobre uma agenda de paz (Valencia, 2000); como também não é por acaso que o problema de redistribuição da terra seja uma parte essencial dos pactos constitucionais que em países como a África do Sul permitiram a transição para a paz (Klug, 2000).

Também as alianças com empresas capitalistas são necessárias num ambiente económico caracterizado pelas fusões entre empresas com a finalidade de enfrentarem a concorrência global. Como o demonstra o caso de Mondragón, este tipo de alianças é possível sem vir a pôr em perigo a própria estrutura e os princípios das cooperativas de trabalhadores, nos casos em que as empresas cooperativas são sólidas. Porém, quando se trata de cooperativas menos estabelecidas, é necessário estipular as condições de aliança com as empresas capitalistas, de maneira a evitar a desnaturalização das cooperativas. O caso das cooperativas de recicladores ilustra bem a necessidade e os riscos desta estratégia. Apenas se conseguirem unir-se em parceria - num consórcio de empresas de limpeza e reciclagem com empresas privadas convencionais e, deste modo, conseguirem os capitais e a tecnologia para participarem nos processos de privatização - deixarão de correr o risco de desaparecerem. Mas, ao mesmo tempo, se a aliança se estabelecer em termos que ponham em perigo a estrutura cooperativa das organizações de recicladores, será muito possível que acabem sendo absorvidas pelas empresas capitalistas com que se associem ou que percam o seu carácter cooperativo.

O resultado da promoção destes tipos de redes de apoio mútuo é uma economia plural, na qual coexistem o Estado, as empresas solidárias e as empresas capitalistas no contexto de um mercado regulado. Neste sentido, a promessa cooperativista decepciona tanto os defensores de propostas neoliberais - cuja economia ideal está baseada exclusivamente em empresas capitalistas que concorrem num mercado livre - como os defensores de um colectivismo estatal - que gostariam de ver o mercado eliminado e substituído pelo planeamento económico centralizado. Não se trata da utopia da sociedade de mercado criticada acertadamente por Polanyi (1957), nem da utopia colectivista. É uma utopia real (Wright, 1998), porque é suficientemente radical para não se conformar com a regulamentação do mercado sem alterar a divisão entre capital e trabalho, e suficientemente real para ser viável nas condições do mercado contemporâneo. E, na medida em que tem vocação global - dado que um dos princípios do cooperativismo é o da colaboração entre cooperativas de todo o mundo - pode vir a ser uma forma de globalização contra-hegemónica. Porém, para atingirem isto, as empresas cooperativas, dentro e fora dos sectores populares, no centro, na semiperiferia e na periferia, têm ainda um longo caminho a percorrer.

 

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