Flexigurança e princípio da desconfiança 
            Publicado na Ensino Superior em 27 de Março  de 2008 
          A agenda laboral na actualidade tem sido marcada pelo debate em torno da flexigurança.  Modelo de grande simplicidade analítica, combinando liberalização do mercado de  trabalho com correspondente adaptabilidade da organização do trabalho e  facilitação do despedimento (diminuição dos seus custos procedimentais e económicos),  com intervenção estatal forte nos domínios da protecção social e políticas  activas e passivas de emprego. Trata-se de admitir a possibilidade de um trade off entre um mercado de trabalho  liberal e um modelo de protecção social de tipo social-democrata.  
            Repristinando as propostas feitas ao longo da década de noventa,  afeiçoadas à flexibilização liberal das relações laborais como resposta aos  desafios colocados pela globalização económica e ao défice de posicionamento  internacional da União Europeia (UE) perante os indicadores de competitividade  e produtividade, o conceito chega-nos como fórmula virtuosa de combinação entre  as dimensões económica e social da UE. O regresso a uma gramática liberal  fornece a dirigentes atávicos em pensamento estratégico de reformismo social um  menu “pronto a vestir” político que copia os figurinos da moda com caudilhos  deslumbrados com o que no passado conduziu à “velha questão social” e no  presente nos coloca face às “novas questões sociais”.  
            A assinatura do acordo entre parceiros sociais europeus sobre a  modernização do mercado de trabalho e os princípios da flexigurança, em Outubro  de 2007, não é o fim da história, nem esconde as crescentes tensões externas e  internas que o dossier flexigurança vai gerando entre os parceiros sociais. No  que diz respeito a estas, e a título ilustrativo, podem mencionar-se os  pareceres formulados pelos parceiros sociais, bem como as suas posições  públicas relativamente aos relatórios de progresso e final produzidos pela  Comissão do Livro Branco das Relações Laborais. Estamos perante um tema  fracturante que contrapõe organizações sindicais a associações patronais, estas  últimas favoráveis à implementação dos “princípios da flexigurança”. A ausência  de prudência na condução deste processo e os arroubos ortodoxos em sua defesa  contribuirão, de certo, para a reprodução e aprofundamento do modelo  adversarial que marca o nosso sistema de relações laborais.  
            A introdução do debate foi pouco auspiciosa, desde logo porque o tema  acompanha outras medidas de reforma percepcionadas como redução ou extinção de  direitos sociais (como sucede com as reformas na saúde e no ensino), de acordo  com uma lógica de eficiência (desejável) mas segundo critérios (a)sociais  (indesejáveis). Por outro lado, a simultaneidade dos processos europeus de  lançamento do Livro Verde para a Modernização do Direito do Trabalho (de  conteúdo desiquilibrado), da presidência portuguesa que assumiu motivadamente a  questão e a constituição da Comissão do Livro Branco das Relações Laborais  Português provocaram um estado de latência relativamente à flexigurança.  
            As expectativas sociais mais contraditórias revelaram-se na dessintonia  entre os que se propunham ver no Livro Branco a oportunidade de reduzir a  flexigurança aos conteúdos do mesmo (necessariamente circunscritos à esfera  jurídico-laboral) e aqueles que judiciosa e rigorosamente sabem não ser  possível resolver a quadratura do círculo de tal problema com dados limitados  (de fora estavam a protecção social, políticas activas e passivas de emprego –  em suma, uma concepção integral dos equilíbrios). 
            A clareza dos pressupostos do modelo contrasta, todavia, com a nebulosa  caracterizadora do debate público. Para isso contribuem três ordens de razões.  
            A primeira reporta-se à estratégia utilizada para a introdução do tema.  Apresentado como via única para a reforma dos modelos sociais e dinamismo  económico, a flexigurança exprime uma visão ortodoxa (no sentido do fechamento  do debate em torno de alternativas) contrária ao imperativo da justificação típico  das sociedades democráticas. Exemplo acabado da soft law “musculada” da UE (ainda que com reservas do Parlamento  Europeu, do Comité Económico e Social e dos Parceiros Sindicais), nasce sob o  impulso da Comissão Europeia, alimentada por uma produção comitológica próxima  de uma economia do trabalho darwinista,  de uma sociologia neofuncionalista e de uma tradição jurídica civilista que têm  em comum a ideia geral de que o contrato é a nova forma de vínculo social.  Assim, os actores sociais são livres e iguais para optimizarem as suas escolhas  com base em capacidades reflexivas que possuem, a sociedade é composta por  sistemas que se diferenciam entre si produzindo ordem social e o trabalho é uma  mercadoria, um bem fungível que deve ser regulado pelo direito das coisas. Parece  fácil reformar as sociedades de acordo com os predicados societais acima  mencionados. Mas não é, porque a realidade social não é apenas assim.  
            A tradução social destas ideias conduz à segunda razão de confusão no  debate público, associado a uma tendência política de privatização dos riscos  sociais atomizados e internalizados individualmente pelos cidadãos  trabalhadores com a correspondente socialização dos riscos privados das  empresas por parte do Estado. É, por isso, natural que os principais defensores  da flexigurança estejam próximos dos reformismos de direita, liberais e  terceiras vias de centro direita. Daqui decorre, por outro lado, o efeito de  estranheza provocado entre a descoincidência do tempo das propostas e a  temporalidade biográfica e urgências do quotidiano das pessoas. Joana é uma  mulher de 55 anos, despedida num processo de deslocalização de uma  multinacional, divorciada e com dois filhos. Manuel é um reformado pobre.  Miguel é um jovem licenciado que há três busca o primeiro emprego. Pedro, com o  ensino básico, há 20 anos que vive com contratos a termo. Alfredo,  ex-trabalhador da construção civil perdeu um braço num acidente de trabalho.  Maria, bancária, sofre de depressão crónica, stress laboral e assédio  psicológico. Manuel tem 45 anos, é detentor de um contrato sem termo, no  entanto, sente-se inseguro. Qual será a sua definição de flexigurança? 
            A terceira assenta no enviesamento metodológico do benchmarking operado com o exemplo da sociedade dinamarquesa.  Desconsiderando-se a coerência societal que permite a emergência de um modelo  da flexigurança dinamarquês (é a sociedade dinamarquesa que permite a  flexigurança e não o contrário), opta-se por um caminho indutivo que tende a  conduzir a generalizações abusivas de onde se extraem princípios gerais que  estarão na base de orientações conjuntas e harmonizadas dos países da UE.  
            É certo que o mundo do trabalho em Portugal necessita de uma reforma  radical. É incompreensível a falta de efectividade das normas laborais e o modo  como os direitos de cidadania de milhares de trabalhadoras e trabalhadores são  violados. Para além deste facto, outro elemento se posiciona como grave na  laboralidade portuguesa: o princípio da desconfiança recíproca. 
            Perturbantes, por isso, se afiguram os diagnósticos da sociedade  portuguesa que a sinalizam como uma sociedade com baixíssimos níveis de  confiança interpessoal e institucional (nos antípodas das sociedades de sucesso  “flexigurante”). Recordem-se, a título ilustrativo, os estudos de Christian A.  Larsen (2007), Peter Taylor-Gooby (2000), Wil Arts e Loek Halman (2004) e Yann  Algan e Pierre Cahuc (2005, 2007). Com efeito, em Portugal as debilidades do  diálogo social, a falta de efectividade das normas laborais, a precarização e  atipicidade dos mercados de trabalho, devem-se, em grande medida, à existência  de uma cultura bem institucionalizada de desconfiança e ausência de  transparência no domínio laboral. Factor crítico, se levarmos em consideração  que o elemento procedimental defendido pela Comissão (COM, 2006) para a  implementação deste quadro de referência assenta justamente na ideia de um  diálogo social e produtivo baseado na confiança.  
            O mais grave neste diagnóstico resulta das múltiplas combinações entre  desconfiança e autonomia negocial dos parceiros sociais (princípio basilar de  toda a arquitectura sociojurídica laboral). Esta conjugação perversa tem dado  origem nos últimos trinta anos a quatro orientações questões estratégicas por  parte do Estado: (1) a do “bode expiatório” dado que os parceiros sociais, na  sua incapacidade de protagonizarem as experiências de auto-regulação e  autonomia conduzem a patologias como o bloqueio da negociação colectiva ou aos  resultados pouco efectivos da concertação social, o que permite ao Estado reformar  semanticamente as relações laborais e mercados de trabalho sem que as práticas  se alterem; (2) a do “paternalismo condescendente”, que encontra hoje expressão  nos mecanismos da caducidade das convenções e arbitragem obrigatória, visando  constranger os processos negociais e “penalizar” os que não querem fazer uso da  sua “liberdade de contratualização”; (3) a do Estado de “mínimos sociais”,  subversor da tradicional hierarquia das fontes de direito, segundo a qual: lei,  contrato de trabalho e convenções colectivas dão lugar à outorga de direitos  laborais mínimos por parte do Estado; (4) e, finalmente, a passividade do  Estado face ao unilateralismo patronal assente nos actos de gestão e fixação  unilateral das condições de trabalho por parte das empresas.  
            Daqui resulta um clima político propenso à desvalorização dos sindicatos  e do seu papel na produção e aplicação das normas laborais. As experiências que  os defensores da flexigurança gostam de citar registam a existência de  movimentos sindicais fortes e com elevadas responsabilidades cívicas. Assim, a  grande lição da flexigurança para Portugal é a da dignificação do diálogo  social, do respeito pelas associações sindicais e, sobretudo, o apoio à  expansão de uma verdadeira cultura democrática de confiança entre os parceiros  sociais. 
            O futuro dirá se as estratégias e a argumentação utilizadas criarão um  enorme conjunto vazio de possíveis entendimentos e formas de concertação. Será,  porventura, esse padrão atitudinal de desconfiança que, uma vez mais,  legitimará as decisões unilaterais que o Estado venha a assumir. Teremos,  então, uma flexigurança estatalmente produzida, estatalmente aplicada e, por  isso, estatalmente violenta. Ela não suprirá a desconfiança dos parceiros  sociais, para isso torna-se necessário levar a cabo a única reforma de que  necessitamos, a criação de condições para o desenvolvimento da confiança  recíproca, responsável e apostada no desenvolvimento sustentado de Portugal no  respeito pela dignidade de todos, sobretudo daqueles que mais dela carecem.  
        Acredito nas capacidades democráticas do diálogo social e permaneço  optimista quanto à responsabilidade cívica que os parceiros sociais hão-de  assumir (governo incluído). È por isso que a proposta de alteração ao Código do  Trabalho a apresentar pelo governo será determinante em matéria de  optimismo!            
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