| A  Hegemonia do Bem?Madison, Wisconsin, 5 de Novembro 2008
 A eleição do  Presidente Obama é um acontecimento  de  global e transcendente importância para todos os que acreditam na possibilidade  de um mundo melhor. Nos últimos quinze anos, dois outros  acontecimentos adquiriram esta mágica  qualidade: a eleição de Nelson Mandela  como Presidente a África do Sul em 1994 e os  quinze milhões de cidadãos que por todo o mundo sairam à rua em 15 de fevereiro  de 2003 para protestar contra a invasão do Iraque. Muito distintos entre si,  estes três acontecimentos têm em comum uma concepção pos-nacionalista do mundo.  O mundo é a cidade natal da esperança e o que acontece num país diz respeito a  todos os demais. Partilham também o serem testemunho da inesgotável criatividade  da especie humana, para o melhor e para o pior. Os três acontecimentos foram  considerados impossíveis quase até ao momento de nos baterem à porta. Partilham  ainda a capacidade mágica dos seres humanos de celebrarem incondicionalmente a  magia dos momentos de comunhão liberta dos contrangimentos da realidade, como  se esta tivesse saído para almoçar e ainda não tivesse regressado.Mas a  relação entre a vitória de Obama e os dois outros acontecimentos é ainda mais  profunda. Obama e Mandela são dois homens com fortes raízes em África e são  orgulhosos das sua raízes. Mandela é, além de tudo, um lider de linhagem nobre  Xhosa e Obama é membro da etnia Lou do Quenia (uma etnia discriminada antes e  depois da independência), como refere com naturalidade no seu livro bestseller. As suas identidades foram  tecidas pela memória do sofrimento injusto, da segregação, do colonialismo.  Mandela simboliza o caso extremo de uma maioria submetida a um cruel sistema da  apartheid durante décadas. Obama, apesar de não ser ele mesmo  descendente de escravos, simboliza o resgate  do inominavél sofrimento que foi infligido aos afro-americanos, um sofrimento  tão naturalizado pelos opressores que continuou até aos nossos dias sob a forma  do racismo. Para além do voto dos brancos, Obama conquistou o voto esmagador  dos cidadãos afro-descendentes e latino-descendentes e conquistou ainda o voto  de uma minoria quase esquecida, os jovens. A sua vitória é a vitória das  minorias quando estas descobrem que, unidas, são a maioria. Nos últimos quinze  anos, a África mostra-se  ao mundo nos  ombros destes dois gigantes e assim responde Basta! aos insultos do Banco  Mundial e do FMI para quem a África é o continente infeliz onde o capitalismo  global decidiu depositar multidões de seres humanos considerados descartáveis.  Por uma via muito própria—selada no seu passado colonial-- a África chega ao  protagonismo mundial que nas duas últimas décadas conquistaram a Ásia e a  América Latina ( que também é Afro-latina e Indo-latina)
 A relação  entre a vitória de Obama e os milhões em protesto contra a guerra ilegal e  injusta contra o Iraque não é menos relevante. As multidões em protesto não  conseguiram impedir a guerra, tal como aconteceu com o Senador Obama, um dos  poucos que votou contra a guerra. Mas agora, como Presidente dos EUA, tem nas  suas mãos a possibilidade de pôr fim a essa guerra e, aliás, foi isso mesmo que  prometeu aos seus eleitores. Os que votaram neles querem aliás que ele ponha  fim à guerra gémea que avassala o Afeganistão. Neste domínio o seu estado de  graça será curto, tanto no país como no mundo. O Afeganistão tem uma memória e  uma história exaltantes de lutas vitoriosas contra invasores estrangeiros bem  mais poderosos militarmente. Não há armas que verguem este país. Tudo indica  que Obama privilegiará a diplomacia e que entenderá que a Al-Queda não pode ser  destruida militarmente. Pode, isso sim, ser isolada pela paz e pela cooperação  não colonialista. A vitória de Obama significa que, afinal, os  protestantes  não protestaram em vão.
 A menção  conjunta de três acontecimentos que   visam devolver a humanidade  ao  melhor de si mesma pode ser surpreendente já que a vitória de Obama parece ter um  significado global incomparávelmente superior aos dos outros dois. Este  desequilíbrio é o resultado do privilégio hegemónico dos EUA no mundo de hoje,  um privilégio em declinio, sobretudo no domínio económico, mas por enquanto  muito forte. Para o bem e para o mal. O 11 de Setembro “transformou o mundo”  quando outras populações do mundo sofrem anualmente ataques tão injustos, tão  criminosos e muitas vezes mais devastadores do que o ataque às Torres Gémeas,  sem que isso mereça mais de uma pequena referência noticiosa. Da mesma forma,  um pequeno país, o Paraguai, elegeu, em 2008, um bispo, teólogo da libertação, para  libertar o país  da mais odiosa  oligarquia sem que tal merecesse referência detalhada na imprensa internacional.
 Obama tem  esse privilégio de oferecer ao mundo inteiro um momento glorioso de hegemonia  do bem. Só por isso ficará na história. Esse momento não durará muito. A  realidade não costuma demorar muito quando sai para almoçar. Quando terminar,  tudo vai depender do modo como o impulso do bem enfrentar o do mal. E tudo vai  começar nos EUA, um país contraditório e sofrido. Contraditório, porque é o  mesmo povo que há oito anos “elegeu” W.Bush, o pior presidente da história dos  EUA. Sofrido, porque a estupidez, a avareza e a corrupção que dominaram a Casa  Branca deixaram o país à beira da falência financeira e moral. Esta última foi  rapidamente resgatada por Obama. A primeira será muito mais difícil de  resgatar.
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