O Maio de 68 não morreu
Publicado no Diário de Coimbra em 25 de Maio de 2008
No
mês em que se completam 40 anos do Maio de 68 em Paris, têm abundado as
reportagens, os textos de opinião e as publicações mais diversas. Toda
esta excitação em torno desta celebração parece paradoxal, já que, toda
a gente continua a debater e a invocar o Maio de 68 e, ao mesmo tempo,
a maioria dos analistas (e até alguns dos seus antigos dirigentes) não
se cansam de insistir que o Maio de 68 morreu. Não. E a prova é isto
mesmo. Continuamos a debatê-lo. Mas, se o Maio de 68 se
mantém como um fenómeno extraordinário não é apenas pela importância
política e histórica do momento em si. É antes porque ele representa o
culminar de todo um conjunto de acções, lutas, protestos e movimentos
culturais ao longo da década de 60. Foi um período extraordinário de
inúmeras rupturas. Para o compreender é necessário ter presente os
antecedentes e o contexto cultural que então se vivia no mundo
ocidental. Um contexto de grande crescimento económico (desde o
pós-guerra), com a consolidação do Estado providência, a expansão do
sistema de ensino, etc., tiveram como consequência um aumento
significativo do poder de compra e do peso estatístico das classes
médias urbanas. Desenharam-se profundas mudanças nos costumes e hábitos
de vida da juventude, em particular a que então frequentava as
universidades. Foram sobretudo os filhos das classes médias (e altas)
que – saturados do materialismo consumista "burguês", da hipocrisia das
instituições e do moralismo conservador – alimentaram a onda de
movimentos sociais dos anos sessenta.
Eles surgiram em ruptura contra o stablishment
e as convenções da época. Tanto na América do Norte como na Europa, as
formas de rebelião e de contracultura juvenil vinham já da década
anterior. Manifestaram-se através da música, da literatura, da poesia,
da moda, dos cabelos compridos e barbas, do consumo de drogas, propondo
novos estilos de vida de uma geração – na verdade a "juventude"
escolarizada que, pela primeira vez, se afirmou como sujeito histórico
– em oposição à mentalidade dominante, questionando os limites das
instituições políticas e sociais, designadamente a escola e a família.
O contexto de guerra fria, a corrida aos armamentos e a ameaça nuclear,
a guerra do Vietname, a invasão da Checoslováquia pelos tanques
soviéticos, apareciam aos olhos dessa geração como provas evidentes de
que nem as instituições e partidos tradicionais, nem o velho movimento
comunista, com os PCs pró-soviéticos à cabeça, eram capazes de mudar a
sociedade num sentido progressista e emancipatório. Contra a
guerra, contra o consumismo, contra a moral sexista e castradora da
liberdade individual, contra a família convencional e todo um mar de
valores asfixiantes para quem queria a liberdade, para quem exigia ser
feliz e assumir-se como protagonista do seu próprio futuro. O móbil da
acção não era tanto um objectivo político. Era o resultado da vivência
colectiva, da partilha de sentimentos de revolta e solidariedade, que
estruturava novas identidades e dinâmicas de participação. Diversos
protestos e movimentos tinham explodido um pouco por todo o lado.
Pacifistas, feministas, ecologistas, libertários, anti-racistas, etc.,
ganhavam peso e visibilidade à medida que eram atacados, por vezes com
violência, pela polícia e pelas forças da ordem dos regimes
democráticos. Porque respondiam com ousadia e imaginação. Em Paris a
cidade parou e o movimento sindical aliou-se por momentos ao movimento
estudantil. A seguir traiu-o.
O Maio de 68 e os anos 60 no seu conjunto, valem sobretudo pelo legado
sociocultural e pelas marcas simbólicas que imprimiram na sociedade a
partir de então. A agenda social e política sofreu alterações profundas
sob a sua influência, que ainda hoje estão em curso. O que alguns
designaram como "a crítica artística" ao sistema democrático e ao
capitalismo, deriva justamente desse impacto sociocultural. É claro que
o capitalismo conseguiu apropriar-se e incorporar boa parte dos
resultados dessas acções, mas a sociedade mudou profundamente em muitos
aspectos. Mesmo que muitos dos antigos activistas sejam actualmente
figuras respeitáveis do sistema (e menosprezem as suas experiências da
juventude), os motivos, as formas de acção e o discurso desse período
continuam a merecer reflexão.
E hoje, numa altura em que em muitos aspectos as democracias revelam
novamente toda a sua fragilidade, importa que assumamos a lição do Maio
de 68. Não porque seja expectável a sua repetição, mas porque emergiram
nas últimas décadas novas perversões no sistema social e nas
democracias ocidentais, novas injustiças e desigualdades que exigem
respostas e reformas inovadoras. E é cada vez mais evidente que os
actuais actores e instituições são incapazes de as empreender. |