Estado, mercado, terceiro sector: fronteiras e reconfigurações no campo do bem-estar
Organizadoras:
Eloisa Helena de Souza Cabral (FAAP, São Paulo); Sílvia Ferreira (FEUC, Coimbra)

Os conceitos de economias e regimes mistos de bem-estar têm sido utilizados para dar conta da diversidade, em termos dos papéis que Estado, mercado e comunidade têm desempenhado na protecção social. Estes diferentes papéis e as fronteiras entre estes agentes estão actualmente a ser equacionados em sistemas provedores de bens e serviços de protecção social.
Em muitos países verifica-se uma redução do papel do Estado enquanto provedor directo, a par de um crescente protagonismo do terceiro sector e do sector mercantil. Neste contexto, verificam-se transformações profundas que atingem quer o papel desempenhado, quer o tipo de bens e serviços produzidos pelas diferentes organizações e instituições, quer ainda o tipo de relações existentes entre os diferentes sectores, com um forte impacto na natureza da protecção social e nas características das organizações.
Este painel pretende dar conta da diversidade existente nas diferentes sociedades lusófonas e das transformações por que passam os regimes de bem-estar nestas sociedades.
Assim, são privilegiadas comunicações que, tendo como campo de análise uma área específica do bem-estar, ou um sector específico abordem:
- as características dos regimes de bem-estar, no que se refere a uma área específica ou a uma determinada sociedade;
- o papel desempenhado por um actor específico no campo do bem-estar e o modo como este papel molda as características desse campo;
- a natureza das relações existentes e/ou em transformação entre os sectores estatal, mercantil e terceiro sector;
- comparações inter-sectoriais ou entre sociedades, relativas aos seus regimes de bem-estar.

Comunicações

1.Dilemas e contradições dos novos modelos de ação social
Joana Garcia
Escola de Serviço Social – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
joana@ess.ufrj.br

2. A Nova Questão Social e as Empresas no Brasil: o investimento social privado na saúde é uma nova forma de solidariedade?
Maria Alice Nunes Costa
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional / Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR/UFRJ; Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz/EPSJV; Brasil
alicecosta.rj@uol.com.br

3.As Empresas de Inserção no contexto europeu – problemáticas e desafios
Carlota Quintão, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal
carlotaquintao@hotmail.com

4. Repensar a acção social: - direitos, solidariedade e oportunidades de negócio
José Falcão Reis, José Bernardo Keating ( Instituto de educação e psicologia-Departamento de Psicologia-Universidade do Minho)
josealbertoreis@hotmail.com

5. A dádiva e sua importância teórica para se pensar as relações entre Estado, mercado e comunidade
Paulo Henrique Martins (Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ; CNPq)
pahem@terra.com.br

6. Controvérsia em torno de uma definição para o terceiro sector - a definição estrutural/operacional da Johns Hopkins vs. a noção de economia social
Raquel Campos Franco (Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica Portuguesa, Porto)
rcampos@porto.ucp.pt

7. Cordialidade e relações de ajuda nas fronteiras fluidas do Terceiro Sector
Eloísa Helena De Souza Cabral - Fundação Armando Álvares Penteado- FAAP – São Paulo- Brasil
elocabral@uol.com.br

8. Solidariedades sociais e novos desafios: uma alternativa viável para as estratégias de mitigação aos impactos do HIV/SIDA nas zonas rurais em Moçambique?
Teresa Cruz e Silva, Centro de Estudos Africanos/Universidade Eduardo Mondlane, Maputo-Moçambique
tcsilva@zebra.uem.mz

9. Quanto vale o capital social? o papel das redes informais na provisão de recursos
Sílvia Portugal, Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

10. As Políticas Públicas e os Espaços Híbridos de Participação e Deliberação: As Possibilidades e os Limites dos Conselhos de Política Urbana em Belo Horizonte/Brasil
Maria De Lourdes Dolabela Pereira, Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil
mldolabela@uol.com.br

11. Ambiguidades das políticas sociais contemporâneas: a participação sem participantes
Fernando Ilídio Ferreira (Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, Portugal
filidio@iec.uminho.pt

12. Novas interlocuções na sociedade brasileira
Leilah Landim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
landim.leilah@wanadoo.fr

Resumos

1.Dilemas e contradições dos novos modelos de ação social
Joana Garcia
Escola de Serviço Social – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
joana@ess.ufrj.br

Dois temas têm se apresentado com bastante impacto no debate sobre a intervenção social no Brasil. O primeiro trata do interesse crescente dos empresários pelo desenvolvimento de programas sociais, seja na condição de doadores ou como operadores destes programas, constituindo um fenômeno denominado “filantropia empresarial”. O segundo, diretamente relacionado a esse entourage, é a crítica ao modo tradicional de realizar a prática filantrópica, aquela que, na versão brasileira, refere-se aos pobres.
Como resultado da “invasão” de uma racionalidade instrumental própria do mundo do mercado, a intervenção social é repensada em termos dos projetos sociais a ela referidos e os personagens envolvidos de um lado ou outro da ação propriamente dita. Diante de um diagnóstico – apresentado como uma verdade inelutável – de que o Estado não é um agente eficiente na gestão dos problemas sociais, assim como a atuação da sociedade, baseada na “boa vontade”, também não gera resultados qualificados, abre-se uma vaga a ser ocupada por quem tem competência técnica para gerir problemas. Isto significa introduzir uma lógica complementar, ou para alguns, suplementar (sobretudo em relação ao método) para o enfrentamento dos males sociais. Neste cenário de crise de motivação pela vida pública, marcada por uma baixa credibilidade em relação às instituições sociais, o empresário aparece como o ator qualificado a instituir a lógica da eficiência e do jeito novo de “fazer o bem”.
Embora as práticas assistenciais de cunho tradicional tenham sido alvo de análises críticas sob diferentes aspectos, as críticas formuladas por esta “nova” forma de filantropia têm se concentrado no questionamento se as ações baseadas no modelo de “ajuda ao próximo”, ou na versão secularizada de “atenção aos mais frágeis” (se é que entre estas idéias há diferenças expressivas em termos de valores), têm sido capazes de produzir resultados eficientes. A idéia de eficiência parece reivindicar como pressuposto a divisa mais nítida entre os meios e os fins da ação social, tomados como equivalentes pelas práticas denominadas assistencialistas.
A participação de determinados segmentos empresariais nas ações sociais pretende ser inédita e positiva em relação a dois aspectos: o primeiro como um diferencial para uma cultura empresarial baseada exclusivamente no lucro. Os segmentos empresariais engajados na campanha de responsabilidade social são, nesta lógica, uma vanguarda que pretende redefinir o ethos empresarial e sua visibilidade na sociedade. E em segundo lugar, a contribuição empresarial busca trazer resultados para o campo filantrópico em relação à maior eficiência das ações e, numa perspectiva mais ampla, gerar uma consciência cívica em torno da idéia de responsabilidades sociais compartilhadas.
Diante destes dois apelos, este trabalho pretende interpelar o fenômeno da “filantropia empresarial” que se apresenta no contexto brasileiro, como um movimento, a partir do final da década de 1980, sob forte influência do modelo norte-americano. Embora “filantropia empresarial” não seja um termo inteiramente consensual, o que se pretende, ao evocá-lo, é caracterizar uma manifestação moderna de ação social, embora, em muitos aspectos, marcada pelos valores próprios do espírito filantrópico tradicional. A escolha do termo filantropia também é proposital na medida em que diante de uma proposta mais ampla de exercer a responsabilidade social – expressão mais consensual e inclusiva das novas e diferentes formas de intervenção e de comportamento empresarial – a remissão à filantropia pretende circunscrever a análise a um tipo particular de prática: àquela que se refere ao campo da intervenção social, ou seja, da assistência no sentido em que é genericamente empregado.

2. A Nova Questão Social e as Empresas no Brasil: o investimento social privado na saúde é uma nova forma de solidariedade?
Maria Alice Nunes Costa
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional / Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR/UFRJ; Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz/EPSJV; Brasil
alicecosta.rj@uol.com.br

O trabalho ora proposto, para o grupo de discussão deste Congresso, se refere aos primeiros passos da pesquisa de doutoramento sobre o investimento social privado na saúde no Brasil contemporâneo.
A tese visa a um estudo sobre as políticas sociais de saúde implementadas através de financiamento de empresas privadas autointituladas como socialmente responsáveis. Inicialmente serão apresentados os condicionantes que influem no surgimento de novas estratégias empresariais, calcadas numa cultura empresarial baseada em valores como responsabilidade e solidariedade com populações de baixa renda. Serão destacados os pressupostos teóricos que envolvem a problemática de uma coordenação por redes sociais entre Estado, mercado e sociedade na promoção dessas políticas sociais. Em seguida, serão relacionadas e descritas formas de investimento privado em áreas sociais, para nos posicionarmos frente à dimensão política do envolvimento das empresas com as questões sociais, em particular, na área da saúde, no Brasil contemporâneo.
O Projeto de Tese questiona o investimento social privado como outra forma de responsabilidade e solidariedade sendo estruturada no Brasil contemporâneo. Cabe, então, analisarmos o sentido real da solidariedade que move as empresas na promoção da saúde pública, em vista da nova questão social que se impõe em nossos tempos. Além disso, estaremos atentos para a direção que essas políticas sociais de financiamento privado apontam em relação à busca pela universalização dos direitos de saúde e cidadania.

3.As Empresas de Inserção no contexto europeu – problemáticas e desafios
Carlota Quintão, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal
carlotaquintao@hotmail.com

As Empresas de inserção entendidas como entidades organizadas segundo lógicas empresariais de produção de bens e serviços, e que visam a inserção de públicos desfavorecidos no mercado de trabalho, são uma das formas de empresas sociais mais estudadas em investigações internacionais. As empresas sociais são retractadas como formas inovadoras de resposta ao agravamento de problemáticas e necessidades sociais, como o desemprego e a exclusão social, dinamizadas por colectividades da sociedade civil, sobretudo a partir do final dos anos 70, e que assumem formas variáveis entre países e regiões. Analisando os casos de França, Bélgica e Itália, é possível identificar quatro tipos de EI’s: as que oferecem esquemas de emprego em situação de protecção face às regras de funcionamento do mercado de trabalho regular; as que oferecem oportunidades de trabalho numa lógica ocupacional ou permanente em organizações orientadas para a realização de uma finalidade de carácter social, distinta da inserção de públicos desfavorecidos, como por exemplo o ambiente; as empresas que oferecem esquemas de formação social e profissionalmente qualificantes em situação de trabalho real e que visam a transição das pessoas para o mercado de trabalho regular; e as que oferecem esquemas de emprego permanente e em situação de mercado concorrencial. Os seus principais desafios actuais são: a sustentabilidade económica, a profissionalização designadamente na área da gestão, a contribuição para a resolução de problemas associados ao estatuto e direitos dos trabalhadores em inserção, a construção de mecanismos de apreensão e mensuração do seu valor acrescentado (do capital social), a criação de mecanismos de articulação com o sector público, designadamente no âmbito das políticas de emprego e protecção social, mas também das políticas económicas, a manutenção de um espírito e cultura de empreendorismo social, entre outras.

4. Repensar a acção social: - direitos, solidariedade e oportunidades de negócio
José Falcão Reis, José Bernardo Keating ( Instituto de educação e psicologia-Departamento de Psicologia-Universidade do Minho)
josealbertoreis@hotmail.com

5. A dádiva e sua importância teórica para se pensar as relações entre Estado, mercado e comunidade
Paulo Henrique Martins (Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ; CNPq)
pahem@terra.com.br

Nesta comunicação pretendemos trazer para o debate sobre as relações entre Estado, mercado e terceiro setor a contribuição da escola francesa de sociologia, a qual se efetiva, sobretudo, pelo resgate do valor antiutilitarista da teoria da dádiva. Esta teoria, como se sabe, foi sistematizada por Marcel Mauss, sobrinho de Emile Durkheim e um dos fundadores da escola francesa de sociologia, num ensaio clássico intitulado Ensaio sobre a dádiva, publicado inicialmente no ano de 1924. Neste ensaio, apoiando-se nas colaborações de etnólogos, Mauss procurou demonstrar que os fenômenos do Estado e do mercado não são universais, não estando presente nas sociedades tradicionais e apenas aparecendo em sociedades mais complexas. Mas em todas as sociedades já existentes, tradicionais ou modernas, lembra Mauss, é possível se observar, ao contrário, a presença constante de um sistema de reciprocidades, de uma tríplice obrigação coletiva – de doação, recebimento e devolução de bens simbólicos e materiais de caráter interpessoal -, conhecido como dom ou dádiva que é universal, atravessando a totalidade da vida social. Se Lévi-Strauss explorou a contribuição de Mauss na perspectiva antropológica para explicar a lógica dos sistemas simbólicos nas sociedades primitivas, o valor sociológico da dádiva apenas aparece com clareza com a fundação de um movimento denominado MAUSS (Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais), na França, em 1981. Este termo tem propositalmente dois sentidos: um deles, homenagear Marcel Mauss, destacando seu lugar no panteão sociológico; o outro, divulgar o caráter antiutilitarista da teoria da dádiva e o potencial da mesma para uma crítica sociológica consistente à doutrina neoliberal, crítica que busca demonstrar que a ambição do pensamento utilitarista e econômico de colocar o mercado como variável central na construção da vida social é equivocada. A crítica maussiana é complexa, sendo amplamente divulgada nessas duas últimas mediante seminários, cursos e publicações não somente na França mas também em países como Suíça, Itália, Espanha, Canadá e Brasil. Como veículos de divulgação destacam-se nestas duas décadas, primeiramente o Bulletin du MAUSS e, a partir dos fins dos anos oitenta, a Revue du MAUSS. Apenas a título de apresentação, podemos situar sinteticamente alguns pontos importantes desta crítica: A) A sociedade moderna não é regida por uma única lógica mas por uma pluralidade de lógicas; nesta perspectiva pode-se avançar que enquanto o mercado é regido por um sistema de trocas equivalentes (dar-pagar), o Estado conhece um outro sistema de reciprocidades (receber-devolver), enquanto a sociedade civil é regida por um sistema de trocas não equivalentes: o dar-receber-retribuir. B) A lógica mercantil não é supérflua como foi pensado por certos setores da esquerda no século XX, tendo importância central para a existência da ordem moderna e para a liberdade individual; C) Mas é um erro imaginar que a lógica mercantil pode substituir o Estado o as práticas comunitárias e associativas na invenção do social; ao contrário, para objetivar o lucro e manter taxas crescentes de retorno o mercado necessita destruir o social; D) A invenção do social apenas ocorre a partir da solidariedade entre os indivíduos, isto é, a partir do risco de se tomar uma iniciativa espontânea de doação sem garantias de retorno e, igualmente, do risco de se aceitar desinteressadamente algo de alguém; esta iniciativa sempre incerta e paradoxal de doação, recebimento e devolução é conhecida como a aposta no dom, aposta na qual o valor da relação em si é tido como mais relevante que o valor das coisas ou dos usos; E) Mas para que esse sistema tradicional de trocas interpessoais que funciona adequadamente no plano das socialidades primárias (família, vizinhança, amigos, companheiros de empreitadas sociais como mutirões etc.) não apareça como sistemas de reciprocidades verticais não simétricos ( o sistema clientelista, por exemplo), faz-se necessário inventar uma ordem supra individual e legal que seja obedecida pelos participantes; neste sentido, o Estado aparece como instituição histórica fundamental para que se possa pensar a idéia da democracia solidária. Enfim, deve se registrar que Mauss não pensou a teoria da dádiva aleatoriamente, mas ela resulta de uma reflexão teórica articulada com o movimento associacionista francês nas primeiras décadas do século XX e, particularmente, com a busca de explicar porque as pessoas devem ter interesse (não apenas econômico mas também afetivo e político 0 de construir um espaço de autonomia, de liberdade e de solidariedade coletiva fora dos domínios do Estado e do mercado.

6. Controvérsia em torno de uma definição para o terceiro sector - a definição estrutural/operacional da Johns Hopkins vs. a noção de economia social
Raquel Campos Franco (Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica Portuguesa, Porto)
rcampos@porto.ucp.pt

Em paralelo com um sector público e um sector privado com fins primeiramente lucrativos é comum considerar-se a existência de um terceiro sector, diferente dos outros dois e muito diverso no seu interior. Não é um sector que reúna consensos, nem ao nível da sua denominação, nem ao nível da sua definição, o que gera diversos problemas, nomeadamente de afirmação perante os outros sectores como unidade, com reflexos, por exemplo, ao nível da formulação de políticas nacionais.
De entre várias denominações passíveis de serem encontradas na literatura sobre o terceiro sector, existem algumas dominantes, porque mais frequentemente utilizadas, como a de terceiro sector, terceiro sistema, organizações sem fins lucrativos, organizações da sociedade civil, economia social e mais recentemente também solidária.
A minha experiência na coordenação e execução da contribuição portuguesa para o projecto internacional comparativo do sector das organizações sem fins lucrativos (Comparative Nonprofit Sector Project - CNP), liderado pela Universidade de Johns Hopkins, no qual é parceira a Universidade Católica Portuguesa, através da Faculdade de Economia e Gestão, conduziu-me na fase inicial a uma reflexão sobre a questão da denominação do sector em Portugal, bem como a da sua definição no nosso país.
Como projecto comparativo que é, optou-se desde o início por uma única definição para o sector. Foi uma definição amplamente discutida entre os países integrantes da primeira fase do projecto, em 1991, (Portugal integra a 3ª fase), tendo evoluído ligeiramente desde então. É no entanto a definição seguida por todos os países no levantamento dos dados, por razões de comparabilidade internacional, que de outro modo se achou poder estar comprometida. Concerteza que na sua base encontraremos opções de ordem epistemológica que serão diferentes das encontradas por outros em projectos de igual ambição (veja-se o caso do Civicus Index).
A definição em questão é conhecida por definição estrutural-operacional, da autoria de Lester Salamon e Helmut Anheier e consiste num conjunto de características que as organizações terão que ter para serem consideradas organizações sem fins lucrativos, na denominação original do projecto, hoje “organizações da sociedade civil”. Assim, uma entidade para ser organização da sociedade civil terá que ser organização (formal ou informal), deve ser privada, não pode distribuir lucros, deve ser auto-governada e deve ser não compulsória (ou voluntária).
A definição adoptada no âmbito do CNP é a definição também hoje constante no Manual das Nações Unidas para a Conta Satélite das Organizações Sem Fins Lucrativos, projecto da iniciativa de uma equipa integrada pela Divisão de Estatística das Nações Unidas, e pelo Center for Civil Society Studies da Johns Hopkins University, entre outros participantes. Este manual, já apresentado no Eurostat e na Comissão Europeia, pretende colmatar a invisibilidade do sector ao nível do sistema de contas nacionais, uma das razões para a relativa invisibilidade do sector até ao presente.
A definição apresentada é alvo de controvérsia, sobretudo no contexto europeu que a apelida muitas vezes de tipicamente americana.
De facto a tentativa da sua aplicação em Portugal, na delimitação do âmbito do levantamento de dados, é mais um exemplo das dúvidas que tal definição normalmente levanta. O critério da não distribuição de lucros foi o principal foco da dificuldade inicial de delimitação do âmbito do estudo. As cooperativas e as associações mutualistas foram as organizações que em Portugal foram a principal razão para encetar conversas construtivas com a equipa norte-americana no sentido da razoabilidade da sua aplicação no contexto português. A solução encontrada, baseada numa detalhada análise do enquadramento legal, e na realidade da actuação deste tipo de instituições ao nível das organizações citadas, consistiu na utilização de duas definições potencialmente cumulativas. Uma, fiel à definição estrutural-operacional, que permitiu incluir, para além das organizações inequivocamente sem fins lucrativos, as cooperativas de solidariedade social (por lei impedidas de distribuir lucros) e as associações mutualistas sem caixas económicas anexas. De fora deste cenário/noção estreita de terceiro sector ficaram todas as outras cooperativas e as associações mutualistas com caixas económicas anexas (de que é exemplo o Montepio Geral), mas que irão ser consideradas num cenário/noção amplo de terceiro sector. O primeiro cenário garantirá a comparabilidade dos números nacionais com as restantes realidades já apuradas ao longo destes mais de 10 anos de projecto a nível internacional, o segundo cenário garantirá uma maior adesão à noção europeia e nacional de economia social.
A discussão em torno das definições é sem dúvida essencial, no sentido da procura de uma melhor e mais fiel descrição do sector, não podendo contudo ser um entrave ao avanço de iniciativas que numa lógia de melhoria permanente, pretendem contribuir para a crescente visibilidade de um sector que a merece.

7. Cordialidade e relações de ajuda nas fronteiras fluidas do Terceiro Sector
Eloísa Helena De Souza Cabral - Fundação Armando Álvares Penteado- FAAP – São Paulo- Brasil
elocabral@uol.com.br

A singularidade da contradição público-privado no Brasil se expressa, entre outras manifestações, no desafio de construção de um espaço público que dê conta da inserção do país no mundo globalizado e tenha a capacidade de refletir os aspectos graves que a questão social assumiu entre nós.
O Terceiro Setor, suas organizações e iniciativas na área de proteção social no Brasil, expressam materialmente estas condições como campo onde grupos sociais, dialogam seus interesses e expectativas, ao lado de políticas públicas sustentadas pelo Estado e de atividades providenciadas pelo setor mercantil.
A concepção de Terceiro Setor de Adalbert Evers, que o posiciona como zona intermediária e híbrida, entre o Estado, o mercado e a comunidade, permite que recuperemos, na localização estrutural do Terceiro Setor, os fluxos e tensões que emanam nesta situação fronteiriça.
No centro das tensões da comunidade, o traço definidor das relações sociais no Brasil foi apontado por Sérgio Buarque de Holanda com o conceito de cordialidade. Este conceito possibilita unificar a apreciação das relações sociais e reconhecer aqueles aspectos contraditórios na expressão de uma identidade historicamente construída e desenvolvida em uma sociedade dominada por questões sociais, decorrentes da exploração e do elitismo desbragados. Possibilita, ainda, examinar como a cordialidade alija a questão social da esfera pública e da intervenção imediata, responsável e autônoma de atores sociais, condenando à marginalidade o processo de construção do espaço público. Os elementos corporativos, assistencialistas e clientelistas encontram neste ambiente os ingredientes necessários para sua expansão sobre o caráter público.
Em Portugal, Boaventura de Sousa Santos examinou o conceito de sociedade providência para tratar as redes de relacionamento, ajuda mútua e vizinhança, identificando relações positivas (reciprocidade, altruísmo) e conjunções negativas (paternalismo, discriminação) neste arranjo. No Brasil a cordialidade sujeita o vínculo jurídico à relação pessoal, confundindo instâncias de subordinação e desenvolvendo estruturas que padecem das síndromes previsíveis, mas apresentam determinadas formas de prevalência do particular, acessível ao toque do indivíduo sobre a norma abstrata, que apresenta uma certa tendência à humanização do direito.
No que concerne à transmissão deste processo às organizações do Terceiro Setor, suas manifestações podem ser empiricamente verificadas. Na revalorização do Terceiro Setor, em curso no Brasil, estão postos desafios de sustentabilidade, representatividade e efetividade, de modo que a consideração da cordialidade e seus condicionantes devem estar presentes na perspectiva do pesquisador. O exame, no Brasil, das redes de ajuda, dos compromissos familiares e da informalidade na proteção, pode, sem dúvida, conferir à compreensão deste campo híbrido, a capacidade de recolher aspectos importantes para o processo de sua revalorização.

8. Solidariedades sociais e novos desafios: uma alternativa viável para as estratégias de mitigação aos impactos do HIV/SIDA nas zonas rurais em Moçambique?
Teresa Cruz e Silva, Centro de Estudos Africanos/Universidade Eduardo Mondlane, Maputo-Moçambique
tcsilva@zebra.uem.mz

Depois do fracasso do sistema socialista introduzido com a independência do país (1975), em meados da década de 80 Moçambique inicia um processo de transição para uma economia de mercado capitalista. A subordinação do Estado aos programas de reajustamento estrutural e o consequente programa de reformas introduzido no país tiveram efeitos directos no peso das politicas sociais no orçamento do Estado e erodiram a sua capacidade de contrariar os impactos das politicas neoliberais. Estas mudanças acontecem num período em que o país atravessa uma grave crise económica e social, agravada pelo recrudecismento da guerra e das calamidades naturais. A década de 80 corresponde também a um período de crescimento de níveis alarmantes de HIV/SIDA, nos países da região Austral de África. Em Moçambique, a situação conjuntural e a consequentes estratégias adoptadas pelo governo levaram à parcial ´invisibilidade´ do HIV/SIDA, e a uma relativa ‘insensibilidade política’, para fazer face a esta situação.
O alastramento do HIV/SIDA no país, seguindo as tendências regionais, pelos níveis atingidos, é hoje considerado um problema de segurança nacional e regional, estando hoje no centro das preocupações e desenho de estratégias comuns para a sua prevenção e mitigação.
Tomando como ponto de partida: i) o facto das famílias rurais moçambicanas, gerarem 80% dos seus rendimentos directamente a partir da agricultura; ii) a maioria da produção agrícola familiar ser garantida por mulheres; iii) os níveis crescentes de propagação do HIV/SIDA no país, e iv) o facto de vários estudos terem provado uma maior vulnerabilidade da mulher à contaminação pelas DTS e HIV/SIDA, este artigo procura questionar até que ponto os sistemas ´tradicionais´ de assistência mútua e as estratégias de sobrevivência accionadas em situações de crise económica e social poderão reajustadas e utilizadas como alternativa viável, nas iniciativas para prevenir e mitigar os impactos do HIV/SIDA sobre as populações rurais.
Depois de uma introdução que pretende contextualizar brevemente o período que estamos a tratar, o artigo faz um breve balanço sobre as políticas sociais públicas e as experiências existentes em Moçambique sobre solidariedades sociais, para depois as confrontar com os desafios presentes, incluindo a ameaça provocada pelo HIV/SIDA e as doenças endémicas, e em jeito de conclusão tenta problematizar a realidade estudada em função dos desafios sociais, políticos e simbólicos em jogo.

9. Quanto vale o capital social? o papel das redes informais na provisão de recursos
Sílvia Portugal (Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra)
sp@fe.uc.pt

A comunicação apresenta alguns resultados de uma pesquisa empírica que procura estudar o papel das redes de relações sociais das famílias no acesso a diferentes recursos. Foram realizadas 60 entrevistas em profundidade a homens e mulheres com idades compreendidas entre os 24 e os 34 anos, vivendo em situação de conjugalidade, com ou sem filhos.
Procura-se analisar o papel das redes sociais no acesso a 3 tipos de recursos diferentes: o emprego, a habitação e os cuidados de saúde. Identifica-se para cada um deles a morfologia da rede, a sua composição e orientação, o tipo de laços activados.
Discute-se, por um lado, a articulação do capital social com outras formas de capital, e, por outro lado, a articulação entre Estado, família e mercado na provisão de recursos. Destaca-se: 1) a centralidade das redes informais na provisão de recursos às famílias; 2) a diferenciação dos laços activados e da morfologia das redes consoante o recurso que está em jogo e 3) o modo como a configuração das redes e o seu papel na provisão de recursos se articula com determinadas variáveis estruturais.

10. As Políticas Públicas e os Espaços Híbridos de Participação e Deliberação: As Possibilidades e os Limites dos Conselhos de Política Urbana em Belo Horizonte/Brasil
Maria De Lourdes Dolabela Pereira, Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil
mldolabela@uol.com.br

A descentralização política e a reforma constitucional de 1988, ensejaram modificações nas práticas das políticas públicas urbanas, principalmente, no que se refere ao deslocamento dos centros de decisão e à multiplicação de atores e interlocutores, bem como, à introdução dos novos dispositivos legais e inter-institucionais. Amplia-se, assim, a participação das comunidades na elaboração, discussão, fiscalização e, por vezes, decisão sobre a execução das políticas de planejamento e desenvolvimento social urbano. Temos, nesses casos, a adoção de “órgãos híbridos”, uma nova forma institucional que envolve a partilha de espaços de deliberação entre representações estatais e entidades da sociedade civil. Esse é o caso dos “conselhos de política”, que instituem as parcerias entre o Estado e a sociedade civil como forma de gestão no âmbito das políticas públicas, sobretudo, nas áreas de habitação, de preservação de patrimônio, de meio-ambiente, das políticas sociais e da capacitação de mão-de-obra, mas também, na polícia e na justiça (PEREIRA, 2002:1).
No caso específico dos conselhos de política urbana em Belo Horizonte desenvolvemos um survey com o objetivo de conhecer o funcionamento dessas instituições. A aplicação desta metodologia nos permitiu perceber com objetividade as desproporções e diferenças entre representantes técnicos, dos empresários e aqueles dos setores populares, além de indicar no espaço compartilhado do conselho as representações e representantes com maior influência nos debates e decisões, demonstrando com clareza o quadro de poder e/ou hegemonia presente no funcionamento político dos mesmos.

11. Ambiguidades das políticas sociais contemporâneas: a participação sem participantes
Fernando Ilídio Ferreira (Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, Portugal
filidio@iec.uminho.pt

A “questão social” tem assumido grande destaque nas sociedades contemporâneas. Desde os anos 80 que se tem assistido a uma profusão de políticas, programas e projectos, à escala nacional, supranacional e local, colocando o “social” entre as prioridades do discurso político. O “rendimento mínimo”, os projectos de luta contra a pobreza e a exclusão social, as comissões de protecção de crianças e jovens, a rede social, etc. são disso exemplo. Não estamos, todavia, perante um fenómeno novo. A “questão social” surge nos finais do século XIX, relacionada com o era considerado na altura os disfuncionamentos da sociedade industrial nascente. Embora já se colocasse antes nas sociedades pré-industriais da Europa Ocidental, em termos de políticas de luta contra a mendicidade e a vagabundagem, é com a emergência da sociedade industrial que se dá conta de uma forma de miséria que acompanha o desenvolvimento da riqueza e o progresso da civilização. Porém, a partir de meados dos anos 70, num contexto ligado às transformações mais amplas da sociedade industrial-salarial e do Estado e ao fim da visão optimista do progresso, emerge uma nova forma do social – a “nova pobreza”, nos anos 80, e a “exclusão social”, nos anos 90 – que toma o lugar da “inadaptação” e do “handicap” característicos dos períodos anteriores. Como diz Autès (1999), se antes a acção social era a “ambulância” para os excluídos do crescimento, a partir dos anos 70/80 ela tornou-se o “carro dos bombeiros” para apagar os incêndios provocados pela lógica neoliberal que rompe com as regulações e as protecções do Estado social.
O aparecimento de uma “nova questão social” introduz mudanças nas formas de intervenção, quer em termos de objecto – o território mais que os indivíduos – quer em termos de estratégia – produzir a norma, através das “políticas de inserção”, mais do que gerir os desvios. As políticas públicas deslocam-se do nível nacional para o nível local, considerando-se este, agora, o palco da acção social territorializada. O que é visado através das políticas e dos dispositivos territorializados é o retorno do social à sociedade civil, fazendo apelo a um espírito de concertação e parceria; à acção local e coordenada. As políticas e os dispositivos territorializados visam assim uma população específica, localizada, e põem em prática acções inter-institucionais e inter-profissionais, quer no plano nacional, quer no plano local. A palavra de ordem destas políticas é a “implicação”: implicação no trabalho, na procura de emprego, no seu percurso de inserção, no seu projecto de formação, etc. (Nicolas-Le Strat, 1996). Este “implicacionismo” constitui-se, assim, nas nossas sociedades, como uma tecnologia política incitativa de participação-implicação, configurando um novo paradigma político que reformula a questão da dominação e do controlo social. O ideal participativo torna-se quase directiva nacional, embora num contexto em que já não há militantes que o alimentem (Ion, 2000). Convertido em simples técnica, o ideal participativo tornou-se omnipresente nos discursos de política mas ausente do terreno, gerando-se deste modo um fenómeno de participação sem participantes.
Com base em trabalhos de investigação de âmbito de doutoramento (Ferreira, 2003), analisam-se esta e outras ambiguidades das políticas sociais contemporâneas, nomeadamente as inerentes à nova contratualização liberal individualista (Santos, 1998). Procurando-se elucidar os efeitos destas políticas no plano da acção concreta, serão apresentados, a par da reflexão teórica, dados empíricos de uma pesquisa etnográfica realizada num concelho rural do Norte de Portugal, a qual revela, entre outras ambiguidades, uma tensão entre a “ajuda” e o “controlo”, que está presente na acção quotidiana dos trabalhadores sociais.

12. Novas interlocuções na sociedade brasileira
Leilah Landim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
landim.leilah@wanadoo.fr

Levando em consideração o contexto das transformações contemporâneas nas relações entre o Estado e a sociedade – onde questões referidas ao bem-estar social ocupam lugar de destaque – esse trabalho desenvolve-se tendo como foco central dinâmicas que ocorrem no plano da sociedade.
Seu objeto empírico é o terreno associativo voltado para formas diferenciadas de ação social que, como tem sido sugerido por literatura sociológica recente, vem crescendo, ganhando visibilidade e se reposicionando em termos social e político, com conseqüências significativas materiais e simbólicas, nos mais variados contextos nacionais - e também, de forma particularmente intensa, no Brasil.
Especificamente, as questões analisadas dizem respeito às inéditas interações em determinados espaços que se vêm construindo, nos últimos anos, na sociedade brasileira (como os foruns e os conselhos), colocando-se em comunicação antigas e recentes formas associativas, com seus agentes de origens e trajetórias diversas os quais, consequentemente, trazem para a cena pública diferentes concepções, valores e crenças referidas à ação contra a pobreza, à participação social e política, às relações entre Estado e sociedade, ao catálogo de direitos e deveres de cada um (associações de origem religiosa, ONGs, sindicatos, institutos de investimento social empresarial etc.).
Pode-se indagar se a dinâmica implicada nesse convívio mais intenso entre diversos credos, interesses e projetos – que em geral jamais se haviam comunicado - traz consequências, e quais consequências, em termos da criação e transformação de alianças e redes sociais, assim como na renovação do imaginário e da gramática política na sociedade brasileira. Que interpretações são produzidas, que valores se fazem circular, que identidades se redefinem nesses processos que se dão recentemente no espaço público ?
O trabalho discute essas questões a partir de resultados ainda preliminares de pesquisa em curso de duas situações : a instalação do Forum Fluminense de Segurança Alimentar e o processo de « consulta à sociedade civil » para a elaboração do Plano Plurianual do atual governo, ambos em 2003.


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