Cartografia e cultura: os territórios das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos (Universidade de Brasília)
quilombo@unb.br

O mapeamento dos remanescentes de antigos quilombo realizado no território brasileiro, foi desenvolvido dentro do Programa das Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil com apoio institucional da Comissão Nacional do referido Programa (Ministério das Relações Exteriores) e de parcerias entre A Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, a Mapas Editora & Consultoria e da Universidade de Brasília. Esse trabalho, busca contribuir efetivamente, com informações geográficas para auxiliar na construção de um novo perfil das culturas africanas e do negro brasileiro na formação do país, que continua carecendo de investigação e de conhecimento. No Brasil, os remanescentes de quilombo, "mocambos", "comunidades negras rurais" ou "terras de preto", referem-se ao mesmo patrimônio cultural inestimável em grande parte desconhecido pelo Estado, pelas autoridades e pelos órgãos fundiários e de política agrícola oficiais. Se configura, portanto, a necessidade de recuperação e resgate dos fragmentos de informações geográficas, sobretudo, do que está acontecendo na espacialização dos remanescentes de quilombo no Brasil, como ferramenta básica para subsidiar o planejamento de programas de desapropriação desses espaços e ações nas áreas de saúde e educação, principalmente. Dessa maneira, o trabalho apresenta uma caracterização da distribuição espacial dos remanescentes de quilombo no território brasileiro. A base informacional, que é um aspecto estrutural da pesquisa, foi organizada com dados do Mapeamento Preliminar dos Remanescentes de Quilombo do Brasil realizado por Anjos (Ministério da Cultura - Fundação Cultural Palmares, 1997) e informações coletadas em 1998 e 1999 junto a organismos oficiais, principalmente nas Procuradoria Geral da República de cada unidade política do Brasil e, também, nas entidades negras representativas, particularmente, o Movimento Negro Unificado (MNU). O processo de mapeamento dos dados obedeceu a dois procedimentos estruturais: inicialmente, as informações coletadas (basicamente, o nome da comunidade e o município de ocorrência) foram introduzidas nas planilhas de dados EXCEL, possibilitando a migração entre os sistemas Macintosh e PC; num segundo momento, o processo de mapeamento utilizou a divisão municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1997 como referência espacial e para manipulação dos dados espaciais e construção preliminar dos documentos cartográficos, o Sistema de Análise dos Municípios Brasileiros Agregados para o Ano 2000 (SAMBA 2000) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essas informações foram manipuladas no software CABRAL 1500 (Phillipe Waniez, 1996) que possibilita representações quantitativas e qualitativas, saídas gráficas e apresenta várias funções de um Sistema de Informação Geográfica (SIG).
O estudo apontou que a questão dos remanescentes de quilombos no território brasileiro não pode ser tratada com ações episódicas, pontuais e nem envolvida por conflitos de atribuições institucionais. As vitórias localizadas não refletem um plano de ação com premissas e parâmetros de curto e médio prazos, explicitando, principalmente, quantos sítios serão beneficiados, em quanto tempo e com que recursos. O Banco de dados dos registros das comunidades remanescentes mostrou 848 ocorrências. As maiores ocorrências encontram-se concentrados nos Estados da Bahia (250), no Pará (196) e no Maranhão (163). Destacam-se, também, os remanescentes de quilombo de Sergipe (23), do Ceará (20), de Alagoas (17), de Pernambuco (16) e do Rio Grande do Norte (15). Esse fato espacial revela a importância da Região Nordeste e do norte do país na compreensão da expansão e concentração dos remanescentes de quilombo no país, assim como, reafirma a relevância desses Estados no resgate de identidade e na construção de uma memória relacionada à cultura afro-brasileira. Outro segmento importante do trabalho é a Exposição Cartográfica Itinerante: Territórios das Comunidades Remanescentes de Antigos Quilombos no Brasil, inaugurada em maio/2000 que está viajando pelo país na proposta de dar visibilidade espacial para esses territórios. Outra contribuição do trabalho constituí as publicação das obras: Territórios das Comunidades Remanescentes de Antigos Quilombos no Brasil, com toda a documentação cartográfica da pesquisa e a Coleção África-Brasil: Cartografia para o Ensino-Aprendizagem, que está formado por um conjunto de dez mapas para auxiliar o professor a transmitir informações sobre a Geografia da África e conteúdos afro-brasileiros. O estudo tem como premissa que as informações por si só não significam conhecimento, entretanto, temos uma referência de que ao revelarmos a distribuição espacial e as configurações resultantes dos sítios dos remanescentes, estamos colaborando, com o auxílio da tecnologia, para ultrapassar as políticas pontuais e cosméticas do Estado e subsidiar a adoção de medidas estruturais de ação afirmativa na institucionalização das suas terras.

 

Cinema e liberdade em Angola: uma incursão no olhar de Antonio Ole (1975-1980)
Kelly Cristina Oliveira de Araujo (universidade de São Paulo)

O cinema em Angola começou a sua trajetória ainda no período colonial. Para além dos filmes realizados pela "Cinangola", agência criada nos últimos anos do colonialismo, com o objetivo de produzir filmes publicitários e de informação, havia ainda uma pequena produção cinematográfica que partia de militantes da causa da luta de libertação no exterior - um caso exemplar é o de Sarah Maldoror, originária de Guadalupe, que era casada com Mario Pinto de Andrade, alto dirigente do MPLA - Movimento Popular pela Libertação de Angola - e estava igualmente engajada no contexto da luta. Sarah, com apoio do Movimento, realizou dois filmes, nomeadamente Monangambee, de 1969, e Sambizanga, de 1972.
Logo após a independência de Angola, a 11 de novembro de 1975, Antonio Ole nos relata que as preocupações recaíram sobre a procura pelo registro político, mas também pela afirmação da idéia de "autor". Conta-nos ainda que sua preocupação pessoal consistia em registrar as relações na margem, ou no limite, entre o asfalto e a terra batida, bem como buscar elementos da tradição oral por todo o território angolano, sem a preocupação de realizar um "cinema antropológico", mas com o intuito maior de não deixar se perderem alguns aspectos culturais do país.
Os primeiros filmes foram realizados com parcos recursos, uma vez que a estrutura portuguesa havia sido desmantelada, o que exigia uma rápida capacitação de pessoal e aquisição de meios técnicos. Neste momento a seguir à independência, optou-se pela realização de um "cinema direto" - para o qual se dispunha apenas de um realizador, um operador de câmera, um operador de som e um assistente. O "cinema direto" era, nas palavras de Antonio Ole, um "cinema ligeiro", que teve grande projeção na França no início da década de 1970, e tinha como característica principal não precisar de uma indústria cinematográfica para realizá-lo. Este aspecto era que os movia a fazer cinema mesmo com poucos recursos - os realizadores recebiam uma sinopse e logo em seguida saiam às ruas para filmar: já estavam fazendo cinema.
Ole, como artista múltiplo que é, atuando ainda nas artes plásticas e fotografia, via no cinema um "processo de expressividade criativa" para aqueles dias de efervescência que se seguiram à independência. Formou-se, ainda em 1975, a primeira "célula de produção", como foi denominado cada grupo de trabalho no âmbito da TPA, Televisão Popular de Angola, para produzir uma série de cinco documentários co-realizados sobre o trabalho operário em Angola, denominado "Sou angolano trabalho com força" (1975), parte da Coleção Resistência Popular. Podemos refletir a partir da realização deste documentário, sobre a necessidade de afirmar que havia bases reais para o discurso "A agricultura é a base. A indústria, o fator decisivo", uma vez que muitos dos filmes eram demandas de uma agenda criada pela televisão estatal, que dava ao cinema um cunho didático, um papel educador, naquilo que tangia as tendências político-ideológicas do Estado da Angola independente, então alinhada com o bloco socialista soviético.
Neste trabalho pretendemos analisar a trajetória cinematográfica de Antonio Ole, durante os primeiros cinco anos que se seguiram à independência de Angola, com o intuito de melhor compreender a importância atribuída ao cinema no que respeitava ao resgate cultural, ao ensinamento político e à construção de um sentimento nacional.



Tentativas de criação de uma comunidade Lusófona.
Vivina Amorim Sousa (Universidade do Porto)
vinaitaly@hotmail.com

Esta comunicação discute a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em 17 de Julho de 1996, como o culminar de uma longa busca pela unificação dos países de língua oficial portuguesa. As intenções da criação de uma comunidade luso-brasileira-africana são um sonho acalentado por Portugal, desde a independência do Brasil. ,

Portugal não aceitava a ideia da perda da sua grande antiga colónia, ja que o Brasil era o eldorado dos emigrados portugueses e um dos grandes subsidiários da economia portuguesa. Prova disto era que a balança comercial entre os dois países no fim do século XIX e início do séc. XX era sempre favorável a Portugal . Sobretudo Portugal contava com um sentimento de que o Brasil era o seu país irmão, tendo as afinidades necessárias para se afirmar uma comunidade recíproca entre os dois países, afinal a colónia portuguesa no Brasil era realmente significativa para a economia portuguesa e a manutenção dos laços e transmissão da cultura portuguesa no Brasil. Não podemos deixar de observar que os países africanos entravam na formação da comunidade porque pertenciam ao Império.

Para não perder os laços com sua antiga colónia, Portugal passou a defender a ideia da criação de uma comunidade luso-brasileira que englobava suas colónias em África, formando assim uma grande comunidade económica de países de língua portuguesa. Esta proposição, para tentar convencer o Brasil da utilidade que poderia ter a criação desta comunidade, era acompanhada pela ideia da criação de um porto seco em Lisboa, aclamada "Porta para a Europa". Expressão esta utilizada até hoje em discursos de ambos os países, como a do Primeiro Ministro português em visita resente ao Brasil "Os grandes empresários brasileiros já entenderam que é uma grande vantagem aceder ao maior mercado do mundo que é a União Europeia e que podem atingi-lo através de Portugal" ; discurso semelhante ao que se fazia no inicio do século.
A teoria do porto seco de Lisboa baseava-se que o Brasil deveria reunir seus produtos tropicais com os produtos oriundos da Africa e comercializarem conjuntamente na Europa, através do Porto Seco de Lisboa . O objectivo maior era a implantação de um entreposto comercial em Portugal para os produtos vindos de África e do Brasil. Não deixava de ser o antigo pacto colonial travestido de um pacto de comunidade e que continha a ideia de fazer Portugal o centro distribuidor dos produtos tropicais.
E importante situar historicamente estes factos, pois a busca por formar união bilaterais ou multilaterais entre os países estava muito em voga nos fins do séc. XIX e início do séc. XX. Muito discutia-se sobre a unificação entre os países europeus para evitarem possíveis conflitos, e os benefícios económicos da criação de uma comunidade pan-americana, com uma possível união da Espanha com países da América de língua espanhola; a doutrina Monroe, com a pertinência do slogan "América para os americanos" dentre outros. "O mundo de amanhã verá formarem-se federações de Estados, grandes agrupamentos baseados sobre uma comunhão de interesses económicos e políticos e sobre uma comunhão de origem étnica, de língua, de religião."



Reflexões Pós-Freyreanas sobre armadilhas da etnicidade
Amauri Mendes Pereira (Universidade Cândido Mendes)
amendes@candidomendes.edu.br

I - A pesquisa de Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, sobre a gênese e características dos povos africanos que foram para cá transladados, talvez tenha alcançado o limite do que era possível no momento em que ele escrevia. Preocupação semelhante não tem ocorrido. Baseado, então, em intervenção do Prof. Fernando Albuquerque Mourão (1974), professor do Departamento de Antropologia da USP e reconhecido conhecedor de África discuto o desinteresse de cientistas sociais brasileiros pelas novas descobertas e abordagens na historiografia do continente africano, ao meu ver importantes para teorizar com mais consistência sobre a formação social brasileira. Penso que tais conhecimentos poderiam contribuir para a elucidação de questões referentes aos conflitos e diferentes processos sociais e culturais que historicamente envolveram as relações entre brancos e negros, no Brasil. São muitas as leituras que tais aprofundamentos podem nos dar sobre etnicidade.
II - A partir de uma postura defendida por Guerreiro Ramos (1957) - a recusa ao "lugar social" (folclorização, etnicização), da população negra - identifico uma complexa situação que vem se desdobrando no âmbito dos chamados Estudos Afro-Brasileiros, qual seja, a ausência, o menosprezo, ou a pouca atenção dos cientistas sociais à produção teórica e ideológica geradas no âmbito do Movimento Negro. Este sendo concebido como expressão (certamente não a única) das ansiedades dos negros brasileiros.
A relação entre os pensamentos de Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos pode ser uma boa metáfora do que pretendo refletir nessa parte do trabalho: Ao passarem pelo primeiro em sua formação, os cientistas sociais deparam, e em geral se rendem, às fontes e às categorias fundadas na etnicização e na noção de síntese cultural que a excelência da obra de Freyre consagrou - lateralmente, transversalmente, profundamente, mas sempre nelas, vão trabalhá-las, adiante, na composição de outros objetos de análise. Não haveria outras fontes e novas abordagens e linhas de pesquisas históricas e antropológicas, úteis ao avanço no desvendamento do "mistério da sociedade brasileira", de que fala da Matta (1985)? O que revelariam sobre a propriedade e pertinência da etnicização e da síntese cultural, pelo menos como as formulou GF e continua sendo reproduzida?

Da Matta, que se desloca do pensamento de Gilberto Freyre, como que o circunscrevendo a um determinado momento teórico; e Coutinho, que o venera, são apenas dois exemplos da benevolência (quem sabe merecida?) que desfrutou (e ainda - quase - desfruta) o pensamento de Freyre. Ao invés de buscar pontos fracos para combatê-lo, estejamos à altura da magia com que, do alpendre da Casa Grande e impregnado da vontade de harmonia racial - uma representação antiga e sedutora da alma brasileira - construiu uma teoria sobre a identidade nacional e um paradigma para cientistas sociais e para uma sociedade inteira.

Para estarem à altura de GF, da sua representação, dos efeitos mais do que especiais da sua "viagem", cientistas sociais devem ajudar a trazer para a terra o estado de consciência do qual ele foi o mais destacado arauto. Através de variadas abordagens isso vem sendo feito, a sublimação da metafísica daquele pensamento, no sentido de instituir seus contornos físicos, concretos, identificando a justeza, os limites, os cenários da materialidade que assumem nas relações sociais, na hierarquização social, e, dentro dela, o papel da discriminação e das desigualdades raciais. Esse, me parece, nessa questão, um desafio crucial do nosso tempo.

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