Pluralismo médico: configurações estruturais, racionalidades e práticas sociais
Telmo Clamote (Escola Superior de Saúde Egas Moniz)

Este escrito pretende-se uma abordagem duplíce do conceito e realidade do pluralismo médico. Este pode ser simplificadamente entendido como uma situação estrutural de coexistência num espaço social determinado (geralmente, como com outros fenómenos sociais, centrado numa sociedade nacional) de práticas e concepções médicas diversas, que são remetidas pelos actores sociais (e em geral pela normatividade e institucionalidade desses espaços) a uma pertença a configurações médicas diversas. Nas sociedades ocidentais o cânone de entendimento do pluralismo médico parte da dominância institucional e normativa de um paradigma biomédico de concepção e organização de cuidados de saúde. Esta ortodoxia no campo de práticas de prestação de cuidados de saúde seria constituída num quadro de pluralismo médico, primeiramente pela permanência de tradições médicas populares em articulação com, ou apesar da, constituição de instituições médicas modernas com um alcance cada vez mais alargado na generalidade das sociedades modernas, particularmente com o desenvolvimento do estado providência. Em seguida, pelo contacto com tradições médicas por vezes mais sistematizadas que, por um espaço de mercado com os processos de globalização económica, e por um espaço comunitário, com os processos migratórios derivados de uma lógica de sistema-mundo, cada vez mais penetram, conquanto em modalidades diversas, os campos de prestação de cuidados de saúde modernamente organizados.
Este quadro ocidental de complexificação dos panoramas de pluralismo médico define este como uma realidade inexorávet sendo que a analitica das suas dinâmicas de constituição em configurações diversas, pela articulação diversa de diversas práticas e concepções médicas, muito pode ganhar pelo contributo de um olhar orientado pelo conceito de sistema-mundo, que articulado com uma leitura dos processos de globalização, cria um quadro analítico de grande diversidade, mas conceptualmente estruturado, para olhar o fenómeno genérico do pluralismo médico nas suas diferentes configurações societais.
No entanto, esse olhar pretende igualmente ser informativo quanto às possibilidades sociais de constituição de percursos terapêuticos heterodoxos (e ortodoxos também.. .) em determinadas configurações de pluralismo médico. Nesse sentido, pretende-se argumentar que só através de uma analítica paralela das lógicas de racional idade dita leiga é que se pode chegar a um entendimento adequado das configurações de pluralismo médico num determinado espaço social. Nesse sentido, é a partir das práticas leigas na organização de percursos terapêuticos específicos, a partir das possibilidades sociais constituídas pela existência de determinadas práticas e concepções médicas num espaço social, que se pode conceptualizar o que são as configurações de pluralismo médico de um espaço societal e quais as dinâmicas sociais que as atravessam. A abordagem do pluralismo médico não deve pois centrarse num proselitismo de proposições diversas quanto às delimitações da doxa nesse campo. Deve, isso sim, considerar a forma como a estrutura relacional dos lastros históricos que organizaram o contacto e cristalização de diferentes práticas e concepções médicas é na , por seu lado, contingência de cada momento histórico, actualizada nas práticas e concepções leigas, e é por referência a estas que se podem conceber as dinâmicas sociais genéricas de mudança nas configurações actuais do pluralismo médico em diferentes espaços societais.
É com esse olhar que se pretende discutir os cuidados que abordagens analíticas e normativas recentes que acompanham uma possível politização do campo de prestação de cuidados de saúde devem apresentar, na medida em que em regimes de proselitismo proposicional se possam sustentar imagens sociais de práticas e concepções médicas ortodoxas e heterodoxas desenraízadas dos seus substratos históricos de constituição, e das redes de práticas de reprodução ou transformação da configuração do seu pluralismo através da agência leiga. Estes são pois argumentados como os fundamentos fulcrais para a discussão presente e a inventar sobre a temática do pluralismo médico.


Práticas médicas, utilitarismo e humanismo
Paulo Henrique Martins (Universidade Federal de Pernambuco)

Nesta comunicação buscamos apresentar aos interessados uma reflexão sobre os perigos recentes de desumanização das práticas médicas face à ascensão de um movimento utilitarista e especulativo importante cujos efeitos nefastos foram agravados a partir da globalização. A desumanização implica dizer que os valores propriamente humanos passam a ser relegados a segundo plano por uma nova moral médica que valoriza prioritariamente o ganho econômico e a inovação tecnológica (que justifica novos poderes e mais lucros). Tais tendências desumanizantes se aceleraram com a entrada de capitais especulativos no campo médico e ,também, com a crise do Estado-providência, mas suas raízes se estendem a períodos anteriores, desde o nascimento da clínica médica, há dois séculos atrás (nascimento muito bem descrito por Michel Foucault). Deve-se lembrar, contudo, que semelhante processo desumanizante não ocorre de modo homogêneo a nível planetário, dependendo de como o efeito-global impacta os diversos contextos políticos nacionais. Assim, deve-se registrar - no lado contrário à desumanização - a existência de movimentos favoráveis à humanização das práticas médicas, podendo ser lembrado o SUS (Sistema Único de Saúde) no Brasil. As reflexões aqui esboçadas são uma amostra de uma pesquisa que durou cinco anos e que foi publicada num livro intitulado Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas (Editora Vozes, Petrópolis, 2003).

Saúde e bem-estar : o que significa 'viver saudável'?
Luísa Ferreira da Silva, Fátima Alves, Ester Vaz, Cristina Vieira, Aleksandra Berg, Tânia Silva, Fátima Sousa, Rudolph van den Hoven, Maria José Guerra, Clementina Braga (CEMRI Universidade Aberta)

A modernidade multiplica as oportunidades e força os indivíduos a fazer opções (Giddens,1990). O(s) risco(s) é parte integrante da sociedade moderna (Beck, 1998). A regulação social dirige-se às atitudes e às práticas por penetração das consciências individuais (Foucault 1976). A saúde é um recurso que os indivíduos devem promover, nomeadamente pela adopção de estilos de vida saudáveis e pela participação na vida da comunidade (WHO 1986). Os estilos de vida são 'modelados' pelo habitus de acordo com a posição na estrutura individual (Bourdieu, 1979). A vida moderna interiorizou o 'dever de saúde' (Herzlich et Pierret 1984).
A sociologia e a epidemiologia demonstram que os comportamentos de saúde variam com a posição socio-económica, a idade e o género (D'Houtaud, 1989; Blaxter, 1998). Os discursos sobre a saúde são também variáveis consoante as classes sociais (Calnan e Williams, 1991). A antropologia da saúde realça a especificidade das racionalidades leigas face à racionalidade científica (Massé, 1995).
A comunicação apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa de tipo qualitativo sobre o ponto de vista leigo sobre a noção de vida saudável e sobre as práticas quotidianas associadas à noção de saúde (consumo alimentar, prática de exercício, consumo de álcool e de tabaco, recuperação do lixo, prevenção da doença). A pesquisa, centrada nas lógicas que suportam os comportamentos, mais do que os comportamentos em si mesmos, revela a negociação íntima entre a informação dominante sobre os comportamentos correctos e os valores presentes na vida de todos os dias: trabalho e família, gosto e tradição, gosto e consumo. Aí se descobre o compromisso entre o dever de saúde e o pragmatismo da adaptação à realidade social, ou seja, como o habitus trabalha e é trabalhado pela agência.

A formação do psicóilogo e a manutenção do mito da neutralidade: o caso da reforma psiquiátrica
Maria Inês Badaró Moreira (Universidade Federal do Espírito Santo), Maristela Dalbello de Araújo (Universidade Federal do Espírito Santo), Angela Nobre de Andrade (Universidade Federal do Espírito Santo)
mibadaro@bol.com.br

No Brasil, o Ministério da Saúde (MS), ao propor uma política de saúde mental, afirma como meta a substituição do enclausuramento nos hospitais por uma assistência comunitária, apresentando como consenso a idéia de que o lugar mais adequado para tratar problemas de interação humana é exatamente onde eles acontecem. Ao mesmo tempo, sancionar sobre a reversão do sistema e redirecionar as verbas do MS para outra modalidade de atenção para os que convivem com a experiência da loucura, traz em si muitos questionamentos. A efetivação da Reforma Psiquiátrica requer agilidade no processo de superação dos hospitais psiquiátricos e a concomitante criação da rede substitutiva que garanta cuidado, proteção, promoção, prevenção, assistência e recuperação em saúde mental. Ações que potencializem a autonomia e a cidadania, superando a relação de tutela e as possibilidades de reprodução de institucionalização. Por outro lado, delineamos o percurso do Movimento da Reforma Sanitária e estruturação do Sistema único de Saúde côo uma possibilidade da saúde se tornar um direito e cidadania. Procuramos enfocar os princípios que sustenta as ações comunitárias por meio da estratégia do Programa Saúde da Família. Para que esse sonho se concretize teremos que superar muitos obstáculos, dos quais destacamos dois deles: os preconceitos sociais contra a loucura e a resistência dos setores psi, que tendem a encarar transformações como ameaça. Teremos também que suplantar a lógica do silenciamento da loucura, a dificuldade da escuta para além da simples descrição dos sintomas e a mudança na concepção de produtividade para além do quantitativo. Será necessário também resgatar o compromisso social dos profissionais de saúde e a dimensão transformadora deste compromisso. Portanto, é primordial articular uma visão crítica capaz de produzir novos fazeres. Para isso, faz-se necessário alterar substancialmente a formação dos profissionais que continuam sendo preparação para "as velhas práticas". Ou seja, as mudanças ocorridas no setor de saúde não podem continuar passando às margens da formação profissional dos psicólogos e profissionais de saúde brasileiros. É impossível manter-se em silêncio sobre essa questão nas agências formadoras de profissionais. O trabalho em questão constituiu-se como um estudo de natureza qualitativa, tomando como analisadores um serviço substitutivo de assistência mental e um programa de saúde da famílias. Optou-se por estar ouvindo os usuários destes serviços e analisando o conteúdo de suas imagens, valores, histórias e relações, além de proceder entrevistas com os técnicos e gestores sobre as mais diversas formas de violências ainda mantidas sob a égide da atenção psicossocial. Pudemos observar desde vestígios de um modelo dito anterior, que já deveria estar suplantado até a existência de práticas que podem ser configuradas como tão ou mais autoritárias que as do modelo ultrapassado, ainda que esculpida sob outras vestes. Pudemos finalizar o estudo, sinalizando como a formação tem papel fundamental na manutenção destas práticas, seja quando perpetua a noção de uma neutralidade científica, quando não impulsiona os novos profissionais a lançarem o olhar sobre suas implicações éticas e políticas e até mesmo quando fecha os olhos a um tecnicismo acrítico que, em nome do que é considerado melhor para o outro, faz manter em vigor as mesmas práticas da qual muitas vezes nos queixamos. Chamamos a tenção para a importância da formação em Psicologia voltar-se para esta problemática, contribuindo para a concretização cotidiana do postulado constitucional da "Saúde como direito de todos", lembrando o compromisso social da psicologia e o necessário engajamento dos psicólogos como parte dos profissionais de saúde e chamando-os a um protagonismo social que nos impõe a urgência de refletir sobre nosso lugar e nosso fazer como profissionais da saúde.

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