Sociedade civil e democratização dos espaços públicos: uma análise da experiência brasileira
Ivete Simionatto - Professora Titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. Dra. Em Serviço Social pela PUC-SP e Pós-Doutorado no European University Institute-Itália.
isimion@mbox1.ufsc.br

1 - Estado, nação, direito e democracia
2 - Movimentos sociais, direito e democracia
Um dos fatores determinantes da vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal em 2003 foi, sem dúvida o apoio de parcela significativa das organizações da sociedade civil e seu acúmulo político nas lutas pela ampliação da cidadania e pela radicalização da democracia. A movimentação social contra a ditadura militar e o restabelecimento da ordem democrática na transição dos anos 1970-1980 favoreceu o surgimento de inúmeros movimentos populares proporcionando a ampliação dos espaços de participação de diferentes organizações da sociedade civil que passaram a desempenhar papel fundamental no quadro socioeconômico e político do país. Essa trajetória histórica vem sendo potencializada pelo atual governo através de diferentes iniciativas e estratégias direcionadas ao fortalecimento das relações entre Estado e sociedade civil. Dentre estas, destaca-se a discussão do Plano Plurianual 2004-2007 com a sociedade mediante audiências públicas realizadas nos 27 estados da federação. A estratégia de realização desse processo de consulta foi articulada pelo Governo Federal e a Associação Brasileira de ONGs - Abong e Inter-Redes, com o objetivo de garantir "uma escuta forte" da sociedade civil organizada no tocante às propostas para o PPA. Tal iniciativa reveste-se de especial relevância, pois se apresenta como um espaço de discussão ampla das estratégias que orientarão as políticas e programas do governo para o próximo período.
O PPA constitui-se no instrumento de planejamento de médio prazo do Governo Federal e estabelece, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal, promovendo a identificação clara dos objetivos e prioridades do governo (...) O planejamento econômico e social, expresso no PPA 2004-2007, será feito com a participação tanto da sociedade brasileira quanto das varias esferas do Governo (...)".
A participação da sociedade através de suas formas organizativas é, sem duvida um elemento central acerca da "dimensão democrática" presente no documento, conferindo-se ao Estado nacional uma postura mais ativa no fortalecimento dos espaços públicos, na consolidação das organizações democráticas e populares, na ampliação das bases sociais sobre as quais se edifica a sociedade civil e na promoção da cidadania e dos espaços autônomos de exercício do poder (Torrens, 2003).
A "dimensão democrática" e a afirmação de uma nova postura do Estado, recorrentes no PPA que pareciam indicar uma clara diferenciação em relação à ótica neoliberal vigente nas duas últimas décadas, não se concretizou no primeiro ano do governo. O desenho de Estado articulado em torno da descentralização da gestão das políticas mediante a incorporação da participação cidadã e uma maior contribuição da sociedade civil ficou à margem, assumindo-se a continuidade da reforma centrada na lógica do ajuste e do custo.
As orientações econômico-politicas internacionais, especialmente do FMI e do Banco Mundial, reorientaram a agenda governamental mediante a continuidade da subordinação do social e das políticas sociais aos imperativos do mercado com intensa diminuição dos gastos públicos principalmente em áreas como saúde e assistência. A centralidade no enfrentamento da questão social e a ampliação das bases democráticas da sociedade brasileira, pilares do PPA são pontos que permanecem praticamente intocados acentuando os processos de exclusão social e o aumento da pobreza de imensos contingentes populacionais.~

"O que não temos e o que queremos": uma revisão do debate sobre cidadania no Brasil.
Julian Borba - Universidade do Vale do Itajaí
jborba@globalite.com.br

Resumo:
Um dos temas mais recorrentes no debate acadêmico e político contemporâneo se refere ao conceito de cidadania. As discussões vão desde a aceitabilidade ou não de certas formulações tipológicas sobre o surgimento e o desenvolvimento histórico da cidadania moderna (como a de Marshall, 1967), chegando até o debate sobre a questão da diferença, onde a cidadania estaria situada na perspectiva do reconhecimento das diferenças de sexo, raça, cultura, opção sexual, etc...(Souza Santos, 1996; Habermas, 1998; Costa e Werle, 1998; Galeotti, 1995).
Dentro deste contexto, as ciências sociais no Brasil, vem produzindo desde o início dos anos oitenta (não por acaso), uma grande quantidade de análises teóricas e empíricas sobre o tema da cidadania. De modo geral o debate nacional sobre o tema gira em torno de três eixos centrais: (1) "a cidadania que não temos" (Covre,1986; Santos, 1978; Demo, 1996), literatura que destaca os aspectos histórico-estruturais presentes na sociedade brasileira, e que são impeditivos da plena realização da cidadania no Brasil, surgindo aí conceitos como "cidadania regulada" e "cidadania tutelada". (2) Um segundo eixo de discussão em torno da cidadania no Brasil, refere-se aos avanços da Constituição promulgada em 1988 em direção à novas formas de participação política que estariam rompendo com a tradição de passividade do cidadão brasileiro e, conseqüentemente inaugurando um novo modelo de cidadania, agora "ativa". (3) Por último, derivado em grande parte do debate entre liberais e comunitaristas no interior da teoria política contemporânea, vem se realizando uma série de discussões em torno da cidadania como reconhecimento de diferenças (Costa & Werle, 1998; Reis, 1988; Reis, 1994).
Diante desta infinidade de material sobre a cidadania no Brasil, o presente artigo tem como objetivo apresentar os argumentos utilizados pelas três perspectivas mencionadas acima, as quais foram denominadas/organizadas na seguinte ordem: (2) a cidadania que não temos, (3) a cidadania que queremos I: ativa ou passiva?, e (3) a cidadania que queremos II: igualdade ou diferença? Na parte final (4) apresentaremos alguns elementos que consideramos fundamentais para o desenvolvimento do debate sobre a cidadania no Brasil (inspirados em grande parte na obra recente de J. Habermas). Gostaríamos de ressaltar que o presente artigo não tem a pretensão de fazer uma análise exaustiva da literatura sobre o tema da cidadania. Estamos mais preocupados em definir algumas linhas temáticas desta discussão, através de um cotejamento bastante preliminar e arbitrário, entre alguns autores.

 

A democracia e a crise da representação política: a accountability e seus impasses
Luis Felipe Miguel (Universidade de Brasília)
lfelipe@unb.br

Constatar a impossibilidade de formas diretas de democracia nas sociedades contemporâneas é algo banal. A democracia que temos hoje, o regime que aparentemente triunfou ao final do século XX, é necessariamente representativa - por conta da extensão dos territórios, do volume das populações, da complexidade das questões públicas, da profundidade das clivagens sociais. Mas a necessidade de representação coloca ao menos três problemas fundamentais, estreitamente ligados entre si, para a prática da democracia:
(1) a separação entre governantes e governados, isto é, o fato de que as decisões políticas são tomadas por um pequeno grupo e não pela massa dos que serão submetidos a elas;
(2) a formação de uma elite política distanciada da massa da população, como conseqüência da especialização funcional acima mencionada. O "princípio da rotação", crucial nas democracias da Antiguidade - governar e ser governado, alternadamente -, não se aplica, uma vez que a classe política tende a exercer permanentemente o poder; e
(3) a ruptura do vínculo entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes, o que se deve tanto ao fato de que os governantes tendem a possuir características sociais distintas dos governados quanto a mecanismos intrínsecos à diferenciação funcional, que agem mesmo na ausência da desigualdade na origem social, conforme Robert Michels tentou demonstrar já no início do século XX.
A resposta que as instituições democráticas tendem a dar para os três problemas é a mesma: accountability. Isto se refere ao controle que os poderes estabelecidos exercem uns sobre os outros (accountability horizontal), mas, sobretudo, à necessidade que os representantes têm de prestar contas e se submeter ao veredicto da população (accountability vertical). O ponto culminante da accountability vertical é a eleição - que, assim, ocupa a posição central nas democracias representativas, efetivando os dois mecanismos centrais da representação política democrática, que são a autorização, pela qual o titular da soberania (o povo) delega capacidade decisória a um grupo de pessoas, e a própria accountability.
As esperanças depositadas na accountability (vertical), no entanto, não encontram mais do que uma pálida efetivação na prática política. A capacidade de supervisão dos constituintes sobre seus representantes é reduzida, devido a fatores que incluem a complexidade das questões públicas, o fraco incentivo à qualificação política e o controle sobre a agenda.
Além disso, os tomadores de decisão são cada vez mais constrangidos por imperativos que partem de instâncias supranacionais, aí incluídos tanto organismos internacionais quando os detentores do capital. O sentido do controle popular fica comprometido quando parte significativa das decisões é determinada por entidades externas, não sujeitas às sanções determinadas pelo eleitorado, sejam elas organismos multilaterais internacionais (ONU, União Européia), agências de financiamento (FMI, Banco Mundial), grupos econômicos privados com forte poder de chantagem (o "mercado") ou mesmo Estados estrangeiros. Se tais organismos têm a capacidade de bloquear alternativas, resta pouco espaço para o exercício da soberania popular. Fica claro que o processo de globalização complicou o exercício da accountability, sobretudo nos países periféricos, que formam a ponta mais vulnerável da ordem globalista.
Nas últimas décadas, na maior parte dos países de democracia concorrencial, isto levou ao aumento do desencanto com os mecanismos representativos, sinalizado pelo aumento dos índices de abstenção eleitoral, pela erosão das lealdades partidárias e por manifestações de alienação. Diante desta situação, surgem - além de iniciativas de modificação do sistema eleitoral - propostas de transformação radical dos mecanismos representativos, que enfraquecem ou mesmo abolem a accountability.


Democracia participativa, limites e possibilidades: os Conselhos Gestores de Políticas Públicas em Curitiba
Nelson Rosário de Souza (Universidade Federal do Paraná)
nrdesouza@uol.com.br

O presente estudo sobre o Comtiba (Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de Curitiba), um conselho gestor de política pública, tem por objetivo realizar uma avaliação preliminar desta arena quanto às suas condições de funcionamento e ao seu significado político. Trata-se de fazer o contraste entre o avanço legal, institucional, da democracia participativa e as condições sociais da sua operacionalização, tendo como pano de fundo o jogo de forças que contrapõe as propostas neoliberais de reforma do Estado e as pressões pela formação de arenas participativas de deliberação sobre políticas públicas.
Primeiramente iremos descrever, o ambiente político de instalação do Comtiba, o perfil dos conselheiros e as características das entidades e segmentos representados na arena em foco. Com mais cuidado procederemos à análise sobre a dinâmica do processo decisório neste novo espaço de participação política lançando algumas comparações com outros conselhos da cidade. Particular atenção será dada ao padrão de atuação da administração municipal diante das inovações de uma legislação descentralizadora. O recorte circunscreveu duas gestões, ou seja, o período entre 1997 e 2001.

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