Deuses privados para fins públicos: altares da Guiné Bissau e o culto dos "irãs" em Portugal
Clara Saraiva (Centro de Antropologia Cultural e Social/ Instituto de Investigação Científica Tropical)

No seio da profusão de grupos provenientes dos países africanos que vivem e trabalham em lisboa, a comunidade guineense mantém uma forte coesão e efectiva uma continuidade de práticas que funcionam como num prolongamento do "tchon" original em "chão" português. Trata-se aqui de explanar e analisar o modo como a concepção do mundo de determinados grupos guineenses -designadamente Pepel e Mancanha-se actualiza fora do seu contexto original,nomeadamente através da recriação dos altares de "irã" e Das consultas que africanos e europeus fazem através dos "djambakós" (ritualistas religiosos) a essas divindades.


Catolicismo Popular, Pentecostalismo e Técnicas Corporais:
uma visão comparativa dos usos da prece em dois contextos religiosos
Marcia Contins (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)

Meu objetivo nesta comunicação é discutir os significados da "prece" em dois contextos religiosos distintos: no chamado "catolicismo popular" e no pentecostalismo. Para isto, focalizarei inicialmente as festas do divino espírito santo, no Rio de Janeiro, realizadas por imigrantes açorianos e brasileiros católicos, em diversos bairros dessa cidade. O ponto central da análise são as "novenas" que são realizadas durante os festejos, entre os meses de abril e junho de cada ano. Em termos comparativos, focalizarei, no caso dos pentecostais, os significados da prece entre os fiéis da Igreja Assembléia de Deus no Rio de Janeiro. Nesse contexto, a prece é percebida de uma forma individualizada e interiorizada, tornando-se cada vez mais um rito individual. As técnicas corporais, equipamentos e objetos materiais utilizados nesses dois contextos religiosos constituem-se em mediadores fundamentais entre os seres humanos, e entre estes e a divindade. Nesse sentido, mais do que a expressão de relações sociais e simbólicas, a prece tem uma função constitutiva nas concepções de pessoa, corpo e suas relações com a divindade. O ponto principal que quero discutir neste texto são as rezas que os devotos realizam, durante sete semanas, para o divino espírito santo. Levarei em conta para esse trabalho os dados que reuni principalmente junto à irmandade do Catumbi na Zona Norte do Rio de Janeiro. Estou considerando a "prece", basicamente a partir da discussão de Marcel Mauss (1974) sobre essa categoria. Para esse autor a prece é ao mesmo tempo um rito e uma crença. Ela consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados e também é um credo. A reza é ação e pensamento num mesmo momento religioso. A reza também é a utilização do corpo no sentido de uma técnica. Seguindo as sugestões desse autor, entendo "técnica" como um ato tradicional eficaz, que não difere essencialmente de um ato mágico, religioso ou simbólico. Em relação aos pentecostais podemos dizer que os ritos relacionados às orações são individualizados. O fiel fala diretamente com deus e pede a graça; é uma prece mental e interna. É possível dizer que a relação dos pentecostais com o espírito santo se processa através do indivíduo (o sujeito da relação é o indivíduo). O espaço, no sentido total (espaço do corpo, espaço moral, espaço físico, etc), é definido, entre eles, a partir de um conflito permanente entre o espírito santo e o demônio. Podemos pensar então em duas lógicas para percebermos as diferenças entre uma e outra experiência: no caso das festas do divino, uma lógica da conjunção, onde tudo está interligado de modo complementar (homens e deuses, vivos e mortos, homens e mulheres, ricos e pobres, etc). No caso dos pentecostais, uma lógica individualizante, onde se configura uma autoconsciência definida a partir de uma relação não ritualizada com o espírito santo. Para os pentecostais a relação com o espírito santo se dá diretamente, sem posições definidas no calendário religioso.

A mercantilização do sagrado: Um estudo sobre a estruturação de igrejas dos protestantismos brasileiros
Antonio Roberto Coelho Serra (Universidade Estadual do Maranhã)

A análise realizada por grupos de pesquisadores interessados em acompanhar as transformações em diferentes campos organizacionais tem evidenciado uma expansão da lógica dos negócios a campos organizacionais tradicionalmente distantes do mercado (CARVALHO, 2003; SILVA E CARVALHO, 2003, SOLÈ, 2003). O campo religioso parece não ter escapado à expansão desta lógica e, mostra sinais de abandono da racionalidade substantiva que parecia lhe caracterizar anteriormente e vir a abraçar crescentemente a racionalidade instrumental característica das organizações empresariais. Enquadrado no âmbito da Teoria das Organizações, o presente estudo elegeu a Igreja como objeto de investigação devido à sua influência ideológica, política e econômica na civilização ocidental e, também, à sua riqueza de manifestações organizacionais que refletem uma gama de diferenciações estruturais e culturais.
O protestantismo e, principalmente o pentecostalismo, passaram nos últimos cem anos, por mudanças radicais, diversificando, crescendo e dividindo-se. Em meio a tanta mutação, o número de correntes e de centros de propagação das idéias religiosas se expandiu com intensidade. Esta expansão parece ter provocado um comportamento diferente nas igrejas que parecem adotar estratégias empresariais de adaptação ambiental e luta por nichos de mercado. Cada vez mais, percebe-se igrejas atendendo às contingências ambientais, adaptando-se e fazendo concessões, modificando seu padrão de conduta, sua moral, sua identidade e principalmente seu modo de funcionamento para não sucumbirem na acirrada disputa do "mercado" religioso. O direcionamento das mudanças que ora se percebe pode ser interpretado e compreendido sob a ótica de influência da expansão da lógica de mercado e do uso da racionalidade instrumental em suas ações. Hoje os evangélicos, conforme apontam os dados do último censo populacional de 2000, estão em franca expansão, evoluindo de 9% em 1991 para mais de 15,4% da população brasileira atualmente. Deste total, 67,6% são de origem pentecostal, 27,4% pertencem ao protestantismo histórico e 5% de outros grupos evangélicos. Um outro dado interessante é que mais de 80% desta população vive em área urbana. Em parte esse avanço tem origem nos propósitos dos liberais, positivistas e republicanos, que defendiam a separação constitucional entre Igreja e Estado na segunda metade do século XIX, contribuíram para a redução da religião à particularidade das consciências individuais. Fato que gerou, em 1890, a laicidade do Estado e proporcionou a formação e expansão de um mercado religioso pluralista. Daí o conseqüente acirramento da concorrência nesse "mercado" acabou incitando seus agentes a empregar estratégias freqüentes no mundo dos negócios. A intenção deste trabalho é fazer uma análise das estruturas organizacionais percebidas em igrejas protestantes históricas em comparação às igrejas pentecostais e neopentecostais, para a partir daí, compreender o quanto há de influência da lógica de mercado, como base das transformações em suas configurações. Para tanto, pretende-se descrever os elementos que caracterizam a expansão da lógica de mercado no âmbito das igrejas protestantes analisadas; identificar e caracterizar as configurações organizacionais de igrejas protestantes de origem histórica, pentecostal e neopentecostal; associar as configurações organizacionais das igrejas evangélicas de diferentes origens aos elementos característicos da lógica de mercado.Trata-se de uma pesquisa qualitativa multicaso, onde se compara a configuração organizacional das igrejas evangélicas de diferentes origens no Brasil. As observações elaboradas propõem-se dentro de uma perspectiva descritivo-analítica, fazer uma avaliação longitudinal, com corte seccional, das instituições analisadas.

"Ele se está escondendo atrás da Bíblia": a conversão religiosa ao pentecostalismo no universo prisional
Eva Scheliga (Universidade Federal do Paraná)

Uma das "verdades" a respeito do universo prisional brasileiro - produzida sobretudo pelos funcionários do quadro técnico-administrativo das unidades penais - é a de que todos os detentos convertidos estariam "se escondendo atrás da Bíblia" durante o cumprimento de suas sentenças. Quer a declaração de uma opção religiosa, quer a participação em rituais religiosos seriam mecanismos utilizados pelo detento para simular uma identidade que o protegeria das "confusões da cadeia" e trar-lhe-ia benefícios, materiais sobretudo.
Em outras palavras, haveria neste contexto específico um significado adicional ao termo "salvação". Aqui, ela não estaria apenas ou exclusivamente referindo-se à "salvação da alma", como usualmente é entendida no universo religioso, mas também poderia significar a "salvação" do detento em relação aos perigos produzidos nesta situação de coabitação forçada - quais sejam: "acertos de contas" entre detentos, humilhações, privações materiais e da intimidade, abusos de autoridade por parte de funcionários e detentos.
Pesquisando a conversão religiosa às religiões de orientação pentecostal em duas unidades masculinas de segurança máxima do Departamento Penitenciário do Paraná (Brasil), obtive dados que problematizam esta "verdade". A instituição analisada em certa medida aceita e incentiva a presença de diferentes grupos religiosos nas suas unidades, muito embora conheça insuficientemente a dinâmica das atividades religiosas ali executadas. Entende-se que atividades religiosas (direta ou indiretamente) proporcionariam a "estabilidade" do presídio e auxiliariam a administração da rotina prisional e, especialmente, de seus conflitos.
Sem entrar no mérito da discussão sobre as diferentes motivações que impulsionariam a busca pelas "salvações", neste e/ou noutro mundo, parece-me interessante pensar que as conversões religiosas, em especial ao pentecostalismo, constituem ações significativas. O anúncio da conversão religiosa produz, assim, uma transformação significativa das representações sobre os detentos, o que altera as relações sociais e fronteiras simbólicas entre os diversos grupos que atuam no interior das unidades penais, sejam eles de detentos ou de funcionários. O pragmatismo da conversão religiosa, para os fins de minha pesquisa, não interessou: o fato de ser ela "verdadeira" ou "falsa", como classificam os funcionários de diferentes posições no quadro técnico-administrativo das unidades penais, foi secundário e surgiu apenas como um dos pontos de vista sobre a conversão religiosa - no caso, o ponto de vista da instituição penal.

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