Mudança social e "reencantamento religioso"; avanços e retrocessos na participação social do homo religiosus na sociedade brasileira contemporânea.
Ronaldo Cavalcante (Universidade Presbiteriana Mackenzie)

Nas mais de duas décadas de restrições políticas e negação dos direitos humanos mais básicos e fundamentais: alimentação, educação, saúde e habitação, gerando a fome e a miséria, especialmente nas áreas do norte e nordeste e nas periferias das grandes centros urbanos, formando bolsões de sub-humanidade e, ademais, ocasionando a destruição da classe média e o aumento indiscriminado e absoluto das diferenças sociais, produzindo ao final, por um lado, uma massa social de pessoas ausentes dos processos mínimos de cidadania e dignidade humanas e por outro, uma minoria de "privilegiados" detentores dos meios de produção. Após isso, o Brasil viu florescer, exatamente como resposta a tal situação social e economico-política, as "válvulas de escape" e as rotas alternativas que buscavam resgatar a dignidade humana perdida nos porões da ditadura militar. A religiosidade até então, ainda dependente da visão tradicional, singular e monolítica, se aventurou nas novas formas de experiência do "sagrado" - hoje, testemunhamos uma surpreendente "invasão religiosa" multifacetária, sem precedentes na história brasileira. No entanto, tal fenômeno, ainda que seja uma espécie de "reencantamento", se inscreve numa categoria ainda mais abrangente: a Secularização. Portanto, além da importante e esclarecedora leitura sociológica que se pode fazer do fenômeno brasileiro e que de fato têm sido encetada pelos segmentos tradicionais mais ilustrados do catolicismo e do protestantismo bem como pelos meios acadêmicos universitários; questiona-se acerca do que se poderá fazer tais sujeitos para que uns e outros atuem como construtores de uma nova realidade social e assim aportar algo com a necessária relevância social? Talvez um esforço ecumênico, no caso de católicos e protestantes, possa, ademais dos esforços atuais do governo, contribuir de maneira direta à erradicação e redenção dos males congênitos de nossa história e que continuam como uma sombra em nossa dura realidade. Parte-se do pressuposto hermenêutico, a partir das reflexões clássicas da sociologia da religião, mormente Dukheim e Weber, acerca da religiosidade inerente à sociedade e da religião como força cultural integrante e portanto, passível de ser analisada com o objetivo de se entender a dinâmica social. Nesse particular, pode-se falar em termos da atualidade brasileira, em um verdadeiro "reencantamento" de práticas e crenças religiosas populares buscando, por meio da diversidade de alternativas de religião, a dignidade social perdida e agora reencontrada na intensificação comunitária tanto quanto na elevação do indivíduo. Nesse sentido, percebe-se a incidência de uma religiosidade, se por um lado, embriagada pela "posse" do sagrado e pela mística da absorção divina, por outro, a nova religiosidade contempla de forma inusitada a participação nos mecanismos da sociedade para a promoção humana. Em outras palavras, nota-se que o enriquecimento da identidade individual e de grupo pelos caminhos da vertente religiosa, de alguma forma, tem contribuido para a construção de uma cidadania mais plena. Muito embora ainda prevaleça a tendência alienante nos "guetos" isolados da experiência religiosa e que está frequentemente traduzida nas posturas de legalismo e fundamentalismo e que significa uma volta aos padrões medievais de conduta e de vigilância e que eliminam qualquer possibilidade de participação digna na sociedade.

Nas terras da umbanda sopram ventos do candomblé: memória e identidade afro-brasileira na Zona da Mata Mineira
Fátima Regina Gomes (Universidade Federal de Juiz de Fora)
fattavares@uol.com.br

Recuperar a história da tradição afro-brasileira na Zona da Mata Mineira é uma tarefa ainda por ser feita. Tomando como referência a cidade de Juiz de Fora, o trabalho aponta algumas pistas iniciais dessa investigação, destacando a antiguidade e especificidade dessa tradição em relação ao Rio e São Paulo. Assim, duas características serão ressaltadas. A primeira refere-se à forma como essa tradição foi construída em Juiz de Fora: enfatiza-se a "antiguidade" e a "raiz" da umbanda na cidade, embora essa memória seja muito dispersa e pouco conhecida entre os adeptos. A segunda característica identifica na "antiguidade" da umbanda praticada na cidade uma marca do seu desenvolvimento autóctone,. Em contraste, a recente expansão do candomblé na cidade tem causado "desconfiança" entre muitos umbandistas, visto como um movimento "importado" da tradição carioca. Como conclusão, o trabalho aponta a relevância dos estudos sobre a tradição afro-brasileira em Minas Gerais para o aprofundamento e problematização da história da umbanda (particularmente a dinâmica do seu movimento de expansão), bem como das suas relações com o candomblé.

Entre o global e o local: Discurso, Tradição e Identidade no Candomblé de Brasília
Elenita Rodrigues (Universidade de Campinas)
elenita_gr@uol.com.br

Com a modernidade, as tradições são sucessivamente enfraquecidas e perdem sua capacidade de guiarem os seres humanos através das mais variadas situações da vida (Giddens, 1991a; 1991b). Em um contexto religioso, entretanto, sob pena de influenciar negativamente a eficácia simbólica dos rituais, é necessário que se estabeleça uma ordem social orientada em torno da tradição. Isso confere aos indivíduos papéis mais ou menos pré-estabelecidos, na medida em que procura manter a confiança na continuidade temporal e vincula esta confiança a práticas sociais rotinizadas e simbolicamente estruturadas por verdades formulares. Mas mesmo um contexto de tradicionalização como o do Candomblé Brasileiro não se encontra imune às transformações radicais que são introduzidas na própria base de reprodução do sistema com a modernidade. Um exemplo do que procuro investigar se encontra no fato de gêneros e discursos ligados à globalização estarem colonizando e apropriando-se (e nesse sentido, possivelmente fragmentando as identidades sociais) desta tradição religiosa afro-brasileira.
Nesse sentido, o contexto dos cultos afro-brasileiros, em particular o dos candomblés que investigo no entorno de Brasília (Brasil), parece trazer contribuições relevantes para uma discussão mais ampla sobre a subjetividade e sobre o processo de constituição de identidades socioculturais. Isso por vários motivos. Primeiro, pela "ópera fabulosa" das danças, pela linguagem gestual e a marcação rítmica que expressam a "complexidade da alma", que as metamorfoses do corpo e da personalidade evidenciam (Peixoto, 2001: 226). Segundo, pela riqueza dos processos semióticos relacionados à tradição, que permitem focalizar práticas lingüísticas sociais e materiais significantes, que constituem e reconstituem identidades. Terceiro, porque nos permite investigar como gêneros, discursos e estilos dominantes estão colonizando uma ampla variedade de novos domínios discursivos (Fairclough, 2001).
Esse processo implica uma apropriação reflexiva do conhecimento (a produção de conhecimento sistemático sobre a vida social torna-se integrante da reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da tradição) e uma circulação do conhecimento social em termos de uma hermenêutica dupla (o conhecimento reflexivamente aplicado às condições de reprodução do sistema altera intrinsecamente as circunstâncias às quais ele originariamente se referia).
Ou ainda, como exemplo desta reflexividade característica da modernidade, é possível citar que a produção pelo mercado de uma simples imagem de orixá pode introduzir novos elementos, que, por sua vez, podem ser assimilados pelos membros das comunidades. Como destaca Pacheco (2000), um traje ou um penteado poderá ser copiado de uma imagem por um "médium" que o utilizará, futuramente, na vestimenta de sua entidade. Assim, "há a dependência de uma idéia originária, que poderá influenciar grupos e indivíduos, mas existe igualmente, a autonomia destes para transformá-la de acordo com desejos e necessidades específicas" (op.cit.: 5).
Cabe citar também, apenas como um exemplo adicional, o fato de ser possível acessar atualmente, pela rede virtual de computadores, inúmeros sites de casas de santo que não apenas disponibilizam informações sobre rituais específicos, como também oferecem consultas espirituais virtuais e jogos de búzios pela rede .
Isso faz supor que existe uma tensão considerável acontecendo no contexto do Candomblé. Uma tensão entre um movimento cada vez mais forte de globalização nas sociedades modernas e um movimento de regionalização que preza pela continuidade da tradição e pelo fortalecimento dos papéis sociais.
A esta discussão interessará focalizar de que forma se relacionam essas tensões e de que forma elas trabalham na (re)constituição das identidades socioculturais.

Guerra, Dor e Luto. As Implicações da Guerra nos Rituais de Morte entre os Handa
Rosa Maria Melo (Instituto de Investigação Científica Tropical)
rosmelo@hotmail.com

As reflexões que trago para este congresso inserem-se no quadro do meu projecto pós-doutoral (em curso) com o título Novos Mortos, Novos Lutos, Novos Rituais. Uma Abordagem Antropológica do Ritual de Anojo entre os Handa. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no seio dos Handa - um dos grupos étnicos de Angola localizado na região Sul deste país, isto é, nas províncias da Huila e Namibe - e centra-se no período das guerras pós independência.

As guerras pós independência, em Angola, terão ceifado a vida a milhares de pessoas, destruído o sonho de famílias inteiras e acabado com muitas delas. Terão enriquecido muita gente, mas também empobrecido famílias, retirando-as das suas próprias terras, despojando-as dos seus próprios bens, matando os seus próprios filhos. Com as guerras, novas dinâmicas foram introduzidas no quotidiano das pessoas que a elas foram subsistindo. Isso reflecte-se, por exemplo, não só na atitude das mulheres perante a família, o trabalho e o parceiro conjugal, na forma de as pessoas se relacionarem com os outros como também na consecução de determinadas práticas rituais.

Centrando-me no ritual de luto, entre os Handa, pretendo reflectir sobre as implicações da guerra sobre este ritual particular, sobre os seus simbolismos e significados, bem como revelar os eventuais conflitos existentes, produto de interferências de factores como a guerra.

Longe dos homens (pais, filhos ou maridos) que instigavam ou se defendiam da guerra, as mulheres (mães, irmãs ou esposas) viram-se confrontadas tanto com a necessidade de sobrevivência como com a de preservação e de transmissão da sua cultura, mesmo em situação de guerra. A forma como as mulheres vahanda (dos Handa) se revêem nesses instantes, bem como os seus sentimentos e expressões a propósito das mortes e das implicações da guerra sobre os rituais de luto constituem uma base importante das reflexões feitas.

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