O acesso a um número crescente de bens e de serviços é determinado pela capacidade dos indivíduos para pagar um preço. A mercadorização é o processo de expansão dos discursos e/ou das práticas mercantis a esferas da vida social cujo acesso estava dependente de outros critérios, como o reconhecimento de uma necessidade a ser diretamente satisfeita sem racionamento pela carteira. Sendo o mercado uma transação institucionalizada de mercadorias, de direitos de propriedade, cujo valor se cristaliza num preço – um sistema de regras –, as múltiplas formas como este sistema pode ser instituído fazem com que seja um processo politizado.
Juntamente com o ponto de partida dos participantes, que podem ser compelidos a transações mais ou menos desesperadas, a estruturação dos direitos e deveres que necessariamente enquadram uma transação mercantil, envolva esta a compra e venda da força de trabalho ou a aquisição de um vulgar bem de consumo, vão determinar quem se apropria do quê e porquê. Também por isso, o processo de mercadorização nunca é neutro nos seus efeitos socioeconómicos e morais e nas suas estratégias de justificação.
Um dos argumentos para colocar limites à expansão dos mercados prende-se precisamente com a ameaça que paira sobre certos valores, que as comunidades têm boas razões para proteger, quando algo passa a ter um preço e as motivações para a sua provisão passam a ser guiadas pelo ganho. Por sua vez, a representação de todas as interações humanas como se fossem transações mercantis serve de base ideológica ao mimetismo mercantil, presente em instrumentos de política pública, como a análise custo-benefício, ou na introdução de modelos de gestão empresarial guiados por incentivos pecuniários nas instituições do setor público. Esquece-se que, para que haja uma esfera em que quase tudo tem um preço, é preciso que haja muitas outras em que os preços são recusados. A esfera dos mercados funcionais depende da existência de um setor público, que, entre outras coisas, cria e aplica as regras do jogo de forma imparcial, ou seja, um setor regido por valores não mercantis.
João Rodrigues