Guerra à Guerra

 

Também aqui Vietnam
 
Cada manhã
recebemos no telégrafo o pão que nos impõem
o que em agonia mastigamos vigiando
a dolorosa digestão: passará
nas tripas?

Leveda negro este pão da morte
a que não escaparemos
sem destruir esse forno de sombras
onde coze
a incurável ferida que rasgará as entranhas da terra.

Que outra coisa comer se é este o pão
que nos fere a garganta a cada fome
onde quer que estejamos?

O tempo morde-nos os ossos. A tenaz
aperta-nos a voz sob os detritos.
Que casulo protege da farinha
assassina? Saiamos para a luz. Façamos
de toda a pedra bala
antes que o relâmpago irrompa e a música
seja o leve tombar da poeira radioactiva.
 
Gonçalves, Egito (1980), Poemas Políticos. Lisboa: Moraes Editores, p.117.
 
 
 
 
Balada Apócrifa
 
Olhai os lírios do campo
meninas de saia rodada
íris de teias de aranha
desvendam o mar nas searas
 
olhai os lírios do campo
em copos de limonada
 
Os soldados em manobras
enterram a sombra caiada
(Bebei os lírios de água
com grandes bicos de aves)
 
Sofreram sempre derrota
deixaram mãos enforcadas
em lençóis com clarins
grades de pernas doada
 
Olhai os lírios do campo
meninas virgens por dentro
 
Os soldados em manobras
têm noite por espingarda
Colhei os lírios do corpo
meninas de saia travada.
 
Jorge, Luiza Neto (1993), poesia 1960-1989. Lisboa: Assírio e Alvim, p. 46.
 
 
 
 
Algum estrume
 
Entre a paz e a guerra
desfilam
soldados
 
Ó precioso estrume
da nossa terra
ó sangue adolescente
com que fazemos a guerra
 
Louvemos os soldados
por esses campos
semeados
 
Brito, Casimiro (1976). Corpo Sitiado. Lisboa: Iniciativas Editoriais, p.91.
 
 
 
 
Não podemos permanecer na terra vermelha ainda pisada
que já se aproximam as chuvas expulsando o desconhecido,
derramando o seu pranto sobre todo este sangue perdido…
 
Não podemos permanecer na terra quente ainda ocupada
que já a floresta se fecha negando a menor convivência,
iriçando-se com mil dedos e mil mortes sem clemência…
 
Não podemos permanecer na terra alheia ainda violada
que já homens de pele negra como nossa alma esquecida,
clamam a brancura inocente sua, tantas vezes merecida…
 
Não podemos permanecer na terra da esperança ainda crucificada
que os olhos de Eva já choram há muito pela sorte de seu corpo
despido, usado, feito em bocados antes de morto…
 
Não podemos permanecer nesta terra pura jamais amada.
Caem as primeiras chuvas e a mata nega-se definitivamente.
O tempo urge e o escândalo da nossa vergonha já nada consente…
 
Coelho, Mário Brochado (1989), Lágrimas de Guerra. Porto: Afrontamento, p.67.
 
 
 
 
Natal nacional
 
O ministro dá beijos aos pretinhos.
Os generais visitam os soldados
e dão presentes aos soldados
que mataram os pais dos pretinhos.
Outros generais dão presentes aos meninos
dos legionários que se aprontam
a matar os pais dos outros meninos.
 
Feliz Natal!
Feliz natal!
 
(28 de Dezembro de 1969)
 
Quintela, Paulo (1978), in: Revista Vértice, nº 406/407, Março/Abril, p. 143.
 
 
 
 
Se não matarem todos os monandengues da nossa terra
 
«Se não matarem todos os monandengues da nossa terra, eles contarão mesmo para seus filhos e seus netos dos tempos bons que vêm aí.»
 
Luandino Vieira
 
 
Os meninos da terra mártir contarão
como os seus pais e irmãos foram assassinados,
como os homens e as mulheres do seu povo
depuseram as suas vidas no regaço do futuro.
Contarão como morriam as aldeias e os homens,
os pássaros e as arvores, como as suas mortes
semearam a vida nova e a liberdade na terra mártir.
Nas vozes comovidas dos monandengues, os mortos
renascerão mais nobres e heróicos acendendo
lágrimas nos olhos do povo.
 
Pelos jovens assassinos ninguém chorará.
Braços do nosso silêncio, da nossa cobardia,
molharão os seus dedos no sangue que a nossa crueldade
os fez verter.
Quem os chorará?
Quem reclamará os louros da sua infâmia?
 
Loures, Carlos (1990), O cárcere e o prado luminoso. Lisboa: Edições Salamandra, p. 41. 
 
 
 
 
Tropa d'África
 
Eu, soldado raso, me confesso.
Não morri ainda, quase vivo.
Uns querem que eu morra.
Outros que eu viva.
 
A quem me afirmo, sendo morto-vivo?
 
 Com que expressão
posso nomear-me?
 
Ninguém quis saber da minha vida
nem do que eu sentia.
 
Eu, soldado raso, digo:
não trapaceiem comigo.
Sou homem,
não sou palha.
Sou homem
dentro da farda.
 
27/10/69
 
Cinatti, Ruy (1992), Obra poética. Lisboa: Imprensa Nacional Cada da Moeda, p. 239.
  
 
 
 
É a Guerra, Meu Amor
 
É a guerra
meu amor, é a guerra
 
e os homens que fazem a guerra
não sabem o que é
Natal sem lâmpadas
mesas sem flores
tardes sem mãos.
Não entendem
isso não!
A metafísica das árvores no Natal
nem essa questão
de andar de mãos dadas
todo o ano
 
Para eles
o símbolo da continuidade
está nos filhos
carne do seu próprio nome
 
Se entendessem, meu amor
não teria morrido
o soldado que nunca vi
e tem dois filhos pequenos
 
Se entendessem, meu amor
não haveria uma esposa
apenas com um par de mãos
 
Mas eles não entendem
não entendem isto
de andar de mãos dadas
todo o ano, meu amor
 
Chinita, Ivone (1972), in Álamo de Oliveira (org.), 14 poetas de aqui e de agora. Angra do Heroísmo: União Gráfica Angrense, pp. 35-36. 
 
 
 
 
A palavra o Açoite
 
Todo o santo nevoeiro esta manhã de glória
pátria filho
um rugir absoluto
de botas um secreto
martelar de silêncio
filho
medo
 
 Todo o santo silêncio este espanto este espesso
sangue suor e água e mar e mágoa
e o amor e o amor e o amor em reserva
o trigo inteiro e digo amor o dia
inteiro por ceifar
 
E toda a santa esperança este dia esta noite
este vago vagar de sulcos rodas rosas
rasas
a relva a alva
o alvo
corpo inteiro da esperança
 
Todo o santo nevoeiro esta pressa este instante
este loiro este negro este infante fantasma
e distante e distante
uma légoa de mágoa
  
E toda a santa mágoa este dia esta noite
o discurso o nevoeiro a palavra o açoite
a glória pátria
filho
um rugir absoluto um rugir obsoleto
um secreto
martelar de silêncio
 
E toda a santa guerra esta manhã de mágoa
de silêncio de névoa este loiro este espesso
instante de ternura filho camuflada
de rodas sulcos rasas
rosas de fogo e afago
 
toda a santa manhã esta espera este amargo
absoluto obsoleto medo filho por vir
loiro infante o instante
todo alcácer-quibir
 
Félix, Emanuel (1977), A Palavra. O Açoite. Coimbra: Centelha, pp. 37-38.
 
 
 
 
Carta de Lisboa
 
Os filhos morrem todos nas plagas africanas
O leite agora azeda no seio das mulhe
res
E o pão            esse     apodrece na corola das searas
Enquanto os desertores saltitam pelas fronteiras
 
Os sindicatos têm só as portas da rua
As lojas vendem apenas as exclusividades
Os pides andam fardados de generais à paisana
e os paisanos marcham sob toques militares
 
Os letreiros luminosos vendem-se aos SNIS
As multinacionais fazem acordos secretos
E os guerrilheiros aceitam essas cumplicidades
Enquanto as acções sobem nas Bolsas dos fascistas
 
Todos os mutilados entram para a História
— de gatas
Os estudantes armados conspiram para amanhã
As prostitutas sonham ser como Lisístratas
e os homosexuais querem licenças camarárias
 
As noivas e as viúvas já tiram as calcinhas
E o fado está mais sádico e mais reaccionário
Os turistas acham lindas as proibições higiénicas
e não cospem nas ruas mas cospem nos criados
 
Há ordem no País (como sempre) um luto sóbrio
As pessoas sorriem apenas quando choram
E choram (como sempre) com as cartas censuradas
que recebem às vezes (Além) dos filhos mortos
 
Ninguém esboça sequer um movimento a mais
Até porque se vive assim com muito menos
O que ainda ajuda são as humilhações francesas
e os consolos latinos das alemãs que abortam
 
Já quase não colhemos       faltam já hortaliças
mas estamos plantando cravos pelos quintais
São os Poetas que dizem que as flores são precisas
Será que alguém sabe o que é preciso mais
 
Vou acabar      desculpa          Lembras-te do teu vizinho
aquele rapaz que andou com teu filho na escola
Está fugindo para a França (ainda é um menino)
Vai mandar-te esta carta                      Saudades meu irmão
 
João Apolinário (1978), O Poeta Descalço. Amadora:Edições Fronteira, pp.173-174.