Memória da Guerra

 
 
A Mina
 
Não sei se alguma vez nós voltaremos
da guerra onde deixámos partes d'alma.
As minas ainda estão a rebentar
trazemo-las por dentro e ninguém pode
desarmá-las.
A última foi a de Fernando Assis Pacheco
não em Zala ou Balacende nem Quilolo
mas numa pacata livraria de Lisboa
às onze da manhã
essa hora fatídica da emboscada.
 
Não me venham dizer que foi enfarte
ou acidente cardiovascular. Eu sei
que foi a mina
armadilhada no coração.
 
Alegre, Manuel (2008), Nambuangongo, Meu Amor: Os Poemas da Guerra, Lisboa: Dom Quixote, p. 53.
 
 
 
 
Os Dias da Guerra
        
                    ao urbano tavares rodrigues
 
Não só o silêncio ou isso
que eles talvez digam de nós.
Nem a fala embriagada à força
de sempre calar.
Tão-pouco o peso da chuva     a morder
os ossos em esquecidas caminhadas.
Ou a nossa destruição
minuto a minuto programada.
O horror,
o horror está no espanto destas mortes
que se olham de perfil. Está na boquiaberta
surpresa dos cadáveres cuja voz ainda há pouco
prometia à nossa ilharga
uma paz tão longa como um ofício.
O horror atravessa-nos como se nos cortasse às fatias
(a mim levou-me os músculos visíveis da face).
Um houve a meu lado que se desesperou
de repente pedindo-me o tiro certeiro dum revólver;
a outro chegou-lhe a diarreia verde dessas
que mais parecem um mijo às avessas (sabem?) e
acabou com ele entre a Magina e a Buela
O meu horror está neste monte de tripas
esparramadas pelo baixo-ventre do rapaz loiro
que me dizia: «salve-me que tenho três filhos
e uma mulher meu furriel e uma mulher.»
Espreita-se o horror no furo de cada bala
espécie de favo desenhado de viés
nos pulmões do alferes (dentro dele
já não zunem as abelhas). Horror horror
são as pernas partidas
o crânio esfacelado e os miolos do cabo enfermeiro
(à mesa no prato com olhar vazio
um tédio de morte embaraça o vómito).
E a bexiga retalhada à baioneta
e o vidro do olho traçado a sabre. Os braços decepados
dos cadáveres depois na arrecadação
como galhos de árvores que nos apontassem armas.
E depois este horror misturado no desprezo
do comandante: quantas armas? quantos pretos?
quantos brancos?
Hoje esta é a memória que a gente pisa.
Mas nenhuma palavra terá o peso
a espessura exacta para vos dizer
o que foram aqueles dias.
 
Melo, João de (1980), Navegação da Terra. Lisboa: Vega, pp. 69-70.
 
 
 
 
Memória do Mar
 
sobre a terra sobre o mar 
do esquecimento
 
ficaram as manhãs
das longas praias
dos areais
 
quantas vezes alcácer-kibir?
 
memória do mar
de dias que já não são
do que fomos
 
dos lugares onde habitámos
 
                                África, 1971
 
Murteira, António (1998), azul e branco e ocre: poemas de amor viagem luta. Porto: Campo das Letras, p. 52.
 
 
 
 
Alpendre/3
 
O amigo, que viveu sempre nas lisboas,
sempre a pisar o alcatrão e o empedrado fino,
sabe o que eu mendespintei por esse mundo?
Não foi trabalho de repartição, não, a minha vida!
Olhe que eu comi o pão que nem o diabo quis amassar…
Se me rio?
Homem! Agora claro que me rio!
Um bocado de sorte, sim senhores, também ajudou.
Mas que é a sorte se a roda se lembra de virar?
É a mofina!
Sabe o que é vomitar fel quarenta dias
sem ninguém que nos sacuda o mosquito da testa
e nos alcance um púcaro de água fresca?
Sabe o que são cinco trovoadas cinco
quando se juntam sobre a cabeça dum pobre de Cristo perdido no mato?
Sabe o que é acordar com uma cobra encostada à pele?
Já ouviu o miado da hiena?
E os foles do leão?
O senhor é homem de empedrado fino.
Não lho posso levar a mal.
Nasceu com ele virado para a lua.
Faça-lhe bom proveito!
Mas veja, amigo, esta cicatriz.
Pensa que é na cidade que se arranja uma cicatriz assim?
Todos dizem: «O Fernandes é um homem de sorte»
e não vêem (têm é inveja!) que a sorte do Fernandes
foi não ser calão como eles…
Também agora, enquanto eu passeio os olhos, às trindades, por estas terrinhas fartas,
que têm eles?
O tabuleiro das damas no Café.
Pf…
 
O’Neill, Alexandre (1990), Poesias completas: 1951/ 1986. Braga: Biblioteca de Autores Portugueses, p. 351.
 
 
 
 
Silêncio na Guerra
 
Vivo agora a guerra no silêncio de um quarto
Em que guardo um mapico maconde
Uma máscara macua
E um Cristo metálico
Que não é de etnia nenhuma
 
No ar há leve odor a insecticida
Nos ouvidos o zunir dos órgãos em descanso
Onda portadora de ruídos inqualificados
Filtrados pela razão
Aonde vegetam mil doces recordações
Que penetram todo o corpo
Transformados que são em saudade
 
Sou uma fábrica de saudade
E estou em guerra no silêncio de um quarto
De porta fechada
De alma aberta
E na mente desperta
Uma criança chora
Um homem assobia
E motores alados tomam de assalto o aposento
Martelando-me os ouvidos
 
Pela cortina entreaberta
Entra a claridade
Adequada
Ao conforto da vista
E na luz que entra pela cortina entreaberta
Pelo vidro translúcido
E pela rede quadriculada
Encontro a paz procurada
Tão distante no infinito
 
Pena que os olhos só vejam
E não analisem com luz
Esta obscuridade psíquica
De quem tem o Sol dentro de si
 
                   Mueda, 10 de Janeiro de 1972
 
Pedro, Henrique António (2001), Poemas da Guerra de Mim e de Outrem. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 37-38.
  
 
 
 
Regresso do lusíada
 
Carregados de anos de silêncio
e cólera mil vezes reprimida
eis-nos enfim saciados do mar
 
confinante com as terras do exílio,
golfos, areias desconhecidas,
tanta e mortífera guerra:
 
morte feroz exercida com o ferro
e fogo da conquista, os barcos
carregados de desastres, a ira
 
de quem, indefeso, via partir
as árvores, madeiras africanas
privadas de suas aves.
 
Simões, Manuel (1994), in Carlos Loures; Manuel Simões (orgs.), Poemabril: antologia poética. Coimbra: Fora do Texto (2ª edição), p. 215. 
 
 
 
 
25 de Abril para uma jovem
 
Na caixa postal da tua idade
Deposito aos poucos a memória.
 
Sei coisas que tu não imaginas:
A fome diária mal disfarçada
ao longo das batatas da semana,
Os pés descalços na missa de domingo
entre botas de quem podia mais,
a lágrima numa medalha ao sol
num dia dez de Junho na T.V.
 
Sei coisas que tu não imaginas:
A morte a instalar o luto
por telefone e telegrama à porta,
A Europa num comboio nocturno
sem fronteiras para a dor,
As prisões como navios perdidos
à procura duma chave ou da luz
 
Podia ser um pedaço de pão
Hoje não se curvam já a ele
Nem o beijam em respeito à vida
 
Perdem-se em buracos de som
Sapatos de ténis debaixo da terra
 
E não escrevem cartas nem escrevem
O que não sabem nem procuram
 
Francisco, José do Carmo (1993), Leme de luz. Parede: Sol XXI, p. 18.  
  
 
 
 
Procura
 
O meu amigo partiu 
atravessando uma prótese
numa cirrose
que a mente gerou…
Dizia que um dia
teria de partir à procura da perna
que na guerra lhe roubaram
e foi-se…
atravessado na dor que nos deixou
e na forma deste poema que me legou.
 
Ferreri, Jaime (2005), Pecúlio.Póvoa do Lanhoso: Ave Rara, p. 22.
 
 
 
 
Monólogo e explicação
 
Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.

Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.

Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.

Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.
 
Pacheco, Fernando Assis (1996), A musa irregular. Porto: Edições Asa (2ª ed.), p. 40-41.