Boaventura de Sousa Santos
DA SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA À POLÍTICA
CIENTÍFICA (1)
Chegados aqui, que lições nos cabe tirar deste circuito
para o problema da responsabilidade actual do logos filosófico
perante uma técnica cuja eficácia lhe denuncia o
vazio das suas significações, a solidão
das suas evidências, e a impotência do seu poder
de dialogar num mundo onde ao acordo dos espíritos
se substitui a direcção das consciências
pela administração das coisas?
(Victor Matos e Sá, A dimensão técnica
do homem)
A Constituição Política de 1976 estabelece
as grandes linhas do projecto nacional de desenvolvimento social
e determina expressamente que a política cientifica e tecnológica
deve colocar-se ao serviço desse projecto. Diz o art. 77
n.º 2: «A política científica e tecnológica
tem por finalidade o fomento da investigação fundamental
e da investigação aplicada, com preferência
pelos domínios que interessem ao desenvolvimento do país
tendo em vista a progressiva libertação de dependências
externas, no âmbito da cooperação e do intercâmbio
com todos os povos». A luta por uma tal política científica
deve ser a preocupação central de todos os cientistas
portugueses interessados na realização do projecto
de sociedade socialista consagrado na Constituição.
E por se dever tratar de uma luta esclarecida, torna-se necessário
tomar consciência dos obstáculos a vencer.
Alguns desses obstáculos comprometem o projecto nacional
no seu todo, que, convém lembrá-lo, é o projecto
de «um Estado democrático baseado na soberania popular, no
respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e
no pluralismo, de expressão e organização política
democráticas, que tem por objectivo assegurar a transição
para o socialismo mediante a criação de condições
para o exercício democrático do poder pelas classes
trabalhadoras» (art. 2 da Constituição). Não
é difícil descortinar os obstáculos à
instauração de um projecto de sociedade socialista
no contexto de relações internacionais ainda dominadas
pelo modo de produção capitalista e, sobretudo, num
país integrado num bloco politico-militar em que a defesa
da democracia é identificada com a defesa do capitalismo.
Outros obstáculos são específicos do domínio
cultural e científico e a sua elucidação, que
constitui o tema principal deste trabalho, há-de resultar
da análise sociológica da prática científica
internacional. A sociologia crítica da ciência aqui
proposta parte do princípio de que a ciência contemporânea
deve ser analisada no contexto sócio-económico-político
do mundo contemporâneo e, portanto, no contexto dialéctico
do imperialismo e do nacionalismo.
Pode parecer estranho que se levante a questão do
imperialismo e do nacionalismo a propósito da ciência.
0 imperialismo envolve um sistema de relações internacionais
caracterizado pela dominação económica e política
de países centrais («avançados», «desenvolvidos»)
sobre os países periféricos («atrasados», «subdesenvolvidos»).
0 nacionalismo, movimento político e ideológico dos
últimos duzentos anos, envolve a exaltação
dos valores nacionais (contrapostos aos estrangeiros), a lealdade
ao Estado-Nação e, por vezes, a reacção
anti-imperialista. A ciência parece nada ter a ver nem com
um nem com outro. 0 conhecimento científico é habitado
pelo mais puro espírito universalista, a ruptura das barreiras
nacionais é feita em nome de uma comunidade universal onde
não há dominadores nem dominados. Por isso, a ciência
é o factor internacionalista por excelência do mundo
contemporâneo. Entre muitas outras provas, basta constatar
como, por sobre lutas políticas e guerras internacionais
(frias ou quentes), os cientistas dos vários países
são capazes de se sentar à mesa do diálogo
e da cooperação, e em igualdade.
Procurarei demonstrar neste trabalho que esta ideia do internacionalismo
universalista e igualitário da ciência falseia o modo
dominante da prática científica, quer a nível
interno, quer a nível internacional. Trata-se de uma ideologia
que visa constituir a ciência em aparelho de legitimação
das ordens interna e internacional instituídas. A prática
cientifica contemporânea, isto é, a ciência enquanto
sistema dominante de produção, distribuição
e consumo de conhecimentos cientificos reproduz e reforça,
no seu domínio específico, a estrutura de dominação
económica e política, quer no plano interno, quer
no plano internacional.
A discussão e definição de uma política
científica em Portugal é tarefa urgente pois dela
depende a neutralização do perigo da adhocracia que
tem rondado as decisões (e as indecisões) sobre as
iniciativas culturais e científicas tornadas politicamente
viáveis no seguimento da revolução de 25 de
Abril de 1974. Esta tarefa pressupõe, no entanto, a elucidação
das dimensões do «compromisso social» da ciência. Essa
análise prévia, que releva da sociologia da ciência,
constitui o objecto do presente trabalho.
A sociologia da ciência é uma disciplina de formação,
recente. Constitui-se na década de 40 e no seu desenvolvimento
distingo duas fases ou linhas: uma, que se inicia na década
de 40 e é dominada pela obra de Robert Merton; outra, que
tem início nos últimos anos da década de 60
e é dominada pela obra de Thomas Kuhn, ainda que em meu entender
a teoria de Kuhn só possa frutificar plenamente no seio da
teoria social de Marx. No texto que se segue analisam-se sucessivamente
as duas fases ou linhas.
I
O PARADIGMA DE MERTON
A concepção da ciência como sistema social
e como sub-sistema do sistema social global é relativamente
recente. No entanto, a análise sociológica do conhecimento
científico surge muito antes e remonta à obra de Marx,
sendo objecto de uma disciplina, a sociologia do conhecimento, que
teve um grande desenvolvimento na Europa nas primeiras três
décadas do nosso século. Embora possa conceber-se
a sociologia da ciência como um ramo especial da sociologia
do conhecimento (2)
, o facto é que não há continuidade entre os
estudos feitos na Europa até à década de 30
e os que se iniciam na América nos finais da mesma década.
Facto tanto mais surpreendente quanto é certo não
poder atribuir-se à ignorância dos sociólogos
americanos sobre o trabalho realizado na Europa, uma vez que Merton
estava perfeitamente ao corrente dele (3)
. A explicação para esta descontinuidade tem de procurar-se
a outro nível, ao nível do contexto social e intelectual
em que surge a primeira fase da sociologia da ciência, o que,
aliás, servirá também para explicar por que
razão na segunda fase se tentam recuperar algumas das linhas
de investigação desenvolvidas ou sugeridas pela sociologia
do conhecimento.
A sociologia da ciência surgiu nos Estados Unidos da América
no momento em que a «posição social» da ciência
se caracterizava, a nível interno, por uma reacção
difusa mas cada vez mais intensa de hostilidade contra a ciência
e suas aplicações e, a nível internacional,
pela politização da ciência levada a cabo pelo
nacional-socialismo na Alemanha. 0 desenvolvimento do capitalismo
americano acarretara um dramático desenvolvimento tecnológico
cujas consequências, sociais se começavam a sentir
com violência. No domínio da produção,
a introdução maciça da tecnologia provocava
o desemprego tecnológico, a descontinuidade de emprego, mudança
de trabalho, obsolescência das aptidões e, enfim, alterações
importantes no quotidiano dos operários, o que fazia desencadear
a revolta da classe operária através dos seus organismos
de classe. Por outro lado, a ligação da ciência
à máquina da guerra, que a química tinha iniciado
já na primeira guerra mundial, tornava-se cada vez mais íntima
com a preparação e produção de instrumentos
militares, armas, explosivos e demais equipamento, cuja capacidade
destrutiva era a medida da rentabilidade do investimento tecnológico
neles aplicado. Apesar da apatia dos cientistas americanos neste
período (anterior a Hiroshima) perante a «prostituição
da ciência para objectivos de guerra», gerava-se um movimento
social humanitário anti-ciência e, mais do que isso,
um sentimento difuso de revolta contra a ciência (4)
. A ideologia da fé na ciência, que o século
XIX transportara aos píncaros da aceitação
social, começava a receber os primeiros golpes significativos.
Os resultados da aplicação da ciência impediam
que o progresso científico continuasse a ser considerado
incondicionalmente bom. Criavam-se as condições para
perguntar pelas funções sociais da ciência.
A nível internacional, procedia-se na Alemanha, desde 1933,
a uma politica de aviltamento da ciência, da submissão
desta aos objectivos sociais e políticos do nazismo. Os critérios
da validade científica e da competência profissional
eram substituídos pelos da pureza racial e da lealdade política.
Não só eram expulsos os cientistas judeus, como proibida
a colaboração com eles, como até proibida a
aceitação ou defesa das suas teorias (5)
. No estrangeiro, esperava-se que desta degradante manipulação
da ciência resultasse a curto prazo a decadência da
ciência na Alemanha, mas os nazis, longe de conceberem a sua
política científica como de ataque à ciência,
baseavam-na na necessidade de separar o trigo do joio e assim permitir
um desenvolvimento da ciencia em total harmonia com o projecto politico
do Terceiro Reich.
Neste contexto interno e internacional - a que se deve acrescentar
o medo latente e sempre presente por parte da classe dominante de
que o agravamento dos conflitos sociais conduzisse à propagação
do sistema social já então consolidado na União
Soviética - impunha-se, como tarefa fundamental, definir
as condições da máxima funcionalidade da ciência,
isto é, as condições em que esta deveria
ser praticada a fim de evitar os abusos que se começavam
a notar na sociedade americana, mesmo que para isso fosse necessária
a intervenção estatal, sem no entanto cair no esmagamento
da autonomia da ciência., como acontecia nos estados totalitários.
A enumeração dessas condições revelaria
forçosamente que, embora a ciência pudesse coexistir
com diferentes estruturas sociais, era nas sociedades liberais e
democraticas que podia atingir máximo desenvolvimento (6)
. É esta tarefa que a sociologia funcionalista americana
- que já há muito fizera a sua «opção
de classe» - impõe a si mesma pela mão de Merton.
É óbvio que, para a realização desta
tarefa, a sociologia do conhecimento nada tinha a contribuir.
Em primeiro lugar, a sociologia do conhecimento, que tinha em
Marx, Durkheim, Max Scheler e Karl Mannheim os seus mais importantes
cultores, desenvolvera linhas de investigação e chegara
a conclusões que por vezes colidiam com a concepção
dominante de ciência também. partilhada pela sociologia
americana, a concepção positivista. Partindo da ideia
geral de que o conhecimento (no seu mais amplo sentido) é
socialmente condicionado, a sociologia do conhecimento tivera por
objecto três questões principais: a definição
da base ou factor social condicionante; tipo de condicionamento;
extensão do condicionamento consoante os tipos do conhecimento.
0 tratamento destas questões, e sobretudo da última,
conduzira por vezes ao resultado de se admitir o condicionamento
social, não só dos conteúdos teóricos
da ciência, como das próprias condições
teóricas e metodológicas e critérios de validade
inerentes ao processo científico. Isso significava um choque
frontal com a concepção positivista em cujos termos
a ciência era um sistema de conhecimento dotado dos mecanismos
internos para validação dos resultados e orientação
do desenvolvimento (7)
. Em segundo lugar, a sociologia do conhecimento debatera-se sempre
com o perigo do relativismo, de que o exemplo mais dramático
é a obra de Mannheim. A transformação da verdade
numa questão de consenso dava azo à manipulação
política, e isso mesmo fora já reconhecido e aproveitado
pelos ideólogos nazis (8)
. Em terceiro lugar, as investigações levadas a cabo
na Europa eram tipicamente europeias: demasiado vagas e abstractas,
sem grande respeito pela validação empírica,
confundindo intuições com comprovações
de facto, enfim, obra de «global theorists» preocupados com uma
visão aérea da realidade social. Ao contrário,
a sociologia da ciência queria constituir um objecto muito
mais definido e limitado, proceder à sua investigação
seguindo rigorosamente os cânones da ciência e aspirar
a teorias de médio alcance (9)
. Por último, a sociologia do conhecimento era produto de
uma velha Europa profundamente fracturada por graves conflitos sociais
em que o desmascaramento ideológico do inimigo constítuia
uma forma de luta importante - uma situação social
muito diferente daquela que se queria ver vigorar nos Estados Unidos.
0 contraste com a sociologia do conhecimento serviu para definir
em grandes linhas as orientações teóricas e
metodológicas da sociologia da ciência mertoniana.
0 trabalho em que Merton define com mais precisão o objecto
da sociologia da ciência data de 1942 e intitula-se «Science
and Democratic Social Order» (10)
. Tendo reconhecido que uma das fraquezas da sociologia do conhecimento
fora ter um objecto indefinido e imenso (todas as formas de conhecimento),
Merton começa por definir os quatro sentidos mais comuns
do termo ciência: (1) um conjunto de métodos
característicos por meio dos quais o conhecimento é
avaliado; (2) um stock do conhecimento acumulado resultante
da aplicação dos métodos; (3) um conjunto de
valores culturais e normas que presidem às actividades consideradas
científicas; (4) uma qualquer combinação dos
sentidos anteriores (11)
. Destes quatro sentidos, Merton escolhe o terceiro e acrescenta
que não serão objectivo de análise sociológica,
nem os métodos, nem o conteúdo substantivo da ciência.
Assim se estabelece o critério de delimitação
do objecto da sociologia da ciência desta fase. A sociologia
da ciência pode estudar, não só a estrutura
cultural da ciência, como o impacto da sociedade na criação
dos focos de interesse, na selecção dos problemas,
no ritmo do desenvolvimento, etc.. Os critérios de validade
e as demais condições teóricas e metodológicas
serão objecto da filosofia da ciência ou da teoria
da ciência, mas nunca da sociologia da ciência. Do ponto
de vista da perspectiva positivista em que esta divisão do
trabalho intelectual assenta pode dizer-se que pertence a sociologia
da ciência o estudo daquilo que na ciência não
é científico.
Merton enumera então o conjunto de normas que em seu entender
constituem o ethos científico, isto é, o complexo
de valores e normas de tom afectivo considerados vinculativos pelos
homens de ciência (12)
. As violações destes valores ou normas são
punidas com a indignação moral. Os quatro grandes
conjuntos de valores são: universalismo, comunismo, desinteresse,
cepticismo organizado. 0 universalismo baseia-se no carácter
impessoal da ciência: a aceitação ou rejeição
de uma teoria não depende das qualidades pessoais ou sociais
do seu autor. 0 comunismo: as conquistas da ciência são
produto da colaboração social e são propriedade
de todos; é certo que por vezes há lutas sobre a prioridade
das descobertas, como por exemplo a célebre controvérsia
entre Newton e Leibniz sobre o cálculo diferencial, mas isso
estimula a cooperação competitiva entre os cientistas
e não põe em causa o princípio da socialização
do conhecimento científico (13)
. Desinteresse: quaisquer que sejam as motivações
pessoais dos cientistas, a instituição científica
é orientada pelo valor do desinteresse e assim premeia todos
aqueles que aderem a esse valor; a ausência quase total de
fraude, o que não acontece nas outras profissões,
resulta de a investigação científica de cada
um estar sujeita ao escrutínio de todos. Cepticismo organizado:
o cientista submete a discussão e põe em questão
princípios ou ideias seguidos por rotina ou pela força
de uma qualquer autoridade; o cientista suspende o seu juízo
antes de observar detalhada e rigorosamente.
Estas normas são simultaneamente morais e técnicas.
0 seu desrespeito conduz a que, para além da indignação
moral, a ciência entre num processo de disfunção
cumulativa até ao colapso. Só a sociedade liberal
democrática torna possível a máxima realização
destes valores. Os desvios que por vezes se cometem, e que Merton
não deixa de reconhecer (14)
, ou não são significativos, ou são solúveis
dentro do sistema.
Numa apreciação crítica desta teoria ressalta
desde logo o facto de se tratar de uma teoria normativa que pouco
ou nada diz sobre a prática científica real. Num momento
em que a ciência entrava em processo acelerado de industrialização
e os cientistas se transformavam em trabalhadores assalariados ao
serviço do complexo militar-industrial então emergente,
a prática científica dominante orientava-se já
numa direcção totalmente contrária à
pressuposta pela normatividade mertoniana, a ponto de retirar a
esta última o sentido conformador da praxis e de a transformar
em pura ideologia de legitimação. No entanto, tal
prática é contabilizada na teoria de Merton enquanto
mero «desvio» a uma normatividade inquestionada no seu todo e cuja
validade é até afirmada pelo acto de violação.
A eloquência tácita do normativismo que habita sempre
o funcionalismo transforma-se aqui em eloquência expressa.
Apesar de ter tido o mérito de despertar o interesse pela
investigação da ciência., a teoria de Merton
foi responsável pela não problematização
de áreas de pesquisa que hoje, de outro ponto de vista, se
revelam crucialmente importantes. A concepção positivista
da ciência que subjaz à sociologia de Merton tornou
esta incapaz de conceber de modo diferente a ciência enquanto
objecto de investigação sociológica (15)
. Deu-se como que uma inversão epistemológica por
via da qual o objecto real constituiu o seu próprio objecto
teórico (16)
. E nem a isso obstou o esforço de Merton para não
cair nas armadilhas epistemológicas em que tinha caído
a sociologia do conhecimento. 0 que também demonstra que
a divisão do trabalho entre a sociologia da ciência
e a teoria da ciência é menos uma divisão externa
que uma divisão interna. E não é por fiat
do cientista que assim deixa de ser.
Pode pois concluir-se que as condições teóricas
que produziram a «transparência analítica» a juzante
do cientista foram as mesmas que produziram a opacidade a montante.
Mas às condições teóricas juntaram-se
condições sociológicas de maior relevo. As
ciências físicas e naturais, que constituem objecto
central da sociologia da ciência neste período, desenvolveram
desde o século. XVI uma retórica de legitimação
que passou pelo menos por três fases. Numa primeira fase,
tiveram que demonstrar a sua utilidade a fim de poderem obter apoio
público, como bem demonstra a criação da Royal
Society por Carlos II em 1660 e em geral a criação
e a actividade das academias de ciências a partir do seculo
XVII. Uma vez provada essa utilidade pela crescente ligação
da ciência à técnica, o progresso científico
pode passar a justificar-se nos seus próprios termos, identificando-se
com o progresso tout court, e assim se entrou na segunda
fase, a fase da autonomia da ciência que veio a atingir o
seu pleno desenvolvimento no século XIX. A partir da decada
de 30 do nosso século, a industrialização da
ciência e as consequências por vezes nefastas do progresso
tecnológico começaram a minar de vários modos
o princípio da autonomia, o progresso científico deixou
de poder ser considerado intrinsecamente benéfico e a ciência
voltou a ter de justificar-se pela sua utilidade e pelas condições
em que tal utilidade pode ser garantida sem efeitos negativos. Esta
constitui a terceira fase e é nela que se encontram as ciências
físicas e naturais quando surge a sociologia da ciência.
Pode pois parecer surpreendente como Merton tenta fazer o curto
circuito das duas últimas fases, transformando a autonomia
em condição de utilidade.
Talvez tudo se explique se tivermos em mente que a sociologia vinha
trilhando nos últimos quarenta anos o mesmo processo histórico
de legitimação, fazendo-o no entanto com um certo
atraso em relação às ciências físicas
e naturais. Na década de 40 a sociologia emergia lentamente
da primeira fase e começava a poder justificar-se autonomamente,
sendo disso reflexo o processo de expansão e institucionalização
por que passava (17)
. A constituição da ciência enquanto objecto
de análise sociológica reflecte este «atraso» da sociologia
em relação às ciências físicas
e naturais e o interesse da sociologia no seu próprio desenvolvimento
enquanto ciência. A ciência-sujeito procura na ciência-objecto
o retrato de família que mais lhe convém, e esse é
o retrato da autonomia.
Compreende-se assim o interesse na ignorância (e até
uma certa luta pelo esquecimento) de todos os temas susceptíveis
de desestabilizar o processo de organização e institucionalização
em curso. Talvez por isso também tenha Merton contribuído
para a sobrevalorização da especificidade institucional
da ciência ao considerar serem-lhe inaplicáveis as
teorias sociológicas até então elaboradas sobre
outros tipos de instituições. Qualquer das normas
que constitui a ética cientifica dramatiza a diferença
da actividade e da profissão científica em relação
às demais actividades e profissões.
Mas por detras da teoria de Merton não está apenas
um projecto profissional. Está também um projecto
social e político ao serviço do qual são postos
a ciência em geral e a sociologia em particular. A concepção
da prática científica como desvio recuperável
pelo sistema visa transformar a ética científica da
sociedade liberal avançada em ética universal, retirando
assim do seu contexto sociológico a normatividade instituída
- um procedimento «pouco sociológico» e sobretudo pouco condizente,
quer com a norma do cepticismo organizado, quer com a do desinteresse.
A sociologia funcionalista demarca-se frontalmente em relação
às tentativas isoladas da sociologia marxista, como a de
Bernal, para as quais a industrialização da ciência
na sociedade capitalista conduz a que a prática científica
reflicta com intensidade cada vez maior os conflitos e as contradições
gerados no seio deste modo de produção (18)
. Isto é, o capitalismo não provoca «desvio» na prática
científica uma vez que, ele é constitutivo dessa prática
e por isso a transformação desta pressupõe
a transformação do capitalismo e a sua substituição
pelo socialismo.
A investigação sociológica da ciência
dos anos 50 e do princípio da década de 60 é
balizada pelas concepções de Merton, tanto no domínio
da sociologia da ciência, como no da teoria da sociedade.
Quanto à última, a distinção entre funções
manifestas e latentes da acção humana, que subjaz
a todas as análises de Merton (19)
, é utilizada para demonstrar como certos comportamentos
manifestamente «irracionais» (por exemplo, a excessiva concorrência
entre os cientistas e a luta pela prioridade) desempenham a função
latente de promover o desenvolvimento científico, a socialização
dos cientistas nas normas da ciência, e deste modo contribuem
para a autonomia da ciência e para a sua segurança
institucional. Dentro dos limites deste tipo de teorização,
as variações são muitas e por vezes interessantes.
Recorrendo à teoria funcionalista de Homans (o comportamento
como troca), Hagstrom considera que a ciência está
organizada segundo a teoria da troca. Os trabalhos científicos
(a que nos também chamamos «contribuições»)
são dádivas (gifts) dos cientistas que a ciência
retribui (reward) com o reconhecimento profissional. Esta
retribuição constitui um estímulo motivacional
para novas contribuições e assim se encadeia um sistema
de reciprocidade cumulativa de que tanto o cientista como
a ciência beneficiam (20)
.
Às investigações desta fase subjaz uma
concepção heróica da ciência que, enquanto
estrutura mítica, tem o seu correspondente epistemológico
no positivismo empiricista. 0 conhecimento científico caminha
por um tapete vermelho que só se estende para as glórias
da civilização e da cultura. 0 seu ritmo e direcção
podem ser condicionados por factores externos, sociais e culturais,
mas cada passo que dá, dá-o por determinação
interna dos seus métodos, sem pressupostos. A sociologia
da ciência é assim essencialmente apologética
da ciência e do seu modo de produção dominante
na sociedade capitalista. A exaltação da autonomia
da ciência acaba sempre na apologia da livre concorrência
e da igualdade de oportunidades entre os cientistas e, portanto,
na apologia da sociedade liberal, qualquer que seja a extensão
dos «desvios» a que a prática científica esta sujeita
nesta sociedade.
II
A CRISE
Na década de 60, uma tal concepção de ciência
tornou-se insustentável. A industrialização
da ciência, que pretendia significar o climax da concepção
heróica da ciência, foi, no entanto, realizada de tal
modo que o sentido da intervenção da ciência
ao nível da produção ideológica acabou
por entrar em conflito insanável com o sentido da sua intervenção
ao nivel da produção material. Este processo, que
é particularmente nítido nas sociedades capitalistas,
não deixou de manifestar-se nas sociedades socialistas de
Estado do Leste Europeu a partir do momento em que as prioridades
científicas e, portanto, o sentido da industrialização,
passaram a ser estabelecidas por entidades burocráticas auto-perpetuáveis.
0 compromisso da ciência com o modo de produção
material acarretou o seu compromisso com o sistema social e, portanto,
a sua corresponsabilização na criação
e gestão das contradições e conflitos dele
emergentes (e nele recorrentes) e suas repercussões, quer
a nível interno, quer a nível internacional.
São estas as condições objectivas da crise
da ciência que hoje se vive. As suas manifestações,
que não cabe aqui analisar em pormenor, são perceptíveis
sobretudo ao nível das aplicações da ciência
e da organização da ciência - afinal, as duas
faces da industrialização da ciência. Em ambos
os casos trata-se de processos que, como observámos já,
eram visíveis nas décadas de 30/40, quando se iniciou
a primeira fase da sociologia da ciência, e que não
cessaram de se expandir nos anos seguintes.
No que respeita às aplicações da ciência,
ressalta desde logo a ligação da ciência à
máquina de guerra. As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram
o salto qualitativo, mas as condições em que se deram
(e sobretudo o modo como estas foram reconstruídas ideologicamente)
tornou ainda verosímil a ideia de uma ligação
fortuita. Foi isso, aliás, o que permitiu a alguns (não
muitos) físicos nucleares lavar as mãos no vaso cristalino
da ciência pura e de as limpar à toalha alvinitente
do progresso científico. No entanto, a máquina da
guerra, longe de esmorecer, transformou-se nos anos seguintes numa
indústria florescente e a ciência, sobretudo a que
se designa hoje por big science, colocou-se zelosamente ao
seu serviço. Os Estados Unidos gastam em investigação
e desenvolvimento (ID) (21)
mais do que qualquer país do mundo em qualquer das três
grandes áreas estabelecidas pela OCDE: (1) ID atómica,
espacial e de defesa; (2) ID economicamente motivada; (3) ID para
o bem estar e vária (na qual se incluem investigações
no domínio da saúde, alcoolismo, etc.) (22)
. Em 1966 o investimento do governo americano em ID foi assim distribuído:
(1) - 87 %; (2) - 3 %; (3) - 10% (23)
. Isto é, quase 90 % dos gastos públicos em ID foram
dispendidos na área geral da defesa e tal desiquilíbrio
não foi significativamente corrigido até agora (24)
. Durante muito tempo a física teve o melhor quinhão
nos investimentos públicos, mas tal situação
vem-se alterando nos anos mais recentes. Tal como a física
se desenvolveu tremendamente nos anos 50 e 60 ao serviço
da produção de armas para a guerra nuclear, também
agora a biologia, considerada já ciência de ponta e
a receber apoio estatal considerável, está a entrar
em fase de boom ao serviço da produção
de armas para a guerra biológica (bacteriológica),
já testada no Vietnam, e que, segundo os estrategas militares,
tem sobre a guerra nuclear a vantagem de ser mais limpa, isto é,
mais mortífera e de efeito mais localizado. À flor
deste processo tem-se vindo a reconhecer um pouco por toda a parte
que Hiroshima e Nagasaki não foram acidentes, foram antes
as primeiras afirmações dramáticas de um processo
susceptível de produzir outros «acidentes», cada vez menos
acidentais e cada vez mais destrutivos. A ciência e a tecnologia
têm-se vindo a revelar as duas faces de um processo histórico
em que os interesses militares e os interesses económicos
vão convergindo até à quase indistinção.
Ao nível das aplicações industriais, a crise
revela-se, quer na reacção pública à
degradação e destruição do meio ambiente
provocada pelas tecnologias depredatórias, quer nos conflitos
sociais resultantes da nova divisão internacional do trabalho
produzido pelas empresas multinacionais. Nos últimos anos
a estratégia destas empresas tem-se orientado segundo um
de dois esquemas. Se as análises do marketing prevêem
um trend não muito duradouro para uma certa linha
de produção, a tendência é para a relocação
das unidades de produção, transferindo-as do centro
para a periferia. Sem exigirem grandes gastos infraestruturais,
os países subdesenvolvidos oferecem mão de obra barata
e «estabilidade politica» (o que quase sempre significa ditadura
e repressão da classe operária). A transferência
de tecnologia que este esquerna envolve é feita em termos
que maximizam a dependência estrutural do Terceiro Mundo em
relação aos países capitalistas avançados.
As implicações dessa transferência, que só
agora começam a ser sistematicamente analisadas (25)
vão desde a expoliação alargada do Terceiro
Mundo ao esmagamento da ciência e tecnologia periféricas
sob a invasão da ciência e tecnologia centrais. Se,
ao contrário, o trend é duradouro, as multinacionais
estão hoje a optar cada vez mais pela robotização
da produção, isto é, pela automação.
Este esquema, que envolve grandes investimentos em ID e que precisamente
por isso sofreu um lento desenvolvimento na última década,
está agora em vias de atingir uma expansão insuspeitada,
o que pode estar também relacionado com o facto de a «estabilidade
política» dos paises periféricos ser cada vez mais
problemática, em virtude da força crescente daqueles
que nesses países lutam contra o imperialismo. 0 desemprego
estrutural que a automação provocará nos países
centrais pode não significar uma crise grave, mas vai certamente
provocar transformações profundas (26)
.
Mas, como já disse, a contestação da ciência
e a consequente crise a partir dos anos 60 tem uma outra face, a
organização da ciência, também ela concomitante
da industrialização da ciência. A integração
da ciência no complexo militar-industrial, e portanto a sua
conversão em força produtiva, possibilitou o crescimento
exponencial da ciência e produziu profundas alterações
na organização do trabalho científico. Segundo
Price, 80 a 90% dos cientistas de todos os tempos vivem nos nossos
dias (27)
. Ainda segundo a mesma fonte, pode calcular-se que o número
de cientistas e engenheiros duplica cada dez ou quinze anos, o que
levou Sklair a comentar que num futuro não muito distante
seremos todos cientistas e engenheiros (28)
. As universidades, que durante muito tempo detiveram o monopólio
da investigação científica, perderam-no em
favor dos governos e da indústria. Na Europa foi sobretudo
notória a criação de grandes laboratórios
e centros de investigação subsidiados pelo Estado,
enquanto nos Estados Unidos o governo seguiu a política de
contratar com as universidades e com as grandes empresas a investigação
(quase sempre do domínio militar). Entre as consequências
deste processo podemos salientar as que se referem às transformações
nas condições do trabalho científico. A esmagadora
maioria dos cientistas foi submetida a um processo de proletarização
no interior dos laboratórios e centros de investigação.
Expropriados dos meios de produção, passaram a estar
dependentes de um chefe mais ou menos invisível, «dono» dos
métodos, das teorias, dos projectos, e dos equipamentos.
A ideologia liberal da autonomia da ciência transformou-se
em caricatura amarga aos olhos dos trabalhadores científicos.
Ao processo de proletarização apenas escaparam os
«donos», os cientistas de prestígio, cujo elitismo este processo
potenciou. Entre as elites e o cientista-soldado raso cavou-se um
abismo, estabeleceu-se uma estratificação social,
e a comunidade cientifica passou a distribuir as suas dádivas
segundo a posição do cientista na escala de estratificação.
A distribuição de reconhecimento e de prestígio
tornou-se estruturalmente desigual e passou a processar-se segundo
aquilo a que Merton chamou, noutro contexto, o efeito de São
Mateus («porque a todo aquele que tem, será dado e dado em
abundância; ao passo que ao que não tem, ainda o que
tem lhe será tirado» Mt. XXV, 29). A situação
dos cientistas nos laboratórios das indústrias tomou-se
particularmente penosa dadas as pressões no sentido da rentabilidade
industrial da investigação (29)
. Em vez do «comunismo» de Merton, a norma passou a ser o segredo
(seguido da patente) e em geral a comunicação entre
os cientistas tornou-se cada vez mais difícil em consequência
da explosão da produção. Da comunicação
formal passou-se à comunicação informal no
seio de pequenos grupos de cientistas funcionando como «invisible
colleges». A investigação capital-intensíva
tornou ímpossível o livre acesso ao equipamento -
a caricatura da igualdade de oportunidades (30)
.
Não é de espantar que nestas condições
a crise da alienação se tenha instalado no interior
dos quarteis generais da ciência, provocando revoltas, deserções,
contestações, objecções de consciência
demasiado numerosas para poderem ser ocultadas ou lançadas
no pântano da perturbação psíquica. Ao
contrário, a radicalização dos cientistas organizou-se
em múltiplas formas, deu origem a vários movimentos
e revistas (uns de tendência liberal., outros de tendência
marxista) e tem hoje uma audiência significativa (31)
.
III
0 PARADIGMA DE KUHN (E DE MARX)
Esta crise, que continua aliás debaixo dos nossos olhos
(tão debaixo que por vezes a não vemos), assumiu tamanha
gravidade que teve forçosamente de produzir um abalo (ainda
que com atraso) nas concepções filosóficas
e sociológicas da ciência, herdadas do período
anterior e ainda dominantes. A violência das transformações
ao nível quer das aplicações quer da organização
da ciência levou a pôr o problema do conteúdo
da ciência. A específica configuração
do contexto sociológico em que o conhecimento científico
passara a ser produzido tinha que se reflectir neste, independentemente
do estatuto epistemológico do conhecimento científico
produzido noutro qualquer contexto.
Para esta intuição ser teoricamente articulável
foram, no entanto, necessário uma nova filosofia e uma nova
sociologia da ciência. Os fundamentos de uma e de outra são
lançados na obra de Thomas Kuhn que, por isso mesmo, considero
inspiradora da segunda fase da sociologia da ciência., cuja
discussão agora se inicia. Antes disso, porém, é
necessário ter em conta um facto que os sociólogos
tendem a esquecer. É que o desmantelamento da concepção
heróica e positivista da ciência ao nível da
sociologia não seria possível se tal desmantelamento
não se desse também, e concomitantemente, no seio
da sociologia. A crise da ciência nos anos 60 é também
a crise da sociologia. E pode adiantar-se mesmo que a compreensão
sociológica da crise da ciência não é
possivel sem a experiência científica da crise da sociologia.
A marginalização a que foram submetidas as ciências
sociais no princípio do século xx, em contraste com
o investimento público e privado no progresso das ciências
fisicas e naturais, se por um lado retardou o seu desenvolvimento,
por outro lado permitiu-lhes manter uma certa autonomia política,
o que se manifestou no ímpeto crítico com que frequentemente
investiram contra o sistema de dominação (32)
. Esta situação foi-se alterando no período
entre as duas guerras mundiais à medida que as ciências
sociais foram recebendo o apoio público necessário
a uma ampla institucionalização académica,
um processo particularmente notório nos Estados Unidos. A
Segunda Guerra mundial foi o campo privilegiado para a aplicação
dos conhecimentos científico-sociais à preparação
militar, à guerra psicológica, à espionagem
e à contra-espionagem. Assim se desenvolveram rapidamente
as tecnologias sociais apoiadas pelo aparelho do Estado. Depois
da guerra, o investimento público e privado não mais
foi regateado e as ciências sociais (e a sociologia em especial)
entraram em fase de boom e de triunfalismo, mau grado as
vozes dissonantes (C. W. Mills, por exemplo, e quase exemplo único).
Os movimentos sociais dos anos 60 - as revoltas das minorias étnicas,
dos estudantes, dos reclusos, dos guetos urbanos, bem como as greves
- vieram colocar sob uma luz diferente o papel das ciências
sociais na «reforma social». Os grandes problemas sociais persistiam
e até se agravavam a despeito dos vultuosos recursos dispendidos
nas ciências sociais com vista ao seu diagnóstico e
solução. Os apologetas do sistema social de dominação
ainda tentaram interpretar este impasse como demonstração
da insuficiência dos métodos e das teorias e, portanto,
como justificação para novos investimentos. Mas a
corrente da contestação do processo no seu todo adquiria
novas forças dentro e fora da «comunidade científica».
Foi-se tornando claro que as ciências sociais tinham entrado
num pacto social com as classes dominantes nos termos do qual o
desenvolvimento científico-técnico seria conquistado
pelo preço da neutralização política,
da cooptação. Os instrumentos teóricos e metodológicos
tinham sido desenvolvidos para colocar o sistema de dominação
fora do horizonte problemático e assim converter todos os
problemas sociais em puzzles com mais ou menos peças
mas sempre em número limitado e segundo as definições
pré-estabelecidas. Nestas condições, a sociologia
tornava-se incapaz de propor alternativas reais e soluções
autênticas para os problemas que então emergiam com
toda a violência (33)
.
A utilização das ciências sociais na contra-revolução
ao serviço do imperialismo (da antropologia, na Ásia,
sobretudo durante a guerra do Vietnam; e da sociologia, na América
Latina, bem demonstrada no projecto Camelot) veio aprofundar a crise.
Muitos cientistas sociais abandonaram o trabalho acadêmico
e organizaram-se em grupos e movimentos do tipo daqueles que antes
tinham reunido cientistas físicos e naturais, como acima
se referiu. Dada a «maior proximidade» (pelo objecto) das ciências
sociais aos problemas sociais, foi possível aos cientistas
sociais (com maior facilidade que aos cientistas naturais) colocarem
os seus conhecimentos, e portanto a mesma ciência,
ao serviço da resolução desses problemas que
invariávelmente afligiam as comunidades pobres, os desempregados,
as minorias étnicas, a classe operária. Seleccionando
os problemas segundo a sua orientação política
e a sua especialização, estes cientistas politizaram-se
e radicalizaram-se enquanto cidadãos, e não enquanto
cientistas dado que continuaram a usar da mesma ciência, ainda
que com a preocupação de eliminar a distinção,
antes axiomática, entre problemas sociais e problemas sociológicos.
Em consequência disto, e semelhantemente ao que acontecera
com os cientistas fisicos e naturais, a participação
praxística dos cientistas sociais acabou por ser aceite e
reconhecida pela sua dimensão técnica, o que tornou
possível a sua progressiva cooptação por parte
do Estado e demais instituições interessadas na solução
desses problemas sociais segundo as defimições mais
adequadas à estabilidade do sistema de dominação.
Dado o carácter pré-paradigmãtico das ciências
sociais, a eclosão da crise ofereceu no entanto aos cientistas
sociais uma possibilidade que os cientistas físicos e naturais
pensavam estar-lhes vedada, a possibilidade de se politizarem
simultaneamente como cidadãos e como cientistas. Para isso,
foi necessário revelar a muitos uma ruptura que sempre existira
no seio das ciências sociais mas que fora escamoteado nos
últimos trinta anos pelas forças dominantes na «comunidade
científica» académica, sobretudo americana. A ruptura
entre o marxismo e o funcionalismo (34)
. A sociologia clássica desenvolveu-se a partir de Durkheim
com um sinal positivista e anti-socialista. Paralelamente a ela,
e reflectindo a luta de classes nas sociedades capitalistas, desenvolveu-se,
a partir da obra de Marx, uma sociologia marxista. A institucionalização
acadêmica da sociologia, isto é, a entrada desta nas
universidades, conduziu (como não podia deixar de ser) à
«opção» pela sociologia clássica. Nos Estados
Unidos, onde progressivamente se foi localizando a vanguarda do
progresso científico-social, a sociologia clássica
e a tradição europeia (canalizada sobretudo por Max
Weber) veio a ter um desenvolvimento notável, tanto teórico
como sistemático, no que passou a constituir a sociologia
funcionalista (35)
. A sociologia marxista, que tivera nos Estados Unidos um certo
florescimento nas primeiras décadas do nosso século,
foi rapidamente asfixiada. A imigração, durante o
nazismo, dos filósofos e sociólogos alemães
judeus, muitos deles marxistas (sobretudo os da escola de Frankfurt),
veio possibilitar o ressurgimento da sociologia marxista. Mas as
condições da guerra fria no pós-guerra, o mcCarthismo
e as condições teóricas criadas por uma sociologia
funcionalista pujante e arrogante não permitiram que a alternativa
marxista se impusesse.
Com a crise dos anos 60 a situação intelectual alterou-se
profundamente. 0 descrédito do funcionalismo tornou possível
o desenvolvimento, mesmo ao nível das universidades, dos
estudos marxistas. Os clássicos voltaram a ser lidos e tentou-se
recuperar a tradição da sociologia marxista europeia,
sobretudo da França e também da Inglaterra. Assistiu-se
então a um comércio internacional de ideias susceptível
de deixar perplexo o olho desatento: enquanto a Europa (sobretudo
a França e a Alemanha Federal) passou a absorver avidamente
a sociologia funcionalista americana, os Estados Unidos procuraram
a todo o transe pôr-se a par da sociologia marxista europeia.
Este processo, ainda em curso, está no entanto a alterar-se,
pelo menos nos Estados Unidos. Desde 1973 que a sociologia marxista
tem vindo a receber ordem de despejo das universidades e dos centros
de investigação mais prestigiados. 0 refúgio
nas universidades de segunda ou terceira categoria é uma
solução meramente transitória pois estas estão
muitas vezes instaladas em comunidades pouco tolerantes com red
scientists (ou pinkos). 0 desemprego ou a cooptação
são a alternativa. É preciso notar que a sociologia
marxista, embora possibilite a politização do cientista
enquanto cientista, exige que ela se estenda ao cientista enquanto
cidadão. As condições político-sociais
(não só nos Estados Unidos) tornam, no entanto, particularmente
difícil uma politização plena. Daí que
a alternativa da sociologia marxista apareça por vezes desenraizada
de um processo de transformação social global e nessa
medida seja mais reflexo da crise do que uma força para a
sua superação. Nem só a ruptura é sinal
da crise nas ciências sociais; é-o também e
sobretudo a (in) solução da ruptura.
Foi no contexto da dupla crise da ciência e da sociologia
que se iniciou a segunda fase dos estudos de sociologia da ciência.,
uma fase caracterizada por uma crítica sistemática
e mais ou menos profunda da concepção heróica
da ciência. 0 mesmo contexto explica porque é que a
crítica é auto-critica. E assim não surpreende
que os estudos de sociologia da ciência nesta fase tenham
surgido ao mesmo tempo que os estudos de sociologia da sociologia
(36)
. A construção teórica que inspira e orienta
os estudos desta fase parte, como dissemos, de Thomas Kuhn, em especial
da obra intitulada The Structure of Scientific Revolutions
(37)
, uma obra de importância fúlcral cujas implicações
sociológicas não foram ainda sistematicamente exploradas.
A teoria central de Kuhn é que o conhecimento, científico
não cresce de modo cumulativo e contínuo. Ao contrário,
esse crescimento é descontínuo e opera por saltos
qualitativos, que, por sua vez., não se podem justificar
em função de critérios internos de validação
do conhecimento científico. A sua justificação
reside em factores psicológicos e sociológicos e sobretudo
na comunidade científica enquanto sistema de organização
do trabalho científico. Os saltos qualitativos têm
lugar nos períodos de desenvolvimento da ciência em
que são postos em causa e substituídos os princípios,
teorias e conceitos básicos em que se funda a ciência
até então produzida e que constituem o que Kuhn chama
«paradigma».
0 desenvolvimento da ciência madura processa-se assim em
duas fases, a fase da ciência normal e a fase da ciência
revolucionária. A ciência normal é a ciência
dos períodos em que o paradigma é unanimemente aceite
pela comunidade científica. 0 paradigma estabelece simultaneamente
o sentido do limite e o limite do sentido e, consequentemente, o
trabalho dos cientistas dirige-se à resolução
dos problemas e à eliminação de incongruências
segundo os esquemas conceituais, teóricos e metodológicos
universalmente aceites. Estes, aliás, presidem tanto à
definição dos problemas como à organização
das estratégias de resolução. Os problemas
científicos transformam-se em puzzles, enigmas com um número
limitado de peças que o cientista - qual jogador de xadrez
- vai pacientemente movendo até encontrar a solução
final. Aliás, a solução final, tal como no
enigma, é conhecida antecipadamente, apenas se desconhecendo
os pormenores do seu conteúdo e do processo para a atingir.
Deste modo, o paradigma que o cientista adquiriu durante a sua formação
profissional fornece-lhe as regras do jogo, descreve-lhe as peças
com que deve jogar e indica-lhe a natureza do resultado a atingir.
Se o cientista falha, como é natural que aconteça
nas primeiras tentativas, tal facto é atribuido à
sua impreparação ou inépcia. As regras fornecidas
pelo paradigma não podem ser postas em causa, pois que sem
elas não existiria sequer o enigma. Assim, o trabalho do
cientista exprime uma adesão muito profunda ao paradigma.
A crença é de que os problemas fundamentais foram
todos resolvidos pelo paradigma e de uma vez para sempre. Uma adesão
deste tipo não pode ser abalada levianamente. De resto, a
prática quotidiana da comunidade cientifica reforça
essa adesão a todo o momento. A experiência mostra
que., em quase todos os casos, os esforços reiterados do
cientista, individualmente ou em grupo, conduzem à solução,
dentro do paradigma, dos problemas mais difíceis. Por isso
também não admira que os cientistas resistam à
mudança do paradigma. 0 que eles defendem nessa resistência
é afinal o seu way of life profissional.
Mas o decurso da ciência normal não é feito
só de êxitos., pois, se tal fosse o caso, não
eram possíveis as inovações profundas que têm
tido lugar ao longo do desenvolvimento científico. Ao cientista
«normal» pode suceder que o problema de que se ocupa, não
só não tenha solução no âmbito
das regras em vigor, como tal facto não possa ser imputado
à impreparaçáo ou inépcia do investigador.
Esta experiência pode em certo momento ser partilhada por
outros cientistas e pode suceder, além disso, que por cada
problema resolvido ou por cada incongruência eliminada outros
surjam em maior número e de maior complexidade ou de impossível
solução. 0 efeito cumulativo deste processo pode ser
tal que a certa altura se entre numa fase de crise. Incapaz de lhe
dar solução, o paradigma existente começa a
revelar-se como a fonte última dos problemas e das incongruências,
e o universo científico que lhe corresponde converte-se a
pouco e pouco num complexo sistema de erros onde nada pode ser pensado
correctamente. Já outro paradigma se desenha no horizonte
científico e o processo em que ele surge e se impõe
constitui a revolução cientifica e a ciência
que se faz ao serviço deste objectivo é a ciência
revolucionária.
0 novo paradigma redefine os problemas e as incongruências
até então insolúveis e dá-lhes uma solução
convincente e é nessa base que se vai impondo à comunidade
cientifica. Mas a substituição do paradigma não
é rápida. 0 período de crise revolucionária
em que o velho e o novo paradigma se defrontam e entram em concorrência
pode ser bastante longo. Uma vez que cada um dos paradigmas estabelece
as condições de cientificidade do conhecimento produzido
no seu âmbito, as provas cruciais aduzidas em favor do novo
paradigma podem facilmente ser consideradas ridículas, triviais
ou insuficientes pelos defensores do velho paradigma. 0 diálogo
entre os cientistas tende para o monólogo na proporção
da incomensurabilidade dos paradigmas em confronto.
Mais ou menos tempo será necessário para o novo paradígma
se impor, mas, uma vez imposto, ele passa a ser aceite sem discussão
e as gerações futuras de cientistas são treinadas
para acreditar que o novo paradigma resolveu definitivamente os
problemas fundamentais. Da fase da ciência revolucionária
passa-se de novo à fase da ciência normal e, portanto,
ao trabalho científico sub-paradigmático. De início
existem vastas áreas em que a aplicabilidade do novo paradigma
é apenas assumida sem ainda se ter feito qualquer prova nesse
sentido. É para essas áreas que se orienta a ciência
normal. Posteriormente, os objectos de estudo, e por conseguinte
os problemas a resolver, vão-se tornando cada vez mais especificos
e complexos.
Este processo de desenvolvimento é específico da
ciência madura, ou paradigmática. Kuhn distingue desta
ciência a ciência pré-paradigmática, como,
por exemplo, o conjunto das ciências sociais. Mas esta fase
de pré-paradigmatismo também se verifica na génese
das novas disciplinas científicas no domínio das ciências
físicas e naturais, com excepção daquelas que
se constituem a partir da combinação de teorias de
várias ciências paradigmáticas, como é
o caso da bioquímica. Esta fase é caracterizada, como
a denominação indica, pela ausência de um paradigma.
Isto significa que não existe um conjunto teórico
conceitual e metodológico básico universalmente aceite.
Deste modo, cada cientista, ou cada escola, tem de começar
a partir dos fundamentos. A escolha dos fenómenos observados
e dos métodos utilizados é bastante livre e é,
por isso,. mínima a comparabilidade das investigações.
Esta fase é ultrapassada no momento em que surge uma teoria
básica que resolve a maioria dos problemas insolúveis
para as diferentes correntes ou escolas, como foi, por exemplo,
a teoria de Franklin no domínio da electricidade. A disciplina
entra na fase paradigmática e a partir daí o seu desenvolvimento
processa-se do modo acima referido.
0 desafio de Kuhn à filosofia lógico-positivista
da ciência reside em que, por um lado, o desenvolvimento da
ciência não é cumulativo e, por outro lado,
a escolha entre paradigmas alternativos não pode ser fundamentada
nas condições teóricas de cientificidade, uma
vez que elas próprias entram em processo de ruptura na fase
revolucionária. Deixa de haver critérios universalmente
aceites, quer para a suficiência da prova, quer para a adequação
das conclusões. Está também precludido o recurso
aos critérios mais gerais elaborados pela filosofia da ciência
tradicional para a selecção da teoria «verdadeira»,
como sejam a exactidão, a simplicidade, a fertilidade, a
consistência lógica, etc., uma vez que cientistas diferentes
aplicam diferentemente esses critérios em momentos e situações
diferentes. Para explicar as razões das opções
científicas fundamentais é preciso sair do círculo
das condições teóricas e dos mecanismos internos
de validação e procurá-las num vasto alfobre
de factores sociológicos e psicológicos. 0 processo
de imposição de um novo paradigma é um processo
retórico, um processo de persuasão em que participam
diferentes audiências relevantes, i.e., os diferentes grupos
de cientistas. É necessário estudar as relações
dentro dos grupos e entre os grupos, sobretudo as relações
de autoridade (científica e outra) e de dependência.
É necessário também estudar a comunidade cientifica
em que se integram esses diferentes grupos, o processo de formação
profissional dos cientistas, o treinamento, a socialização
no seio da profissão., a organização do trabalho
científico, etc.. Nisto consiste a base sociológica
da teoria de Kuhn.
Kuhn vibra um rude golpe na filosofia dominante (lógico-positivista,
lógico-empiricista, lógico-formal, racionalista) da
ciência para a qual, como disse, a ciência se explica
exaustivamente (ou no que interessa) pela sua lógica interna.
Não admira, pois, a reacção dos popperianos,
em particular de Lakatos, para quem a teoria de Kuhn é irracionalista,
dado que transforma o processo cientifico numa questão de
psicologia de massas (38)
. As críticas divergem, quer quanto à orientação
filosófica de que são oriundas, quer quanto aos aspectos
da teoria de Kuhn que seleccionam. Para uns, a ideia da incomensurabilidade
dos paradigmas é insustentável (Scheffler) (39)
. Outros atacam o conceito de revolução científica
ou relativizam-no até transformarem o desenvolvimento da
ciência numa sucessão evolucionista de microrrevoluções
(Toulmin) (40)
. Outros ainda atacam o conceito de normal science, afirmando
que ele corresponde à hack science mas não
à best seience (Waffins) (41)
. Com distinções como estas e outras semelhantes (good
science /bad science; progressive science/degenerating science)
o racionalismo procura manter aceso, ainda que num âmbito
mais restrito, a chama da concepção heróico-positivista
da ciência. Aquilo que para Kuhn é parte integrante
da prática cientifica é relegado pelos racionalistas
lógicos para o domínio do residual ou para o domínio
da violação de regras inerentes ao processo científico.
Esta distinção entre norma e desvio, e em geral a
teoria lógico-racionalista da ciência, assenta num
decisionismo meta-teórico que consiste em considerar irracional
ipso facto tudo o que não é «interno» à
ciência. Dos impasses a que isto conduz é bem prova
a «reconstrução racional da história da ciência»
proposta por Lakatos.
A avaliação do significado da teoria de Kuhn há-de
ser feita à luz tanto das formulações do próprio
Kuhn como das implicações sociológicas que
delas se podem retirar e que, como foi dito, só agora começam
a ser exploradas sistematicamente. Aplicando Kuhn a Kuhn, pode dizer-se
que o paradigma kuhniano é um mero ponto de partida. Por
ora, a sua aplicabilidade em extensas áreas é apenas
assumida e aguarda confirmação. Por outro lado, em
meu entender, o paradigma de Kuhn é de facto um meio paradigma,
ou um proto-paradigma. Vem preencher a lacuna que impedia o paradigma
marxista de fundar uma sociologia marxista da ciência adequada
às novas realidades da produção científica.
No plano sociológico, pelo menos, o paradigma kuhniano só
pode frutificar plenamente no âmbito do paradigma marxista.
Este ponto, que se me afigura de importância crucial, não
aparece ventilado nas discussões mais relevantes da obra
de Kuhn. Tal facto resulta, por um lado, de muitos dos que se aproximaram
de Kuhn o terem feito no quadro estreito de uma disputa filosófica
sobre a ciência e, por outro lado, de os sociólogos
e teóricos marxistas não terem encontrado nada em
Kuhn que pudesse enriquecer a sua concepção de ciência
ainda marcadamente positivista (por mais eloquente que seja a retórica
anti-positivista por eles utilizada).
Kuhn é, pois, um ponto de partida, mas não restam
dúvidas de que a investigação propiciada pela
sua teoria já permitiu esclarecer uma serie de questões
importantes que não tinham solução satisfatória
no âmbito do paradigma lógico-empirístico-mertoniano:
por que razão se comportam os cientistas muitas vezes como
se estivessem mais interessados em impedir o progresso cientifico
do que em promovê-lo; porque é que certas teorias não
são aceites ao tempo da sua descoberta e só o são
muito mais tarde, dando-se como que a sua redescoberta; por que
razão são aceites teorias cuja obediência aos
padrões estabelecidos está longe de ser evidente;
porque são negadas ou rejeitadas teorias assentes em experimentação
que satisfaz plenamente esses padrões. Aquilo a que os popperianos
chamam «desvio» alarga-se de tal modo que deixa de ter sentido,
enquanto desvio, por não ter outra prática cientifica
com que se defrontar.
Muito para além de tudo isto, é possível,
a partir das sugestões de Kuhn, construir instrumentos teóricos
libertos dos estereotipos da prática científica herdados
do período do capitalismo liberal que nos permitam compreender
e denunciar a produção da ciência em condições
de capitalismo monopolista de Estado e mesmo de socialismo de Estado.
E é por isso também que a opção entre
Popper e Kuhn (segundo a elaboração da sua teoria
aqui proposta) não pode ser explicada apenas por razões
científicas, o que aliás é reconhecido pelos
próprios popperianos. Por detrás da teoria da ciência
esconde-se uma teoria social e política. Ao recusar o conceito
de revolução científica., ao definir o desenvolvimento
cientifico em termos de pequenos passos, Popper transporta para
os domínios da ciência o seu projecto político
de sociedade, a «sociedades aberta», a sociedade liberal (42)
. A livre concorrência entre as teorias e a igual oportunidade
dada a todos os cientistas asseguram o constante progresso científico.
É possível, a partir de Kuhn, desenvolver um esforço
sistemático para desmascarar esta ideologia, analisando as
relações de poder dentro e fora da comunidade científica
e assim esclarecer os mecanismos através dos quais se cria
«consenso científico» e se orienta o desenvolvimento da ciência
de molde a favorecer sistematicamente certas áreas de investigação
e de aplicação, certas metodologias e orientações
teóricas, em desfavor de outras. Estes processos são
depois susceptíveis de uma análise virada para as
estruturas do poder científico e do poder tout court
na sociedade. Será este o objecto da sociologia crítica
da ciência.
0 que está em causa nesta disputa é a manutenção
ou a subversão da divisão do trabalho tradicionalmente
aceite entre sociologia da ciência e teoria da ciência.
Como atrás ficou referido, até agora essa divisão
consistiu em a sociologia da ciência ter como objecto a ciência
enquanto sub-sistema social e a teoria da ciência ter como
objecto a ciência enquanto sistema de conhecimento. A esta
divisão subjaz uma distinção absoluta entre
condições teóricas e não teóricas,
ou entre factores internos e externos, ou ainda entre determinações
cognitivas e não cognitivas. Com esta distinção
pretende-se que a ciência enquanto sistema de conhecimento,
e portanto o progresso cientifico, é, como já disse,
totalmente determinada por condições teóricas,
internas ou cognitivas. Os factores não teóricos,
externos ou não cognitivos, cujo estudo é objecto
da sociologia da ciência, têm uma influência meramente
externa sobre o processo científico, afectando, por exemplo,
a velocidade desse processo, uma influência, de resto, ocasional,
irracional, residual e, portanto, negligenciável. Estabelece-se,
assim, um abismo entre a sociologia da ciência e a teoria
da ciência que nenhuma ponte pode transpor. Deste statu
quo é expressão, como vimos, a sociologia da ciência
da escola de Merton.
Ao possibilitar a ancoragem da história da ciência
em factores sócio-econónúcos - tal como Cassirer,
Koyré e Bachelard a tinham ancorado na história da
filosofia - a teoria de Kuhn vem subverter esta divisão do
trabalho. E pode bem dizer-se que a grande tarefa dos sociólogos
e teóricos da ciência consiste precisamente na redefinição
das relações entre a sociologia da ciência e
a teoria da ciência. De facto, não basta reconhecer
uma maior e qualitativamente diferente influência de factores
sociológicos no desenvolvimento cientifico; é necessário,
além disso, proceder a uma démarche teórica
que garanta a coerência dessa influência no reconhecimento
da especificidade relativa do processo científico. Sem qualquer
preocupação sistemática, passarei a referir
algumas das áreas onde é urgente investigação
detalhada, mencionando algum do trabalho realizado já nesse
sentido.
Uma das áreas a ser sistematicamente investigada diz respeito
aos pressupostos meta-teóricos do trabalho científico.
Num trabalho de 1961, Bernard Barber, discípulo de Merton,
descreve uma série de casos de resistência por parte
de cientistas a teorias científicas que mais tarde se provou
estarem certas (43)
. Barber procura explicar essa resistência em função
do sistema de crenças dos cientistas em causa, nele incluindo
desde credos religiosos a pré-juizos de escola. A partir
de Kuhn, torna-se possível revelar o pressuposto filosófico-científico
desta investigação. A utilização causalísta
do sistema de crenças dá-se somente nos casos em que
as crenças actuam como fonte de erro, como obstáculo
à verdade e nunca nos casos em que propiciam aproximação
à verdade. A verdade científica chega-se, segundo
Barber, pelo uso correcto do método científico, que
é universal e invariante. Se ele tivesse sido aplicado correctamente
pelos cientistas em causa, a resistência não teria
tido lugar. Trata-se, pois, da concepção positivista
da ciência, típica da primeira fase da sociologia da
ciência. 0 método científico valida em absoluto
o conhecimento, Os pressupostos meta-teóricos estão
possuídos de negatividade radical (44)
.
0 rompimento com esta concepção de ciência
abre uma vasta linha de investigação orientada para
a detecção dos sistemas de crenças que presidem
ao trabalho científico no seu todo (45)
.
Da constatação das lacunas em todas as tentativas
de explicação do desenvolvimento da ciência
com base na «lógica da descoberta» facilmente se chega à
conclusão de que o desenvolvimento da ciência não
é unilinear. E também não é acidental.
Há alternativas teóricas em cada fase do desenvolvimento
e a opção entre elas não resulta de critérios
internos ao sistema de conhecimento. Deste modo, uma outra área
de investigação diz respeito às alternativas
teóricas em ciência (46)
.
Como é óbvio, as alternativas de que aqui se trata
não são alternativas na aplicação das
teorias científicas, o que sempre foi reconhecido, mas antes
alternativas entre teorias, algumas das quais se impõem sem
que tal se possa atribuir a critérios de suficiência
de prova. A admissão de alternativas teóricas pode
conduzir a uma leitura do desenvolvimento da ciência em termos
darwinísticos. As condições de sobrevivência
das teorias, métodos e conceitos são estabelecidas
pelo «ambiente social» em que a ciência se desenvolve.
A articulação das determinantes internas e externas
é o ponto crucial duma teoria sobre alternativas científicas.
As alternativas teóricas que se abrem ao desenvolvimento
da ciência são caracterizadas segundo determinações
teórico-científicas, mas a decisão entre elas
é feita segundo factores «externos» à ciência.
De resto, é possível correlacionar as diferentes condições
teórico-cientificas com as condições culturais,
sociais e económicas e é a partir dessa correlação
que se há-de obter a explicação para a opção
entre alternativas (47)
. Esta abertura da ciência aos factores externos não
pode ser concebida de tal maneira que o desenvolvimento científico
se transforme numa sucessão caótica de acidentes.
Não faria, aliás, sentido falar de alternativas da
ciência se esta não pudesse estabelecer as condições
limitativas do seu desenvolvimento. A ciência tem uma estrutura
própria que de algum modo limita a sua funcionalização,
isto é, a sua submissão a objectivos sociais, mas
essa estrutura, se lhe permite regular o seu desenvolvimento, não
lhe permite determiná-lo (48)
. A determinação resulta de factores externos e opera
através de um complicado sistema de selecção
entre alternativas, o que constitui, de facto, o darwinismo, científico.
Abstraindo das múltiplas distinções e especificações
feitas no âmbito desta teoria, pode concluir-se a respeito
do processo de selecção, que a «capacidade vital»
de uma teoria cientifica se mede pela sua adequação
a potenciar a capacidadade vital da comunidade científica
enquanto sistema social e enquanto sub-sisterna da sociedade global.
Assim, entre várias alternativas, tende a impor-se a mais
adequada a fazer «escola», a definir problemas interessantes, etc..
Tende também a impor-se a alternativa que melhor corresponde
aos interesses dominantes na sociedade. E nisto consiste o darwinismo
cientifico que, segundo Bõhme, Daele e Krolin, é um
darwinismo, «fáctico» que não impede, antes torna
necessária, a racionalização do desenvolvimento
da ciência através de uma planificação
consciente (49)
. Para além de o «darwinismo», mesmo «fáctico», introduzir
uma leitura evolucionista do desenvolvimento da ciência que
se afasta da leitura kuhniana, a teoria das alternativas não
estabelece com precisão em que medida a estrutura da ciência
põe condições limitativas das possibilidades
do desenvolvimento. A investigação é ainda
demasiado orientada para o mundo científico, pouco adiantando
sobre as relações desse mundo com o mundo mais vasto
de todos nós. É possível que a investigação
empírica a desenvolver nesta linha venha a precisar os termos
da teoria (50)
. De todo o modo, começa a tornar-se claro que qualquer linha
de desenvolvimento científico a ser adoptada significa o
cancelamento de linhas alternativas. 0 processo de conhecimento
é também um processo de desconhecimento a um nível
muito mais real do que as antecipações filosóficas
(Kant, por exemplo) deixavam prever. A ciência pode ser alternativamente
analisada (e usada) como sistema de produção de conhecimentos
ou como sistema de produção de ignorância.
É fora de dúvida que a comunidade científica
tem uma importância fundamental para a compreensão
do processo científico e por isso constitui uma outra área
importante de investigação. As condições
teóricas do trabalho científico (modelos teóricos,
metodológicos e conceptuais) não só evoluem
historicamente como a sua aceitação e modo de aplicação
num certo momento depende do grupo de cientistas com mais autoridade
no seio da comunidade científica. Deste modo, as condições
teóricas são verdadeiras normas sociais em vigor nessa
comunidade. 0 seu reconhecimento e aplicação é
o resultado de um complexo processo a que Weingart chama «estratégia
de institucionalização» (51)
. Esta estratégia engloba um sistema de argumentação
e um conjunto de acções institucionalizantes a ter
lugar no seio da comunidade científica.
Este processo é particularmente visível na análise
da génese das especializações cientificas e
das inovações cientificas em geral. Uma vez que cada
inovação põe em causa de algum modo as condições
teóricas dominantes, é natural que encontre resistências
dentro das comunidades científicas. Alguns sectores tentarão
estigmatizá-la como errada ou prematura, tentar-se-á
o isolamento social e comunicativo do grupo inovador, procurar-se-á
evitar o recrutamento de estudantes por parte desse grupo a fim
de impedir a criação de discípulos. Entre estas
forças e as que apoiam o grupo inovador, gera-se uma confrontação
argumentativa e de estratégia institucionalizante. 0 grupo
inovador procura institucionalizar a inovação ou a
especialização, organizando para tal uma estratégia
que envolve a identificação dos problemas e sua relevância,
a comunicação informal com outros cientistas visando
a consolidação mínima de posições,
a delimitação do grupo inovador e a instauração
de um sistema de recrutamento, meios de difusão alargada
(revistas, por exemplo), etc (52)
. Como já disse, os grupos opostos organizarão uma
estratégia anti-institucionalização. 0 resultado
final deste confronto depende da evolução da correlação
de forças entre grupos opostos no seio da comunidade científica.
0 enfoque «interno» sobre a comunidade científica corre
o risco de monopolizar as atenções da investigação
sociológica. 0 próprio Kuhn não considera explicitamente
factores exteriores à comunidade científica. Os factores
sociológicos considerados são os que decorrem da socialização
dos cientistas no seio da comunidade. No entanto, o papel central
da comunidade científica advém-lhe de ser a instância
de mediação entre o conhecimento científico
e a sociedade no seu todo e na sua tripla identidade sócio-económica,
jurídico-política e ideológico-cultural. É
nesta perspectiva exteriorizante que deve ser estudada a estrutura
interna da comunidade científica. É através
dela que se opera, na prática, a redefinição
da sociologia da ciência e se vê como são cada
vez mais ténues as linhas de distinção entre
a sociologia da ciência e a teoria (sociológica) da
ciência.
No âmbito desta perspectiva assumem particular relevo três
temas de investigação: a criação e gestão
da normatividade no seio da comunidade científica; a natureza
e o exercício da autoridade científica; os objectivos
sociais na génese das orientações teóricas
dominantes.
Quanto ao primeiro tema, é sabido, por exemplo, que certas
inovações e descobertas se afirmam através
da alteração dos modelos teóricos, metodológicos
e conceituais existentes, enquanto outras se impõem com base
na manutenção desses mesmos modelos. Por outro lado,
os modelos disponíveis são aplicados selectivamente
e com rigidez variável. Por vezes são aplicados estritamente
e, outras vezes, com a máxima flexibilidade. Isto significa
que dos modelos in books aos modelos in action vai
uma distância que cada cientista percorre com mais ou menos
correcção. Aliás, os resultados diferentes
a que se chega a partir das mesmas premissas pode não envolver
a violação de qualquer regra. E mesmo quando haja
violação, o modo como esta é sancionada varia
consideravelmente. As armas da tolerância e da repressão
não são utilizadas nem automaticamente nem caoticamente.
As condições teóricas constituem autênticas
normas sociais com validade no seio da comunidade científica
e esta assume as funções de agente de controlo social.
É bem possível que a sociologia do direito e as teorias
por ela desenvolvidas a respeito do aparelho jurídico-repressivo
venham a constituir um contributo importante para a nova sociologia
critica da ciência.
0 exercício do controlo social no seio da comunidade científica
pressupõe a existência de um centro de autoridade,
de poder, capaz de impor as normas sociais. Tradicionalmente, o
conteúdo semântico da «autoridade científica»
esgota-se na conotação de excelência profissional.
Tal limitação, no entanto, já não corresponde,
se alguma vez correspondeu, à prática científica.
A autoridade científica significa também autoridade
tout court, isto é, poder consentido. E embora a excelência
profissional tenda a coincidir com poder consentido, não
se trata de uma relação necessária ou unívoca.
Em tempos de crise ou de grande movimentação (sobredesenvolvimento)
científica, como aquele em que vivemos, os critérios
de excelência podem sofrer fracturas mais ou menos profundas.
0 poder consentido, que aliás nunca é inteiramente
consentido (pois de outro modo não haveria lugar a controlo
social), transforma-se nesses períodos em poder tout court,
isto, é, em dominação.
Daí também que a sociologia política possa
dar um contributo importante para a análise da autoridade
em ciência.
KnowIedge is power - o verdadeiro fundamento político
da ciência moderna - adquire um conteúdo mais denso
à luz da redefinição do conceito de autoridade
científica. 0 poder que a ciência exerce na sociedade
é o «produto» dialéctico da relação
entre o poder que a sociedade exerce sobre a comunidade científica
e o poder que se exerce no seio desta. Nas sociedades capitalistas
- porque fracturadas em classes antagónicas - e também,
embora de modo mais atenuado, nas sociedades socialistas de Estado
do Leste Europeu - porque os privilégios sociais são
desigual e burocraticamente distribuídos - o poder social
tende a ser exercido de modo a favorecer sistematicamente a classe
dominante ou os grupos privilegiados e, portanto, de modo a consolidar
as condições em que tal domínio ou privilégios
assentam e se reproduzem. É este o poder específico
que se exerce sobre a comunidade científica, e não
um poder social abstracto, emanado de uma consciência colectiva
global à maneira de Durkheim. É um poder portador
de objectivos sociais que variam segundo o grau de especificação
e o processo de canalização.
Em cada momento histórico a ciência tem uma estrutura
própria que lhe não permite integrar quaisquer objectivos
sociais de qualquer forma. Essa estrutura procede a uma operação
de filtragem, a que chamarei conversão reguladora, por
virtude da qual o objectivo social se transforma num objectivo teórico.
Trata-se de uma conversão meramente reguladora porque, fora
o caso de impossibilidade material de realização (pouco
provável, uma vez que a instância política é
sempre realista), o objectivo social traz consigo uma força
política que a estrutura científica tem forçosamente
de converter em energia produtiva de ciência. Por outras palavras,
a ciência põe e a política dispõe.
0 desenvolvimento moderno da articulação dos objectivos
sociais com as diferentes disciplinas científicas constitui
um processo histórico. Sem grande preocupação
de rigor, poderemos distinguir, no encalço de Kuhn, três
fases. Na fase pré-paradigmática, a ciência
tem uma estrutura mínima, a conversão reguladora é
pouco exigente e, nessas condições, a ciência
torna-se disponível para múltiplos objectivos sociais,
concretos ou difusos. A sua capacidade de realização,
no entanto, é inversamente proporcional à sua disponibilidade.
A fase seguinte é a fase da luta pelo paradigma, em que a
comunidade científica se orienta sobretudo para a construção
de uma teoria básica que dê coerência aos conhecimentos
parciais obtidos na fase anterior. Nesta segunda fase, a ciência
é particularmente indisponível para objectivos sociais.
0 desenvolvimento teórico e a estruturação
interna são a preocupação dominante e, por
isso, os objectivos sociais susceptíveis de conversão
são necessariamente difusos. Na terceira fase, a fase pós-paradigmática,
a disciplina científica adquire a maturidade teórica
e entra num processo acelerado de especialização do
objecto de investigação. A conversão reguladora
passa a realizar-se com eficiência estandardizada e a ciência
torna-se maximamente disponível para objectivos sociais concretos.
A concreção do objectivo é o correlato da especialização
do objecto. Nesta fase a orientação do desenvolvimento
teórico é accionada por factores externos que permitem
uma planificação da ciência, um processo que
Bõhme e outros chamam, pouco adequadamente, finalização
da ciência (53)
. De notar que o accionamento externo não se dirige à
aplicação das teorias, mas à própria
construção teórica. No mesmo processo em que
atinge a plenitude estrutural, a disciplina científica maximiza
a sua disponibilidade a objectivos sociais. Por sua vez, a concreção
destes e a especialização teórica potenciam
as capacidades de realização. A ciência torna-se
uma arma poderosa ao serviço dos interesses da classe ou
grupo dominante. A sua eficiência garante-lhe o apoio exterior
que possibilita um crescimento científico vertiginosamente
acelerado. Nesta fase perde sentido a distinção entre
ciência pura e aplicada, por um lado, e entre ciência
e tecnologia, por outro. A tecnologia cientifica-se a ponto de o
conhecimento científico se converter em projecto tecnológico.
Por outro lado, a produção teórica e a investigação
científica passam a ser apoiadas por uma complexa infraestrutura
de equipamento tecnológico e a imaginação dos
cientistas é paulatinamente substituída pela inteligência
artificial dos ordenadores. A ciência transforma-se numa força
produtiva e, simultaneamente, numa força produzida pela tecnologia.
Nesta fase, a luta mais importante no seio da comunidade científica
é a luta pela utilização dos investimentos
públicos e privados. 0 modo como esta luta é travada,
em condições de industrialização da
ciência, favorece o elitismo dos «grandes cientistas» e agrava,
por isso, a situação de proletarização
para que é relegada a grande maioria dos trabalhadores científicos.
0 elitismo científico é sempre político..,
mas por vezes é duplamente político. Por isso, além
de concretos, os objectivos sociais são orientados para os
sectores da comunidade científica com maior capacidade para
os realizar economicamente (incluindo custos económicos,
sociais e políticos). A luta pelo critério de selecção
e pela sua aplicação é uma luta política
em que a comunidade científica joga a sua sobrevivência.
Os vultosos investimentos envolvidos garantem um desenvolvimento
teórico acelerado mas exigem, como preço, a lealdade
aos objectivos sociais. Dada a conversão reguladora, esta
lealdade apresenta-se moldada em critérios de excelência
profissional, mas, no fundo, trata-se de uma lealdade política
ao sistema social cuja reprodução é garantida
pelos objectivos sociais em presença. Concomitantemente,
a autoridade científica passa a ser engendrada por factores
externos e a excelência profissional cobre melhor ou pior
a lealdade política. A orientação externa pode
alterar dramaticamente a correlação de forças
dentro da comunidade científica. E fá-lo, se necessário,
já que a correspondência do poder exercido no seio
da comunidade científica ao poder da classe ou grupo
dominante exercido sobre a comunidade científica é
condição sine qua non para a funcionalização
do poder social da ciência e da comunidade científica.
0 desvio à estrutura do poder dentro da comunidade científica
é sempre vazado em termos de violação técnica
dos modelos teóricos, metodológicos e conceituais,
mas tem muitas vezes uma origem política. 0 controlo social
exercido pelos detentores da autoridade e, portanto, a repressão
do desvio, é também vazado em critérios de
fidelidade aos standards técnicos, mas esconde muitas
vezes a repressão política Aliás, adiantarei,
como hipótese, que em fase pós-paradigmática
a probabilidade e a intensidade da repressão do desvio são
funções positivas do fundamento e das consequências
políticas desse mesmo desvio (54)
.
A nova sociologia crítica da ciência, agora em construção,
visa explicar e denunciar o desenvolvimento contemporâneo
da ciência, quer a nível global, quer a nível
das diferentes disciplinas científicas (55)
. Esse objectivo não será alcançado enquanto
se não puder definir com precisão o nível (ou
níveis) da correspondência (se não mesmo identidade
estrutural) entre as condições teóricas e as
não teóricas. Para tal, no entanto, é necessário
dispor de uma teoria geral das relações ciência
/sociedade. As muitas tentativas neste sentido, ou são incompletas,
ou são demasiadamente abstractas para poderem ser frutuosamente
articuladas com a investigação sociológica.
Sohn-Rethel, por exemplo, tenta ver nas formas gerais de troca a
fonte comum das categorias científicas e das categorias socio-económícas.
A categorização da natureza na ciência moderna
corresponde à abstracção a que a troca capitalista
reduz os objectos. Enquanto predominar este modo de troca, não
é possível transformar os modelos categoriais da ciência.
Eles constituem um apriori materialisticamente fundado (56)
. Doutra perspectiva, Moscovici estabelece uma relação
entre o conceito de natureza e as formas de trabalho. Partindo da
ideia de que o conceito de natureza é o fundamento da cosmovisão
e da construção teórica que integram o processo
científico, Moscovici tenta correlacionar a história
desse conceito com a história das formas de trabalho e, por
conseguinte, com a história do desenvolvimento das forças
produtivas (57)
.
0 projecto de uma teoria global das relações ciência/sociedade
é em si revelador da necessidade, já por mim afirmada,
de integrar a teoria de Kuhn com a teoria de Marx, uma necessidade
ainda mais premente quando se pretendam estabelecer, como é
o caso do presente trabalho, as condições prévias
de uma política cientifica ao serviço do socialismo.
Tal integração pressupõe que se reanalisem,
à luz da teoria de Marx, as relações entre
forças produtivas e relações de produção.
A teoria marxista até agora dominante tem atribuído
uma autonomia completa ao desenvolvimento das forças produtivas.
Isto é um erro porque obscurece as condições
reais do trabalho nas sociedades capitalistas avançadas,
porque falseia a estratégia de transição para
o socialismo, porque conduz (no seu não-dito) a uma apologética
do socialismo de Estado e, finalmente, porque transforma a sociedade
comunista do futuro em algo pouco menos que aterrorizador para os
próprios revolucionários. É provavelmente também
um erro considerar, ao contrário, que as forças produtivas
são o mero reflexo das relações de produção.
0 repensar das relações dialécticas entre as
forças produtivas e as relações de produção
deve incluir a questão da mediação da superstrutura
política nessa dialéctica, pelo menos na fase de industrialização
centralizada da ciência.
Esta discussão sobre a ciência socialista pouco ou
nada tem a ver com a discussão dos anos 30 e 40 sobre a distinção
entre ciência burguesa e ciência socialista. Essas discussões
visavam a constituição de uma ciência socialista
oficial e partiam menos da discussão da ciência em
Marx do que dos limites estreitos para ela estabelecidos por Engels
(Dialéctica da Natureza) e por Lenine (Materialismo
e Empírio-Criticismo). Procurou-se afincadamente a dialéctica
na natureza em vez de a procurar nas relações
entre a natureza e o homem. Fugiu-se ao problema epistemológico
da relatividade «subjectiva» do conhecimento científico e
acabou por se cair numa concepção positivista e mecanicista
da ciência-produto onde não há lugar para as
mediações dialécticas das condições
de produção (que, como vimos, são de uma importância
crucial à luz da teoria de Kuhn). Esta discussão atingiu
o clímax (e o impasse) com o caso Lysenko. Com base em dados
fraudulentos, ou simplesmente errados, o biólogo e agrónomo
Lysenko pode «demonstrar» a falsidade e o carácter antimaterialista,
e reaccionário das teorias genéticas de Mendel e Morgan,
contando para isso com o apoio de Estaline (58)
. Esta brutal manipulação política da ciência,
que se assemelha à dos nazis contra as teorias de Einstein
(59)
, conduziu ao impasse toda a discussão anterior sobre a ciência
socialista e dele não mais se libertou até ao presente.
É mesmo possível que essa discussão e impasse
tenham determinado «em última instância» a concepção
de ciência disfarçadamente: positivista de AIthusser.
Ao contrário de tudo isto, a ciência socialista cuja
discussão aqui se propõe é uma ciência
estruturalmente não-oficial. Num contexto mundial dominado
por grandes blocos, essa ciência tem de ser uma ciência
de oposição, de resistência. Nas sociedades
capitalistas, a apropriação individual dos meios de
produção científica e o compromisso do Estado
com a classe dominante são o fundamento último do
carácter classista da ciência. Nas sociedades socialistas
de Estado há pelo menos o risco de a ciência ser posta
ao serviço de projectos burocráticos definidos à
revelia da discussão e decisão populares. À
nova sociologia crítica da ciência compete esclarecer
em pormenor e sem demagogia a extensão e a intensidade do
«classismo» e do «burocratismo» da ciência.
Esta sociologia surge num contexto de grande contestação
da ciência, o que põe com acuidade o problema da política
científica. Ao aprofundar o nível da penetração
social na constituição da ciência contemporânea
e ao estabelecer que a disponibilidade da ciência tende a
aumentar com o seu desenvolvimento, a sociologia da ciência
abre à política científica domínios
até agora insuspeitos. Mais do que isso, uma vez que o desenvolvimento
da ciência nunca é acidental nem necessário,
a sociologia política da ciência independe da política
científica enquanto tal. Por outras palavras, a ausência
de uma política científica é também
uma forma de política científica.
A estrutura do poder «sabe» que opera num ambiente de contestação
ou, pelo menos, de grande ambiguidade a respeito da ciência
(60)
. Neste ambiente, cria-se socialmente a necessidade de uma política
científica que expressamente oriente o desenvolvimento da
ciência para o serviço do bem estar social. Sem uma
tal política não é possível às
sociedades industriais avançadas continuarem a injectar vultosos
investimentos na ciência sem que tal envolva riscos políticos
mais ou menos sérios. Numa sociedade em que a divisão
do poder é estruturalmente desigual, a luta pela política
científica (a luta por uma certa ciência) é
parte integrante da luta política global e, numa sociedade
capitalista, é mesmo parte integrante da luta de classes.
E a luta pela política científica é tanto mais
importante quanto na sociedade contemporânea se assiste ao
colapso da distinção entre ciência pura e ciência
aplicada, entre ciência e tecnologia, e não tardará
a assistir-se ao colapso da distinção entre ciências
naturais e ciências sociais.
A nova sociologia da ciência, que é produto desta
conjuntura, ao mesmo tempo que revela os amplos domínios,
as múltiplas formas e a relativa eficácia de urna
política científica oficial levada a cabo pela estrutura
de dominação, fornece elementos preciosos para o controlo
político popular mais eficaz e diversificado dessa política.
Fornece, aliás, as condições teóricas
para o estabelecimento de uma contra-política científica
e, afinal, de uma contra-ciência. A concretização
de uma tal política alternativa depende das condições
sócio-económicas e políticas, depende da correlação
de forças. Mas, pelo menos, cria-se a possibilidade de os
cientistas se politizarem, não só como cidadãos,
mas também como cientistas.
Seria errado transferir a concepção heróica
da ciência para a sociologia crítica da ciência.
Disse no início que a instância crítica só
tem legitimidade enquanto instância auto-crítica. Unia
das características que distinguem a nova sociologia crítica
da ciência de outras abordagens sociológicas da ciência
é que ela é uma sociologia antitética. A desmistificação
da ciência é correlato, da desmistificação
da sociologia (que afinal também é ciência).
A captação da prática científica em
acção e a contraposição desta à
normatividade heróica das relações públicas
da comunidade científica é concomitante da revelação
da «história natural» da investigação sociológica,
isto é, a história daquilo que de facto se passa quando
se faz investigação e, sobretudo, daquilo que se faz
dos métodos, hipóteses, variáveis, amostragens
e demais parafernalia, depois de lhes prestarmos as homenagens oficiais
e de os pendurarmos no capítulo introdutório sobre
a metodologia (61)
. 0 sociólogo crítico (e, em geral, o cientista crítico)
é aquele que, depois de se lavar das impurezas e sujidades
acumuladas durante a investigação, sabe reparar que
está nu.
Estamos provavelmente no limiar de uma crise global do paradigma
da ciência moderna. Diz Koyré que em época de
crise a investigação tende a refugiar-se na metodologia
(62)
. Talvez porque na nossa época a crise se manifesta especialmente
como crise das relações ciência /sociedade,
a crítica metodológica assume a forma de crítica
sociológica. Mas o nível mais profundo da crise revela-se
no conceito moderno de natureza, sobretudo na sua versão
industrial, e é também aí que a mudança
de paradigma se há-de primeiro revelar (63)
.
Vimos anteriormente que na fase pós-paradigmática
o objecto da ciência tende a uma crescente concreção
e, a uma crescente complexidade. Esta, por sua vez, provoca a desgeneralização
da ciência e com ela a subversão do método.
A repetibilidade da observação, por exemplo, torna-se
cada vez mais problemática em virtude das alterações
provocadas, no objecto (na natureza) pela experimentação.
A natureza deixa de ser um recurso imenso e inerte para se transformar
no limite do sentido da acção. 0 conceito de natureza
normativiza-se no processo em que a ciência da natureza se
historiciza. A ciência passa a ser violação
quando não respeita a normatividade. E é simultaneamente
violação da natureza e de si própria. 0 vício
ético e o vício epistemológico sobrepõem-se.
A neutralidade e a objectividade são as cinzas de um passado
que nunca existiu. A ciência moderna, que sempre se caracterizou
pela sua antropofagia, acaba por se comer a si própria, e
é a partir da sua própria digestão que pode
visualizar a transformação por que passa.
A sociologia crítica pode ajudar a detectar este processo
nas suas várias fases, nos seus recuos e avanços.
A título de exemplo, anote-se que começa a ser visível
a conflitualidade interna das ciências físicas e naturais,
a fractura teórica como correlato da fractura de classe.
Nisto consiste uma das linhas de convergência entre as ciências
físicas e naturais e as ciências sociais. Mas a convergência
é uma fase preliminar da transformação dialéctica,
a qual se dá com a transformação paradigmática.
0 paradigma do progresso, que tem presidido ao desenvolvimento
exponencial da ciência moderna, começa a sentir o confronto
do paradigma da sobrevivência. No seio deste paradigma, toda
a ciência é ecologia política e a ecologia política
é toda a ciência. E toda a ciência é indisciplinar
e normativa.
É neste sentido, e só neste, que a ciência
socialista é antitética. Anti-ciência.
Notas
(1)
O presente trabalho - originalmente publicado com ligeiras alterações
no n.º LIV de BIBLOS (Miscelânia de homenagem ao Prof. Victor
Matos e Sá) - é o primeiro de uma série de
artigos sobre o mesmo tema a publicar em números subsequentes
da Revista Crítica de Ciências Sociais. Tive ocasião
de discutir muitas das ideias aqui expandidas com os membros do
grupo de Ciências Sociais da Faculdade de Economia de Coimbra,
sobretudo com aqueles que comigo leccionam ou leccionaram a cadeira
de Introdução às Ciências Sociais: Drs.
Carlos Lencastre Costa, Carlos Fortuna, Jacques Houart, Rogério
Leitão, Fernando Ruivo e José Veiga Torres. Agradeço
também os comentários do Dr. Madureira Pinto.
(2)
Neste sentido, Robert Merton, Social Theory and Social Structure,
New York, Free Press, 1968, p. 585.
(3)
Merton, op. Cit., terceira parte
(4)
Merton, op. Cit., p. 598 ss. Em 1932 fundou-se o Cambridge Scientists
Anti-War Movement, que foi o berço político e científico
dos "velhos" cientistas do movimento dos anos 60. Foi
particularmente activo em salvar cientistas judeus do jugo nazi
e mais tarde, durante a guerra, em melhorar a protecção
civil contra os ataques aéreos. Vide H. Rose e S. Rose, "The
Radicalization of Science" in R. Miliband e J. Savile (orgs.),
The Socialist Register 1972, London, Merlin Press, 1972,
p.110.
(5)
O grande físico W. Heisenberg foi considerado judeu branco
(isto é, ariano perigoso porque amigo de judeus) apenas por
ter persistido na opinião de que a teoria da relatividade
de Einstein constituía uma base séria de investigação.
Vide Merton, op.cit., p. 592.
(6)
Merton, op. Cit., p. 606: "Science develops in various social
srtuctures, to be sure, but which provide an institutional context
for the fullest measure of development?".
(7)
Foi o predomínio da concepção positivista que
levou ao isolamento uma das primeiras tentativas de analisar o impacto
da sociedade na ciência sob uma perspectiva marxista, e que
foi obra de Bernal (vide, por exemplo, The Social Function of
Science, London, Routledge and Kegan Paul, 1939). Pode mesmo
considerar-se Bernal como fundador da "ciência da ciência",
uma disciplina integrada, incluindo a sociologia, a história,
a psicologia, etc., e tendo por objecto o estudo da ciência.
A denomonação tinha sido cunhada três anos antes
por Ossowski e Ossowska, "Die Wissenschaft der Wissenschaft"
in Organon (varsóvia), 1936, I.
(8)
Cf. a crítica de Mannheim neste sentido feita por Merton,
op. Cit., p. 543 ss.
(9)
Cf. o paralelo que Merton estabelece entre a sociologia do conhecimento
e o que, segundo este especialista, era a sua correspondente americana,
a sociologia da comunicação (op. Cit., p. 493 ss).
Entre as diferenças apontadas ressalta que, enquanto a sociologia
europeia trata temas da máxima significância cujo tratamento
contudo não pode ir além da investigação
especulativa (dirá o sociólogo europeu: "We don't
know that what we say is true, but it is at least significant"),
a sociologia americana trata de temas de muito menor significância
mas que, por serem mensuráveis, permitem uma investigação
rigorosa e conclusões verdadeiras (dirá o sociólogo
americano: "We don't know that we say is particularly significant,
but it is at least true"). Menciono esta diferença por
me parecer adequada, apesar do seu pre-juízo positivista,
e por ter aliás um escopo mais amplo que o da sociologia
do conhecimento.
(10)
Cf. merton, op. Cit., p. 605.
(11)
Note-se como neste elenco definitório Merton deixa de fora
uma acepção crucialmente importante para a 2ª fase
da sociologia da ciência: a ciência como sistema de
produção de conhecimentos.
(12)
Cf. Merton, op.cit., p.605.
(13)
Em 1952, Bernard Barber, um dos discípulos de Merton, substitui
«comunismo» por «comunalismo» (communality) devido às conotações
políticas e ideológicas da expressão originalmente
usada por Merton. Estávamos em pleno mcCarthismo e esta mudança
terminológica constitui em si um documento para a sociologia
das ciências sociais. Cf. Leslie Sklair, Organized Knowledge,
London, Paladin, 1973, p.112 ss.
(14)
Por exemplo, Merton (op., p. 612) reconhece que o comunismo enquanto
ética científica é incompatível com
a definição da tecnologia como propriedade privada
na economia capitalista. Uma vez que a patente dava (e dá)
tanto o direito ao uso como ao não uso, muitos cientistas,
incluindo Einstein, foram levados a patentear o seu trabalho a fim
de garantir o seu acesso ao público. Merton considera, no
entanto, que nem por isso se deve advogar o socialismo para garantir
a realização deste valor, como faz, por exemplo, Bernal.
(15)
A filosofia da ciência deste período é dominado
pelo empiricismo lógico elaborado a partir do círculo
de Viena e depois desenvolvido em múltiplas variantes, como
a do método hipotético-dedutivo de Karl Popper [The
Logic of Scientific Discovery, New York, Basic Books, 1959 (1934)].
Esta corrente filosófica parte do princípio da validação
(ou da refutação) absoluta do conhecimento por meio
do método científico constituído segundo o
modelo da lógica matemática. Faz-se uma distinção
total entre o contexto da justificação (Reichenbach)
ou da refutação (Popper), por um lado, e o contexto
da descoberta, por outro. O primeiro define a validade e, portanto,
a verdade do conhecimento adquirido segundo as condições
lógicas e epistemológicas internas à própria
ciência e constitui o domínio da teoria da ciência.
O contexto da descoberta é irrelevante do ponto de vista
da teoria da ciência, pois que, dizendo respeito à
génese das ideias e sendo determinado por factores sociológicos
e psicológicos, não é susceptível de
reconstrução lógica. È o domínio
da sociologia e da psicologia. A divisão do trabalho entre
a sociologia da ciência e a teoria da ciência estabelecida
por Merton tem aqui as suas raízes. Daí que na segunda
fase da sociologia da ciência a ruptura com esta divisão
do trabalho implique a ruptura com o positivismo lógico.
Por outro lado, o normativismo que já detectámos em
Merton é inerente ao positivismo lógico, pois do que
se trata não é de analisar a prática científica
mas antes de estabelecer o conjunto de normas e ideias epistemológicos
a que o cientista deve aspirar. O positivismo lógico, que
mantém quase o monopólio da filosofia da ciência
até aos anos 60, representa a consciência «retórica
dominante do processo científico no século XVI. Ao
afirmar que o livro da natureza está escrito em caracteres
geométricos», Galileu criou simultaneamente as condições
para o conhecimento científico ser modelado segundo o conhecimento
da natureza e para este ser construído segundo a lógica
da matemática. Talvez por isso também a sociologia
do conhecimento tenha sempre recuado perante as ciências naturais,
apesar da sua orientação anti-positivista. Em Mannheim,
o condicionamento social destas (Seinsgebundenheit) é
reduzido ao mínimo, à determinação da
direcção da investigação. Mas o próprio
Mannheim não deixa de repetidamente denunciar o «positivismo
moderno» por ter aderido a um ideal de ciência e de verdade
que coloca fora do domínio científico todo o conhecimento
não quantificável e não mensurável (Ideology
and Utopia, New York, Harcourt, Brace and World, s.d., p. 165,
290 ss. O original alemão data de 1929/31 e a primeira edição
em inglês é de 1936). Sobre as relações
entre a sociologia do conhecimento e as ciências naturais,
cf., por exemplo, R.G.A. Dolby, «The Sociology of Knowledge in Natural
Science» in B.Barnes (org.), Sociology of Science, Penguin,
1972, p.309 ss, e Peter Weingart (org.), Wissenschaftssoziologie
I, Fischer Verlag, 1972, p.28.
(16)
Para uma discussão em Portugal da questão do objecto,
cf. A. Sedas Nunes, Questões preliminares sobre as ciências
sociais, Lisboa, GIS, 1972, e Ferreira de Almeida e Madureira
Pinto, A Investigação nas Ciências Sociais,
Lisboa, Presença, 1976.
(17)
Falo de autonomia enquanto retórica de legitimação.
Como tal, surge no momento em que se consolida a união da
sociologia com os interesses da classe dominante.
(18)
Além da obra, The Social Function of Science, já
mencionada (vide nota 7), cf. «Science Industry and Society in the
19th Century» in Centaurus III (1953) e Science
in History, Watts, 1965. Não é possível
hoje partilhar do optimismo de Bernal que via na planificação
da ciência, do tipo da que se fazia então na URSS,
a condição necessária e suficiente para garantir
o progresso incondicional da ciência ao serviço do
povo.
(19)
Cf. Merton, op. Cit., 73 ss.
(20)
Cf. W. O. Hagstrom, «Gift-Giving as an Organizing Principle in Science»
in Barnes (org.), op. cit., p. 105 ss. Cf. ainda S. Cole e J. Cole,
«Scientific Output and Recognition: A Study in the Operation of
the Reward System in Science» in American Sociological Review
32 (1967), 377-90.
(21)
Desenvolvimento significa em geral os gastos feitos na aplicação
dos resultados da investigação dirigida quer à
introdução de novos materiais, equipamentos, produtos,
sistemas, processos quer ao aperfeiçoamento dos já
existentes.
(22)
Cf. Sklair, op. Cit., p. 19.
(23)
Dados do Committee for Science Policy citados por Sklair, op. Cit.,
p. 20.
(24)
Segundo números mais recentes e segundo outra classificação
dos gastos do governo americano em ID, 76% foram para defesa e espaço;
muito atrás vêm, entre outros: saúde 7,3%; recursos
naturais e ambiente, 4.9%; habitação e planificação
urbana, 0,3%. Semelhante padrão segue o governo federal alemão:
33,1% para o desenvolvimento de novas tecnologias (por exemplo,
investigação nuclear), investigação
espacial, processamento de dados, etc.; 1,2% para «questões
sociais e saúde»; 0,9% para habitação, transportes.
Cf. Weingart I, p. 18.
(25)
Para o caso português, cf. J. M. Rolo, «Transferências
de tecnologia e dependência estrutural portuguesa: resultados
de um inquérito» in Análise Social (1975),
p. 213 ss.; idem, «Modalidades de tecnologia importada em Portugal»
in Análise Social (1976), p. 541 ss.
(26)
Sobre os robots e a produção nesta fase, Cf. David
Chidakel, «The new Robots: can They Do Your Job»? in Science
for the People (Nov. 1975), p. 6 ss.
(27)
Citado por Weingart I, p. 16.
(28)
Cf. Sklair, op. cit., p. 46. Num trabalho mais recente (1969) Price
afere a dinâmica desenvolvimentista da ciência nas suas
relações com a tecnologia. Cf. Derek Price, «Science
and Technology: Distinctions and Interrelationships» in Barnes (org.),
op. cit., p. 166 ss..
(29)
Entre muitos outros, cf. S. Cotgrove e S. Box, Science Industry
and Society, London, Allen and Unwinn, 1970; Sklair, op. cit.,
p. 74 e ss.; 161 ss.
(30)
Deve atentar-se em que o diagnóstico da crise é já
um afastamento da concepção positivista da ciência
e só é possível através dele. Uma vez
que se não ponha em causa o carácter absoluto da validação
interna dos processos cognitivos, todas estas transformações
da prática científica podem ser consideradas funcionais
para o progresso da ciência. E isso mesmo foi feito pela sociologia
funcionalista ao considerar, por exemplo, que a polarização
entre os cientistas de elite e os cientistas plebeus era funcional,
uma vez que libertava os grandes cientistas do trabalho de rotina
e os colocava em posição óptima para conduzir
a investigação inovadora e arriscada.
(31)
Cf. Rose e Rose, op. Cit.. Um dos grupos mais significativos é
Scientists and Engineers for Social and Political Action que publica
a revista Science for the People. Aí se têm
feito as denúncias mais esclarecidas da ciência capitalista.
(32)
Cfr. Sedas Nunes, op.cit., p. 25.
(33)
Para uma crítica acerba da sociologia académica funcionalista,
cf. Alvin Gouldner, The Coming Crisis of Western Sociology,
New York, Equinox Books, 1970. A alternativa proposta por Gouldner
é de tal maneira frouxa que pode ser considerada um documento
para a sociologia da sociologia, pois que elucida bem o impasse
em que o funcionalismo coloca os seus cultores, mesmo quando estes
se revoltam contra ele.
(34)
Para a discussão sobre a conflitualidade interna das ciências
sociais, vide o excelente trabalho de Sedas Nunes, já citado,
p. 35 ss.
(35)
A investigação mais inovadora dentro desta corrente
foi conduzida por Merton, embora a grande síntese teórica
pertença a T. Parsons [The Structure of Social Action,
2 vols., New York, Free Press, 1968 (1937); The Social System,
New York, Free Press, 1964 (1951)].
(36)
Por exemplo, L. Reynolds e J. Reynolds (orgs.), The Sociology
of Sociology, New Yoork, Mckay 1970; R.w. Friedrichs, A Sociology
of Sociology, New York, Free Press, 1972 (1979).
(37)
T. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago,
University of Chicago Press, 1962. A tradução francesa
(Flammarion) é da 2.ª edição aumentada de 1970.
A importância de Kuhn assenta menos na sua originalidade do
que no seu esforço de síntese e na sua capacidade
para dar fôlego polémico a ideias já presentes
nas obras de outros autores. No prefácio a The Structure,
Kuhn não deixa de reconhecer a grande influência que
sobre ele exerceu A. Koyré, sobretudo em Les Études
galiléennes, 3 vols., Paris, 1939.
No seguimento da discussão com os seus críticos, Kuhn
alterou sucessivamente a sua teoria em aspectos mais ou menos marginais
e, em meu entender, nem sempre no melhor sentido. Por isso me reporto
ao seu pensamento original e, nos parágrafos que se seguem,
cito livremente da sua obra. Para uma discussão actualizada
das alterações propostas por Kuhn (ou por ele aceites),
vide W. Diederich (org.), Theorien der Wissenschaftsgeschichte,
Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1974; uma visão completa da discussão
de Kuhn com os seus críticos encontra-se em I. Lakatos e
A. Musgrave (orgs.), Criticism and the Growth of Knowledge,
Cambridge, Cambridge University Press, 1970.
(38)
Cf. nota anterior. A violenta crítica de Lakatos a Kuhn tem
por vezes escondido muitos pontos de contacto entre a sua teoria
do desenvolvimento científico e a do próprio Kuhn.
Lakatos distingue duas grandes unidades no desenvolvimento teórico:
o programa de investigação (research programme)
- a unidade mais ampla - e a teoria - a unidade mais restrita. Esta
última assegura a continuidade dado que se desenvolve dentro
de um programa de investigação. As descontinuidades,
as mudanças profundas de orientação são
asseguradas pela concorrência entre os diferentes programas
de investigação. O novo programa impõe-se na
medida em que permite um tratamento progressivo (por oposição
a degenerado) dos problemas. É nítida a convergência
entre o programa de investigação de Lakatos e o paradigma
de Kuhn.
(39)
Cf. Diederich (org.), op. cit., p. 22 ss.
(40)
Cf. Diederich (org.), op. cit., p.29. Aliás, Kuhn é
tanto responsável por esta relativização ao
falar, em tempos mais recentes, em diferentes tipos de revoluções
e em «matrizes disciplinares» e «exemplares« com um sentido paralelo
ao de paradigma. Uma nova afirmação do evolucionismo
de Toulmin em «Innovation and the Problem of Utilization» in W.
Gruber e D. Marquis, (orgs.), Factors in the Transfer os Technology,
Cambridge, Mass., MIT Press, 1969, p. 24 ss.
(41)
Cf. Sklair, op. cit., p. 136.
(42)
Vide Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, 2 vols.,
Princeton. Princeton University Press, 1971 (1962).
(43)
B. Barber, «Resistance by Scientific Discovery» in Science
134 (1961), p. 596-602.
(44)
A crítica de Kuhn a Barber é particularmente incisiva
(apesar de apenas implícita) num trabalho de 1963 que condensa
o fundamental da sua teoria. Vide Kuhn, «Scientific Paradigms» in
Barnes (org.), op. cit., p.80 ss. Seguindo de perto Kuhn mas recorrendo
também às teorias sócio-psicológicas
sobre a recepção das crenças, Barnes faz a
crítica de Barber em «On the Reception of Scientific Beliefs»
in Barnes (org.), op. cit., p. 269 ss.
(45)
Esta linha de investigação encontra na obra de Gaston
Bachelard uma fonte inesgotável de inspiração.
Os limites do presente trabalho não permitem que se dê
a atenção devida ao desafio de Bachelard a toda a
concepção da ciência que busque garantias absolutas
para o conhecimento científico.
(46)
Esta área tem sido sobretudo explorada por G. Böhme,
W Daele e W. Krohn, «Alternativen in der Wissenschaft» in Zeitschrift
zur Soziologie 1 (1972), p. 302-316. Os autores fazem parte
do grupo de investigação «Alternativas em Ciência»
do Max-Planck-Institut zur Erforschung der Lebensbedingungen
der wissenschaftlich-technischen Welt em Starnberg, (Alemanha
Federal). Em setembro e dezembro de 1976, em Starnberg, tive ocasião
de discutir com W. Krohn e R. Hohlfeld (outro membro do grupo) as
perspectivas e os limites desta área de investigação.
(47)
Böhme, Daele e Krohn, op. cit., p. 303.
(48)
Böhme, Daele e Krohn, op. cit., p. 304.
(49)
Böhme, Daele, e Krohn, «Die Finalisierung der Wissenschaft»,
Zeitschrift zur Soziologie 2 (1973), p. 133.
(50)
Cf., por exemplo, W. Krohn e W. Schäfer, «The Origins and Structure
of Agriculture Chemistry» in G. Lemaine, R. Mcleod e M. Mulkay (orgs.),
Perspectives on the Emergence of Scientific Disciplines,
Paris, Mouton, 1976, p. 27 ss.; R. Hohlfeld, «Cognitive and Institutional
Determinants directing Science. The case of Biomedical Research»,
(Inédito), Starnberg, 1976.
(51)
P. Weingart, Wissenschaftssoziologie II, Fischer Verlag,
1974, p. 22 ss.
(52)
Weingart II, p. 26.
(53)
Cf. Böhme, Daele e Krohn, op. cit., (1973).
(54)
Ao contrário de Böhme, Daele e Krohn, que, no seguimento
de Kuhn, distinguem também três fases no desenvolvimento
das disciplinas científicas, penso não ser possível
determinar as fases com base exclusivamente nas condições
teóricas da produção científica. É
sabido que certos cientistas se recusam por vezes a fazer investigação
orientada para objectivos sociais (targered research) com
o fundamento de que não existe ainda uma teoria básica
acabada (o paradigma de Kuhn ou a abgeschlossene Theorie
de Heisenberg) e de que, portanto, não se atingiu a fase
pós-paradigmática, enquanto outros são de opinião
contrária e nessa base acedem a fazer tal investigação
sob contrato. Assim, quer-me parecer que o momento da constituição
do paradigma e, em geral, a determinação das fases
são objectos possíveis da sociologia da ciência.
(55)
Reflectindo um statu quo científico que a transcende,
a sociologia crítica da ciência tem vindo a desenvolver-se
num contexto de dupla incomunicação: por um lado,
a incomunicação entre a sociologia anglo-saxónica
e a sociologia francesa; por outro lado, a incomunicação
entre a sociologia das ciências sociais e a sociologia das
ciências físicas e naturais. Esta dupla incomunicação
tem consequências muito negativas. Quanto à primeira,
ela tem impedido a fertilização cruzada das duas sociologias.
Enquanto a sociologia anglo-saxónica tem avançado
mais na elaboração dos instrumentos para uma investigação
sociológica detalhada e convincente, a sociologia francesa
tem-se mostrado muito mais consciente da necessidade de revitalizar
e enriquecer a herança de Marx. Sendo certo que, como já
disse, o paradigma de Kuhn só faz pleno sentido no âmbito
do paradigma de Marx, torna-se evidente que sem a fertilização
cruzada destas duas linhas pouco se adiantará na constituição
da nova sociologia crítica da ciência.
A respeito do segundo tipo de incomunicação, deve
salientar-se que, se é verdade que as ciências sociais
se constituiram a partir do século XIX com base no modelo
positivista das ciências naturais, não é menos
verdade que, sendo este modelo mais facilmente denunciável
ao nível das ciências sociais, estas podem constituir,
pelo menos, uma fonte de inspiração para a reconstrução
das ciências físicas e naturais em bases anti-positivistas.
O que até agora se tem concebido como «sub-desenvolvimento»
das ciências sociais pode converter-se no seu «avanço».
Mas, mais profundamente, o que está em perspectiva é
a crescente convergência das ciências sociais com as
ciências naturais.
O presente trabalho está mais orientado para vencer o segundo
tipo de incomunicação do que para vencer o primeiro.
Os fundamentos de uma sociologia crítica das ciências
sociais foram lançados em Portugal por Sedas Nunes com base,
predominantemente, na sociologia francesa (vide Questões
preliminares sobre as ciências sociais, cit.).
(56)
A. Sohn-Rethel, Geistige und Körperliche Arbeit. Zut Theorie
der gesellschaftlichen Synthesis, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1970.
(57)
S. Moscovici, Essai sur l'histoire humaine de la nature,
Paris, Flammarion, 1968. Uma elaboração posterior
das suas ideias encontra-se em La société contre
nature, Paris, 10/18, 1972.
(58)
Cf. Zh A. Medvedev, The Rise and Fall of T. D. Lysenko, New
York, Columbia University Press, 1969; Dominique Lecourt, Lysenko:
Histoire réelle d'une «science prolétarienne»,
Paris, Maspero, 1976.
(59)
Houve uma altura em que Einstein era atacado, ainda que por diferentes
razões políticas, tanto na Alemanha nazi como na União
Soviética. É importante reconhecer, no entanto, que
estes casos de manipulação política são
excepcionais apenas na sua intensidade. A sociologia crítica
da ciência proposta neste trabalho revela que a ciência
industrial, sobretudo na sua fase pós-paradigmática,
está constantemente sujeita a manipulações
políticas, só que de grau muito menor.
(60)
Cfr. O. Handlin, «Ambivalence in the popular response to science»
in Barnes (org.) op. cit., p. 253 e ss.
(61)
Um grupo de cientistas sociais constituído por Robin Luckham
(Institute of Development Studies at the University of Sussex),
Heleen Ietswaart (FLASCSO, Buenos Aires), Richard Abel (University
of California), Francis Snyder (York University), Neelan Tiruchelvam
(Sri Lanka Centre of Development Studies) e eu próprio preparam
um volume colectivo sobre a história natural das suas investigações
empíricas no domínio da sociologia do direito.
(62)
A koyré, Études d'histoire de la pensée
scientifique, Paris, Gallimard, 1973, p. 63.
(63)
Cf., também Moscovici, La société, cit.,
p. 361 ss.
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