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Nº 38
Dezembro de 1993
Descobrimentos / Encobrimentos
ISSN 0254-1106 e ISSN eletrónico 2182-7435
  Descobrimentos e Encobrimentos - Boaventura de Sousa Santos  
 
Boaventura de Sousa Santos
  Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira  (pp. 11-39)
 Neste trabalho, procedo a uma análise das identidades de raiz sexual, étnica e cultural, à luz do processo histórico que as pretendeu suprimir — aliás sem êxito, como agora se verifica. A propósito, refiro as contestações romântica e marxista do reducionismo operado pela modernidade na sua versão hegemónica. Preocupo-me, em especial, com a questão da identidade da cultura portuguesa e proponho uma hipótese de trabalho sobre a sua caracterização.
 
Immanuel Wallerstein
  Encontros: 1492 e Depois; Descobertas: 1992 e Antes  (pp. 41-48)
 Existem neste momento três ventos fortíssimos que vêm abalando as nossas estruturas geoculturais, fazendo-as evoluir: o "anti-estadismo", as identidades de grupo, e a ideologia da igualdade enquanto grande legitimadora das relações sociais. Nenhum deles é novo, mas desde 1492 que nenhum dos três foi, em ocasião alguma, tão forte como nos últimos 25 anos. De que se queixam as pessoas que exigem mais democracia? Queixam-se, como é óbvio, do facto de outros terem mais poderes e mais privilégios do que elas. O que as forças conservadoras de todo o mundo mais temem é a democracia, precisamente porque esta implica, ainda e essencialmente, igualdade. Por outras palavras, as forças que o encontro de 1492 pôs em movimento levaram as suas contradições até ao ponto de deixarem o próprio sistema à beira da ruptura. É essa, afinal, a grande descoberta feita em 1992.
 
Marilena Chauí
  500 Anos. Cultura e Política no Brasil  (pp. 49-55)
 O profetismo messiânico deixou na sociedade brasileira duas marcas político-culturais contraditórias, e uma delas tem o estranho poder de legitimar o encolhimento do Dezembro de 1993espaço público e a privatização neoliberal. Do lado popular, o profetismo messiânico tem sido a única forma de vislumbrar a utopia da sociedade justa e feliz, quando o povo de Deus vencer a fome, a peste, a guerra e a opressão. O essencial, porém, é a face contrária ao messianismo popular, isto é, o populismo messiânico da classe dominante. Aqui, longe de os sinais dos tempos ou das abominações suscitarem a ação rebelde dos que construirão o Novo Século, o que se produz é a resignação, o conformismo e a servidão voluntária. Assim, o neoliberalismo exige o encolhimento do espaço público, enquanto a teologia política teocrática propõe o alargamento do espaço privado. Após 500 anos, a sociedade brasileira se realiza sob a forma desse encontro fantástico entre o pós-moderno e o arcaico.
 
Rodolfo Stavenhagen
  O Legado de Colombo (Visto de Baixo)  (pp. 57-74)
 Durante algum tempo transpareceu a ideia de que os povos índios viriam a desaparecer antes do final do século e de que o sonho das elites dominantes da América Latina se iria tornar realidade. A tarefa de conquista e colonização, começada quinhentos anos antes e prosseguida ao longo de todo o período republicano de integração e construção nacional, ir-se-ia, finalmente, cumprir. Mas na sua grande maioria os observadores não contaram com a tenacidade e com a vitalidade dos povos indígenas, tal como também não previram que, ao aproximar da data do quinto centenário, a etnicidade índia viesse a surgir como força política e culturalmente mobilizadora. Com efeito, o que as culturas índias da América Latina têm de admirável não é tanto o facto de exprimirem o necessário sincretismo dos últimos cinco séculos, mas antes a circunstância de, não obstante o sincretismo, a aculturação, as políticas etnocidas estatais e as forças económicas globalizantes, manterem uma identidade própria muito vincada.
 
Carlos Antonio Aguirre Rojas
  O Capítulo Americano: início da "Verdadeira" História Universal  (pp. 75-85)
 As novas obras produzidas e os resultados da investigação resultante do fenómeno de moda produzido pelas comemorações espanholas do quinto centenário da chegada de Colombo à América voltam a tornar patente o carácter ainda algo semi-virgem e pouco explorado da história do mundo e da civilização latino-americanos, bem como a imensa quantidade de problemas que ainda permanecem por abordar e desenvolver na história moderna do subcontinente. E isso não somente em termos da explicação e interpretação históricas dos processos essenciais do devir latino-americano, como também inclusivamente ao simples nível da investigação documental e do trabalho rigoroso de reposição dos "factos". Procurando olhar um pouco para além de Outubro de 1992, é interessante assinalar algumas novas vias de investigação manifestadas em consequência desta breve conjuntura intelectual provocada pelas referidas comemorações.
 
Mohammed A. Bamyeh
  Árabes e Europeus: duas lógicas antagónicas de descoberta  (pp. 87-103)
 A rede de interdependências existente no mundo não-europeu até ao séc. XV assentava no mútuo acesso e na mútua tolerância, não assumindo relevância, nesse contexto, a questão do total controlo político ou cultural. Mas os viajantes europeus, preocupados como estavam com o modelo europeu da cidade murada e marcada pela segregação, achavam-se mal preparados para se darem conta da própria realidade multicultural que tornara possível as suas viagens. O estudo comparativo de relatos de viajantes europeus e árabes dos séculos XII a XIV — do aventureiro veneziano Marco Polo, do padre católico francês Frei Jordanus, do escolar muçulmano andaluz Ibne Jubair, e do magrebino Ibne Batuta — põe em evidência lógicas de descoberta, mundividências e práticas culturais bastante distintas, nomeadamente no que se refere à relação com o Outro e no que concerne ao papel desempenhado, em cada região, pelas instâncias do poder central.
 
Luís Madureira
  O Mostrengo e o Encoberto: Mirabilia e a ordem do saber nos discursos narrativos da expansão  (pp. 105-121)
 Uma leitura corrente da expansão portuguesa, segundo a qual os discursos narrativos de Quinhentos prefiguram a revolução epistemológica que o empirismo neo-clássico supostamente representa, fundamenta-se na pressuposição de que o último termo da evolução da "mentalidade" europeia, iniciada pelos Descobrimentos (isto é, o progresso), coincide com o presente do discurso historiográfico. O progresso reduz-se, assim, à projecção duma temporalidade local (europeia) em espaços que figuram só em segundo plano tanto nos discursos quinhentistas como na historiografia contemporânea. Sugere-se, ao invés, que a ordem do saber quinhentista se conceptualiza como vinculada na herança clássica e medieval, mas que é, na realidade, contínua com a do Outro civilizacional. Conclui-se que é precisamente esta continuidade epistémica que os discursos narrativos da expansão, por um lado, e a historiografia coetânea, por outro, visam encobrir.
 
Margarita Zamora
  Para uma Cartografia das Descobertas: mapa / viagem / texto  (pp. 123-167)
 Explorando as relações entre a cartografia, a geografia, os textos náuticos, a literatura de peregrinação, e os escritos de Cristóvão Colombo, propõe-se uma abordagem inderdisciplinar para o estudo dos discursos do fenómeno da descoberta e dos problemas epistemológicos e textuais concretos postos pelo Descobrimento da América. Mais especificamente, se nos relatos que Colombo fez da primeira e da segunda viagens a ênfase recai sobre as propriedades da escrita enquanto forma de registo, segundo uma estratrégia narrativa aparentada à carta-portulano — em que a viagem se desenrola sintagmaticamente, progredindo de modo linear através da nova geografia —, a ‘Relación’ referente à terceira viagem oferece uma exegese das descobertas recorrendo a uma interpretação dos seus espaços centrada no plano espiritual; ou seja, optando por uma abordagem da viagem de tipo paradigmático.
 
Kenneth David Jackson
  O Texto do Folclore Indo-Português  (pp. 169-191)
 Os textos orais — versos, histórias, provérbios, adivinhas e cantigas — levados nas embarcações portuguesas e de que sobrevivem hoje inúmeros exemplos na Índia e no Sri Lanka desempenharam um papel fundamental na criação e na preservação de uma expressão cultural indo-portuguesa bem distinta, a qual se desenvolveu ao longo de muitos anos de contacto ao mesmo tempo que contribuía para a promoção de novas formas de identidade cultural e de coesão social. Os povos indo-portugueses habitam um mundo espiritual de alteridade, a meio caminho entre as realidades portuguesa e indiana. O seu modo de vida é, em si mesmo, símbolo de transformação e transfiguração, pois nele se juntam continentes, raças, línguas e práticas religiosas, num sincretismo muito singular de materiais originários de Portugal, da África e da Ásia.
 
Bela Feldman-Bianco
  Múltiplas Camadas de Tempo e Espaço. (Re)construções da Classe, da Etnicidade e do Nacionalismo entre Imigrantes Portugueses  (pp. 193-223)
  Na presente conjuntura do capitalismo, o Estado português redefiniu-se como uma nação desterritorializada, que incorpora sua população disseminada pelo mundo. Consequentemente, tornaram-se cruciais para esta redefinição tanto a legitimização das redes transnacionais de migrantes quanto a própria construção cultural da saudade. Nêste mesmo período, os esforços dos Estados Unidos visando a incorporação de imigrantes tendem a estimular celebrações públicas de comunidades étnicas como pilares do tecido social americano. Com efeito, o caso da comunidade imigrante portuguesa da região de New Bedford demonstra claramente que enquanto no passado a possibilidade de conseguir mobilidade social ascendente e poder político demandava a rejeição, ou invisibilidade, da identidade e ancestralidade portuguesas, presentemente ocorre um processo inverso.
 
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