Quanto Vale a vida?
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Rangel Araújo [3] é um dos atingidos pelo rompimento violento e criminoso da Barragem B1 da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, operada pela mineradora Vale. Em sua memória corporal internalizou-se a resposta de correr. Aconteça o que acontecer, é assim que esse corpo agora responde ao terror que o persegue. Nomeiam-no reiteradamente de acidente, para que seja aceito como tal, assim silenciam o crime e as vidas envoltas em lama, como se seus corpos fossem ela própria.
A barragem se rompeu. Leia-se: deixaram-na romper. O chão firme sobre o qual se desenhavam as histórias, constituíam-se os vínculos e as experiências de comunidade foi arrastado pelos rejeitos liberados pelo rompimento. É assim que muitos recontam o 25 de janeiro, dia do colapso das estruturas conhecidas e das vidas de centenas de famílias. Embora muitos permaneçam em Brumadinho, outros já deixaram o pouco que restou. Há os que puderam reconhecer os corpos resgatados e os que não puderam – como reconhecer o irreconhecível? Há os que aguardam os resultados das buscas pelos desaparecidos, os corpos desaparecidos(sem aspas, na mídia), um eufemismo para “mortos e não encontrados”, para a violência do acontecimento material, ambiental, estético, ético, espiritual e sobretudo psíquico dos que ficam sem informação, violentados, inclusive, pela impossibilidade do luto. A experiência da temporalidade também foi rompida: ontem, hoje e amanhã se misturam como se fossem um e nada ao mesmo tempo.
O mesmo Rangel Araújo buscou pelo futebol, no entanto, disse ele, “minha mente pensa uma coisa, minha perna pensa outra coisa”. A tragédia provocou cisões, fragmentou a compreensão corporal da realidade. O medo, a insegurança, a raiva, o ímpeto de correr circulam em seu corpo - como materialidade do trauma. Com os golpes na bola, quem sabe, parte da angústia esparramada em seu corpo pudesse sair, mas suas pernas estão atentas a outro movimento, para correr na iminência da morte - física e simbólica. O resgate das pessoas seria a possibilidade desesperadora de saída do não lugar produzido.
Como dormir se os gritos ainda acompanham as imagens sujas de lama, e quando despertos, é difícil olhar a cidade em silêncio? Brumadinho foi tomada de surpresa e de horror: de repente, a ecologia das relações tornaram-se enlameadas; a existência, embotada; as ausências e a precariedade das vidas, expostas, como se pudessem ser refeitas em moldes de argila da lama que arrastou a cidade; a espera de informações na sala do Instituto Médico Legal; a espetacularização da mídia; a desresponsabilização nas declarações do presidente da companhia Vale; a conivência do governador do estado - tudo resumido em “foi um acidente”.
Érica Aparecida Kawakami [1]
Fulvio Cesar Garcia Severino [2]
[1] Psicóloga, doutora em sociologia, profa. da UNILAB/Bahia.
[2] Doutorando em Educação - UFSCar/São Paulo. Linha de pesquisa: Educação, Cultura e Subjetividade.
[3] Disponível em: https://tinyurl.com/y3djfx69