Duas Décadas de Reformas Regressivas: A Crescente Vulnerabilidade da Provisão Pública de Rendimento na Reforma
Maria Clara Murteira
1- O Problema
Na viragem do século, o sistema público de pensões iniciou uma trajectória de reformas que tem vindo a fragilizar, gradualmente, a provisão pública de rendimento na reforma. Uma sucessão de alterações regulamentares, aprovadas entre 1999 e 2007, mudaram significativamente as regras de cálculo e de actualização das pensões que tinham sido instituídas na década de noventa. A mudança institucional operada foi profundamente transformadora, porque implicou a adopção de novos instrumentos de política, novos princípios e novos objectivos. Porém, a natureza radical da trajectória seguida não foi claramente percebida pelos cidadãos, uma vez que os efeitos das novas regras são graduais e, portanto, só são plenamente sentidos no longo prazo. O objectivo da manutenção do nível de vida foi abandonado. Para assegurar este objectivo, as regras antes instituídas relacionavam a primeira pensão com as melhores remunerações dos últimos anos de actividade e a indexação das pensões em pagamento garantia a manutenção do seu valor real. As novas regras tornaram as pensões dependentes das remunerações de toda a carreira, afastando-as progressivamente das remunerações finais (as pensões ficam mais próximas dos rendimentos passados e mais distantes dos rendimentos correntes). No período subsequente, a indexação já não garante a manutenção do valor real de todas as pensões. Por sua vez, a partir de 2007, os níveis mínimos das pensões começaram a divergir do salário mínimo nacional.
No período em que vigorou o Memorando de Entendimento, a mudança foi abrupta. As medidas de austeridade atingiram de imediato e severamente os rendimentos dos pensionistas (cortes no valor nominal das pensões, congelamentos, suspensão da pré-reforma, agravamento da tributação). Umas medidas foram revertidas; outras não. Algumas medidas não revertidas, com efeitos graduais, vieram aprofundar a trajectória de reformas iniciada na viragem do século.
Duas décadas de reformas regressivas implicaram uma crescente vulnerabilidade da provisão pública de rendimento na reforma. A análise desenvolvida permite concluir que o problema essencial do actual modelo de provisão reside na sua incapacidade de garantir níveis adequados de pensões, uma vez que as regras instituídas afastam progressivamente os rendimentos dos reformados dos rendimentos médios correntes, impedindo-os de partilhar os níveis de prosperidade vigentes na sociedade. Os dados disponíveis ilustram-no de forma inequívoca. Estas regras provocam a degradação gradual dos níveis médios das pensões em relação às remunerações médias correntes, têm remetido uma percentagem crescente de pensionistas para o mecanismo de garantia de mínimos e consentem a divergência dos níveis mínimos de pensões em relação ao valor do salário mínimo nacional.
2 – As Alternativas
Será possível configurar um outro modelo de provisão pública de rendimento na reforma generoso, capaz de debelar as vulnerabilidades do actual? Sim, seguramente. O envelhecimento populacional não implica a insustentabilidade financeira a médio e longo prazo de um sistema público de pensões de repartição generoso, nem tem como consequência inelutável o desmantelamento dos sistemas vocacionados para assegurar a manutenção dos níveis de vida.
A afirmação anterior exige um breve esclarecimento, porque é contrária à ideia instalada no senso comum da inevitabilidade do recuo dos sistemas de pensões em contexto de envelhecimento demográfico. O raciocínio pode ser clarificado com o apoio de uma expressão simples, que representa o encargo de um sistema público de pensões para uma sociedade (designado “encargo das pensões”). O encargo das pensões mede-se pelo quociente entre a despesa com pensões e o PIB. A decomposição do indicador nas suas determinantes estruturais evidencia que este é função directa do índice de dependência dos idosos e do nível médio das pensões e função inversa da taxa de actividade, da taxa de emprego e do produto por trabalhador.
A decomposição mostra que, quando aumenta o índice de dependência dos idosos, não é necessário reduzir a pensão média, para estabilizar o encargo das pensões. O objectivo pode ser alcançado através do aumento das taxas de actividade e de emprego e do crescimento do PIB por trabalhador. Não há determinismo demográfico: mesmo nas sociedades envelhecidas, é possível preservar o nível de vida dos pensionistas, mantendo estável o encargo das pensões, se forem seguidas políticas económicas que priorizam o pleno emprego e o crescimento. Estas políticas potenciam a expansão das receitas dos orçamentos sociais, criando as condições necessárias para financiar sistemas mais generosos. Importa, pois, colocar a política económica no centro do debate sobre as políticas de pensões.
É possível reverter as reformas regressivas e reconstruir um sistema de pensões generoso, mas só se for possível reverter o actual modelo de condução da política económica e adoptar um outro que priorize o pleno emprego e o crescimento. É impensável a reversão das reformas no quadro do actual modelo de condução da política económica na União Europeia (que renunciou aos objectivos mencionados). O enquadramento institucional da política económica europeia e o modelo de inserção na economia global propiciaram a criação de um ambiente económico disfuncional (caracterizado por baixo ritmo de crescimento económico, pela persistência do desemprego e consequente declínio da parte do trabalho no rendimento), sobretudo nos países da periferia, que limitou a possibilidade de expandir as receitas dos orçamentos de segurança social.
O problema fundamental é económico e depende de escolhas políticas
A perspectiva de análise hoje dominante tem concentrado a atenção no problema do financiamento, mas desvia a atenção dos problemas fundamentais que as sociedades envelhecidas terão de enfrentar. O problema económico real colocado pelo envelhecimento populacional é o da disponibilidade futura de bens e serviços. Se a população em idade activa tiver um peso cada vez menor, será possível produzir bens e serviços suficientes para garantir a manutenção dos níveis de vida? A resposta será positiva, se forem asseguradas elevadas taxas de actividade e de emprego e um crescimento suficiente da produtividade do trabalho.
O outro problema fundamental é o que se refere aos níveis de vida relativos dos reformados, grupo da população com um peso crescente. Como definir a parte da produção futura a reverter a seu favor? A questão é indissociável do problema mais geral da repartição do rendimento na sociedade. A parte dos reformados dependerá da repartição funcional do rendimento e da repartição da massa salarial entre a população trabalhadora e a reformada, e será regulada pelas normas que definirem a obrigação contributiva e o direito às prestações. A questão das pensões está no cerne dos conflitos distributivos na sociedade. É eminentemente política. Numa economia em crescimento é mais fácil definir as regras de partilha. Porém, independentemente dos níveis de produção futuros, será sempre possível especificar a parte do rendimento a transferir para os reformados, respeitando um critério de ética social acordado, e concretizar as transferências sociais necessárias.
Uma vez que o modelo de provisão é uma escolha política, o desenvolvimento de um sistema generoso poderá ser exequível num outro contexto, em que a política económica centrada no pleno emprego propicie relações de poder mais favoráveis aos trabalhadores.
Como configurar o sistema de pensões ideal? É plausível considerar que o sistema ideal é o que garante níveis máximos de segurança económica na reforma, ou seja, o que adopta o objectivo da manutenção dos níveis de vida. Esse sistema corresponde a uma versão aperfeiçoada do que foi abandonado há duas décadas, quando se iniciou a trajectória de reformas regressivas. No momento da passagem à reforma, as pensões passariam a relacionar se com os salários dos últimos anos de actividade, para garantir uma elevada taxa de substituição; no período subsequente, seriam indexadas ao crescimento das remunerações de trabalho, para evitar a sua desvalorização relativamente aos rendimentos correntes. Esse sistema permitiria cumprir o ideal da partilha da prosperidade pelos reformados.