Projeto de Tese de Doutoramento

Parentalidades dissidentes: o cuidado exercido por homens trans no Brasil e em Portugal

Orientação: Ana Cristina Santos

Programa de Doutoramento: Estudos Feministas

Financiamento: FCT

A política, a prática e a experiência vivida enquanto pessoas trans* têm provocado a desconstrução do gênero enquanto categoria binária fixa nas esferas sociais, culturais, políticas e jurídicas (Platero, 2014). Contudo, o enquadramento das identidades trans* como doença mental nos manuais de medicina tem persistido desde os anos 1970, patologizando-as e prejudicando seu reconhecimento social (Lionço, 2009) a partir de diagnósticos médicos uniformizados em países como Portugal e Brasil.

Em contrapartida, o movimento pela despatologização dessas identidades demanda ressignificar as transições de gênero a partir do campo dos Direitos Humanos (Princípios de Yogyakarta, 2007; Davy et al., 2018), da equidade e da integralidade da atenção à Saúde (Almeida e Murta, 2013; ILGA, 2016a). Além disso, propõe que as especificidades interseccionais dos contextos culturais sejam consideradas na construção de políticas sociais e pesquisas (Bento, 2010, 2017; Pelúcio, 2012), pensadas a partir da promoção da cidadania íntima, sexual e reprodutiva (Plummer, 2003; Richardson, 2000; Santos, 2018a) e da política da diferença (Young, 1990). Essas iniciativas são capazes de aprofundar o pertencimento desses indivíduos à sociedade, demonstrando potencial para a formação de alianças (Hines e Santos, 2018). Neste sentido, o questionamento de uma epistemologia binária reflete a multiplicidade das experiências vividas (Preciado, 2018) pelas pessoas trans* e ressignifica papéis sociais e categorias de masculino e feminino.

Recentes mudanças nos enquadramentos legislativos português e brasileiro têm apresentado alterações à Lei de Identidade de Gênero (Hines e Santos, 2018) e ao registro civil de pessoas trans* (Richter, 2018). Observando a escassez de estudos sobre este tema internacionalmente (Hines, 2017; Platero, 2014), a ausência de projetos e políticas que tirem essas experiências da invisibilidade e o ineditismo nos contextos da Sociologia em Portugal e no Brasil, meu objeto de análise visa ampliar a produção científica neste campo e contribuir com os movimentos sociais LGBT+ no entendimento das experiências parentais de cuidado exercidas por homens trans*. Tais vivências dividem-se entre aquelas em que exercem a função reprodutiva socialmente atribuída às mulheres, apresentando um cenário distinto na relação aos papéis sociais vinculados às categorias binárias de masculino e feminino e à norma heterossexual, e as que assumem o papel de cuidadores, estando ou não em um relacionamento afetivo.

À essa vinculação cultural do sexo ao comportamento e do gênero à genitália (Foucault, 2001; Rubin, 2003), definindo o masculino pela presença do pênis e, o feminino, pela vagina, é oferecida uma perspectiva da reprodução não vinculada a corpos e identidades (Haraway, 2013). A desestruturação desses estereótipos cria subversões performativas (Butler, 2017) e assegura não haver uma essência sobre o que é ser homem ou mulher, apenas construções sociais. Não é uma troca de lugares entre pai e mãe exclusivamente, mas a construção de novos lugares e sentidos a partir da diversidade: de experiências, de arranjos familiares, de possibilidades (Medrado e Lyra, 2002).

Neste contexto, meus questionamentos circundam em torno de como os panoramas legislativos e diretivos aplicados no Brasil e em Portugal reconhecem e protegem as identidades de gênero dos homens trans* nas experiências de parentalidade, promovendo direitos e acolhendo demandas. E, ainda, em como essa função parental pode ser exercida a partir de uma ética do cuidado (Gilligan, 1982; Tronto, 1987), que o torna responsabilidade individual e coletiva capaz de ultrapassar argumentos biologicistas, desconstruir processos familiares tradicionais e os reconstruir baseando-se nessa variabilidade de experiências (Dierckx e Platero, 2018).

Dessa maneira, esse trabalho de investigação propõe-se, a partir das experiências de cuidado parental de homens trans*, traçar um panorama comparativo do enquadramento jurídico e das políticas sociais entre Brasil e Portugal no que diz respeito ao acolhimento e promoção de suas cidadanias íntima (Plummer, 2003) , sexual (Richardson, 2000) e reprodutiva (Santos, 2018a). A investigação visa contribuir com a ampliação dos atuais debates sociológicos em torno desses temas, promovidos no meio acadêmico e do ativismo, bem como na formulação de políticas públicas inclusivas, não discriminatórias e que promovam respeito às liberdades individuais e ao reconhecimento social das famílias LGBT+.